INTRODUÇÃO
O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) é conhecido como o agente etiológico, infeccioso e transmissível da Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS), tendo ambos sido identificados e reconhecidos nos Estados Unidos na década de 80 (Wunsch et al., 1996). A transmissão do HIV ocorre através de relações sexuais desprotegidas, sendo estas: vaginal, anal ou oral; acidentes com objetos perfuro cortantes não esterilizados, como giletes, agulhas, dentre outros; e por transmissão vertical da mãe portadora do vírus para o bebê durante a gravidez, parto ou amamentação, quando não é realizado o uso de profilaxias (Brasil, 2017).
De acordo com Brasil (2017), o HIV e a AIDS não são a mesma coisa. Ao ser infectada, a pessoa pode ficar com o vírus em seu corpo durante muito tempo sem apresentar sintomas, visto que este vírus tem como alvo o sistema imunológico. Conforme esse sistema é afetado, o organismo perde a capacidade de se defender, fazendo com que o sujeito comece a apresentar sintomas relacionados a doenças oportunistas, surgindo então a AIDS.
Portanto, o cuidado com os pacientes portadores do vírus do HIV deve ser contínuo, abrangendo os seguintes momentos: 1) Diagnóstico; 2) Vinculação a um serviço de saúde, 3) Retenção no serviço, com seguimento periódico; 4) Início da Terapia antirretroviral (TARV); e 5) Supressão da carga viral. Esse percurso é reconhecido como a “Cascata de Cuidado Contínuo do HIV” (HIV Care Continuum), sendo amplamente difundido na comunidade científica para o monitoramento dos cuidados a esse público (Brasil, 2018). Para que a supressão viral seja alcançada é necessário que exista uma boa adesão ao tratamento, por isso, essa questão costuma ser considerada central no tratamento do HIV (Sabino et al., 2020), o qual é ofertado gratuitamente no Brasil por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
O contínuo tratamento do HIV/AIDS é frequentemente um desafio para o portador deste diagnóstico. A cronicidade da doença exige do portador uma constância no tratamento que pode não ser tão simples de aderir, principalmente, para aqueles que vivenciam obstáculos específicos (Lacombe-Duncan et al., 2019). A exemplo disto está o público transexual, que consiste em pessoas que não se identificam com o sexo biológico, e por isso, não se sentem pertencentes ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Nota-se que há uma prevalência da infecção por HIV, principalmente, em mulheres transexuais, sendo que, conforme Sevelius et al. (2014a), as trans femininas possuem 49 vezes mais chances de contrair HIV em comparação a outros grupos.
Esta prevalência associa-se ao comportamento de risco a que este público acaba se expondo devido à vulnerabilidade social, estigma e transfobia (Machtinger et al. 2012). Com isto, além de lidarem com o diagnóstico de HIV, que em si traz seus próprios desafios, pessoas trans precisam lidar também com os desafios de serem percebidas da maneira como se reconhecem. A dificuldade de afirmação de gênero, seja por procedimentos médicos ou relações interpessoais, traz consigo um destrinchar de barreiras que interferem na adesão ao tratamento do HIV (Braun et al. 2017; Lacombe-Duncan et al. 2019; Mitchell et al. 2019; Radusky et al. 2022).
Diante desse cenário, coloca-se que a relação entre a população transexual e o tratamento configura-se, principalmente, em uma situação de não-adesão, devido aos inúmeros desafios encontrados ao longo do percurso, conforme apontado por Lacombe-Duncan et al. (2021). Para estes autores, as barreiras encontradas por mulheres transexuais, geralmente, estão no nível da assistência, sendo necessárias mudanças sistêmicas para melhora da adesão. Com isso, eles destacam que é importante compreender a perspectiva dessas mulheres tanto acerca das dificuldades quanto dos facilitadores no atendimento. Mitchell et al. (2019) corroboram essa ideia, afirmando que é preciso ir além de uma compreensão individual dos fatores que facilitam a adesão aos serviços, como estratégias de conscientização, percepção de risco e palestras educativas, para uma apreensão de fatores relacionais, institucionais e sociais, abrangendo cada estágio da cascata de cuidados do HIV.
Percebe-se, perante o exposto, que a adesão ao tratamento de pessoas transexuais com HIV é abaixo do ideal e permeada por inconstâncias (Reisner et al., 2017), além de esta ser considerada uma população de difícil acesso (Crosby et al., 2018). Diante disso, verifica-se a relevância da sistematização de informações a fim de obter dados que possam subsidiar a criação de estratégias de assistência. Portanto, buscou-se, por meio de uma revisão sistemática da literatura, compreender os fatores que influenciam na não adesão ao tratamento do HIV em pessoas transexuais.
MÉTODO
Trata-se de uma revisão sistemática da literatura sobre a não adesão ao tratamento de pessoas transexuais com HIV. Optou-se por essa metodologia de pesquisa devido à possibilidade de avaliar e sintetizar, de forma rigorosa, as evidências científicas disponíveis (Galvão & Pereira, 2014). Além disso, este estudo foi conduzido por meio das orientações do Método PRISMA (Galvão et al., 2015).
A revisão foi realizada no mês de maio de 2022, sem limitação com relação ao período de publicação, pois, dentro dos critérios adotados neste estudo, esta é uma temática recente na literatura, sendo o artigo mais antigo encontrado datado em 2010. Diante disso, utilizou-se as seguintes bases de dados: PubMed, LILACS (Literatura latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde), Scopus, PsycINFO, SciELO (Electronic Library Online) e PePSIC (Periódicos Eletrônicos de Psicologia). Em cada uma dessas bases foram pesquisados os descritores em inglês e seus respectivos sinônimos, gerando a seguinte combinação de pesquisa: (Antiretroviral Therapy OR HIV OR AIDS Virus OR AIDS Viruses) AND (Transsexualism OR Transgenderism OR Transgendering) AND (Medication Adherence OR Non-Adherence). Tais termos foram selecionados segundo os Descritores em Ciência da Saúde (DeCS), sendo utilizado o software de gestão de referências bibliográficas Mendeley para organização dos resultados encontrados.
Enquanto critérios de inclusão, os artigos, necessariamente, precisavam abordar os três aspectos da pesquisa concomitantemente: população transexual, HIV e adesão ao tratamento, além de serem estudos originais. Foram excluídos artigos que tratavam de minorias sexuais em geral, pois não focavam nas especificidades da população transexual. Justifica-se o critério de foco nesta população, visto que raramente essas experiências são retratadas separadas de outras populações (Lacombe-Duncan et al., 2021; Sabino et al., 2020), perdendo singularidades deste grupo. Também foram excluídos artigos que focavam apenas no HIV, em estratégias de prevenção, como o uso da Profilaxia pré-exposição (PrEP), e/ou que não abordavam a adesão ao tratamento. Assim como, trabalhos em formato de cartas ao editor (research letters), editoriais, relatos de experiências e revisões da literatura.
RESULTADOS
Com o término da busca nas bases de dados foram encontrados 94 artigos, sendo 12 no Pubmed, 78 no Scopus, 4 no PsycInfo e zero no SciELO, PePSIC e LILACS. O fluxograma (Figura 1) apresenta as quatro etapas adotadas pelo método PRISMA: identificação inicial, seleção, análise da elegibilidade, conforme os critérios pré-estabelecidos, e inclusão dos estudos para síntese qualitativa.
Diante disso, os artigos selecionados para análise foram organizados em duas tabelas para melhor visualização dos resultados encontrados, com as seguintes variáveis: referência, local do estudo, método e objetivo (Tabela 1). Além dos resultados, que identificam os fatores de não adesão de cada estudo (Tabela 2).
Tabela 1 Características dos estudos incluídos na revisão sistemática (autor, ano da publicação, método utilizado, local e objetivo), São Paulo, 2022
| Autor (ano) | Método | Local | Objetivo |
|---|---|---|---|
| Baguso et al. (2016) | Qualitativo | Estados Unidos | Analisar fatores clínicos e demográficos associados a adesão a medicação antirretroviral entre mulheres transgêneros. |
| Braun et al. (2017) | Transversal | Estados Unidos | Avaliar como as preocupações sobre as possíveis interações de terapia hormonal e terapia antirretroviral afetam a adesão ao tratamento. |
| Crosby et al. (2018) | Análise de regressão e medida multivariada | Estados Unidos | Aferir três medidas psicossociais que pudessem servir como aconselhamento a mulheres trans vivendo com HIV ao uso de TARV. |
| Dowshen et al. (2016) | Quantitativo | Estados Unidos e Porto Rico | Descrever aspectos psicossociais e de saúde relacionados ao HIV de jovens mulheres trans (n=66) em comparação com outros jovens diagnosticados (n=1,584). |
| Kalichman et al. (2017) | Pareamento caso-controle | Estados Unidos | Analisar a cascata de tratamento do HIV em subgrupos de gênero. |
| Lacombe-Duncan et al. (2019) | Misto | Canadá | Descrever as barreiras e facilitadores para o envolvimento na cascata de cuidado contínuo do HIV em cada etapa. |
| Lacombe-Duncan et al. (2021) | Qualitativo | Canadá | Explorar barreiras e facilitadores para o acesso à prevenção, tratamento e apoio ao HIV para mulheres trans, pela perspectiva delas e prestadores de serviços. |
| Machtinger et al. (2012) | Quantitativo | Estados Unidos | Compreender quais fatores estão significativamente associados à falha da terapia antirretroviral e ao comportamento de risco de transmissão do HIV. |
| Mitchell et al. (2019) | Qualitativo | Indonésia | Explorar as barreiras e os facilitadores para a adesão ao tratamento do HIV entre mulheres transgêneros. |
| Nemoto et al. (2021) | Misto | Estados Unidos | Descrever o acesso aos serviços de cuidado ao HIV, bem como a experiência das participantes do Projeto Princesa, destinado às mulheres transgênero afro-americanas vivendo com HIV. |
| Radusky et al. (2022) | Misto | Argentina | Analisar quais são os fatores sociodemográficos e psicossociais relacionados a identidades de gênero de pessoas não vinculadas aos cuidados do HIV. |
| Reisner et al. (2012) | Quantitativo | Estados Unidos | Caracterizar a prevenção e os cuidados contínuos do HIV em uma amostra diversificada de 181 jovens transgêneros (entre 16 e 24 anos) sexualmente ativos. |
| Rosen et al. (2019) | Quantitativo | Estados Unidos | Analisar determinantes sociais, individuais e estruturais da vulnerabilidade aos cuidados do HIV, bem como os resultados do tratamento entre mulheres transexuais negras e latinas. |
| Sabino et al. (2020) | Transversal | Brasil | Avaliar a adesão à TARV e a qualidade de vida entre mulheres trans em São Paulo. |
| Sáez et al. (2015) | Misto | Porto Rico | Compreender e descrever a relação entre as variáveis de apoio social, depressão e crenças em saúde com o nível de adesão em pessoas transexuais vivendo com HIV. |
| Sevelius et al. (2014a) | Misto | Estados Unidos | Analisar barreiras e facilitadores que podem ser singulares das mulheres trans no engajamento e retenção de cuidados do HIV. |
| Sevelius et al. (2014b) | Transversal | Estados Unidos | Esquadrinhar correlações psicossociais/demográficas associadas a adesão a TARV e carga viral em mulheres transexuais. |
| Sevelius et al. (2010) | Quantitativo | Estados Unidos | Analisar a adesão à terapia antirretroviral entre mulheres transgêneros (n=35) em comparação com homens e mulheres cisgênero com HIV (n=2770). |
| Zalazar et al. (2020) | Qualitativo | Argentina | Compreender as experiências e perspectivas de mulheres transgênero sobre a ampliação de serviços direcionados ao HIV. |
Onde: misto (método qualitativo e quantitativo)
Tabela 2 Fatores de não adesão ao tratamento do HIV por pessoas transexuais dos estudos incluídos na revisão sistemática, São Paulo, 2022
| Autor (ano) | Resultados (fatores de não adesão ao tratamento) |
|---|---|
| Baguso et al. (2016) | Maior carga viral, ser solteira e baixa escolaridade. Mulheres transgêneros que se identificaram como branca/caucasiana apresentaram menor adesão comparado a mulheres trans negras. |
| Braun et al. (2017) | Priorização da terapia hormonal e dificuldade de interação com profissionais de saúde. |
| Crosby et al. (2018) | Uso de exógenos estrogênios, baixa autoestima, pobreza, sexismo e transfobia. |
| Dowshen et al. (2016) | Vulnerabilidade social (maiores taxas de desemprego, menor escolaridade). Maior número de parceiros sexuais, indicando taxas mais altas de trabalho sexual e/ou a utilização de sexo para sobrevivência. |
| Kalichman et al. (2017) | Dificuldade na interação médico-paciente, depressão, estresse e falta de apoio tangível. |
| Lacombe-Duncan et al. (2019) | Diagnóstico recente, percepção de estar saudável, sintomas de depressão e transtorno de estresse pós-traumático, barreiras de acesso aos cuidados, transfobia, estigma relacionado ao HIV, preocupações sobre as interações medicamentosas e os hormônios femininos, insegurança habitacional, marginalização social e estrutural. |
| Lacombe-Duncan et al. (2021) | Estigma e discriminação, falta de conhecimento das equipes de saúde, ausência de serviços específicos para transexuais e a cisnormatividade na saúde. |
| Machtinger et al. (2012) | Menos moradias estáveis e maior número de parceiros sexuais. Pessoas que se identificam enquanto mulheres e vivenciaram um trauma recente possuem quatro vezes mais chances de falha da TARV. |
| Mitchell et al. (2019) | Percepção de estar saudável (dificuldade em aderir ao tratamento precoce), medo de efeitos colaterais, preocupações com confidencialidade do diagnóstico, estigma, rejeição, dificuldade de acesso ao seguro de saúde via sistema público do país, horários de trabalho frente ao horário limitado de atendimento dos serviços, circunstâncias econômicas, uso de álcool e drogas e falta de rede de apoio social. |
| Nemoto et al. (2021) | Estigma, transfobia, falta de apoio social por pessoas cisgênero, trabalho sexual, venda e/ou uso de substâncias ilícitas, desafios financeiros (falta de moradia e de transporte até os serviços de saúde). |
| Radusky et al. (2022) | Discriminação, como a não afirmação social do gênero, bem como uso de pronome inapropriado por provedores de saúde. Estigma sobre o diagnóstico e fatores socioeconômicos. |
| Reisner et al. (2012) | A afirmação médica de gênero (hormônios ou cirurgias). Estigma e condições estruturais, como trabalho sexual e menor nível educacional. |
| Rosen et al. (2019) | Falta de afirmação de gênero (hormônios ou cirurgias), uso de drogas e vulnerabilidade social, dificuldades de transporte e experiência de maus tratos em serviços de saúde. |
| Sabino et al. (2020) | A menor idade foi a única variável estatisticamente significativa associada à menor adesão neste estudo. |
| Sáez et al. (2015) | Falta de apoio social como único fator relacionado a falta adesão a TARV no público pesquisado. |
| Sevelius et al. (2014a) | Falta de afirmação de gênero em dispositivos de saúde, como o uso de pronome incorreto ou o não uso de nome social. Transfobia social e internalizada, preocupação com confidencialidade do diagnóstico, prioridades concorrentes, como moradia, segurança, alimentação, saúde e renda e priorização de hormonioterapia. |
| Sevelius et al. (2014b) | Insatisfação com a expressão de gênero atual, experiência transfóbica, estresse e não estar em um relacionamento. |
| Sevelius et al. (2010) | Dificuldade de interação com profissionais da saúde, rotina de uso da medicação (regime de horários) e interferência do uso do medicamento na vida diária. |
| Zalazar et al. (2020) | Discriminação dos profissionais da saúde, falta de interação respeitosa e de informações adequadas sobre a TARV. |
A partir da organização dos resultados, percebe-se apenas um estudo brasileiro e nenhum estudo publicado em português. Além de se questionar acerca da acessibilidade da pesquisa nacional à população brasileira no idioma de origem, nota-se que, para a análise dos resultados, é necessário considerar diferentes culturas, sistemas de saúde e políticas de assistência à população. Levando isso em consideração incluímos, na Tabela 1, o campo de localidade do estudo, a fim de refletir acerca dessas diferentes realidades.
Esses resultados foram organizados em categorias, a fim de facilitar a visualização e discussão dos dados: 1) O sistema de saúde e os serviços de assistência à população; 2) Fatores pessoais e psicossociais da não adesão ao tratamento; e 3) Considerações para melhora da adesão ao tratamento.
DISCUSSÃO
O sistema de saúde e os serviços de assistência à população
A dificuldade de acesso aos serviços de saúde devido às circunstâncias econômicas foi um aspecto bastante citado nos estudos encontrados. Ter acesso ao seguro de saúde privado foi pontuado como um facilitador para a realização dos cuidados do HIV, e mais especificamente, para o uso da TARV (Crosby et al, 2018; Lacombe-Duncan, 2019, Mitchell et al., 2019; Radusky et al., 2022, Rosen et al, 2019). Na Indonésia, por exemplo, Mitchell et al. (2019) descrevem que há um sistema nacional de seguro saúde, entretanto, os entrevistados referem que o processo é complicado e demorado, além de precisar de carteira de identidade e cartão de família (uma identificação que lista todos os membros da família), o que se torna um desafio para as mulheres que estão distantes do núcleo familiar e em situação de vulnerabilidade. Já na Argentina, ter apenas o seguro de saúde público é um indicador de vulnerabilidade e instabilidade socioeconômica, visto que o seguro privado é oferecido por meio do trabalho formal (Radusky et al., 2022).
A Argentina, assim como o Brasil, possui uma cobertura gratuita de assistência à saúde de toda a população, independente da renda. Portanto, a ausência de um seguro de saúde privado não deveria ser uma barreira de acesso. Entretanto, apesar de ser gratuito, a saúde pública nem sempre é acessível, devido à diversos fatores, como: superlotação, demora para atendimento, horários de funcionamento dos serviços, longas distâncias, transporte (Mitchell et al, 2019, Nemoto et al., 2021, Radusky et al., 2022, Rosen et al., 2019, Zalazar et al., 2020). Além de que cidades centrais costumam ter serviços mais especializados do que regiões mais afastadas (Mitchell et al, 2019).
Além dessas dificuldades, é importante considerar a relação com os profissionais da saúde, visto que, geralmente, as barreiras estão relacionadas com os serviços de assistência, as equipes e as políticas públicas, sendo necessárias mudanças sistêmicas para melhora da adesão (Lacombe-Duncan et al., 2021). A população transexual possui receio de maus tratos por prestadores e/ou outros pacientes nos serviços de saúde, devido experiências prévias de discriminação (Lacombe-Duncan et al., 2021, Mitchell et al., 2019, Sevelius et al., 2010, Sevelius et al., 2014a, Radusky et al., 2022, Rosen et al., 2019, Zalazar et al., 2020).
Diante desse estigma, há prejuízos na assistência prestada, que comprometem a autonomia e os direitos do paciente em compreender o seu tratamento. Lacombe-Duncan et al. (2021) pontuam que muitas das mulheres trans entrevistadas afirmam que não encontraram profissionais que possuem conhecimentos adequados, tanto dos problemas e particularidades da mulher trans, quanto do HIV. Essa falta de familiaridade com essas temáticas também é percebida pelos profissionais, que apontam a dificuldade de encontrar prestadores que estejam confortáveis em oferecer esse cuidado e os desafios desta função. Para Zalazar et al. (2020), a falta de comunicação e de informações sobre os cuidados afetam negativamente a adesão à TARV, sendo que as pacientes se sentem desrespeitadas por não receberem informações essenciais sobre o seu tratamento.
Neste sentido, o apoio de profissionais e o estabelecimento de um vínculo de confiança é essencial para o envolvimento das pacientes nas etapas do continuum de cuidados do HIV (Kalichman et al., 2017, Mitchell et al., 2019, Nemoto et al., 2021). Kalichman et al. (2017) perceberam que as mulheres transexuais possuem mais dificuldade em chegar aos seus profissionais de saúde do que pessoas cisgênero, devido à dificuldade de confiança e estigma. Tal dado pode estar relacionado ao aspecto da confidencialidade, que foi frequentemente notado nos estudos desta revisão, sendo apontado como um fator de não adesão.
A confidencialidade nos serviços de saúde foi um fator de preocupação referente a privacidade dos dados de testagem e tratamento, além do medo e vergonha de serem vistos acessando serviços de HIV por pessoas próximas (Mitchell et al, 2019, Nemoto et al., 2021, Sevelius et al., 2014a). Em contrapartida, Zalazar et al. (2020) não encontraram, no seu estudo, o receio à privacidade e confidencialidade do tratamento, pontuando que, embora as participantes percebessem o estigma do HIV, não houve interferência na adesão à TARV ou a frequência nas consultas.
Fatores pessoais e psicossociais de não adesão ao tratamento.
Dos 19 artigos analisados neste estudo, apenas dois (Reisner et al., 2012; Sáez et al., 2015) tinham, em seu público-alvo, homens e mulheres trans, possuindo uma baixa amostragem de homens transexuais. No geral, percebe-se um foco na população de mulheres transexuais. No estudo realizado por Reisner et al. (2017), por exemplo, havia uma amostragem menor da população trans masculina, sendo que nenhum deles vivia com HIV.
Entre hipóteses levantadas para esse dado, aponta-se a afirmação de gênero, considerando que a transição feminina envolve procedimentos mais invasivos e estéticos. Sevelius et al. (2010) notaram que os cuidados à saúde relativos à transição, especialmente o tratamento hormonal, são mais priorizados por mulheres trans. Além disso, o uso de hormônios é privilegiado devido às dificuldades de acesso, o alto custo, junto do receio de efeitos colaterais e interação medicamentosa com a TARV (Braun et al., 2017; Crosby et al., 2018; Lacombe-Duncan et al., 2019; Sevelius et al., 2014a; Rosen et al., 2019). Em seu estudo, Sevelius et al. (2014a) identificaram que essa priorização da Terapia Hormonal pode ocorrer principalmente no início da transição de gênero, pois há também a preocupação de que os antirretrovirais atrapalhem os resultados dos hormônios no processo de transição.
Em contraponto, observou-se que a falta de terapia hormonal, bem como a necessidade de procedimentos cirúrgicos não atendidos, também são fatores que influenciam a não adesão ao tratamento do HIV, considerando que os obstáculos de afirmação de gênero frequentemente estão associados ao acesso e frequência aos serviços de saúde (Reisner et al., 2012; Rosen et al., 2019). Perante o exposto, acrescenta-se o medo, o estigma, a transfobia e as experiências negativas prévias com os serviços de saúde, que também impedem o acesso aos cuidados primários e de prevenção. Para Rosen et al. (2019), o modelo de assistência à população transexual deveria ter como foco o processo de afirmação de gênero, considerando a preocupação com a “passabilidade” (ser percebido enquanto do gênero feminino) e estresses perante o acesso aos serviços por não se sentir validado socialmente no gênero desejado (Sevelius et al, 2014a, Sevelius et al., 2014b). Com isso, percebe-se que diferentes fatores podem estar envolvidos para compreender por que há um foco dos estudos de HIV na população trans feminina.
A complexidade em administrar e seguir os horários de medicação acaba fazendo com que haja inconstância na adesão ao tratamento, de forma que o uso de medicações acaba por interferir na rotina das pessoas com HIV, afetando horários de sono, trabalho e atividades de vida diária (Lacombe-Duncan et al., 2019; Sevelius et al., 2010). Além disso, um outro fator observado foi que alguns pacientes acabam não aderindo ao tratamento medicamentoso por conta da sensação de estarem saudáveis. Isso foi observado, principalmente, após o diagnóstico, no qual algumas pessoas não sentem grandes sintomas do adoecimento e/ou por vezes têm dificuldade em aceitar o diagnóstico (Lacombe-Duncan et al., 2019; Mitchell et al., 2019).
O estigma relacionado à identidade de gênero ainda é presente em nossa atualidade, sendo que quando somado ao estigma do HIV, pessoas transexuais vivendo com HIV se tornam ainda mais marginalizadas. Rosen et al. (2019) e Radusky et al. (2022) identificaram que o uso de drogas acaba sendo uma estratégia para lidar com a transfobia, discriminação, dificuldades socioeconômicas e violência. O uso de substâncias compromete a autonomia e o cuidado referente ao HIV (Mitchell et al., 2019).
A vulnerabilidade social, como a dificuldade de se ter uma moradia fixa, baixa escolaridade, dificuldades de acesso a uma alimentação adequada e empregabilidade, influi para que este público se exponha a comportamentos de risco, tendo múltiplos parceiros sexuais de forma remunerada a fim de se ter um meio financeiro para sobreviver (Baguso et al., 2016, Dowshen et al., 2016; Mitchell et al., 2019; Reisner et al., 2017; Nemoto et al., 2021; Machtinger et al., 2012). Com isto, tais vulnerabilidades acabam se tornando prioridades concorrentes diante do tratamento do HIV, sobrepondo-se aos cuidados referentes à saúde (Sevelius et al., 2014a).
Muitas pessoas trans sofrem traumas por discriminação e transfobia, o que frequentemente ocasiona episódios de estresse pós-traumático que as afastam do engajamento ao tratamento do HIV ao evitarem expor-se a possíveis maus tratos. Intrincado a isso, está a falta de afirmação de gênero, que não se trata apenas de cirurgia e terapia hormonal, mas também do não uso de pronome correto e nome social (Sevelius et al., 2014a; Radusky et al., 2022). Machtinger et al. (2012) investigaram a influência do trauma com a falha da TARV, verificando que mulheres trans que vivenciaram trauma recente têm grande dificuldade de adesão ao tratamento e comportamentos de risco de transmissão do HIV.
Ademais, observou-se que a falta de apoio social, como ausência de rede de apoio familiar, amizades e/ou relacionamento amoroso, levam a uma inconstância no continuum do HIV (Baguso et al., 2016, Sevelius et al., 2014b; Sáez et al., 2015; Nemoto et al., 2021; Mitchell et al., 2019). Em um tratamento medicamentoso de longo prazo, pode ser importante que a pessoa tenha alguém que estimule a continuidade e constância da terapêutica.
Considerações para melhora da adesão ao tratamento
Por fim, a maioria dos estudos apresenta propostas para melhora da adesão ao tratamento do HIV, pensando nas particularidades da população transexual com HIV. Percebe-se, pelos fatores que encontramos neste estudo, que é necessária uma compreensão abrangente sobre o fenômeno, considerando níveis individuais, interpessoais e estruturais (Braun et al., 2017, Reisner et al., 2017). Para Reisner et al. (2017), é importante não só proteger essa população dos riscos, mas estimular a resiliência frente às inerentes dificuldades e vulnerabilidades.
Além disso, os trabalhos apontam a relevância de desenvolver serviços específicos às demandas trans, que contenham uma equipe especializada e humanizada no atendimento (Kalichman et al., 2017, Lacombe-Duncan et al., 2021, Mitchell et al., 2019, Radusky et al., 2022). Os serviços devem respeitar a afirmação da identidade de gênero dos pacientes, por exemplo, com o uso rotineiro do nome social e do pronome correto durante os atendimentos e nos prontuários (Rosen et al., 2019, Sabino et al., 2020, Sevelius et al., 2014a). Também deve-se ter atenção na triagem quanto ao trauma e sintomas de estresse pós-traumático (Lacombe-Duncan et al., 2021, Machtinger et al., 2012)
Com isso, pensa-se na formação do profissional da saúde, sendo necessário treinamentos de educação permanente, abrangendo habilidades de comunicação profissional-paciente e conhecimento específico para a prestação de cuidados à saúde da população trans com HIV (Radusky et al., 2022, Rosen et al., 2019, Sevelius et al., 2010, Zalazar et al., 2020). Considera-se também a importância de políticas públicas que abordem o uso de substâncias e a proposta de redução de danos, além de fatores estruturais como acesso à moradia, aos serviços de saúde (custo dos transportes) e emprego formal (Nemoto et al., 2021, Radusky et al., 2022, Rosen et al., 2019).
Acerca do uso de hormônios e da TARV, Braun et al. (2017) pontuam sobre a necessidade de informar pacientes e profissionais sobre os reais riscos, eliminando equívocos e falsas crenças. Além de discutir nos atendimentos acerca das preocupações da interação medicamentosa com o tratamento hormonal. Em consonância, Sevelius et al. (2010) ressaltam que o tratamento hormonal deve ser integrado ao tratamento do HIV, prevenindo o uso de hormônios autoadministrados e melhorando a adesão ao tratamento. Já Crosby et al. (2018) pontuam a importância do aconselhamento contínuo para colaborar na aceitação e adesão ao tratamento.
Ademais, Kalichman et al. (2017) pontuaram acerca do suporte tangível e o quanto este pode ser construído por vias formais, como o trabalho do serviço social e apoio social, por meio de grupos de apoio e visitas domiciliares. Além da importância do suporte de ONGs e a inclusão de profissionais e agentes de saúde transexuais nos serviços de saúde (Mitchell et al., 2019).
CONCLUSÃO
Este trabalho buscou compreender os fatores que influenciam na não adesão ao tratamento de pessoas transexuais com HIV, a partir de uma revisão sistemática da literatura. Diante disso, verifica-se que essa população possui diferentes vulnerabilidades, inseridas em um complexo cenário, que abrange tanto o âmbito individual e psicossocial quanto os serviços de saúde e as políticas públicas de assistência.
Destaca-se enquanto fatores para não adesão ao tratamento do HIV: a vulnerabilidade social, que envolve comportamentos de riscos, como uso de drogas e trabalho sexual, além de dificuldades de acesso à moradia e falta de suporte; trauma recente; prioridades concorrentes ao tratamento, como subsistência, trabalho, afirmação de gênero e outros tratamentos, como a hormonioterapia; estigma e discriminação. Além de dificuldades no âmbito da assistência à saúde, como o relacionamento com a equipe, o acesso ao sistema de saúde, as políticas públicas e a formação dos profissionais.
Diante de tais fatores e da sistematização de diferentes propostas para a adesão ao tratamento é possível considerar alternativas para o aprimoramento da assistência a essa população. Com isso, aponta-se que este trabalho cumpre com o objetivo de organizar as evidências científicas disponíveis, contribuindo com informações para tomada de decisões em saúde. Pensa-se que este trabalho pode colaborar para o planejamento de intervenções, cartilhas e políticas públicas de saúde, assim como para o desenvolvimento de cursos e treinamento de formação permanente aos funcionários dos serviços de assistência, desde profissionais administrativos até a equipe multidisciplinar, pois todos se relacionam com o usuário e possuem seu papel na promoção de saúde.
No tocante às equipes que se relacionam com os pacientes, ressalta-se a importância da afirmação de gênero, aspecto frequentemente pontuado neste trabalho como um fator essencial para a qualidade de vida das pessoas trans e um dos bloqueios para o acesso aos serviços. Coloca-se como essencial dirigir-se ao paciente como este se reconhece, utilizando o pronome correto e o nome social, bem como possuir conhecimento voltado a este público, a fim de esclarecer dúvidas, fazer orientações acerca dos tratamentos e possíveis interações medicamentosas entre a TARV e o uso de hormônios.
Por fim, aponta-se, como limitações, que a maioria dos artigos encontrados aborda somente as particularidades de mulheres transexuais e não consideram as especificidades do cenário brasileiro, pois houve uma coleta de trabalhos de diferentes localidades, o que não permite a generalização a nenhum contexto sociocultural. Por conta disso, sugere-se que mais estudos sejam realizados no cenário nacional, investigando o papel do Sistema Único de Saúde brasileiro na assistência a pessoas trans com HIV, além de pesquisas focadas na prevenção e no uso da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) por esta população.














