SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 issue2Teenage pregnancy in the Sururu de Capote slums, in Maceió, AlagoasThe RIME intervention as a resource for the well-being of patients ostomates author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Psicologia Hospitalar

Print version ISSN 1677-7409

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.12 no.2 São Paulo Dec. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Ser nonagenário: a percepção do envelhecimento e suas implicações

 

Nonagenarian aging perceptions and implications

 

 

Emy MurakamiI,1; Valmari Cristina AranhaI,II2; Cristina Claro FrançaII,3; Gláucia Rosana Guerra BenuteI,4; Mara Cristina Souza de LuciaI,5; Wilson Jacob FilhoII,6

IDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
IISetor de Geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivo: Este estudo se propõe descrever a percepção auto-referida do que é ser nonagenário, investigando as representações sociais do envelhecimento. Método: A amostra deste estudo foi probabilística por conveniência. Foram entrevistados 15 idosos provenientes do Ambulatório de Nonagenários do Serviço de Geriatria de hospital universitário. A análise qualitativa foi realizada por meio da proposta de Lefrèvre Análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Resultados: Foram encontrados nove eixos de ideias centrais em que se descrevem os discursos: O idoso; o melhor da vida; o pior nesta fase da vida; mudanças; saúde; relacionamentos; sexualidade; alterar o passado e qualidade de vida. Conclusão: As representações sociais pelos nonagenários quanto ao que é ser idoso está associada à saúde física e mental, convívio familiar, lazer, perdas e limitações físicas.

Palavras-chave: Psicologia, Envelhecimento, Representação Social.


ABSTRACT

This study aimed at describing the self-reported perception of being a nonagenarian, and investigated the social representations of aging. Method: Non probability convenience sampling was employed. We interviewed 15 individuals from the Department of Geriatrics Clinic (nonagenarians) at a university hospital. Qualitative analysis was carried out using the methodology proposed by the Lefrèvre Analysis of the Collective Subject Discourse. Results: We found nine axes of central ideas which describe the speeches: The elderly, the best of life, the worst at this stage of life, change, health, relationships, sexuality, changing the past and quality of life. Conclusion: Social representations by nonagenarians as to what it means to be elderly are associated with physical and mental health, family life, leisure, losses and physical limitations.

Keywords: Psychology, Aging, Social Representation.


 

 

INTRODUÇÃO

A população idosa cresce significativamente, nunca o envelhecimento foi tão falado e assistido como hoje, sendo os idosos longevos ou idosos muito idosos parcela importante nesta população. Tal grupo vem crescendo em ritmo acelerado, em 2000 passou para quase 1,9 milhões na população brasileira (Camarano, 2002).

Idosos longevos diferenciam-se de outros grupos etários e entre si, esta fase é marcada pela heterogeneidade. Contempla idosos vigorosos e independentes, bem como dependentes e acamados. Este grupo, além de partilhar do que é próprio ao processo de envelhecimento em qualquer idade, encontra-se num período de maior prevalência de doenças, principalmente as neurodegenerativas e da necessidade de cuidados específicos.

Esta mudança demográfica trouxe consequências sociais, econômicas e de cuidados de saúde. A medicina e seus avanços, as mudanças no estilo de vida e o acesso a informações fez com que a expectativa de vida aumentasse e que os idosos  conseguissem envelhecer em condições físicas e mentais mais saudáveis.  Para tanto, conhecer as características desta população tão heterogênea se faz primordial para a implementação de medidas interventivas adequadas, seja no âmbito pessoal ou coletivo. Esta perspectiva faz com que o envelhecimento seja considerado foco de interesse e responsabilidade política e social, envolvendo o estado, o município e as famílias para atendimento e cuidados a este contingente.

A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2005) apresenta a temática do envelhecimento envolvendo as áreas da saúde e temas da educação definindo “saúde” como bem-estar físico, mental e social. Para a OMS (2005), o envelhecimento ativo diz respeito ao processo de otimização das oportunidades de saúde, a participação e a segurança, com objetivo de adaptar a qualidade de vida à medida que as pessoas envelhecem.

A construção do conhecimento médico e psicológico acerca da velhice caracteriza-a como processo de degeneração natural e irreversível, propiciando a construção de um discurso gerontológico subsidiando a gestão da velhice por uma ilusão de homogeneidade entre os indivíduos e entre os saberes, condenando as diferenças ao silêncio e promovendo a alienação frente às contradições presentes nas condições de existência (Haddad, 1986).

Importantes avanços no campo da saúde vêm ocorrendo no Brasil, em especial na área da saúde do idoso. Nesse sentido, a Política Nacional de Saúde do Idoso apresenta como propósito basilar à promoção do envelhecimento saudável a manutenção e a melhoria, ao máximo, da capacidade funcional dos idosos, a prevenção de doenças, a recuperação da saúde dos que adoecem e a reabilitação daqueles que venham a ter sua capacidade funcional restringida, de modo a garantir-lhes permanência no meio em que vivem, exercendo de forma independente suas funções na sociedade (Brasil, 1998).

O fenômeno do envelhecimento populacional, vivenciado por países desenvolvidos e em desenvolvimento, desperta a necessidade de pesquisas sobre idosos longevos (≥80 anos). Isto porque este grupo etário apresenta características morfofisiológicas, psicológicas e socioeconômicas diferenciadas de outros indivíduos, inclusive idosos mais jovens (Pluoffe, 2003). Estudos se tornam importantes e complexos em uma população que geralmente se apresenta com diferentes patologias, histórias pregressas distintas e fatores de risco para diferentes situações, frequentemente presentes (Sikora, 2000).

A literatura (Argimon & Stein, 2005; Ferreira, 2006; Goldani, 1999) aponta diferença significativa na proporção entre homens e mulheres idosos. Ferreira (2006) encontrou 60,4% de mulheres e 39,6% de homens “muito idosos” no município de São Paulo, sendo que ⅔ dos idosos com 80 anos ou mais são mulheres com expectativa de viver mais nove anos e, entre os centenários, haveria oito mulheres para cada homem (Argimon & Stein, 2005).

Na comparação entre idosos jovens e muito idosos constata-se que os idosos mais velhos apresentam com mais frequência inabilidades funcionais e maior número de doenças crônicas (Xavier et al., 2006). Metade dos homens acima de 85 anos mora com suas esposas e somente 10% das idosas octagenárias vivem com seus maridos. Nesse sentido, mulheres em idades mais avançadas apresentam maior probabilidade de morar com parentes (Camarano & El Ghaouri, 2003).

A independência e a autonomia das idosas ficam marcadas nas situações em que, após a perda do companheiro, buscam auxílio da família, mas passado o estado de choque, geralmente manifestam vontade de retomar sua vida e atividades desvinculadas da família (Rocha, Gobbi, Mazzarino, Krabbe & Areosa, 2005).

Diferentes representações sociais da velhice fazem parte da sociedade atual e mostram conflitos que mascaram os sentimentos daqueles que envelhecem, denotando a necessidade de melhor compreensão da realidade para ressignificar a existência, já que grande parte das representações da velhice é construída em torno da diferença e da estranheza (Magalhães, 2007).

A representação é fenômeno complexo, pois corresponde a conduta particular, pensamentos, crenças e ações, mas também está associada a questões socioculturais, “(...) manifestações simbólicas de subjetividades grupais” (Vaisberg, 1997, p.106).

Perdas funcionais, aposentadoria e acometimento de múltiplas doenças crônicas podem determinar a perda de papéis sociais, levando o idoso a uma condição de dependência e da necessidade do cuidado de outros, principalmente de familiares.

As repercussões sociais dos fenômenos relacionados ao envelhecimento são profundas e necessitam de mais estudos para uma adaptação eficaz. As mudanças sociais podem vir do convívio intergeracional que mostra a relação entre o mais idoso membro do núcleo familiar e o mais jovem deles, acarretando, em alguns contextos, um intercâmbio de valores, expectativas e experiências vividas. Em outras estruturas, há necessidade de um olhar mais abrangente e transformador para as novas relações sociais que terão origem no nível micro da sociedade e interfere no macro (Oliveira, Albuquerque & Senna, 2006).

Para tanto, a Teoria das Representações Sociais operacionaliza conceitos para trabalhar com o pensamento social em sua dinâmica e em sua diversidade (Moscovici, 1979). Compreender a representação social permite conhecer a interação dos indivíduos com a sociedade. Para Jodelet (2002), a representação social é forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com objetivo prático, contribuindo para construção de uma realidade comum a um conjunto social.

A partir do momento em que se considera a pessoa em sua plenitude incluindo sua história e suas representações como totalidade não fragmentada, o presente estudo poderá contribuir com o conhecimento acerca do psiquismo do nonagenário e suas representações, auxiliando na discussão, implementação e disseminação de medidas assistenciais adequadas a esta população que tanto cresce e carece de cuidados.

 

OBJETIVO

Este estudo se propõe a descrever a percepção autorreferida do que é ser nonagenário, investigando as representações sociais do envelhecimento.

 

MÉTODO

Este estudo foi previamente aprovado pela comissão de ética em pesquisa da instituição (nº 0562/10). Todos que concordaram em participar assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Foi desenvolvido no Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, entre fevereiro e dezembro de 2011.

A amostra deste estudo foi probabilística por conveniência. Foram avaliados 17 idosos provenientes do Ambulatório de Nonagenários. Destes, 2 foram excluídos do estudo devido à constatação de déficit cognitivo moderado (n=1) e grave (n=1), avaliados pelo Mini Exame do Estado Mental, MEEM (Messy, 1999).

Para atingir os objetivos propostos foi realizada entrevista semidirigida, contemplando questões que investigavam os sentimentos sobre ser idoso, aspectos positivos e negativos desta fase da vida, relacionamentos afetivos e sexualidade. A entrevista durou em média 60 minutos. Após consulta médica realizada no Ambulatório de Nonagenários, os idosos eram convidados a participar deste estudo. Ao concordarem assinavam o termo de consentimento livre e esclarecido e a entrevista era realizada, em sala específica para tal finalidade.

Análise dos Dados

A análise qualitativa foi realizada por meio da Análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), proposta por Lefevre (Lefevre, Lefevre & Teixeira, 2000). O DSC é composto por aquilo que um dado sujeito falou e também por aquilo que ele poderia ter falado, mas que foi dito por outra pessoa, tendo como base a expressão concreta do imaginário do campo a que ambos pertencem e da posição que ocupam dentro desse campo. Os discursos foram organizados a partir do mesmo tema eixo utilizado na elaboração das questões e que será usado na análise. Desse modo, cada um dos DSC construídos representa uma das nove categorias elaboradas: ser idoso; o melhor da vida; o pior nesta fase da vida; mudanças; saúde; relacionamentos; sexualidade; alterar o passado e qualidade de vida. O DSC nada mais é do que ideias individuais reunidas formando um discurso coletivo.

 

RESULTADOS

Dos 15 idosos, 73,33% eram do sexo feminino e 26,67% do sexo masculino; 40% analfabetos; com idade média de 93 anos (DP=2,46). Dos homens, 20% estava casado e das mulheres, 60% era viúva e 13,3% solteira. A maioria dos nonagenários (80%), sendo 27% do sexo masculino e 53% do sexo feminino, morava com alguém da família. Com relação às doenças, 20% dos nonagenários relataram doenças neurológicas, seguidas de 17,4% osteomotoras, 11,5% cardiovasculares, 8,6% oftalmológicas e 28,5% outras, incluindo quedas, problema auditivo, exames, fraqueza, anemia, alergia, diabetes, problemas na tireóide e no aparelho respiratório.
Os resultados obtidos por meio das questões encontram-se organizados em DSC e associados aos eixos temáticos previamente definidos e descritos anteriormente. Sendo eles:

Ser idoso
Identificou-se que os discursos relacionados ao que é ser idoso referiam-se à saúde física e mental: “Como sou idosa que entende, não tenho perturbação mental, então tá bom, vejo várias com muitos problemas; acho ruim, fico agoniada. Compreender bem as coisas é ter saúde”.

O melhor da vida

Foram identificadas quatro categorias:

- Aspectos objetivos: “Ah, ter minha profissão, poder comer, beber bem, cozinhar... fazer tudo sozinho”;

- Convívio familiar: “O melhor é a minha família, veja os meus filhos, são todos bons para mim. Considero que a única coisa boa são os meus bisnetos. Viver juntinho com a minha velha é o que tem de melhor”;

- Aceitação e passividade: “Eu agradeço a todo mundo; a idade vem, tem que aceitar tudo. Eu me sinto bem”;

- Lazer: “Acho que o melhor é poder ir à pescaria. Gosto muito de fazer crochê e poder viajar”.

Pior nesta fase da vida

Foram reconhecidas nesta temática:

- Perdas decorrentes do processo de envelhecimento: “É difícil, não posso mais fazer as coisas que eu fazia antes. É muito triste, é duro quando a gente perde o marido, familiares e amigos. É muito sofrimento”;

- Limitações físicas decorrentes da idade ou de alguma doença adquirida: “Considero muito ruim a cegueira e a surdez, isso mudou muito minha vida. Quando almoço a tontura aperta e as minhas pernas não me ajudam, eu caio muito”;

- Não ter nada de ruim no processo de envelhecimento: “De ruim não tem nada; está tudo bem”.

Mudanças

Quanto aos aspectos que os nonagenários gostariam de alterar nas suas vidas foram considerados:

- Saúde e produtividade: “Eu mudaria algumas coisas, gostaria de poder fazer mais coisas, voltaria a trabalhar, gostaria de ter mais saúde, como antes, mudaria o jeito que a minha perna está para poder andar”;

- Não alterar nada: “Eu não penso em mudar nada, não penso nessas coisas. Eu não tenho do que reclamar, tenho tudo, então não mudaria nada”.

Saúde

Com relação à saúde, foram apontados aspectos físicos:

- Aspectos Negativos: “Saúde não tenho muito. Depois dos 75 anos comecei a ter doenças de velho. Tenho idade para tudo isso. Agora não estou muito boa por causa da vista, tenho degeneração na retina, não durmo direito e tenho medo de sair sozinha porque tenho tontura e a tremedeira que me incomoda. Ontem eu caí no banheiro, preciso andar segurando para não cair. E essa dor que tenho às vezes, estou ruim, dói tudo. Com a minha idade, acho que não tem mais jeito. Muitas vezes não faço o que quero porque não tenho condições. Eu desejo ficar bom. Eu queria ficar bom, assim ia poder andar, trabalhar. Queria ter mais saúde”;

- Aspectos positivos: “Eu acho que pela minha idade tenho muita saúde. Eu agradeço todo dia, cheguei a essa idade sem estar numa cama; acho bom, ‘tô’ satisfeito”.

Relacionamentos

Os relacionamentos foram apontados como:

- Satisfatórios e frequentes: “Excelente, sempre fui simpática. Todos têm paciência comigo. É muito bom, graças a Deus, não posso reclamar. Eu frequento associação de senhoras católicas, gosto muito de ir lá; são todos amigos, não tenho queixas. Eu tenho uma família bonita, meus netos gostam de mim. Os vizinhos conversam comigo, brincam. É bom, tenho muitos amigos, não tenho inimizade com ninguém”;

- Isolamento social: “Eu já tive bons amigos, mas depois de certa idade e doente, some tudo, ninguém vem visitar. Agora quase não tenho amigos, não saio de casa, fico só com meus parentes”;

- Insatisfação: “Eu só tenho um filho que ‘encosta’ [depende financeiramente] em mim, toda a minha vida incomodou; gostaria que a minha nora viesse mais”.

Sexualidade

Neste contexto os discursos versaram sobre:

- Insatisfação: “Sexualidade, na minha vida eu não acho mais nada, fico só com a minha filha, não posso ir a lugar nenhum. Já foi melhor, por isso eu acho que ficar velho não é bom”;

- Satisfação: “Está 100% bom, agradeço a minha esposa. Acho que está de acordo com a idade. Você procura outras coisas que dão satisfação. Acho bom. Para tudo existe ordem; se a pessoa é casada, precisa respeitar o marido”.

Alterar o passado

 Quanto a realizar alguma mudança na vida, caso pudessem voltar no tempo constatou-se que aqueles que mudariam falaram sobre: “Seria aeromoça para viajar. Eu queria mudar para ter mais saúde e trabalhar, sempre fui trabalhador; se pudesse voltar no tempo para costurar; casei com 23 anos, tive 15 filhos, 8 morreram, me ficaram 7. Tem muita coisa boa ainda; eu faria escolas para cuidar das crianças”.

Qualidade de vida

Foram apontados:

- Recursos materiais favoráveis: “A minha vida é boa porque as coisas materiais ajudam. Assim posso viver bem. Minha vida está melhor, minha filha ganha mais um pouquinho, elas me acodem em tudo”;

- Recursos desfavoráveis: “Precisava ter mais dinheiro para poder ter as coisas e viver melhor...”;

- Aspectos gerais: “Acho que a qualidade da vida é a pessoa que faz. É individual, cada um faz, planeja. Eu não brigo com ninguém, todos me respeitam. Nasci pobre, criei pobre e só não sou pobre pela graça de Deus, tenho riqueza espiritual; tendo Deus está tudo bem. Pode melhorar em tudo, espiritualmente e carnalmente”.

Por fim, os nonagenários fizeram uma comparação entre quando tinham 60 anos e agora com 90 anos ou mais. Daqueles que afirmaram perceber diferenças, os discursos foram voltados para modificações físicas, que incluíam limitações: “Tem diferença no andar, na lembrança das coisas. Antes tinha mais disposição, não precisava de gente acompanhando quando saía. Agora não posso fazer mais nada. Já tive muita saúde, depois fui perdendo. A gente não fica esperta para andar, tem que tomar cuidado.”

Aspectos sociais, relacionados à produtividade e a preocupação das pessoas foram evidenciados nos discursos: “Com 60 tinha mais disposição, trabalhei até os 75 anos, hoje não tenho mais força. Se não fosse a minha esposa eu até trabalhava, coisa leve, mas fazia. Agora parei de tudo. Eu costurava bastante, com 60 eu trabalhava, lavava roupa, passava...”

 

DISCUSSÃO

Viver muito nem sempre significa viver bem, a longevidade tão desejada, se não bem organizada e programada, pode ser problema para quem envelhece, sua família e para a sociedade. A população estudada corrobora a literatura neste sentido. Constituiu-se em sua maioria de mulheres, viúvas ou solteiras, residindo com familiares e portadores de várias patologias.

As representações quanto ao que é ser idoso, para a população estudada apresentou-se bastante ligada à saúde, aos aspectos físicos e também emocionais. Mudanças físicas, sociais e emocionais acometem essa população com maior intensidade do que outras faixas etárias. Eleger aspectos mais voltados a questões físicas e à saúde como indicadores faz sentido quando falamos de uma população que está mais exposta a mudanças desta natureza e que procurou por um serviço de saúde.

Diferenciar a natureza das alterações e dos incômodos atribuídos ao corpo e suas consequências não é tarefa fácil, tanto para o idoso quanto para quem com ele convive. Queixas emocionais e sociais frequentemente vêm associadas e traduzidas por meio das alterações e das limitações físicas, numa relação de justaposição de queixas que dificulta, em muito, diagnósticos e medidas interventivas para essa população. As doenças crônicas e as incapacidades do envelhecimento podem afetar significativamente o bem-estar dos idosos, exigindo da pessoa um grande esforço adaptativo (Rabelo & Neri, 2005), que juntamente com as perdas presentes na velhice podem causar grande angústia.

Apesar das limitações e alterações vivenciadas nesta etapa, é possível manter-se emocionalmente estável e reconhecer e valorizar experiências vivenciadas no decorrer da vida, como podemos observar quando os nonagenários referem o melhor da vida como sendo a realização de atividades básicas de vida diária, o convívio familiar e a possibilidade de atividades de lazer. Conseguir manter a funcionalidade e a capacidade para o autocuidado são coisas essenciais e mais valorizadas do que em fases anteriores da vida. Para tanto, a aceitação e a consciência das mudanças é ponto fundamental.

Segundo Xavier et al. (2006), a saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio. Percebeu-se que as modificações do corpo e a forma como percebem e incorporam estas mudanças podem gerar incômodos. Doenças, alterações na funcionalidade, limitações e perdas foram associadas ao que tem de pior em se viver muito.

Idosos que focaram suas representações nas características negativas da idade não conseguiram ter uma visão mais ampla do processo de envelhecimento, de forma a não se apropriar da sua condição existencial, favorecendo certo afastamento da velhice como forma de defesa de uma imagem desagradável. Apresentando-se pouco implicados com sua condição e consequentemente com seus tratamentos. Tal fato ocorre quando não acreditam que suas instâncias psíquicas possam protegê-los das surpresas do espelho, preferindo não se reconhecer com a imagem refletida (Goldfarb, 1998).

O convívio familiar e social é tido como uma das melhores coisas da vida nesta fase, ter com quem conversar, ter descendentes e perceber a continuidade da existência ameniza em muito as perdas inevitáveis para quem vive muito. Os idosos estudados referiram satisfação por terem relacionamentos sociais satisfatórios e o isolamento social foi o ponto negativo, principalmente pela perda de pares, não ter como conversar com pessoas que partilharam das suas vidas foi motivo de insatisfação.

As principais queixas relatadas pelos nonagenários disseram respeito à impotência resultante de limitações próprias da senescência e de idealizações quanto ao que deveria ser a atividade esperada em suas vidas, muitas destas reforçadas por modelos cada vez mais distantes do que deveria ser o envelhecimento bem sucedido, vendidas pela mídia e por profissionais bem intencionados e pouco qualificados.

Voltar ao passado, rever escolhas e aproveitar mais o que não puderam por diversos motivos foram desejos mencionados pelos idosos estudados. Para um envelhecimento mais satisfatório seria indicado tentar aproximar as expectativas criadas da realidade percebida e o idoso seria o responsável por tal encontro, e não um mero observador ante a passagem do tempo.

Associar as mudanças somente à idade e negligenciar a responsabilidade do idoso na manutenção de suas capacidades também é fator importante neste processo. Não só pelo próprio idoso, mas também pelos seus familiares, que tendem a superestimar suas limitações, superprotegendo e afastando o idoso de atividades que poderiam ajudar em muito na manutenção de suas capacidades e funcionalidade.

Passividade e pouca implicação com sua condição existencial e física fez com que os idosos estudados se abstivessem de opiniões e ajustes em sua própria história, trazendo discursos conformistas e positivistas quanto a dificuldades que poderiam ser melhor assistidas. A insatisfação com a velhice explicaria a falta de implicação com a condição atual e com os cuidados de saúde. Muitos dos nonagenários não sabiam quais doenças possuíam, seja por superproteção dos familiares e cuidadores ou como uma negação das vicissitudes do processo de envelhecimento.

O medo da solidão e do isolamento social interferiu na satisfação e na qualidade de vida para os idosos estudados. Perdas de amigos e familiares remeteram os idosos a pensarem na própria finitude, nem sempre admitida como tal, mas traduzida pelo medo da limitação e da dependência. Teixeira (2002) esclarece que não é da morte que se tem medo e sim dos seus correlatos, ou seja, da situação de completa dependência, dos aspectos terminais da vida. O recurso psíquico mais utilizado para evitar a consciência da morte é o imaginário. Viver a ilusão é imprescindível para o ser humano, tanto quanto a desilusão.

A capacidade da manutenção de relacionamentos saudáveis foi descrita como mais difícil nesta fase da vida. A constituição e a dinâmica familiar mudou e a necessidade de um cuidador se faz real para muitos. Considerando que o perfil deste cuidador interfere diretamente na vida do nonagenário. Relações antes não resolvidas se acentuam mediante necessidade de maior contato, fonte de angústia para muitos dos idosos estudados.

 Segundo Messy (1999), sentir-se velho é perder a ilusão da própria potência, que seria uma luta permanente entre o investimento afetivo em si mesmo e o desinvestimento.

A qualidade de vida costuma estar relacionada ao bem-estar subjetivo, a autoestima, a diversos fatores construídos ao longo da vida, como estilo de vida, relações familiares e sociais, trabalho, educação, religiosidade e suporte econômico (Pinheiro & Freitas, 2004). A necessidade de manter a garantia de recursos materiais ajustados sobrepôs necessidades e conflitos emocionais, funcionando como fator de interferência no diagnóstico e nos tratamentos propostos para a população estudada.

Isto posto, é possível pensar na necessidade de ressignificar posturas pessoais e crenças socialmente definidas de que idosos não podem mais ter projetos, restando-lhes apenas a passividade e a espera da morte, se o conhecermos melhor e entendermos quais seriam suas necessidades e quais as melhores formas de supri-las, estaremos no caminho certo na busca pelo tão almejado envelhecimento bem sucedido.

 

CONCLUSÃO

Ser nonagenário é ser marcado pela individualidade. É mais fácil enfrentar esta etapa da vida, se as experiências anteriores foram percebidas como satisfatórias e as memórias mantidas como recurso auxiliar e fortalecedor. Reavaliar pendências e desejos não realizados pode ser fator importante na manutenção de sentido de vida, mas também gerador de frustração, nem sempre definidos como tal, e muitas vezes traduzidos por queixas físicas e sociais. Deste modo, esta nova percepção garante ao idoso, mais especificamente ao nonagenário, um lugar de reconhecimento e dignidade no que tange a ser considerado em sua heterogeneidade e capacidade de manutenção de sua condição, independente da idade que tenha e sim de sua condição física e emocional.

 

REFERÊNCIAS

Argimon, II, Stein, LM. (2005). Cognitive abilities in older seniors: a longitudinal study. Cad Saúde Pública, 21(1):64-72.2.         [ Links ]

Brasil (1998). Pesquisa nacional por amostra de domicílios. IBGE.         [ Links ]

Camarano, AA. (2002). Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica. In: Freitas, EV. Tratado de Geriatria e Gerontologia (pp.58-71). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.         [ Links ]

Camarano, AA, El Ghaouri, SK. (2003). Família com idosos: ninhos vazios? Texto para discussão nº 950, Rio de Janeiro: IPEA.         [ Links ]

Ferreira, JVC. (2006). Os muito idosos no município de São Paulo dissertação. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Goldani, AM. (1999). Mulheres e envelhecimento: desafios para novos contratos intergeracionais e de gênero. In: Camarano AA, (Org.). Muito além dos sessenta: os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: IPEA.         [ Links ]

Goldfarb, DC. (1998). Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Haddad, EGM. (1986). A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Jodelet, D. (2002). As representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj.         [ Links ]

Lefevre, F, Lefevre, AMC, Teixeira, JJV. (2000). O discurso do sujeito coletivo: uma abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: EDUCS.         [ Links ]

Magalhães, NC. (2007). Máscaras e conflitos da representação social do idoso na cidade de Juiz de Fora. Psicologia e Pesquisa;1(01):52-57.         [ Links ]

Messy, J. (1999). A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. São Paulo: ALEPH.         [ Links ]

Moscovici, S. (1979). Comunicação apresentada ao Colóquio sobre as Representações Sociais. Paris: EHESS.         [ Links ]

Oliveira, JC, Albuquerque, FRPC, Senna, JRX. (2006). Breves notas sobre a mortalidade no Brasil no período 2000-2005. IBGE.         [ Links ]

OMS. (2005). Envelhecimento ativo: uma política de saúde / World Health Organization; tradução Suzana Gontijo. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde.         [ Links ]

Pinheiro, JES, Freitas, EV. (2004). Promoção da saúde. In: Py, L. (Org.). Tempo de envelhecer: percursos e dimensões sociais. Rio de Janeiro: Nau Editora.         [ Links ]

Pluoffe, LA. (2003). Addressing social and gender inequalities in health among seniors in Canada. Cad Saúde Pública; 19(3): 855-60.         [ Links ]

Rabelo, DF, Neri, AL. (2005). Recursos psicológicos e ajustamento pessoal frente à incapacidade funcional na velhice. Psicol. estud.; 10(3): 403-412.         [ Links ]

Rocha, C, Gobbi, I, Mazzarino, M, Krabbe, S, Areosa, SVC. (2005). Como mulheres de terceira idade encaram a perda do companheiro. Revista Brasileira de Ciências do Envelhecimento Humano; 2(2): 65-73.         [ Links ]

Sikora, E. (2000). Studies on Successful Aging and Longetivity: Polish Centenarian Program. Acta Biochimica Polonica; 47(2): 487-9.         [ Links ]

Teixeira, MB. (2002). Empoderamento de idosos em grupos direcionados à promoção da saúde (Tese) Escola Nacional de Saúde Pública. Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

Vaisberg, TMJA. (1997). Investigação de Representações Sociais. In: Trinca, W. Formas de Investigação psicológica. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Xavier, FMF, Argimon, II, Zuppo, LP, Lucchesi, L, Heluany, CCV, Trentini, CM.  (2006). O desempenho em testes neuropsicológicos de octagenários não-dementes e com baixa escolaridade em duas comunidades do sul do Brasil. Psico (Porto Alegre); 37(3), 221-23.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
e-mail – valmari@usp.br

 

 

1Psicóloga, especialista em Gerontologia pela FMUSP e colaboradora em pesquisa pela Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP, São Paulo, Brasil.
2Mestre em Saúde Pública pela FSP-USP, Psicóloga da Divisão de Psicologia, responsável pela Psicologia no Serviço de Geriatria do ICHC-FMUSP.  Presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG-SP (2012-2014). São Paulo, Brasil.
3Médica Colaboradora do Serviço de Geriatria do ICHC-FMUSP, São Paulo, Brasil.
4Psicóloga, Doutora em Ciências pela FMUSP. Diretora do Serviço de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP, São Paulo, Brasil.
5Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica. Diretora da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP, São Paulo, Brasil.
6Professor Titular da Disciplina de Geriatria da FMUSP. Diretor do Serviço de Geriatria do ICHC-FMUSP, São Paulo, Brasil.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License