SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número1-2Psicofísica da memória: equivalência funcional entre julgamentos mnemônicos e perceptuaisLembranças ligadas ao "eu": equivalência das representações de amigos e inimigos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.4 n.1-2 São Paulo  1993

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A teoria do inconsciente como teoria da memória1

 

The theory of unconscious as a theory a memory

 

 

Osmyr Faria Gabbi Junior

Departamento de Filosofia - Universidade Estadual de Campinas

 

 


RESUMO

A concepção freudiana do aparelho psíquico tem como seu pressuposto central a crença no papel organizador da memória. Esta é vista como uma série de sistemas, dotados de propriedades distintas. A forma de apreensão da realidade é resultado da interação entre os sistemas existentes. A neurose e a psicose seriam anacronismos da memória.

Descritores: Memória. Psicanálise. Sigmund Freud. Neurose. Psicose.


ABSTRACT

Freud's conception of the psychical apparatus takes memory as having an organizational role. Memory is seen as an array of systems with different properties. The apprehension of reality is the outcome of interaction between different systems of memory. Neurosis and psychosis are understood as anachronisms of memory.

Index terms: Memory. Psychoanalysis. Sigmund Freud Neurosis. Psychosis.


 

 

Freud, em carta a Fliess, datada de 06 de dezembro de 18962 divide a memória em uma série de sistemas distintos: signos perceptuais, inconsciente e pré-consciente. Estes se formariam segundo uma ordem cronológica, o que levaria à necessidade de se fazer, periodicamente, uma transcrição de um sistema em outro. Não me parece despida de interesse uma tentativa de relacionar estes discernimentos com a teoria da libido exposta por Abraham em 19243.

Antes de apresentar as diferentes fases da libido, é preciso afastar de imediato algumas possíveis incompreensões e objeções. Não se trata de ressuscitar qualquer projeto de transformar a psicanálise em uma psicogênese das funções psíquicas. A teoria das fases não é uma teoria desenvolvimentista nem no sentido de Gesell, nem no de Piaget. Isto é, ela não implica nem na idéia de que as fases existam em potência no indivíduo, Gesell, nem que a presença de uma fase acarrete o desaparecimento da anterior, como em Piaget. A construção das fases se dá como camadas sobrepostas, cuja interação permite dar conta de seus efeitos. Em nenhum momento, uma fase pode ser entendida como englobando todas as anteriores ou realizando sua síntese. É no interior de cada estrutura que se produz o processo que leva à produção da seguinte. Esta é inteiramente descontínua com a anterior, não era esperada, mas coexiste com aquela. Se é verdade que a teoria das diversas estruturas de desejo supõe certas condições biológicas, é inegável, como indicaremos a seguir, que ela exibe uma dimensão semântica fundamental que não pode continuar ignorada.

O primeiro sistema, o dos signos perceptivos, que podemos denominar de Isso (das Es), relaciona-se com os objetos sob a forma monolítica da incorporação. Não há qualquer separação entre sujeito e objeto. As representações, na memória, apresentam entre si relações de simultaneidade. A evocação de uma representação já é suficiente para evocar todas as outras. Os que freqüentam a psicanálise já devem ter notado: é nesse sistema que está a forma mais primitiva e decisiva do circuito de desejo, responsável pelo "núcleo sensorial de cristalização do sonho". O sistema dos signos perceptivos, como qualquer sistema de memória, acarreta uma compulsão à repetição, mas aqui ela é regida pelo princípio do prazer, desconhecendo, portanto, a diferença entre percepção e representação. Ou seja, um organismo, dotado apenas desse sistema, seria obrigado a viver sob o domínio da alucinação, e acabaria por perecer. A inibição das recorrentes alucinações é feita através da introdução de uma nova organização no interior do Isso, um primeiro Eu4. Com ele, surge a primeira ambivalência no ser humano, que pode ser expressa pela fórmula devorar/ser devorado. Estamos, agora, em plena fase oral tardia. Nela, os objetos são inscritos (Niederscrift é sinônimo de das Niederschreiben) sob a forma da introjeção. Há uma primeira forma de pensar, introduzida pelo julgamento (Urteil), ou seja, pela ausência de concordância entre objeto de desejo e a percepção atual. Surge o não5. As representações, presentes no primeiro sistema inconsciente, este primeiro Eu6, organizam-se, como em todos os sistemas que se formarão no aparelho psíquico freudiano, em torno de relações causais7.

Através do temor, do medo, do horror, as primeiras potências anímicas (seelischen Mächte) construídas contra a pulsão sexual8, do predomínio da zona erógena anal sobre a oral, sedimenta-se, sobre o antigo Eu, um novo Eu. O objeto inicial, o seio materno, dá lugar a um novo objeto, as fezes. Estas adquirem um primeiro sentido: são apreendidas como instrumento de agressão. A ambivalência, agora, passa a se expressar pela oposição destruir/ser destruído. Como, em Freud, a percepção sempre é uma representação intensa, a realidade, aqui, é constituída através do mecanismo de projeção. O controle do esfíncter, aliado à culpa, a nova potência anímica formada contra a pulsão sexual anal precoce, leva à constituição de um terceiro sistema inconsciente, de um terceiro Eu. Nesta estrutura, as fezes passam a ter um novo sentido, o de um presente, de uma dádiva. A ambivalência em relação ao objeto se manifesta pela oposição dominar/ser dominado. A realidade é captada através do mecanismo de transposição.

Finalmente, a repugnância, a penúltima potência anímica a se estabelecer, aliada a certas circunstâncias biológicas, leva à última organização pregenital da libido, à fase fálica, onde o objeto fundamental é dado pelo falo. A ambivalência expressa-se pela oposição castrar-ser castrado. Um quarto Eu é acrescentado aos sistemas já existentes. A realidade passa a ser organizada em torno do mecanismo de conversão.

Através do pudor, a última das potências anímicas, descritas por Freud, e determinadas condições biológicas, estariam dadas as condições para uma estrutura de desejo genital. Neste caso, a realidade é inscrita por meio da linguagem. A ambivalência em relação ao objeto desaparece, e a única oposição presente é dada pelo par masculino-feminino. O único obstáculo à pulsão sexual são, segundo Abraham, as prescrições sociais9.

Com a ajuda dessas breves indicações sobre a teoria da libido, não é difícil revelar sua real importância. Ela não é uma teoria do desenvolvimento infantil, como foi assinalado por muitos comentadores. Ela é uma teoria semântica sobre os tipos possíveis de fantasias10, presentes tanto nas neuroses como nas psicoses. Tanto uma forma de patologia como a outra podem ser entendidas como perturbações na tradução das inscrições de um sistema para o seguinte. Os resultados dessas traduções podem ser vistos como constituindo as fantasias. Assim, se há uma perturbação na tradução da quarta estrutura formada, a da fase fálica, para a quinta, a genital, o resultado será duplo: perda da capacidade comunicativa do sujeito e aparecimento de fantasias histéricas, sob a forma, por exemplo, de sintomas somáticos. A primeira conseqüência decorre do fato da tradução ser inadequada, dado que a fala do sujeito sofre uma modificação incompleta de sua referência na transcrição de uma representação de um sistema para o outro. Com isso, produz-se uma alteração no sentido da fala do sujeito que impede que outras pessoas (a fortiori, ele mesmo) entendam aquilo que é dito. A segunda perturbação é produzida porque, segundo Freud, o aumento quantitativo, presente no momento de tradução, dissolve-se de acordo com a forma imposta pela memória na captação da realidade. No caso presente, dado que se trata de uma estrutura de desejo fálica, por conversão.

Essas indicações altamente abstratas se tornam mais concretas quando são aplicadas a um caso clínico11.

O caso refere-se a uma mulher que deseja ter um filho do marido, e este se recusa. A analisanda passa a apresentar sintomas típicos de uma histeria de angústia. O marido dá-se conta, inconscientemente, de que é o responsável pela doença da esposa, e, pela primeira vez, falha na relação sexual. Em decorrência, surgem novos sintomas. Ela passa a exibir certas compulsões, como lavar e limpar a casa, além de tomar uma série de medidas protetoras e enérgicas contra injúrias severas que poderia fazer contra outras pessoas, em especial, contra seu esposo.

A história da libido da analisanda deve ser compreendida a partir das modificações que ocorrem na sua estrutura de desejo, organizadas pelos diversos sistemas construídos no tempo. No caso presente, a frustração de não ter o desejo de ser mãe satisfeito, parece ter sido o fator desencadeador. Mas para entender como isso foi possível, é preciso desvendar o próprio desejo de maternidade. A mulher deseja um filho. Todavia, poderia ingadar o analista, tê-lo de quem? À primeira vista, do marido. Mas, segundo a teoria freudiana, esse desejo é organizado pela relação edipiana. Vigora, para todos os desejos que se exprimem, a mesma relação presente entre o desejo infantil e os diurnos na produção de um sonho, isto é, o desejo infantil é sempre o capitalista, enquanto que os diurnos desempenham o papel de empreendedor. O desejo de ter um filho do pai (demonstrado, aqui, pelos efeitos produzidos, na analisanda, pela sua não realização) conduz Freud a afirmar que o desejo era a expressão de um desejo de sedução. A sua não realização - a sua frustração -, produz angústia que se traduz como "repúdio de fantasias de sedução" Versuchungsphantasien)12. A resposta do marido à angústia da mulher, sob a forma de uma impotência temporária, satisfaz o desejo em um sistema mais remoto, o fálico, mas equivale, ao mesmo tempo, a uma nova frustração se levarmos em conta o sistema mais recente , o genital. O resultado desse desacordo, expresso pela equivalência entre prazer fálico e desprazer genital, é um compromisso que pode ser entendido como " formações reativas contra pulsões anais e sádicas"13, isto é, para fugir ao conflito, o sujeito foi levado a uma regressão ainda maior. Freud considera o caso como sendo muito importante porque "... ele poderia reivindicar o valor de um documento bilíngüe e mostrar como um conteúdo idêntico pode ser expresso por ambas neuroses em linguagens diferentes"14

Vamos considerar, por hipótese, que o conteúdo comum seja o de ter um filho do pai. Como ele se inscreveria com posterioridade no último sistema? Através da linguagem ordinária15, pelo desejo de ter um filho do marido. Dado que este se recusa, há uma regressão à fase fálica, e o desejo agora se traduz pelo desejo de ter o falo, equivalente aqui ao desejo de castrar o marido. A defesa contra essa versão arcaica de um mesmo desejo exprime-se sob a forma de angústia. Contudo, o marido insconscientemente satisfaz o desejo de castração, igualmente inconsciente, da sua esposa, e falha na relação conjugal. A realização inesperada da versão arcaica do desejo leva a uma ampliação da defesa contra o desprazer gerado pela sua tradução, e a uma regressão a uma fase mais primitiva, à fase anal tardia. A oposição fálico-castrado dá lugar à oposição dominar-ser dominado. Assim, o desejo de ter um filho (genital) traduziu-se numa versão arcaica, no desejo de ter o falo (fálico). A defesa, movida contra ele, produziu angústia. Dado que o ponto de fixação dessa paciente localizava-se na fase anal tardia, e o desejo ter sido satisfeito na sua versão fálica - o marido comportou-se como se fosse castrado -, ela regride, devido ao desprazer gerado16, a uma versão ainda mais primitiva que se expressa como desejo de dominar o marido. A defesa mobilizada contra a versão anal produz uma nova formação de compromisso: a compulsão de limpar e as medidas protetoras contra algum mal que ela poderia causar. Tais medidas visam salvaguardar o objeto de amor da hostilidade a que ele está sujeito.

Como se pode ter notado, a neurose percorreu diversas traduções de um mesmo desejo no sentido inverso ao da sua formação. Partimos da versão genital e chegamos, no caso dessa paciente, até a sua versão anal tardia. O que nos impõe um novo esclarecimento: elucidar o que produz o desejo desde a sua versão mais remota, ou seja, desde o Isso. Antes de estudá-la, convém elucidar o que Freud entendeu por " relação causal".

As representações inconscientes são representações de objetos, onde alguns desses objetos são representações de termos da linguagem. Em Zur Auffassung der Aphasien17, Freud diferencia dois tipos de representações: a de objeto e a de palavra. A primeira seria uma representação complexa, onde o elemento organizador é dado pela imagem visual. A segunda, a de palavra, seria uma representação igualmente complexa, mas, estruturada pela imagem acústica. No Entwurf encontramos três tipos de representação: a de coisa (Das Ding), a de objeto e a de palavra. A última é dotada da capacidade de predicar, sem poder ser predicada, desempenhando, assim, o papel de pura referência18. Na neurose ocorreria um rompimento entre representação de coisa e as outras duas, enquanto que, na psicose, a representação de coisa sofreria uma rejeição (Verwerfung). As coisas se tornam mais esclarecedoras se pensamos em como se dá a constituição do desejo no Entwurf. A vivência de satisfação serve de modelo para a produção do circuito do desejo. Neste, estão presentes, pelo menos, quatro tipos de representação. Uma primeira, a de coisa, é a representante da pulsão, uma segunda, a de objeto, representa o objeto de desejo, uma terceira, a de palavra, refere-se a palavra ouvida, e uma quarta indica que a resistência das barreiras de contato do núcleo de com o interior do corpo foi restabelecida. Essas representações foram inicialmente inscritas em seqüência temporal, uma vez que suas referências estavam em relação de contigüidade. Porém, se forem novamente evocadas, serão ocupadas19 simultaneamente. Freud usa o termo 'desejo' para designar precisamente essa ocupação simultânea. Mais tarde, em Das Unbewubte, há uma modificação terminológica20. A representação de objeto passa a ser constituída por duas representações, a representação de coisa e a de palavra. A primeira é considerada como sendo a representação de objeto propriamente dita, e a segunda, a de palavra, ainda representa a palavra ouvida. Feitas essas considerações, torna-se possível apreender o sentido da expressão "relações causais". No sistema formado pelos signos perceptivos, no Isso, encontra-se, como já mencionamos anteriormente, a forma mais primitiva e decisiva do circuito de desejo. O que significa esta forma? Tão-somente que, no primeiro sistema de memória, se inscreve o circuito constituído pelo desejo originário, ou seja, nele vigora uma relação de simultaneidade entre duas representações essenciais para todo processo psíquico: a de objeto e a de palavra ouvida, que, dadas as considerações feitas em Das Unbewubte, podem ser expressas como um vínculo entre representação de coisa e de palavra. Contudo, o que predomina é o aspecto sensorial dessas representações21; em especial, seu elemento visual. Não podemos nos esquecer que o aparelho psíquico freudiano é pensado como algo que procura instaurar a passagem da imagem para a palavra22.

Quando a fase oral tardia surge, e com ela, a construção do primeiro Eu, o que estava inscrito no Isso deve ser traduzido nos termos desse primeiro Eu. Também se estabelece um nexo entre representação de coisa e representação de palavra. Mas como o referente é diferente, é como se aquilo que se exprimia em termos de " lábios" tivesse que ser expresso agora em termos de "dentes". "Relação causal" designa a ligação que se estabelece entre representação de coisa e de palavra. Mas por que não há nos diversos Eus relações de simultaneidade? Porque estes têm como função precípua inibir o processo primário, ou seja, a relação de simultaneidade. Os vínculos estabelecidos por eles são de similaridade, ou seja, criam condições para determinar se o objeto diante deles é, ou não, idêntico ao objeto desejado. Quando da formação do segundo Eu23, teremos uma nova tradução que se pode descrever como a passagem do referente "dentes" para o referente "fezes". Assim, as diversas fases da libido expressam relações de tradução entre uma fala muito primitiva, a dos "lábios", e a fala cotidiana. Todavia, entre elas, há uma série de falas intermediárias, jamais completamente olvidadas, jamais completamente traduzíveis entre si24. No caso clínico descrito acima, vimos como o desejo de ter um filho (estrutura genital) traduz-se na fala fálica como desejo de ter o falo; na fala anal tardia, como desejo de dominar. Se a analisanda tivesse um ponto de fixação na estrutura de desejo oral tardia, o desejo ainda seria traduzido como desejo de destruir (estrutura anal precoce) e finalmente desejo de devorar25.

Resta, como última tarefa, exibir o que determina o desejo desde sua versão mais remota26. Subjacente à tese de que a teoria da libido apresenta uma dimensão semântica inequívoca, está pressuposta a idéia de que a teoria freudiana do inconsciente é, em sentido lato, uma teoria da memória. Assim, é possível reformular a pergunta sobre a determinação do desejo. Vamos entendê-la como uma questão sobre a organização da memória, isto é, queremos determinar aquilo que estrutura a memória desde o seu início.

Freud descreve três perdas no ser humano: a do seio materno, a das fezes e a castração. Uma leitura desenvolvimentista da teoria da libido poderia atribuir à primeira o papel de fundamento, ou seja, a perda das fezes e a castração são terríveis, para o ser humano, porque repetem a perda originária do seio. Se isso fosse verdadeiro, poderíamos pensar que a organização das representações na memória é feita em torno dessa "perda estruturante". Contudo, estaríamos, ao mesmo tempo, poupando Freud de escrever Totem und Tabu27. Não saberíamos o que fazer com suas hipóteses filogenéticas. Elas seriam perfeitamente dispensáveis. A própria vida de cada um de nós se encarregaria de construir os diversos sistemas de memória. O desejo seria determinado pela perda do seio materno. Todo desejo seria sempre o desejo de reencontrar o seio perdido. Contudo, Totem foi escrito com a finalidade de mostrar como a memória se organiza, como se instaura o desejo28. Nele não há nenhuma referência ao seio, mas inúmeras ao pai morto. O não matar o totem apresenta uma estrutura de sintoma. Traz a marca do predomínio das pulsões sexuais, ignorando, desta forma, o princípio da realidade. Se cada um dos filhos fosse governado apenas pela sexualidade, haveria a luta de todos contra todos. Esta só cessa na medida em que todos renunciam a tomar o lugar do pai, ou seja, o lugar da Lei. A exogamia expressa, na visão freudiana, o abandono do desejo de ter todas as mulheres.

Se esse é o desejo dominante, então o desejo mais primitivo é o desejo pela mulher? Contra isso, fala a crença freudiana de que os filhos expulsos da horda primitiva desenvolveram sentimentos homossexuais. A identificação entre eles não se dá apenas enquanto assassinos do pai, mas também antes da sua morte, enquanto expulsos e ameaçados de castração por ele. Por conseguinte, a figura do pai é a condição da exogamia, tanto na primeira renúncia dos filhos - se tomassem as mulheres do pai, seriam castrados por ele - como na segunda - o contrato estabelecido permite que se reconheçam como irmãos, impedindo que qualquer um deles se transforme no pai29.

Mas o que deseja o pai? Ele deseja mulheres de forma imediata, sem mediações. Ora, o desejo dos filhos, enquanto desejo formado a partir do desejo do pai, por conseguinte, desejo de desejo, é um desejo de segunda ordem: ele passa pelo pai e por uma intenção que visa algo do pai. Se o temor à castração é responsável pela organização da primeira forma de socialização, ele não é suficiente para fundamentá-la, dado que ele mesmo carece de explicação30.

Essa reside em supor que a luta dos filhos contra o pai é travada em torno do falo. Destarte, é possível interpretar o medo de morrer como medo de ser castrado. Se o falo é a referência fundamental, logo todas as estruturas de desejo anteriores à falica não são extra-fálicas, e a própria relação com a mãe já é mediada pelo falo31.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAHAM, K. Esquisse d'une histoire du développment de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux. In: Développment de la libido. Paris, Payot, 1966, p. 225-313.        [ Links ]

FREUD, S. Die Disposition zur Zwangsneurose. Frankfurt, S. Fischer, 1982. p. 105-27. (Studienausgabe, v.7)        [ Links ]

FREUD, S. Entwurf einer Psychologic In: Gesammelte Werke: Nachtragsband. Frankfurt, S. Fischer, s.d. p. 373-477.        [ Links ]

FREUD, S. Totem und Tabu. Frankfurt, S. Fischer, 1982. p. 287-444. (Studienausgabe, v.9)        [ Links ]

FREUD, S. Das Unbewusste. Frankfurt, S. Fischer, 1982. p. 119-73. (Studienausgabe, v.3)        [ Links ]

FREUD, S. Die Verneinung. Frankfurt, S. Fischer, 1982. p. 371-7. (Studienausgabe, v.7)        [ Links ]

FREUD, S. Zur Aufassung der Aphasien. Wien, Deuticke, 1981.        [ Links ]

GABBI JUNIOR, O.F. Exercícios em psicomitologia. Trans/Form/Ação, v. 14, p. 1-44, 1991        [ Links ]

GABBI JUNIOR, O.F. Notas sobre o conceito freudiano de símbolo. Ciência e Cultura, v.40, n.12, p. 1164-7, 1988        [ Links ]

GABBI JUNIOR, O.F. A origem da moral em psicanálise. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, v.1, n.2, p. 129-68, 1991.        [ Links ]

MASSON, J.M., org Sigmund Freud: Briefe an Wilhelm Fliess. Frankfurt, S. Fischer, 1986.        [ Links ]

 

 

1 Uma versão do presente artigo encontra-se em Osmyr F. Gabbi Junior, Exercícios em psicomitologia. Contudo, aqui, muitos pontos são precisados e diversos aspectos novos, salientados e explorados.
2 Jeffrey Moussaieff Masson, Org., Sigmund Freud Brief an Wilhelm Fliefí, p. 217-26, daqui por diante referido como Brief.
3 Karl Abraham, Esquisse d'une histoire du développement de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux, daqui por diante referido como Esquisse.
4 Estamos recorrendo aos termos da segunda tópica 'Isso' (Es) e 'Eu' (Ich). O termo 'inconsciente' é usado no sentido de adjetivo. Assim, a expressão "sistema inconsciente" assinala o fato trivial de que o Eu é, em grande parte, inconsciente. A apresentação do Eu como uma série de sistemas que emerge do Isso é relevante para combater a ficção de um Eu unitário que teria uma função de síntese. Por outro lado, não discutiremos a importante questão de saber se o primeiro Eu é uma estrutura que se forma, como parece supor o próprio Freud, ou se o Eu é dado como um deus ex machina para interromper a compulsão à repetição, como a análise da obra parece impor. Ver a este respeito, os argumentos discutidos em Sigmund Freud, Entwurfeiner Psychologie, referido daqui por diante por Entwurf.
5 A emergência do não no sentido lógico, gramatical e psicanalítico, é descrita em Sigmund Freud, Die Verneinung. Freud observa: "Negar algo no julgamento significa no fundo: 'Isto é o que eu mais desejaria reprimir'. A reprovação é o equivalente intelectual da repressão, seu 'não' é uma marca do mesmo, um certificado de origem, algo como made in Germany". (p. 374)
6 Seria preciso mostrar como a perda de um objeto externo, mesmo em um momento onde não existe ainda distinção interno/externo, produz no interior do aparelho psíquico três etapas distintas: auto-erótica, narcísica e objetal, entendidas, portanto, como designadoras de propriedades e não como entidades. São as tensões geradas entre exigências internas e externas que criam as condições que levam de uma etapa à seguinte
7 Em Jeffrey Moussaieff Masson, Id. ibid., p. 218, Freud assinala: "Ic (inconsciente) é a segunda transcrição, ordenada segundo outras relações, talvez relações causais. Traços-Ic corresponderiam talvez a recordações conceituais, em qualquer caso, inacessíveis à consciência". Em O. F. Gabbi Jr., Notas sobre o conceito freudiano de símbolo, procurei exibir o caráter não humano da causalidade em Freud.
8 Também é preciso mostrar como o Super-Eu (Ober-Ich) emerge do Eu e é responsável pela emergência das potências anímicas, tarefa que ultrapassa os limites deste trabalho.
9 Karl Abraham, ibid., p. 309.
10 Fantasia entendida como formação de compromisso, como sintoma, construída com restos verbais.
11 O caso clínico encontra-se em Sigmund Freud, Die Disposition zur Zwangsneurose, a partir daqui referido como Disposition. Quando se estuda um caso, pode-se também ver o papel desempenhado pelo conceito de posterioridade (Nachträglichkeit). Este conceito é importante porque permite entender como um mesmo desejo pode produzir efeitos em diversos momentos distintos a partir de suas traduções
12 Sigmund Freud, Disposition, p. 112
13 Id. ibid., loc. cit.
14 Id. ibid., p. 111.
15 A construção dos proferimentos é sempre função da interação entre os diversos Eus presentes. O resultado, quando não prevalece o processo secundário, é a produção de contra-sensos. As expressões da fala são substituídas por sintomas somáticos, idéias fixas, rituais obsessivos, alucinações visuais e auditivas, delírios, etc.
16 Desde a carta de 06 de dezembro de 1896, onde encontramos a seguinte observação: "Onde falta a transcrição posterior, a excitação é executada de acordo com as leis psicológicas que vigoram para o período psicológico anterior... " (Brief, p. 219), o desprazer é gerado a partir do conflito que se instaura; na segunda tópica, o principal se dá entre o Eu e o Super-Eu. No caso presente, a oposição entre o desejo de castrar e o pudor, leva a um desprazer que se resolve de acordo com a estrutura de desejo anal, ou seja, através de transposição que se expressa pela formação de rituais obsessivos. O prazer gerado pelo desejo de dominar, dada a fixação da analisanda, é suficiente para contrabalançar a repugnância, mas não para torná-la perversa. Se a repugnância fosse maior, ela poderia regredir até uma organização anal precoce e poderia desenvolver sintomas paranóicos. As fantasias de castrar (fálica) e de dominar (anal) expressam sempre um mesmo desejo. A fala da analisanda também sofre modificações. A expressão "quero ter um filho" se transforma na estrutura fálica em angústia e na estrutura anal tardia, em rituais obsessivos.
17 Sigmund Freud, Zur Aufassung der Aphasien.
18 No Entwurf, uma das questões mais complexas está na determinação do referente da representação de coisa. Mas se pode mostrar que, tanto no caso em que ela designa a parte constante do Eu, como no caso em que ela representa a pulsão, sua função principal é a de servir, ela mesma, como referência.
19 Estamos usando o termo 'ocupação' para traduzir Besetzung. O termo, na sua forma adjetiva, besetzt (ocupado), aparece no Entwurf em oposição a leer (vazio) para se referir ao estado de um neurônio.
20 Sigmund Freud, Das Unbewubte.
21 Uma vez que as representações presentes no Isso são totalmente inacessíveis à consciência, seria um contra-senso acreditar que a representação de coisa, ou seja, a representação do objeto propriamente dita, apresente um aspecto sensorial. Este é dado, na realidade, pelo aparecimento de um processo primário no interior do Eu.
22 Uma das diferenças fundamentais entre processo primário e secundário reside na oposição entre vivacidade alucinatória da imagem e palavra.
23 Um novo Eu, com a possível exceção do primeiro (ver notas 7 e 15), se forma sempre a partir de exigências internas e externas, portanto, supõe o papel do Super-Eu.
24 A diferença aparentemente irredutível entre os referentes das diversas estruturas influi de forma permanente sobre a própria linguagem natural. De certa maneira, a teoria freudiana confere um grande peso a partes e fluídos corporais.
25 Se Disposition parece ter o valor de um documento bilíngüe, é por que há diversas línguas. Sugerimos que elas se constituem a partir das diversas estruturas de desejo. Porém, como Freud parece sempre acreditar na existência de um mesmo desejo, coloca-se a questão de saber se, na realidade, elas não seriam dialetos de uma mesma língua.
26 Para que as diversas línguas sejam tomadas como dialetos, é preciso mostrar que há um desejo fundamental, ou seja, que os diversos referentes só adquirem tal condição porque, eles próprios, se constituem a partir de um único referente.
27 Sigmund Freud, Totem und Tabu, referido daqui por diante como Totem.
28 Esta tese encontra-se desenvolvida em Osmyr F. Gabbi Jr, A origem da moral em Psicanálise
29 A neurose pode ser entendida como um processo no qual o sujeito ocupa parcialmente o lugar do Pai. A psicose leva, nas suas formas extremas, a ocupar completamente esse lugar. Evidentemente, a realidade em que elas ocorrem é a realidade psíquica. Mas, como a percepção é função da memória, os efeitos de alienação se tornam patentes para todos.
30 Em Totem, Freud observa que a explicação adequada "deveria ser ao mesmo tempo histórica e psicológica" (p. 394). Ou seja, as condições históricas vão determinar as necessidades psicológicas a serem satisfeitas. Um sentimento, mesmo o temor à castração, deve ser explicitado e fundamentado através do conhecimento das condições que o geraram.
31 A relação com a mãe também é vivida a partir do falo. Uma das formas de satisfazer o desejo materno é ser para ela o falo.