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Psicologia USP
versão On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.2 n.1-2 São Paulo 1991
PONTO DE VISTA
A especialização do psicólogo para o atendimento as pessoas portadoras de deficiência
Profa. Maria Lúcia AmiralianI; Profa. Elisabeth BeckerI; Dra. Maria Júlia KovácsII
IProf. Assistente do Instituto de Psicologia da USP
IIProf. Assistente Doutor do Instituto de Psicologia da USP
O atendimento psicológico à pessoa portadora de deficiência tem se mostrado, em nosso país, como uma área de trabalho que mantém uma demanda constante. Entretanto, mostra-se também como um segmento do mercado ao qual raramente os jovens profissionais encaminham sua opção de trabalho. Ao deparar-se com esta possibilidade e com a necessidade crescente das Instituições e dos sujeitos portadores de deficiência, o jovem psicólogo engaja-se freqüentemente na tarefa sentindo-se despreparado. Observa-se então um retorno à Universidade, solicitando bibliografias, orientações, supervisões mais subsídios, enfim, para uma "praxis" competente.
Isso promove um necessário questionamento, quer acerca do conteúdo formal existente nos cursos de graduação em Psicologia, relativo às informações necessárias ao preparo do jovem profissional, quer acerca de atitudes dos psicólogos frente ao trabalho com pessoas portadoras de deficiência, propiciadas por sua formação. Interessa-nos especialmente este último, na medida em que lemos observado, em nossa experiência como docentes, o risco de desenvolvimento de uma global desvalorização desse trabalho do psicólogo, que tem visto seu status profissional rebaixado perante seus pares, como sendo o de um trabalhador na "área menos nobre da psicologia".
Em nosso meio, a Disciplina "Psicologia do Excepcional" consta como de natureza obrigatória no curriculum mínimo de formação do psicólogo. O teor de tal Disciplina deveria, a nosso ver, poder propiciar mais que uma mera visão das vicissitudes promovidas pelos desvios da "normalidade", O futuro psicólogo, ao estudá-los, é remetido a uma considerável mobilização afetiva-emocional derivada do contato com suas concepções internalizadas de deficiência e esse fenômeno deveria favorecer uma integração construtiva de tal contato aos conhecimentos adquiridos no curso. Há o risco de, entretanto, ocorrer um fato diametralmente oposto. Perplexo com esse confronto e, na maior parte dos cursos, sem a oportunidade de um estágio, em que a prática possibilitasse novo espaço e tempo de elaboração dessa experiência, nosso estudante torna-se presa fácil dos mecanismos de negação da deficiência, frequentemente investindo a característica de concretude nela evidenciada, de uma idealização ambígua, mais próxima do misterioso fascínio da psicose.
Evidenciam-se assim também os problemas conceituais a que tal trabalho remete, pois trata-se de um campo de ação que pode abrigar concepções que vão do polo de determinismo biológico ao polo de determinismo social das deficiências c, questionando tais extremos, o psicólogo debate-se com graves problemas de afirmação de identidade profissional.
Desta maneira, a formação de profissionais de psicologia qualificados a darem sua competente contribuição na área é um desafio constantemente colocado no âmbito acadêmico.
Por estas constatações, consideramos que um curso de especialização se constituísse como espaço apropriado e eficaz para se trabalhar as especificidades oriundas das deficiências físicas e mentais, e fundamentalmente, um espaço de reflexão cujo objetivo último seja de um possível redimensionamento interno que se refletirá em mudanças atitudinais.
O curso foi organizado constando de 360 horas/aula, dadas no decorrer de três semestres, através de aulas teóricas, seminários e atividades práticas de atendimento supervisionadas.
Os objetivos propostos foram:
oferecer aos psicólogos subsídios para compreender o processo vital dos deficientes físicos, mentais e visuais;
fornecer ao psicólogo um painel dos principais procedimentos para o atendimento desses indivíduos;
possibilitar ao psicólogo uma atuação crítica nos diferentes campos de trabalho com essas áreas de deficiência.
Através desses objetivos houve a pretensão de atingir a esfera cognitiva, pela revisão e aprofundamento de conhecimentos básicos e atualização de conhecimentos específicos, bem como a esfera atitudinal, através da revisão e reflexão acerca dos processos de atendimento. Pretendíamos com isso a mobilização de recursos internos, que refletissem aprimoramento e disponibilidade para contato mais eficaz com pessoas portadoras de deficiência.
Para a consecução desses objetivos foram organizadas cinco unidades, que procuraram abordar de forma abrangente o conhecimento necessário às diversidades de atendimentos que o psicólogo realiza no campo de trabalho com pessoas portadoras de deficiência. Segue-se à exposição das unidades um breve comentário de nossas constatações dessa primeira experiência.
1ª Unidade: Revisão crítica dos critérios de conceituação de Excepcionalidade e Deficiência Física, Mental e Visual.
A - Conceito e pré-conceito
B - Evolução histórica
C - Critérios de conceituação de excepcional idade
D - Conceituação de deficiência física, mental e visual
Consideramos o conceito de excepcionalidade como o ponto de partida, quer pelo seu caráter de permitir aos participantes do curso uma revisão de importantes pressupostos teóricos, quer por seu caráter extremamente dinâmico, dado principalmente por sua inscrição social que favorece uma constante necessidade de atualização.
Pudemos constatar que o estudo da conceituação de excepcionalidade propiciou, até a participantes há muitos anos engajados com o trabalho na área, experiência fecunda de questionamento e revisão de suas atitudes básicas.
Observando que a formulação de uma dada conceituação traduz uma atitude psicológica subjacente, tivemos a oportunidade, neste curso, de legitimar a expressão "pessoa portadora de deficiência" em detrimento da expressão "pessoa excepcional", isso porque, pela nossa óptica, esta última expressão seria mais adequada para referir-se apenas aqueles que não seguem o fluxo normal de escolaridade. Para o psicólogo a expressão "pessoa excepcional", além de refletir ambiguidade e indefinição, traduz a possibilidade, altamente indesejada, de que a deficiência não venha a ser contemplada de fato, na relação estabelecida.
2a Unidade: Fases críticas do processo vital dos deficientes.
A - Constatação do problema momento da notícia
B - A primeira infância: as relações familiares e a descoberta do mundo.
C - A escolaridade: a aprendizagem e a socialização.
D - A adolescência: as vicissitudes na busca da identidade, sexualidade e namoro.
E - A vida adulta: o trabalho, constituição de família, velhice e morte.
A existência de uma deficiência imprime, por parte de familiares, sociedade em geral e até dos profissionais uma idéia de descontinuidade ou interrupção do processo de desenvolvimento dos indivíduos que possuem uma deficiência.
A constatação, reflexão e análise das várias etapas do processo vital dos sujeitos com deficiência propicia aos profissionais a conscientização do status quo infantilizado e infantilizador a que estão submetidas essas pessoas. Acreditamos que tal conscientização levará a reformulação de atitudes que reverterão em mudanças nos processos de atendimento, passando esses a incorporar, valorizar e verdadeiramente considerar a pessoa portadora de deficiência como aquela que tem direito a todas as idades psicológicas.
Acreditamos que essa mudança de atitudes possa colaborar para que a família, a sociedade e principalmente os profissionais venham a "ouvir" e valorizar a fala do próprio sujeito deficiente, ao invés de, como vemos hoje com frequência colocarem-se como seu porta-voz, aqueles que possuem o verdadeiro saber sobre as pessoas deficientes, seus desejos e suas necessidades.
3a Unidade: O processo psicodiagnóstico e sua especificidade nas áreas consideradas.
A - A inserção do diagnóstico psicológico no processo de atendimento aos deficientes
B - O processo psicodiagnóstico: histórico e sistematização teórica
C - O processo psicodiagnóstico: etapas e procedimentos
D - O processo psicodiagnóstico: especificidades para o deficiente visual, deficiente físico e deficiente mental.
O processo psicodiagnóstico se constitui como elemento fundamental no atendimento psicológico às pessoas portadoras de deficiência, seja ao considerarmos que os sujeitos divergentes foram os detonadores da existência e importância do diagnóstico psicológico, seja ao considerarmos que ó o próprio processo diagnóstico que legitima a especificidade psicológica das pessoas portadoras de deficiência na área cognitiva.
Imprimimos nesta unidade a concepção do psicodiagnóstico como um processo compreensivo. Tal processo é definido por Trinca (1984) como aquele "que leva em conta a natureza específica da tarefa diagnóstica (que apresenta problemas particulares, exigindo metodologia própria para solucioná-los), considera o emprego de referenciais múltiplos, a fim de evitar a uni lateralidade que se encontra nos demais processos; e é ponto de confluência de uma visão totalizadora do indivíduo humano".
Assim, nossa preocupação foi salientar a importância da compreensão ampla, abrangente e profunda da pessoa portadora de deficiência, considerando os aspectos específicos advindos desta sua condição de vida e suas relações com o mundo, como elementos fundamentais que determinarão os processos de atendimento necessários.
Como profissionais e docentes observamos que jovens psicólogos temem o contato com pessoas portadoras de deficiência, referindo-se freqüentemente à falta de instrumental adequado ou de conhecimento mais aprofundado das dificuldades decorrentes, esquecendo-se que o instrumental mais importante é o próprio psicólogo e seu conhecimento e disponibilidade para entender e compreender o sujeito do diagnóstico. Esta unidade se propôs também como reflexão e elaboração destas fantasias, que permeiam a formação de novos profissionais.
4a Unidade: Intervenção psicológica e suas conexões junto a pessoa deficiente e sua família.
A - Educacional: a) Programas de estimulação
b) Programas escolares
c) Programas pré-profissionalizantes
d) Programas profissionalizantes
B - Clínica: a) Painel de várias abordagens psicoterápicas
b) Especificidades em relação às deficiências
C - Familiar: a) Painel geral das teorias sobre família
b) Aconselhamento familiar e suas relações com o processo de atendimento do deficiente
c) Psicoterapias familiares
Enquanto as unidades anteriores se preocuparam em refletir, questionar e aprofundar informações já recebidas em cursos de graduação, esta se propôs a enfocar especificamente o trabalho direto com sujeitos portadores de deficiência, tornando-se assim a mais essencial contribuição que a especialização propõe.
Ao nos propormos a abranger a maioria das intervenções psicológicas a que cst2o sujeitos os indivíduos portadores de deficiência, achamos necessário complementar as informações através de convite a especialistas, para através do relato de suas práticas possibilitarem reflexão sobre estas. Tal intercâmbio, veio a enriquecer não só o conhecimento de práticas, mas também possibilitar o alargamento da visito do campo total de atendimento aos sujeitos deficientes. Assim, estes contatos nos permitiram não só o conhecimento de diferentes atuações na área, mas também de pesquisas e outras experiências de trabalho que muitas vezes silo realizadas, no âmbito institucional ficando freqüentemente restritas a pequenos grupos.
5a unidade: O profissional de psicologia e os Tutores institucionais.
A - Conceito de instituição
B - Trabalho institucional
C - Psicologia institucional versus psicólogo que trabalha na instituição.
Sendo no momento atual inadmissível a ingenuidade do psicólogo frente ao problema que a organização das instituições coloca para seu trabalho, nada mais lógico que após refletir detalhadamente sobre a temática do atendimento às pessoas portadoras de deficiência, deva-se analisar as dificuldades decorrentes do psicodinamismo das instituições. O psicólogo deve poder analisar e compreender os fatores institucionais circundantes e, ao tomar consciência desses e de sua influência no atendimento às pessoas portadoras de deficiência, ter condições para minimizar ou neutralizar os eventuais efeitos deletérios derivados das práticas institucionais e institucionalizadoras.
A última atividade do curso se constituiu num workshop organizado e protagonizado pelos alunos, sendo parte do processo de avaliação destes. Neste workshop foram apresentados trabalhos relativos às atividades desenvolvidas pelos participantes, expressando reflexões suscitadas durante essa vivência.
A riqueza, o rigor e a profundidade dos relatos apresentados dimensionaram o curso com uma vivência afetivo-pedagógica em plenitude, trazendo subsídios que legitimam propostas de futuros cursos.
No nosso ponto de vista, após um ano e meio de trabalho, de intenso envolvimento com o planejamento e execução do curso e do contato com os alunos, levantamos alguns pontos que consideramos relevantes no sentido de se poder pensar na continuidade desta experiência.
Percebemos que houve um grande engajamento e envolvimento dos alunos. Sabe-se que em cursos longos, muitas vezes, ocorrem desistências em número significativo. Neste apenas 04 alunos desistiram logo no primeiro mês, não havendo ocorrências posteriores até o final.
Por outro lado, sentimos que não só para os alunos, mas também para os coordenadores e docentes convidados, houve enriquecimento e aprofundamento, possibilitados pela troca de experiências e discussões. O convite a especialistas promoveu reflexões sobre a sua especialidade e o confronto com outras. Foram percebidos pontos de convergência, de acordo, e também divergências, diferentes ópticas e formas de encarar a problemática do atendimento a pessoas portadoras de deficiência, que levaram a questionamentos e a uma revisão de alguns conceitos, atitudes e práticas derivadas.
A insenção de um curso de especialização sobre o profissional de psicologia e a pessoa portadora de deficiência dentro do Instituto de Psicologia da USP, foi responsável, a nosso ver, por uma mudança de atitude frente a esta área dentro deste Instituto, resgatando de alguma forma a importância da discussão deste lema na formação do psicólogo.
Foi também a partir desta experiência que observamos a necessidade de repensar a formação do psicólogo a nível de graduação, quanto à disciplina já existente "Psicologia do Excepcional", bem como a criação de uma optativa que poderia aprofundar alguns dos pontos discutidos no curso básico, e talvez permitir a possibilidade de uma prática de atendimento ainda durante a formação.
Acreditamos que este caminho conquistado deverá ser fortalecido através da criação de um Laboratório ou Núcleo de Estudo Interdepartamental, que coordenaria os cursos, pesquisas e supervisão nessa área, sendo uma forma de se congregar pessoas que tenham interesse e experiência, e legitimar de forma mais consistente este espaço dentro do IPUSP.
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