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Psicologia USP
versão On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo 1992
ARTIGOS ORIGINAIS
Classes populares, família e preconceito
Popular classes, family and prejudice
Sylvia Leser de Mello
Instituto de Psicologia USP
RESUMO
O artigo discute o preconceito subjacente aos modelos normativos da estrutura familiar, presentes em pesquisas psicológicas, sociológicas e pedagógicas, sobretudo quando se estudam as famílias de classes populares, cuja sobrevivência exige, muitas vezes, modificações importantes no modelo considerado "normal" pelos pesquisadores, o que pode induzir a erros de avaliação e interpretação que se transformam em preconceitos até mesmo no âmbito da ciência.
Descritores: Família. Preconceito.
ABSTRACT
This paper discusses the bias underlying the normative models of family structure present in psychological, sociological and pedagogical research, especially when working class families are the subject of study. In such families their struggle for survival frequently demands structures very different from what is considered "normal" by researchers. This can lead to errors of evaluation and interpretation even in scientific studies.
Index. terms: Family. Prejudice.
Eu gostaria de complementar o que já foi dito, nas abordagens teóricas, a partir de uma experiência de pesquisa, realizada em bairro popular da periferia de São Paulo, a Vila Helena, onde convivi muito proximamente com um grande número de famílias. O que eu quero discutir diz respeito aos modelos normativos da família e à relação destes modelos com a pesquisa, quer em educação, quer em psicologia.
Em primeiro lugar, devo referir-me ao bairro1 como um todo. A sociologia e a economia denominam os bairros, como a Vila Helena, onde não se desenvolvem atividades produtivas, bairros dormitórios. Essa categoria sugere que a vida do trabalhador se esgota no trabalho, ou que ele só tem existência enquanto trabalhador. Creio que, ao contrário, o mínimo que podemos fazer, enquanto teóricos e pesquisadores das ciências humanas, é chamar a atenção, a cada momento, para a humanidade do trabalhador, enfatizando essa qualidade anterior a qualquer determinação econômica. Podemos começar reconhecendo que os bairros populares da periferia são a representação material de um imenso esforço dos trabalhadores de baixa renda na busca de um ajustamento à cidade. Mesmo que passem a maior parte do dia fora do bairro, porque a jornada de trabalho é de nove ou dez horas, sua vida afetiva, o seu momento de descanso e de prazer acontecem dentro do bairro ou a ele se referem. O valor simbólico da moradia não pode ser bem compreendido se reduzirmos os homens ao ser do trabalho. Se o economista pode empregar categorias que fazem abstração dos sujeitos concretos e históricos, não é aceitável que os pesquisadores, que vão estudar aspectos que ressaltam diretamente da subjetividade dos sujeitos, também o façam. O que o pesquisador pode constatar é que, apesar da enorme carga de trabalho pesado que recai sobre os habitantes dos bairros populares, eles constroem uma rica e variada sociabilidade em seu local de moradia.2
Se o valor simbólico do local de moradia só pode ser bem compreendido quando o sujeito é visto em sua totalidade, assim também o valor da família, que é o núcleo que concentra e dá ordem à sociabilidade. Outras instâncias, como as igrejas ou as associações de moradores, são muito frágeis para se poderem constituir em núcleos expressivos da sociabilidade. A família catalisa de tal modo a vida afetiva que alguns jovens, que poderiam morar em outros lugares, em melhores condições, preferem permanecer no bairro, optando por um lugar na favela.
Encontrei na Vila certo tipo de organização, que denominei aglomerado familiar, composto de famílias nucleares, oriundas de um mesmo casal. Irmãos e irmãs procuram morar no mesmo bairro e formam como que uma só família de múltiplas cabeças. Juntam-se a ela, ainda, parentes mais distantes, contraparentes ou pessoas meramente chamadas de parentes, compadres, amigos sem qualquer relação de consangüinidade. Os aglomerados não se mantêm apenas pela dependência afetiva, embora ela seja fundamental para a sua coesão. O mais adequado é percebê-los como parte de um esquema de sobrevivência, essencial para a vida dos moradores da Vila. Os aglomerados permitem uma troca permanente de serviços, um apoio para todas as horas, todos os problemas. Esse apoio é fundamental porque permite enfrentar épocas de grande escassez. O problema maior e permanente das famílias da Vila é que vivem num limite muito estreito da sobrevivência. Qualquer imprevisto pode fazer com que a balança penda para o lado da miséria, da escassez absoluta. Ao fim de algum tempo o observador descobre que os aglomerados têm uma função muito clara, muito nítida, a de ser um elemento de equilíbrio em situações de crise e um apoio funcional para as pequenas dificuldades corriqueiras. Não há família na Vila que não tenha experimentado sérias privações. Um adulto que fica doente, parentes, ainda mais pobres, que chegam para ficar algum tempo, as épocas de desemprego. Qualquer acidente, que modifique os limites de ganho das famílias, pode ser a diferença entre comer e passar fome. Os aglomerados têm, assim, a função de permitir certo ajuste entre o que falta e o que existe e facilitar, portanto, um equilíbrio mais estável, um futuro menos incerto para as famílias da Vila. Mas não são apenas os aglomerados que têm essa função. Num certo sentido a Vila toda funciona como um aglomerado com características de família. Existe, na Vila, um modo muito próprio de estar próximo, de saber o que acontece. Os terrenos são pequenos, as casas muito chegadas. Os muros ou vedações entre uma casa e outra, um terreno e outro são raros. As trocas são constantes. Trocas verbais, de janela a janela, trocas de favores, trocas de informações. O bairro é pequeno e as novidades circulam muito rápido. É difícil esconder os dissabores domésticos mais graves: a privacidade é porosa, os acontecimentos da vida privada são logo conhecidos por todos. Contam-se os casos e estes correm a Vila. Se essa visibilidade nos parece chocante e desagradável, é mais uma vez a presença de modelos normativos que nos impede de ver o valor funcional da troca de favores. A possibilidade dessa troca é imensa, desde a mais simples troca de serviços ou empréstimo de objetos, até aquelas que envolvem recursos financeiros, sempre muito escassos. Sua importância só pode ser avaliada no contexto em que ocorrem. O bairro favorece a criação de uma rede de apoios mútuos para as horas de necessidade. Esta rede de amparo estende-se ao quotidiano, integrando a experiência de vida dos moradores da Vila. Não entanto, a meu ver, o fundamental é que a assistência assim disseminada, com raiz no conhecimento que têm das mais graves carências uns dos outros, vai gerando uma prática que pode ser denominada solidariedade que acaba por superar o valor simplesmente funcional da troca de favores. Não é uma solidariedade abstrata, baseada em valores morais ou religiosos, mas uma prática real e diária de prestar atenção às necessidades dos outros. As pessoas aprendem, ao enfrentarem suas dificuldades quotidianas, que não poderiam sobreviver sem essa ajuda mútua. A consciência da pobreza comum a todos, e de uma fronteira muito tênue entre a segurança e a insegurança, gera a solidariedade. Ela não é isenta de conflitos e falatórios. Toda a complexidade das relações humanas dentro de uma pequena comunidade estão presentes ali. Assim como há ajuda, há brigas. Mas a prática de compartilhar os problemas alheios, o poder da identificação com a miséria do outro, cria laços fortes de solidariedade.
Os aglomerados familiares nada têm em comum com aquela que Gilberto Freyre denomina família extensa ou patriarcal. Na verdade, estes aglomerados formam-se dos restos de uma extraordinária dispersão que o processo migratório instaura entre as famílias pobres de origem rural. Em busca de meios de sobrevivência, os adultos das famílias, em geral muito numerosas, de posseiros ou pequenos proprietários, espalham-se pelo Brasil e perdem contacto com suas famílias de origem. Quando conseguem migrar para a mesma localidade recompõem, com os que sobraram, os grupos familiares e procuram manter o estilo de vida próprio dos pequenos lugarejos de onde vieram. A Vila Helena é um bairro semi-urbano, com características muito próximas daquelas que chamaríamos propriamente urbanas, como a densidade populacional, mas também com muitos traços oriundos das experiências que os seus moradores viveram no meio rural. O bairro é um loteamento pequeno e, a partir de uma determinada época, o empobrecimento e a insegurança, aliados à necessidade de ficar em família, deram início às favelas. Os terrenos muito baixos, muito íngremes, que não haviam sido loteados, foram abrigando os novos casais, aqueles mais pobres, que não haviam comprado um lote, os que chegaram mais tarde. E, no entanto, as famílias que assim se agrupam, em busca também de proteção mútua, são, no mais, plenamente urbanas e modernas porque vivem, cada uma delas, um projeto de vida que lhe é particular.
Estou chamando a atenção para estes aglomerados, afirmando que constituem uma forma peculiar de organizar as famílias, porque me aproximo de mais um modelo normativo que desejo discutir. Uma afirmativa muito comum na literatura especializada, educacional, psicológica ou sociológica, é que a migração rompe com a organização familiar, e que as camadas mais pobres das populações urbanas padecem de uma desorganização familiar acentuada. Segundo este raciocínio, haveria um modelo de organização familiar, com padrões muito claros de comportamento e ordem, e, a partir dele, uma escala, ao longo da qual estariam situadas as formas de desorganização mais ou menos severas. O modelo que preside esta formulação é o da família nuclear monogâmica, constituída pelos pais e filhos. O pai sustenta a casa e é o único vínculo com o mundo do trabalho. A mãe não trabalha, cuida da casa e dos filhos. Os adultos, em seus papéis respectivos, são exemplares. Ao pai trabalhador e preocupado com o bem-estar de sua família, alia-se a mãe, modelo de virtudes femininas. Juntos ocupam-se dos filhos que, bonitos e alegres, esperam confiantes a chegada do futuro, quando também serão pais, capazes de reproduzir aquilo que viveram. Esse é o modelo dominante de representação da família. Por mais alerta que o pesquisador esteja, ele traz consigo esse modelo para o que vai observar. E o caráter marcante dessa representação é o seu isolamento do social, da história. Mais ainda, é uma família sem conflitos. Ela existe num vazio social, isolada, imutável. Como modelo de relações humanas isentas de conflito, essa família parece um oásis de estabilidade num mundo perturbado e violento.
A existência de tais modelos não mereceria maior consideração se eles não fossem tomados como padrões, a partir dos quais são medidos os desvios, as quebras de normalidade. Mais ainda, eles não teriam qualquer importância se, como modelos ideais, ideológicos portanto, não fossem veiculados, das mais variadas formas, como o certo, o bonito, o desejável. Ainda assim não teriam grande peso se, como produtos ideológicos, não fossem interiorizados pelos indivíduos, de modo a se tornarem fundamentos políticos de dominação, através de atribuições de caráter negativo e estigmatizante. É freqüente encontrarmos, na literatura especializada, a desorganização familiar como a única responsável pelo que, essa mesma literatura, denomina fracasso escolar e adaptativo das crianças. A desorganização familiar aparece, também, como toda a fonte da violência e da marginalidade dos jovens, ou melhor, ela é responsável pelo fracasso moral de seus membros.
Quanto mais afastados estamos dos estratos médios da população urbana, tanto mais as categorias de organização e desorganização, no que se refere à família, precisam ser abandonadas na avaliação dos modos de vida da população. Sabemos que as famílias da população da periferia e das favelas e cortiços, nas grandes cidades, divergem daquele modelo ideal da família. Não é razoável falar-se de desorganização, com o sentido altamente estigmatizante que a palavra adquiriu na literatura educacional e psicológica, quando estamos, de fato, diante de formas diferentes de organização. Quando o pesquisador se liberta do modelo, liberta-se, portanto, do preconceito, ele pode ver as famílias como elas são e não como deveriam ser. As famílias são reais, seus membros vivem vidas reais e não fictícias. Os membros ausentes são compensados por outros. Algumas situações mais difíceis, como o abandono, seja do pai, seja da mãe, também são enfrentadas. Um exemplo de situação familiar muito comum é a família encabeçada por uma mulher, que esteve ligada a vários homens que passaram pela sua casa, e com filhos desses vários homens. Há uma forte organização mantida pela mãe, que centraliza o significado afetivo e social da relação. Acompanhei de perto o drama de uma criança que pessoas "bem intencionadas" queriam retirar da casa da avó para colocar num asilo de crianças. O menino e a irmã viviam com a avó que bebia muito. Ambas eram muito apegadas à avó que cuidava delas tão bem quanto a miséria o permitia, com o parco dinheiro que a mãe das crianças podia ganhar. Bem ou mal esta era uma família. Por que um orfanato seria melhor, para este menino, do que a casa onde mora, na companhia da avó e da irmã e na presença eventual da mãe? O esforço do pesquisador deve caminhar no sentido de descobrir as formas possíveis de organização. Isto não significa que os conflitos sejam inexistentes. Essas famílias vivem situações extremas de violência, desde a violência que atinge o bairro, quer seja a da polícia ou de marginais, até a violência característica das condições de vida das populações sujeitas à mais brutal exploração. E é importante lembrar que, num país como o nosso, dotado de uma classe dominante voraz, as condições miseráveis de vida das populações de baixa renda não são temporárias. Elas representam a única herança de milhões de brasileiros. É ilusão pensar-se que programas isolados de desfavelamento, ou de construção de moradias populares, possam acabar com as favelas de São Paulo, ou com os cortiços. Somente uma extraordinária mudança nas prioridades econômicas do país como um todo, e nas condições de exploração do trabalho e da obtenção do lucro privado exorbitante, permitiria que as pessoas tivessem acesso a moradias mais humanas. A favela, o bairro miserável, os cortiços são, pois, meios de sobrevivência. De um modo de sobreviver que incorporou a violência ao quotidiano. Também o desemprego. Este não é circunstancial, faz parte da experiência diária, mergulhando essas populações numa crise permanente, por mais paradoxal que pareça essa afirmação.
Os conflitos, entretanto, não são exclusivos das camadas populares, embora sua visibilidade seja maior nos bairros populares, favelas e cortiços. A experiência de habitar um "cômodo e cozinha", juntamente com quatro ou cinco pessoas, deve ser determinante para transformar os conflitos em situações potencialmente explosivas. Isto não significa, porém, desorganização, anomia. Significa que as situações de amor ou de raiva não têm onde se esconder e são jogadas, sem disfarces, na vida quotidiana. Estigmatizar essas populações, denominando-as promíscuas ou violentas é fazer o jogo ideológico do poder, responsabilizando-as pelas condições precárias em que tocam sua existência.
Há mais um aspecto que eu gostaria de examinar e que diz respeito à família que interiorizamos durante a socialização. A psicanálise procura mostrar que não são atos e palavras de pessoas concretas o pai e a mãe reais que se transformam em modelos identifícatórios mas, na verdade, interiorizamos as relações, ou seja, a família como um padrão de relações. O afeto, o carinho subsistem na mais extrema pobreza. O que importa, mesmo nas casinhas apertadas das vilas da periferia, é a qualidade da relação que pai e mãe, ou outros adultos significativos, vão constituir durante a socialização da criança e que passa a ser a sua família, para o bem ou para o mal. O mais grave problema reside, outra vez, nos modelos idealizados. O desejo de amor e proteção, afinidade e proximidade é comum a todos. Esse desejo fundamental, na ausência de expressões mais livres, surge sob a forma daquelas relações estereotipadas de afeto que marcam o modelo dominante da família nuclear. As aspirações legítimas de afeição e aconchego organizam-se no modelo idealizado da família, de tal modo que este povoa o imaginário de todos. A família ideal não é a família de nenhum de nós mas é aquela que, ricos ou pobres procuramos e que trazemos bem viva no interior de cada um. A família ideal é a família do desejo jamais alcançado. Certamente não é aquele modelo sem graça que nos ensinaram a aspirar. Porém, a constatação da distância que separa este modelo daquela família real, com a qual vivemos no correr dos dias, aparece, para as classes populares, como uma fonte a mais de desqualificação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KOWARICK, L. Cidade & cidadania: cidadão privado e subcidadão público. São Paulo em Perspectiva, v.5, n.2, p.2-8, abr./jun. 1991. [ Links ]
LEFEBVRE, H. Du rural à l'urbain. Paris,. Anthropos, 1970. [ Links ]
1. Bairro, aqui, aproxima-se daquilo que H. Lefebvre (1970) denomina "investimento afetivo": "Trata-se do processo pelo qual um indivíduo ou um grupo, se apropria, transforma em bem seu, alguma coisa exterior, de tal modo que podemos falar de um tempo ou de um espaço urbano apropriado pelo grupo que modelou a cidade" (p. 198).
2. Veja-se, a respeito, o belo artigo de Lúcio Kowarick (1991).