INTRODUÇÃO
A hospitalização altera significativamente a relação entre os membros de uma família, e a doença pode gerar crises entre eles, determinando manobras que devem ser realizadas para que os familiares encontrem acomodação nas alterações em que estão vivendo (Neves, Gondim, Soares, Coelho & Pinheiro, 2018). Essa reorganização está quase sempre acompanhada de sofrimento e conflitos, em que a abdicação de si para o cuidado com o outro é tão intensa que alguns interrompem a cotidianidade de sua vida para realizar o processo de acompanhamento, seja por curto ou longo prazo (Milanesi, Collet, Oliveira & Vieira, 2016).
A discussão sobre o papel do acompanhante na assistência de pacientes internados em hospitais ganhou força a partir dos anos 90 do século XX, sendo considerado desde então, como facilitador do restabelecimento da saúde do paciente e catalisador do processo de reabilitação, sendo capaz de manter vínculos afetivo e social e assegurar o suporte emocional, devido à valorização da importância de se ter alguém no processo da dinâmica do cuidado (Passos, Pereira & Nitschke, 2015).
Tais considerações são baseadas nas orientações das políticas públicas de saúde, inicialmente semeadas pela implantação da Lei do Sistema Único de Saúde (SUS) na qual expressa a Lei n. 8.080/90, garantindo a integralidade da assistência, sendo esta entendida como o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema e que pressupõe o indivíduo como portador de demandas físicas, emocionais, relacionais e materiais.
A parceria entre a equipe de saúde e o acompanhante durante a permanência do sujeito internado faz parte dos aspectos que envolvem o processo de humanização, de acordo com o Política Nacional de Humanização (PNH), se apoiando na Cartilha da Visita Aberta e Direito ao Acompanhante (Ministério da Saúde, 2007). Portanto, devem fazer parte da rotina dos profissionais de saúde, em especial aqueles que atuam em unidades que demandam cuidados especializados, ações diretivas e tratamento de casos de alta complexidade como nas Enfermarias de Pediatria. Na enfermaria, as crianças internadas são acompanhadas por grupo multidisciplinar composto por médicos pediatras, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas e assistentes sociais. O acompanhante familiar responsável pela criança permanece com ela por tempo integral.
Para lidar com o processo de hospitalização, tanto o paciente quanto o familiar acompanhante utilizam-se de estratégias de enfrentamento que favoreçam essa permanência no ambiente hospitalar. Esse conjunto de estratégias e habilidades utilizadas pelos mesmos frente a situações consideradas adversas - por exemplo, o estresse - ou que exijam adaptação é denominado coping, termo que poderia ser compreendido, no sentido figurativo, como “enfrentar”, “seguir em frente” (Vitória & Assis, 2015).
Na perspectiva de Lazarus e Folkman, 1984 (citado por Vitória & Assis, 2015), o enfrentamento é definido como um processo através do qual o indivíduo administra as demandas da relação pessoa-ambiente que são avaliadas como estressantes e as emoções que elas geram (Vitória & Assis, 2015). Ele pode ser classificado em duas importantes divisões: enfrentamento centrado no problema e enfrentamento centrado na emoção, embora muitas vezes ocorram simultaneamente, podendo ser mutuamente facilitadores.
A estratégia focalizada na emoção é definida como a tentativa de substituir ou regular o impacto emocional do estresse no indivíduo, derivando principalmente de processos defensivos, o que faz com que as pessoas evitem confrontar conscientemente com a realidade de ameaça. Já a estratégia focalizada no problema caracteriza-se por um esforço no sentido de alterar a situação geradora de estresse, tentando modificá-la. Essas estratégias podem ser dirigidas (a) ao meio externo – tentando negociar ou gerenciar um conflito interpessoal, ou solicitando auxílio de outros para alterar alguma situação ou evento –, (b) bem como ao meio interno – buscando a ressignificação do evento estressor, procurando minimizar seus efeitos (Dias & Pais-Ribeiro, 2019). No hospital, os acompanhantes dos pacientes utilizam estratégias que lhes servem de suporte para permanecerem neste ambiente e conseguiram assim, apoiar o paciente para que o mesmo possa dar continuidade no tratamento necessário para a recuperação.
A Psicologia Hospitalar surge como um conjunto de contribuições científicas, educativas e profissionais (Mossinann & Lustosa, 2011). Com isso, este trabalho parte da consideração que a Psicologia no ambiente hospitalar é um determinante de novos modelos teóricos de atendimento, é o questionamento da prática, em uma atuação determinada pela própria realidade da conceituação de saúde, capaz de transformar a realidade institucional na medida em que ajuda o paciente a fazer a travessia do adoecimento através de um processo de elaboração simbólica (Castro & Bornholdt, 2004).
O objetivo da psicologia hospitalar é a subjetividade. No processo de hospitalização, o sujeito se encontra com uma doença (real no corpo) que abala sua subjetividade, diante disso o psicólogo lhe oferece a escuta de modo que o paciente possa falar do que quiser – da doença, da morte, do que lhe angústia: "A psicologia está interessada mesmo em dar voz à subjetividade do paciente, restituindo-lhe o lugar de sujeito que a medicina lhe afasta" (Simonetti, 2004, p.19). Dada a constatação da importância de se ter alguém no processo da dinâmica do cuidado (Passos et al., 2007), no que diz respeito a parceria entre a equipe de saúde e o acompanhante, os familiares se tornaram protagonistas nos cuidados aos pacientes. É indispensável identificar a compreensão que as famílias têm a respeito da doença e as possíveis formas de cuidado à saúde, conhecer os significados e experiências destas, assim como disponibilizar, também, suporte à adaptação a um novo estilo de vida e à significativa mudança que pode ocorrer em toda a família acometida por algum processo de hospitalização.
Dentre as diferentes relações vinculares, a Psicanálise aponta que cada família tem um funcionamento próprio e, por isso, deve ser vista não como uma massa, uma soma de individualidades, mas, sim, como um conjunto aberto, uma coleção de singularidades, em que cada membro possa ser tomado um-a-um. Não pensando a família como modelo, mas famílias que mantêm relações significativas de interdependência, com suas particularidades de funcionamento (Carvalho Filho & Chaves, 2014). Trata-se, portanto, de um sistema de relação viva, com seu equilíbrio e desequilíbrio, com suas etapas de crescimento e estacionamento (Machado, 2012).
Diante do exposto, vale salientar que o olhar do psicólogo hospitalar para essas questões abre espaço para o reconhecimento subjetivo do sofrimento humano e dos cuidados para além do corpo, além de oferecer maiores esclarecimentos aos demais profissionais sobre os processos vivenciados pelo acompanhante familiar do doente. Tendo mais clareza do que se passa com o familiar acompanhante, a equipe tem possibilidade de se comunicar melhor e ter sucesso nas condutas que precisam da sua colaboração (Neves et al., 2018; Lustosa, 2007).
Desta forma, este estudo tem como objetivo relatar a experiência da estagiária de psicologia com grupos de acompanhantes familiares durante o processo de hospitalização da criança, com base na metodologia fundamentada Tenda do Conto. A Tenda do Conto – tal como o Círculo de Cultura (Brandão, 2008), as Rodas de Conversa (Afonso & Abade, 2008) e a Terapia Comunitária (Barreto, 2005) –é uma prática dialógica, onde os participantes levam objetos que remetam histórias vividas e que possam dividir com o grupo, possibilitando um aprendizado coletivo (Félix-Silva, Nascimento, Albuquerque, Cunha & Gadelha, 2014).
A Tenda do Conto começou a ser realizada por Maria Jacqueline Abrantes Gadelha, autora de Beirando a Vida, Driblando os problemas: estratégias de bem viver, quando ouviu histórias de vida de usuários dos serviços de atenção básica à saúde do Rio Grande do Norte (Gadelha, 2015). Caracteriza-se como metodologia participativa, na medida em que contribui para as práticas de cuidado em saúde e para a produção de sentidos, significados e ressignificação dos problemas psicossociais, por meio da partilha (Félix-Silva et al., 2014; Gadelha, 2015). Essa prática vem sendo experimentada por vivências e junto a participantes na rede humaniza SUS (RHS).
Com isso, espera-se que este relato de experiência contribua para a melhoria da assistência prestada à criança hospitalizada, ampliando-a no sentido da integralidade, incluindo a família e o acompanhante nessa assistência, tentando amenizar seu sofrimento frente à hospitalização de um filho e contribuindo para uma melhor aceitação da doença e seu envolvimento no processo terapêutico.
MÉTODO
Para esta experiência foi realizada revisão integrativa como método que proporciona a incorporação da aplicabilidade de resultados de estudos significativos aplicados à prática, através das observações feitas em campo, ou seja, trata-se de uma ferramenta ímpar no campo da saúde, pois sintetiza as pesquisas disponíveis sobre determinada temática e direciona a prática fundamentando-se em conhecimento científico (de Souza, da Silva & de Carvalho, 2010).
A busca dos estudos foi realizada junto à Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) acessando as bases de dados Literatura Latino-Americana e portal Scientific Eletronic Library Online (SciELO), sem recorte temporal. A seleção do material ocorreu nos meses de fevereiro e abril de 2020, agrupando-se as palavras-chave Tenda do conto, Hospitalização, Enfrentamento, Acompanhante e Psicologia.
Após a busca inicial pelas palavras-chave, o refinamento ocorreu pela leitura dos títulos e dos resumos. Por conseguinte, foram analisadas e selecionadas as publicações de interesse para esse estudo obedecendo aos seguintes critérios de inclusão: textos na forma de artigos, teses ou dissertações disponíveis na íntegra gratuitamente em meio eletrônico, nos idiomas português ou espanhol, publicados em periódicos nacionais e internacionais.
O estudo caracterizou-se por um estudo descritivo, tipo relato de experiência, na medida em que buscou caracterizar e descrever aspectos da prática da Tenda do Conto em um hospital geral e foi utilizado como tecnologia de registro e coleta de dados o diário de campo que possibilita a descrição de eventos cotidianos, interações sociais, acontecimentos, comportamentos e sentimentos em um determinado período de tempo (Zaccarelli, Menegon, Godoy & Schmidt, 2010). A relevância de um relato de experiência está na pertinência e importância dos problemas que nele se expõem, assim como o nível de generalização na aplicação de procedimentos ou de resultados da intervenção em outras situações similares, ou seja, serve como uma colaboração à práxis metodológica da área à qual pertence.
O relato de experiência foi realizado a partir da vivência da estagiária com grupos de acompanhantes familiares que se encontravam em processo de hospitalização na enfermaria pediátrica do 3º andar do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - IMIP, onde as crianças internadas são acompanhadas por uma equipe multidisciplinar e a enfermaria tem capacidade técnica com poder resolutivo para diagnosticar e tratar casos de alta complexidade.
Por tratar-se de um relato da experiência, a pesquisa não utilizou a transcrição literal de fala dos participantes dos grupos relatados, nem qualquer informação/dados desses participantes, permanecendo no anonimato. A pesquisa obedeceu aos critérios éticos da resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da instituição, sendo aprovada através do número de protocolo CAAE 31319920.2.0000.5201.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O resultado foi construído a partir da análise e leitura dos diários de campo, seguida do exame minucioso e repetido das anotações da estagiária, buscando identificar as vivências e as estratégias de enfrentamento utilizadas pelo acompanhante familiar durante o processo de hospitalização da criança, visando o compartilhamento de experiências e fortalecimento dos recursos de enfrentamento, com base na metodologia fundamentada chamada de Tenda do Conto. Na sequência, foram elaborados três tópicos para a discussão que serão apresentados e aprofundados a seguir: (1) A Tenda do Conto: Uma prática integrativa do cuidado em saúde em um Hospital Geral, (2) Como realizar a Tenda do Conto? e (3)A experiência em uma Enfermaria.
1. A Tenda do Conto: Uma prática integrativa do cuidado em saúde em um Hospital Geral
Tendo como característica a concepção das metodologias participativas, a Tenda do Conto é uma prática integrativa do cuidado em saúde e de intervenção psicossocial cuja dinâmica de narrar-se uma história, se dá de acordo com a configuração do processo grupal e não tem ênfase na terapia, nem se configura como um grupo de psicoterapia. Cada participante investe o objeto de desejo por meio da palavra, de maneira que o objeto de afetação ganha vida com as vozes, a narrativa de quem faz o conto e a fala e o silêncio de quem escuta cada participante que se anuncia (Félix-Silva et al., 2014). No entanto, a consequência de associar livremente a palavra a partir de um objeto de afetação pode ser terapêutica tanto para o narrador quanto para o ouvinte, considerando que há reconhecimento do outro por quem fala e valorização da fala do outro a partir de quem ouve; há circulação de afetos, saberes e exercício de poder da palavra, na perspectiva do empoderamento de quem fala e da autonomia de quem ouve os contos (Gadelha, 2015). Com isso, pode-se caracterizar a escuta e a formação de vínculos como mecanismos terapêuticos.
Como é realizada em reunião nos grupos com usuários dos serviços de atenção básica à saúde do Rio Grande do Norte, Panatis e Soledade I, essa atividade pode ser aplicada em outros espaços, como por exemplo: em oficinas, em aulas de simulação, em cursos de metodologias ativas e participativas, em encontros, eventos, congressos, centros de Atenção Psicossocial (CAPS), centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Núcleos de Apoio à Família (NASF), hospitais, nas unidades de custódia, comunidades terapêuticas, escolas etc. (Félix-Silva et al., 2014). Maraschin e Palombine revelam que o uso da Tenda do Conto em outros espaços produz lógica de circularidade (Fernandes, 2010). De acordo com Gadelha (2015), sempre que usada como um dispositivo de circularidade, pode-se dizer que produz condições de alteridade em cada espaço, uma vez que os processos de subjetivação configurados na dinâmica dos participantes apontam para produções de diferença.
Os grupos realizados com os acompanhantes familiares que estavam em processo de hospitalização na Enfermaria de Pediatria Geral do IMIP tiveram como objetivo principal compreender a vivência do acompanhante familiar durante o processo de hospitalização da criança, visando o compartilhamento de experiências e fortalecimento dos recursos de enfrentamento. Com isso, pediu-se para que cada paciente pensasse em algum objeto afetivo ou alguma coisa (que não pudesse ser representado fisicamente) que os ajudou ou ajuda a enfrentar o momento no hospital, tornando esse momento menos difícil. Escolhidos os “objetos”, convidou-se a ofertar à Tenda do Conto por meio do relato da sua própria história ou o motivo da escolha daquele objeto ou coisa, permitindo a troca de experiências.
Partindo de uma acepção particular, um aspecto importante que o trabalho em grupo propicia é a aproximação entre profissional-usuário, pois a estrutura de trabalho difere das formas de atendimento clínico no consultório, além de contemplar os aspectos da PNH que se baseia na Cartilha da Visita Aberta e Direito ao Acompanhante (Ministério da Saúde, 2007), a qual defende que a parceria entre a equipe de saúde e o acompanhante durante a permanência do sujeito internado faz parte das concepções que envolvem o processo de humanização.
No caso da Tenda do Conto, a formação dinâmica da circularidade no processo grupal permite romper a relação vertical tradicional entre o profissional de saúde e o sujeito da ação, mostrando-se como estratégia para facilitar a expressão de necessidades, expectativas, ansiedades e circunstâncias da vida que afetam a saúde de indivíduos e comunidades (Mesquita, Perucchi & Mattos, 2017).
2. Como realizar a Tenda do Conto?
A concepção metodológica da Tenda do Conto parte do incentivo à autonomia desde o primeiro momento em que se faz o convite ao participante (Félix-Silva et al., 2014). É realizada de maneira simples, por meio de um convite solicita-se ao participante que ele oferte um objeto que lhe traga uma memória afetiva ou uma história que ele queira contar, ou caso não possa levá-lo, pode pegar um dos objetos que estejam à disposição na tenda para fazer seu conto a partir dele.
O cenário é montado como se fosse uma sala de visitas, com uma cadeira no centro, e uma mesa decorada ficam objetos trazidos por quem está na coordenação, pelos usuários dos serviços de saúde e por outros participantes, tais como: porta-retratos, imagens de santos, poesias, cartas, letras de músicas, fotografias, dentre outros objetos cujo imaginário remete à produção de sensações e lembranças relacionadas a um acontecimento vivido ou que se projeta viver. Os participantes são recebidos e acolhidos. E quem se sentir à vontade, pode se sentar na cadeira e contar seu conto a partir do objeto que lhe afeta (Gadelha, 2015). As escutas, narrações de experiências e sabedorias partilhadas devem acontecer de forma horizontal e circular. Por fim, deve-se oferecer espaço para uma breve reflexão, agradecer pelo momento e despedir-se, finalizando a atividade.
3. A experiência em uma Enfermaria
Como mencionado acima, este relato trata-se da vivência de uma estagiária de psicologia grupo com os acompanhantes familiares que estavam em processo de hospitalização na Enfermaria de Pediatria Geral do IMIP, local de atuação da estagiária durante o ano de estágio curricular. É importante ressaltar que o Programa de Estágio descrito aqui é o Clínico Hospitalar, na qual a estrutura é dividida em 2 grandes campos norteadores: a prática na Enfermaria e no Ambulatório. No primeiro está a enfermaria, em que são trabalhadas competências e habilidades mais voltadas para a área da psicologia hospitalar, focando na tríade: paciente - acompanhante - equipe de saúde. No contato com o paciente, o psicólogo constrói o vínculo terapêutico, mostra-se disponível para a escuta das queixas e demandas, identificando, de forma colaborativa, as situações que provocam sofrimento, visando reorganizar a tensão emocional. Busca-se promover conversações para os acompanhantes, demais familiares e equipe de saúde com o objetivo de mediar o relacionamento e a comunicação destes com o paciente e, por outro lado, atender às demandas emocionais da família (Azevedo & Crepaldi, 2016). Já no segundo campo está a prática ambulatorial, onde são realizados os atendimentos clínicos e acompanhamentos psicoterápicos para trabalhar assuntos relacionados a subjetividade e constituição psíquica de caso a caso. Na enfermaria pediátrica, os primeiros passos da estagiária consistiram no reconhecimento físico do local, olhando os espaços, conhecendo a rotina do setor, conversando com a equipe sobre alguns pacientes e o que os mesmos percebiam de demandas. Grande parte dos atendimentos ocorreram por meio da Busca Ativa, a mesma possibilitou interagir não só com a criança, de maneira isolada, mas com o mundo que a cerca, seu espaço e território, assim como o grau de envolvimento do acompanhante familiar.
A partir das escutas com o acompanhante familiar foram identificados sentimentos de impotência, tristeza, ansiedade, angústia diante da rotina e da falta de informação a respeito do processo clínico sofrido da criança acompanhada. Estudos apontam que a hospitalização de um filho pode desencadear alterações emocionais e sofrimento psíquico nos membros da família, principalmente naquele que acompanha a criança (Costa, Mombelli & Marcon, 2009).
O convite foi dirigido aos acompanhantes familiares através das visitas ao leito na qual a criança se encontrava e já estava em acompanhamento psicológico, no mês de dezembro de 2019, e nas visitas de outros leitos da mesma enfermaria mesmo que não tivesse em acompanhamento. No momento, a estagiária fez uma breve apresentação e explicou o objetivo da Tenda do Conto, assim como o dia, horário e o que aconteceria na própria enfermaria. O convite foi bem acolhido, e mesmo aqueles que não garantiram participar manifestaram-se positivamente frente à ideia da criação do grupo.
Fizeram parte do trabalho acompanhantes familiares de crianças na hospitalização, sendo que o número médio de participantes em cada encontro variou de 5 (cinco) a 7 (sete) de acordo com número de leitos da enfermaria. Ao todo, 12 (doze) pessoas fizeram parte da experiência.
A atividade consistiu em convidar os acompanhantes a pensar sobre o processo de hospitalização e destacar um objeto afetivo ou alguma coisa (que não pudesse ser representado fisicamente) que os ajudou ou ajuda a tornar esse momento menos difícil. Observou-se que o convite foi aceito por todos, com um entusiasmo, inclusive as crianças, que se mobilizam em torno da procura desse objeto de afeto mesmo que por meio da lembrança, algo que possibilitou o diálogo acerca de experiências passadas ou não compartilhadas.
No que diz respeito ao objeto afetivo, foi perceptível que este facilitou a fluidez da fala dos participantes, além do conhecimento como os mesmos agem e se posicionam nesse espaço. Seguindo a definição de Sawaia (2001), a afetividade pode ser entendida como a capacidade humana de elevar seus instintos à altura da consciência, por meio dos significados, de mediar a afecção pelos signos sociais, aumentando ou diminuindo nossa potência de ação, influenciando a nossa forma de ação e criatividade no mundo (Pinheiro & Bomfim, 2009). Sendo assim, pode-se perceber a associação da afetividade ao objeto escolhido, complementado pela narrativa proferida pelos acompanhantes.
Relatos sobre dificuldades, medo, dor e ansiedade reativas ao processo de hospitalização foram comuns e acolhidas, reconhecendo-as e dando validade a elas, mantendo o foco da proposta da Tenda do Conto. Nesse momento, a escuta ativa foi o instrumento maior, e isso implicou permitir o silêncio, assistir não verbalmente (contato visual, expressões faciais, concordar com a cabeça, entre outros), parafrasear, refletir sentimentos e, principalmente, permitir a expressão das emoções.
Em relação ao acompanhante familiar e estratégia de enfrentamento, segundo Lustosa (2007), diante do processo de adoecimento e internação de um membro também se depara com dificuldades no enfrentamento da situação, assim como o paciente. Ainda segundo a autora, o momento vivenciado por essa filiação constitui-se de estresse permanente, sofrimento interno, elevação de ansiedade, medo do desconhecido e apreensão quanto às decisões a tomar e situações a enfrentar.
Estratégias de enfrentamento, como a força de vontade, a fé, a música e a presença dos amigos/familiares foram identificados como fatores que influenciam positivamente a experiência do acompanhante no processo de hospitalização. Também, foi observado que alguns participantes ofertaram o mesmo objeto, como por exemplo, a Bíblia, e a partir disso narraram a sua história, assim como verbalizaram uma significação singular desta de acordo com a sua experiência. A repetição do objeto foi interpretada pelo fator dos participantes estarem vivenciando situações semelhantes e partilharem de sentimentos e anseios comuns, o que pode representar um reasseguramento de que não estão sozinhos em tal vivência.
Para além da Bíblia, a música religiosa também foi ofertada mais de uma vez, sendo percebida a importância da espiritualidade, bem como da religiosidade para as pessoas, compondo parte do processo de subjetivação. No campo da saúde, em decorrência da expansão do modelo biopsicossocial, religião e espiritualidade têm sido reconhecidas por sua relevância, constituindo o foco de interesse de pesquisas internacionais e nacionais (Hill & cols., 2000; Panzini & Bandeira, 2007). Seguindo a perspectiva de Lazarus e Folkman (1984), descrita na introdução. O coping é um processo de tentativa pessoal em administrar exigências externas ou internas presentes em situações de estresse por meio de recursos cognitivos e comportamentais. As estratégias de coping podem ser identificadas em dois tipos: o coping focalizado na emoção, quando os investimentos pessoais dirigem a administração das repercussões emocionais a um nível somático ou de sentimentos decorrentes da situação estressante; e o coping focalizado no problema, no qual as estratégias são direcionadas para a própria situação estressante, objetivando a alteração da origem do problema.
A partir dessa perspectiva (Pargament, 1997, citado por Gobatto & Araujo, 2010) se introduz o conceito de coping religioso/espiritual (CRE), a qual define como utilização da religião, espiritualidade ou fé para o manejo do estresse, presente nos momentos de crise e as descreve que são múltiplas as possíveis implicações da utilização do CRE no funcionamento pessoal, influenciando no processo adaptativo do indivíduo com relação às situações que ele enfrenta, na saúde física e mental ou na vivência do sofrimento. Nessa experiência, o CRE pode ser compreendido como ferramenta de enfrentamento e fortalecimento pessoal capaz de favorecer o enfrentamento do indivíduo frente ao período de hospitalização, como benefícios para a sua qualidade de vida. Com base nos relatos expostos, as crenças proporcionam-lhes maior aceitação, autoconfiança, adaptação e força. Neste sentido, a espiritualidade faz parte do ser, e ela está relacionada ao processo existencial, à busca de sentido para a vida e de transcendência, enquanto a religiosidade diz respeito às crenças e dogmas de uma determinada religião que busca facilitar a proximidade do indivíduo com o sagrado ou o transcendente (Inoue & Vecina, 2017).
Quanto ao narrar sua própria história, remete a valorização da subjetividade a partir da convocação e da escuta. De acordo com Costa (2019), o psicólogo precavido pela psicanálise no hospital geral, precisa ocupar para os sujeitos uma posição que lhe ofereça um lugar no qual se pode falar e ser escutado não só como um leito ou doente, seja no acompanhamento do discurso de um acompanhante familiar ou paciente. Nesse sentido, trata-se de um lugar para o sujeito, lugar no qual pode vir à tona e compartilhar seu sofrimento não como mero objeto que promove cuidado, mas a partir de sua dimensão subjetiva e, além disso, possibilita também compreender a partir das histórias narradas os sentidos que este acompanhante produz para a doença da criança interconstituídos com o lugar em que o mesmo ocupa. Foi considerada a observação de Santos (2008), em que há um movimento no domínio hospitalar de emudecer qualquer manifestação da singularidade e da subjetividade, fazendo calar o sujeito.
A resistência se fez presente em alguns participantes no decorrer do processo de constituição do grupo. Se por um lado se mobilizaram em torno da procura desse objeto de afeto, por outro entendiam que o trabalho não deveria ser dirigido a eles e sim aos pares. Isto foi revelado na fala dos mesmos quando apontavam que tal objeto era sempre de ajuda para o outro que estava em sofrimento psíquico. Ora o outro colega, ora a criança. Nesse caso, foi preciso, por vezes, trazê-los de volta à discussão e mostrar-lhes o quanto eles também eram ou deveriam ser os protagonistas da ação. Foram constantemente provocados ao exercício da reflexão e autoanálise e cabe pontuar que esses momentos foram vividos por eles como um misto de descobertas, sendo assim, um movimento fundamental que possibilita desenvolver o olhar para si e refletir sobre seu papel e sua vida.
A Tenda do Conto pode ser constituída como um espaço no qual o usuário pode ser ouvido e sua história valorizada, por meio da escuta e da construção de vínculos, adotadas como mecanismos terapêuticos. A valorização da subjetividade requer do profissional a opção por se comprometer com um trabalho que se distancia do modelo da clínica médica tradicional. Foi possível observar nas narrativas dos acompanhantes, nas iniciativas, na maneira em que “ocupam seu lugar”, simplicidade e, ao mesmo tempo, firmeza, autonomia com a liberdade de quem pode opinar e construir junto. Com isto, a partir dessa experiência, pode-se constatar que a metodologia participativa e a disponibilidade para prestar atenção ao grupo, por parte do psicólogo hospitalar, abre espaço para que o acompanhante familiar não esteja ali passivamente, mas que ele seja autônomo e que essa autonomia seja fortalecida diante do serviço e das questões do cotidiano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verificou-se que a Tenda do Conto como uma ferramenta de trabalho possível para a Psicologia no Hospital Geral, que ultrapassa o modelo tradicional de atendimento clínico, perpassando ações coletivas e individuais, sempre desenvolvidas de forma contextualizada. Como foi visto ao longo do relato, as atuações neste nível de atenção tornam-se complexas, pois estão próximas ao cotidiano daqueles que participam, denotando a importância da valorização de aspectos sociais, biológicos, psicológicos e espirituais naquilo que se apresenta como queixa.
Percebe-se que este espaço além possibilitar o conto da sua própria história, valorizando a subjetividade a partir da convocação e da escuta, oferece um momento de reflexão e de troca com os pares permitindo o reconhecimento da capacidade individual para lidar com situações difíceis, a condição de desenvolver estratégias de enfrentamento diante destas e, por vezes, identificar nos pares outras possibilidades diferentes. Por fim, conclui-se que este momento foi de suma importância para a estagiária os e participantes que se disponibilizaram a experienciar de modo autêntico esta vivência a qual foi tomando forma dentro da enfermaria e se transformando até ganhar corpo, horário, espaço e sentido.













