INTRODUÇÃO
O transplante de medula óssea (TMO), enquanto procedimento terapêutico não cirúrgico, consiste na infusão de células tronco hematopoiéticas derivadas da medula óssea do próprio paciente (neste caso o procedimento é caracterizado como Autólogo) ou de doadores aparentados ou não (desta outra forma chamamos o transplante de Alogênico).
A infusão é considerada uma intervenção não invasiva e assemelha-se a uma transfusão sanguínea. Anteriormente ao transplante, a paciente interna com antecedência para realização de tratamentos quimioterápicos, e em alguns casos, radioterápicos também, que objetivam criar condições no organismo para recebimento do enxerto saudável, destruindo a medula adoecida. Isto causa uma condição de diminuição de hemocomponentes que levam o paciente a imunossupressão, plaquetopenia e neutropenia, vulnerabilizando o organismo para lesões, infecções e acometimentos gerais (Alvares et al., 2003).
Alvares e colaboradoras (2003) indicam que, após o início do funcionamento saudável da nova medula, considera-se a enxertia como concluída e parte dos pacientes inicia o processo de resgate de sua saúde. Outra fração, correspondente à maioria destes pacientes, enfrenta uma nova condição delicada denominada Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro, em que a nova medula manifesta seu funcionamento atacando o organismo receptor por reconhecê-lo como estranho.
Esta intervenção é utilizada para tratamento de doenças onco-hematológicas, principalmente, mas também é utilizada como terapêutica em linhas mais complexas de tratamento para doenças oncológicas específicas e para outras doenças hematológicas. O processo do transplante de medula óssea é agressivo e intenso, sendo considerado muitas vezes como ambíguo, pelas potencialidades e riscos apresentados concomitantemente (Peres & Santos, 2006).
Além das diversas alterações fisiológicas que o TMO acarreta, importantes aspectos psicológicos acompanham e impactam todo o processo. O próprio momento da descoberta da doença e tomada de decisão em seguir com o tratamento pode gerar grande sofrimento emocional, e não apenas o paciente como toda sua unidade familiar é afetada.
Torrano-Masetti, Oliveira e Santos (2000) apontam que repercussões psicológicas como ansiedade frente ao que está por vir, sintomas somáticos, medo, insegurança, irritabilidade, dependência, sofrimento diante da impossibilidade de conversar e se alimentar, são fatores recorrentes e caracterizantes no percurso da doença e prognóstico.
Assim sendo, torna-se de grande importância uma avaliação e intervenção psicológica, antes mesmo da realização do transplante, tanto com os pacientes, quanto com familiares, e doadores que muitas vezes podem apresentar crenças errôneas, dificuldades de compreensão sobre a doença ou tratamento, questões socioeconômicas ou mesmo recursos de enfrentamento empobrecidos (Torrano-Masetti et al., 2000).
Para além do bem-estar global do paciente ao longo do tratamento, há de se considerar o êxito no transplante de medula óssea, que depende de algumas variáveis biomédicas, tais como o estágio da doença no momento do transplante, doenças subjacentes, fonte de células troncos, entre outros. Além das variáveis biomédicas, nos últimos tempos as variáveis psicológicas vêm sendo colocadas também como fatores que afetam os resultados no pós-transplante de TMO (Hoodin, Uberti, Lynch, Steele & Ratanatharathorn, 2006). Por se tratar de um prognóstico delicado, a descoberta do diagnóstico de câncer leva aos pacientes o temor da possibilidade da morte, uma vez que surgem conflitos ligados à realização ou não do tratamento, sendo visto como uma possibilidade de cura, porém, ao mesmo tempo, como um tratamento ameaçador à vida (Torrano-Masetti et al., 2000).
Neste sentido, um estudo realizado em Milão, no Instituto San Raffaele Scientific, buscou avaliar a eficácia de uma abordagem multidisciplinar, tendo a avaliação psicológica sido realizada em adultos candidatos ao transplante de TMO. Constatou-se que os pacientes demonstraram uma boa qualidade de vida e um benefício maior ao serem tratados por uma equipe multidisciplinar, sendo sugerido a implementação e estruturação da avaliação psicológica pré-transplante (Giuliani et al., 2016).
A avaliação psicológica realizada em pacientes candidatos ao transplante de medula óssea destina-se a conhecer o sujeito e a sua estrutura psicossocial, na busca de colher informações pertinentes para a equipe e também para verificar a contraindicação ao transplante na presença de uma doença psiquiátrica grave. Tais informações serão subsídios para um planejamento de intervenções psicológicas no que tange ao enfrentamento, adaptação e adesão ao tratamento (Torrano-Masetti et al., 2000). Desta forma, o objetivo da presente investigação foi de realizar uma revisão bibliográfica integrativa da produção científica acerca da Avaliação Psicológica no contexto do Transplante de Medula Óssea, no intuito de compreender como essa prática é descrita e abordada na literatura.
MÉTODO
Para a realização desta revisão sistemática integrativa foram analisados artigos científicos de acordo com a metodologia PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analysis), que consiste em “orientações para relato que refletem os avanços nos métodos para identificar, selecionar, avaliar e sintetizar estudos” (Page et al, 2022, p.2). Foram selecionados artigos publicados e registrados nas bases de dados PubMed, Scopus, Web of Science, BVS e PsyNet até o dia 17 de maio de 2022. A estratégia de busca utilizou os descritores “Bone Marrow Transplantation” OR “Transplantation, Bone Marrow” OR “Bone Marrow Cell Transplantation” OR “Transplantation, Bone Marrow Cell” associado ao operador Booleano “AND” para os descritores “psychological assessment” OR “psychological evaluation”. Estes descritores foram definidos a partir do recurso “DeCS/MeSH” (Descritores em Ciências da Saúde). O tempo de publicação não foi limitado, nem os países de origem, com o intuito de encontrar o maior número de artigos possíveis. Os artigos selecionados são aqueles escritos em inglês, espanhol e português e que de acordo com o critério de inclusão, após a leitura de título e resumo, demonstraram pertinência temática ao objetivo da pesquisa, mencionando, descrevendo ou abordando a avaliação psicológica no contexto do transplante de medula óssea. Como critério de exclusão, descartaram-se aqueles que após a leitura de título e resumo não configuraram pertinência temática ao objetivo da pesquisa, restando assim, 9 artigos. O processo de coleta de dados dos artigos selecionados se deu de forma independente de protocolos, extraindo informações a partir da leitura de cada um.
RESULTADOS
Da estratégia anteriormente descrita, foram obtidos 56 artigos: 10 referentes à plataforma PubMed, 17 relativos à base Scopus, 21 da Web of Science, na base de dados BVS foram encontrados 8 artigos, e por fim, na PsyNet nenhum artigo foi identificado. Após excluídas as duplicidades tornaram-se 29. Como critério de exclusão, descartaram-se aqueles que após a leitura de título e resumo não configuraram pertinência temática ao objetivo da pesquisa, restando, assim, 9 artigos. A Figura 1, abaixo, descreve esse processo.
Os artigos selecionados estão descritos brevemente na Tabela 1. Houve certa homogeneidade no período relativo ao transplante em que ocorrem as avaliações psicológicas, ou seja, no momento pré-transplante, com exceção de 3 artigos, dos quais um avalia de forma longitudinal (antes e após o transplante). Também, quanto à temática, observa-se que em todos os artigos as avaliações psicológicas envolvem a investigação de fatores de sobrevida e qualidade de vida no pós-transplante, sendo que 2 artigos priorizam a discussão da influência da personalidade nestes aspectos.
Tabela 1 Caracterização dos artigos selecionados para a revisão integrativa
| TÍTULO | AUTORES | ANO | PERÍODO TMO | POPULAÇÃO |
|---|---|---|---|---|
| Psychosocial morbidity in bone marrow transplant recipients: A prospective study. | Leigh, S., Wilson, K. C. M., Burns, R., & Clark, R. E. | 1995 | PRÉ E PÓS TRANSPLANTE | 36 pacientes receptores de TMO, realizando o acompanhamento pré e pós transplantes. |
| Symptom distress, coping style and biological variables as predictors of survival after bone marrow transplantation. Journal of Psychosomatic Research. | Molassiotis, A., van den Akker, O. B. A., Milligan, D. W., Goldman, J. M. | 1997 | PÓS TRANSPLANTE | 31 pacientes pacientes receptores de TMO, realizando o acompanhamento pré e pós transplantes. |
| Morbidity and mortality following bone marrow transplantation: Predictive utility of pre-BMT affective functioning, compliance, and social support stability. | Rodrigue, J. R., Pearman, T. P., & Moreb, J. | 1999 | PÓS TRANSPLANTE | 92 pacientes submetidos ao Transplante de Medula Óssea |
| Medical coping modes questionnaire: Factor structure for adult transplant candidates. | Rodrigue, J. R., Jackson, S. I., & Perri, M. G. | 2000 | PRÉ TRANSPLANTE | 372 pacientes pré transplante, sendo 108 por medula óssea, e 264 por demais transplantes. |
| Do negative or positive emotions differentially impact mortality after adult stem cell transplant? | Hoodin, F., Uberti, J., Lynch, T. et al. | 2006 | PRÉ TRANSPLANTE | Artigos de revisão |
| Contribuições do inventário fatorial de personalidade (IFP) para a avaliação psicológica de pacientes onco-hematológicos com indicação para o transplante de medula óssea. | Peres, R. S., & Santos, M. A. dos. | 2006 | PRÉ TRANSPLANTE | 10 pacientes candidatos ao Transplante de Medula Óssea. |
| Projective techniques in the hospital context: report of an experience with House-Tree-Person (HTP). | Peres, R. S., dos Santos, M. A., Rodrigues, A. M., & Okino, E. T. K. | 2007 | PRÉ TRANSPLANTE | 10 pacientes candidatos ao Transplante de Medula Óssea. |
| Psychosocial factors associated with quality of life in allogeneic stem cell transplant patients prior to transplant. | Pillay, B., Lee, S. J., Katona, L., Burney, S., & Avery, S | 2014 | PRÉ TRANSPLANTE | 122 pacientes pré transplante alogênico. |
| Multidisciplinary team inclusive of psychological assessment provides benefit on Quality of Life (QoL) in young adult recipients of HSCT. | Giuliani, S., Giglio, F., Sciuto, L., Sciuto, L., Sartorelli, O C., Greco, R., Greco, R., Corti, C., Bernardi, M., Peccatori, J., Peccatori, J., Peccatori, J. | 2016 | PRÉ TRANSPLANTE | 35 pacientes adultos jovens candidatos ao transplante alogênico de células-tronco hematopoiéticas. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Ainda se constata que, destes 9 artigos, há a investigação de fatores como sintomas de estresse, estilo de enfrentamento, personalidade, suporte psicossocial, acompanhamento multiprofissional e suas reverberações psicológicas. Por fim, identifica-se que 8 dentre os 9 artigos caracterizam-se como estudos de pesquisa original, sendo a exceção uma revisão sistemática.
DISCUSSÃO
Durante a investigação dos artigos selecionados para este estudo de revisão integrativa, alguns aspectos foram identificados e analisados como pertinentes para o processo de análise do estudo. Desta maneira, considerou-se questões acerca do período, objetivo, metodologia, utilidade e resultados das avaliações descritas em cada artigo selecionado.
Constatou-se uma certa predominância com relação ao período: seis artigos versam sobre avaliações psicológicas feitas no momento pré-transplante, dois artigos relatam avaliações psicológicas após o transplante e um artigo refere que a avaliação psicológica foi realizada tanto no momento anterior quanto na etapa posterior ao transplante. Com relação aos objetivos, nota-se que os artigos selecionados abrangem estudos acerca da qualidade de vida e fatores de sobrevida no pós-transplante, tendo dois artigos que versam sobre a influência da personalidade durante o processo de transplante (Peres & Santos, 2006; Peres et al., 2007).
Com relação aos métodos utilizados para a avaliação psicológica dos pacientes, cada autor traz uma bateria variada de testes, apresentando uma homogeneidade quanto ao uso de entrevistas semidirigidas.
Em dois artigos houve predominância dos seguintes instrumentos: Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE), a Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão (HADS), Escala de Ajustamento Mental ao Câncer (MAC), o Questionário de Modos de Enfrentamento Médico (MCMQ), e o Inventário de Depressão de Beck, visando identificar aspectos psicológicos nesse processo de adoecimento (Leigh et al., 1995; Pillay et al., 2014) . Enquanto que nos artigos de Peres e colaboradores (2007), e Peres e dos Santos (2006) são abordados instrumentos específicos como o inventário Fatorial de Personalidade (IFP), e o House-Tree-Person (HTP), buscando avaliar a viabilidade do uso dos mesmos em uma avaliação psicológica de pacientes submetidos a TMO (Peres et al., 2007).
De forma geral, os artigos indicam que os aspectos psicológicos avaliados majoritariamente no período pré-transplante, assim como o suporte multidisciplinar, principalmente psicológico, possuem influência sobre a qualidade de vida e morbidade no período após o transplante de medula óssea. Neste mesmo sentido, identifica-se homogeneamente os apontamentos dos artigos quanto aos benefícios de diagnosticar preventivamente características, sejam estas vinculadas à personalidade ou às estratégias de enfrentamento do paciente, que possam dificultar a vivência deste tratamento ou ainda que sugiram potenciais prejuízos à adesão do mesmo (Rodrigue et al., 2000; Hoodin et al., 2006; Peres & Santos, 2006; Peres et al., 2007; Pillay et al., 2014; Giuliani et al., 2016).
Neste sentido, os artigos elencam os seguintes fatores psicológicos e psicossociais como influentes no processo de Transplante de Medula Óssea e, portanto, importantes de serem avaliados: otimismo, características psicológicas/psicossomáticas e de personalidade, estilo de enfrentamento, esperança, situação demográfica e suporte social. Assim, conhecendo tais componentes através da avaliação, pode-se ofertar um apoio multidisciplinar adequado que, segundo parte dos artigos levantados, evidentemente contribui para sobrevida, qualidade de vida e adesão ao tratamento, além de reduzir sequelas psicológicas após o processo (Leigh et al., 1995; Giuliani et al., 2016).
CONCLUSÃO
Foi possível notar nos estudos a influência e a importância da avaliação psicológica no contexto do transplante de medula óssea. Verificou-se que aspectos psicológicos e psicossociais são importantes para a sobrevida, adesão ao tratamento e qualidade de vida de pacientes em TMO. Vale destacar, que se observou uma heterogeneidade na utilização de escalas e instrumentos nas avaliações, não sendo possível identificar uma padronização.
Além disso, não foram encontrados artigos que apresentem propostas de protocolo ou sistematização desta avaliação de forma a abranger todos os aspectos levantados como necessários para serem avaliados. Tal conclusão ressalta a importância de uma maior produção científica acerca do tema, uma vez que, mesmo com pouca produção científica, fica evidente a influência da avaliação psicológica em pacientes candidatos ao transplante de medula óssea.
Por fim, considera-se a potencialidade do desenvolvimento de produções que articulem os fatores analisados em avaliação psicológica até então, possibilitando o desenvolvimento de recursos teóricos para a prática desta intervenção de forma articulada e mais completa possível.














