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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.4 n.1-2 São Paulo  1993

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Lembranças ligadas ao "eu": equivalência das representações de amigos e inimigos1

 

Memories associated to the self: equivalence of representations of friends and enemies

 

 

César Ades; Andrea Botelho

Instituto de Psicologia - USP

 

 


RESUMO

Greenwald e Banaji (1989) mostraram que palavras comuns ligadas a termos relevantes do ponto de vista da pessoa (como nomes de amigos) são melhor lembradas do que palavras ligadas a termos sem a mesma relevância (como nomes de desconhecidos) e propuseram uma interpretação do efeito em termos de diferenças no processamento cognitivo destes materiais. A fim de testar uma interpretação alternativa, replicou-se o estudo mencionado, usando, além de nomes de amigos e de desconhecidos, nomes de pessoas de quem os sujeitos não gostavam (inimigos). Verificou-se efeitos equivalentes no caso de amigos e inimigos e uma superioridade de ambos sobre os nomes de desconhecidos. O nível afetivo do relacionamento (gostar-não gostar) não afetou a memória. Os resultados reforçam uma hipótese cognitiva da facilitação mnêmica.

Descritores: Memória. Processos cognitivos. Processos Afetivos. Retenção. Eu.


ABSTRACT

Greenwald and Banaji (1989) have shown that common words used together with personally relevant items (such as friends' names) are recalled much better than items used with non-personally relevant items (such as names of unknown people) and have interpreted the effect as based on differential cognitive processing of materials. To assess the possibility that the effect may depend on the positive affective value of friends' names, the present study replicated Greenwald and Banaji's, including enemies' names besides the other ones. There was no significant difference between recall of material associated to friends' or enemies' names; recall of both was superior to that of material associated to unknown people's names. The degree of liking/disliking of friends and enemies was not linked to different recall performance. Such results reinforce a cognitive interpretation of memory facilitation of self relevant materials.

Index terms: Memory. Cognitive processes. Affective processes. Retention. Self


 

 

Uma nova perspectiva acerca do "eu" (self), em psicologia - na verdade, uma reformulação de colocações clássicas (James, 1890/1950) - o define, não como agente do comportamento ou sede de uma integração de tendências, mas como uma estrutura cognitiva que influencia a aquisição e codificação do conhecimento num domínio particular. O "eu", nesta acepção, seria um esquema ou conjunto de esquemas, composto de elementos abstratos assim como de lembranças específicas, operando na filtragem e organização das informações que o indivíduo recebe acerca de si-próprio (Greenwald, 1981; Markus & Wurf, 1987; Westen, 1992).

Pesquisas em número crescente mostram que a informação relevante do ponto de vista do " eu" é processada de forma especialmente rápida e adequada. Os indivíduos se mostram sensíveis a uma informação que tenha a ver com eles e demonstram muitas vezes grande aptidão em retê-la através do tempo (Bower & Gilligan, 1979; Klein & Kihlstrom, 1986). Alguns autores chegam a atribuir ao "eu" um status à parte, como estrutura de extraordinária capacidade mnêmica (Bellezza, 1984; Kuiper & Rogers, 1979).

Greenwald e Banaji (1989) utilizaram, em trabalho recente, um procedimento interessante para comparar a retenção de materiais referentes-ao-eu à retenção de materiais alheios. Seus sujeitos participavam de uma tarefa de aprendizagem acidental, isto é, uma tarefa sem instruções explícitas para decorar os itens e sem dicas que pudessem suscitar uma codificação intencional.

Tratava-se de formar frases em que constassem nomes de pessoas e de objetos corriqueiros. Nos primeiros três experimentos da série, metade dos nomes a serem incluídos em frases eram fornecidos pelos sujeitos como sendo de amigos; da outra metade constavam nomes propostos pelos experimentadores. No primeiro caso, estava envolvida uma informação gerada pelo próprio sujeito, idiossincrática, relevante para ele enquanto indivíduo (nomes de amigos), no segundo, uma informação não-referente ao "eu", embora não alheia à experiência cultural do sujeito.

Depois de um intervalo, preenchido por uma tarefa de disfarce, colocada como sendo o verdadeiro objetivo do experimento, o sujeito era submetido a testes de rememoração em que devia evocar os objetos e nomes de pessoas utilizados na construção das frases. Verificaram Greenwald e Banaji (1989) que os objetos ligados a nomes de amigos eram lembrados em maior quantidade do que os ligados a nomes fornecidos por outrem (53% vs. 28%, quase o dobro, no Experimento 1; as proporções foram semelhantes nos outros experimentos).

Este resultado notável que os autores denominam efeito de auto-geração, decorreria, segundo eles, das características dos nomes de amigos enquanto estruturas mnêmicas ricas, feitas de muitos pormenores interligados e capazes de estabelecer laços associativos com novos itens.

O benefício mnêmico da codificação dos itens em relação ao " eu" pode ser explicado pelo fato de este constituir um corpo altamente familiar e bem organizado de conhecimentos avaliados de forma polarizada; estas propriedades fazem com que eventos codificados em relação ao "eu" sejam, ao mesmo tempo, facilmente codificados e facilmente recuperados (Greenwald & Banaji, 1989, p.50).

Segundo Greenwald e Banaji (1989), não é preciso entender o "eu" como um sistema de memória excepcional, dotado de propriedades que o apartem, qualitativamente, dos outros sistemas. Nele podem ser reconhecidos princípios mnêmicos gerais, como o princípio de facilitação da evocação através do uso de itens mediacionais: os sujeitos experimentais associariam os nomes de pessoas aos nomes de objetos e depois, na hora da rememoração, recuperariam estes através da evocação (mediação) daqueles. Nomes familiares, por possuirem um território associativo mais amplo, aumentariam a eficiência do processo.

Uma interpretação alternativa, para os dados de Greenwald e Banaji (1989) parte de considerações motivacionais. Nomes de amigos não são apenas estímulos que ativem uma rica teia de associações. Possuem impacto emocional, de natureza predominantemente positiva. As frases construídas com nomes de amigos poderiam gerar um clima afetivo propício para uma melhor codificação dos itens de objetos. Um resultado sólido da pesquisa sobre memória é o de que emoções funcionam como categorias mnêmicas, sendo capazes de facilitar a recuperação de lembranças de mesmo teor afetivo (Bower, 1987). Emoções positivas, como a alegria, teriam - de acordo com a opinião de alguns autores (Isen, 1987) - um efeito maior sobre a codificação e recuperação de memórias do que emoções negativas, talvez por permitir o acesso a uma gama maior de itens. Escreve Isen (1987):

(...) é possível que um material positivo seja mais extenso e ao mesmo tempo melhor integrado (do que um material negativo), o que levaria o afeto positivo a sinalizar uma gama maior de pensamentos. Ao contrário, um material relacionado à tristeza poderia ser estruturado de maneira mais específica e mantido em isolamento relativo em relação a outros pensamentos (...) (p.217).

A facilitação da memória, no caso de nomes de amigos, poderia ser interpretada como decorrendo dos afetos positivos a eles ligados.

A Greenwald e Banaji (1989) não escapou esta possibilidade, embora lhe atribuíssem pouco crédito:

É mais plausível pensar que seja a rica estrutura cognitiva presente o fator envolvido (no efeito de facilitação) do que o valor afetivo positivo dos nomes de amigos; esta especulação poderia ser testada, repetindo-se o experimento com nomes auto-gerados de inimigos (p.51, grifo nossos).

O propósito do presente experimento foi retomar a questão no ponto em que a deixaram Greenwald e Banaji (1989), testando a hipótese afetiva da facilitação da memória numa tarefa em que as âncoras mnêmicas seriam nomes de amigos, nomes de desconhecidos e nomes de inimigos. Duas previsões foram feitas, partindo-se de duas versões da hipótese afetiva: (1) havendo assimetria dos efeitos do afeto sobre a memória, com prevalência facilitadora dos afetos positivos (Isen, 1987), esperar-se-ia melhor lembrança das palavras ligadas a nomes de amigos do que as ligadas a nomes de inimigos; (2) se a intensidade do afeto (em contraposição ao seu valor hedônico) fosse a variável relevante, do ponto de vista dos efeitos sobre a memória (Ades, Botelho, Duarte, Teixeira, Arruk, Melo & Gazire, 1990), então a lembrança deveria mostrar-se melhor quando fosse extrema a avaliação do relacionamento afetivo (positiva ou negativa) do que quando se aproximasse da indiferença. Os participantes do presente experimento julgaram, numa escala de sete pontos, o quanto gostavam, ou não gostavam das pessoas conhecidas cujos nomes tinham fornecido. Esperava-se de acordo com a segunda hipótese aventada, efeitos facilitadores maiores no caso dos nomes localizados nos extremos da escala.

 

Método

Sujeitos

40 pessoas, de 18 a 45 anos participaram, enquanto voluntários, do experimento. Foram testados, individualmente, em condições ambientais tranqüilas. Em algumas provas (testes de evocação de objetos em presença de uma dica e de evocação de nomes de pessoas) contamos com uma amostra menor, de 20 pessoas dentre as 40 disponíveis.

Procedimento

O procedimento seguido, o mesmo, para todos os sujeitos, compunha-se de três etapas: (1) formação, pelos sujeitos, de frases que combinassem nomes de pessoas e nomes de objetos; (2) tarefa de memorização de informações diversas, na verdade todas irrelevantes, utilizada para estabelecer um intervalo temporal entre a aquisição dos itens relevantes e a verificação de sua retenção; (3) testes de retenção dos nomes de pessoas e de objetos. Esta terceira etapa, não mencionada nas instruções, era inesperada e permitia avaliar a aprendizagem incidental dos itens relevantes.

A formação de frases

Depois de conseguir o acordo do sujeito em participar de um experimento " sobre o funcionamento da memória humana", explicava-se a ele que, antes da tarefa de memorização, ele deveria cumprir outra tarefa, que envolvia dar nomes de pessoas conhecidas e formar frases que combinassem estes e outros nomes com nomes de objetos.

Pedia-se, inicialmente: (1) que o sujeito escrevesse, nas linhas numeradas de 1 a 5 de uma folha, os nomes de cinco amigos (excluindo pessoas da família); (2) que escrevesse, em outra folha (linhas 6 a 10), os nomes de 5 pessoas de quem não gostasse absolutamente (não se usava nunca o termo "inimigo" quando das instruções ao sujeito, dadas as conotações extremas do termo e a possibilidade de que o sujeito não quisesse assim caracterizar pessoas que lhe fossem antipáticas. No resto deste artigo, usamos a palavra " inimigo" como forma simplificada de nos referirmos a pessoas de quem alguém não gosta); (3) que escrevesse, numa outra folha ainda (linhas 11 a 15) nomes de pessoas não conhecidas, escolhidas dentre uma lista fornecida pelo experimentador. Neste caso, os nomes (Reinaldo, Betina, Adilson, Acácio, Roseli, Ivani, Virgínia, Vânia, Letícia, Álvaro, etc.) eram lidos um a um até que o sujeito tivesse copiado cinco. Este método proporciona uma vantagem em relação ao de oferecer 5 nomes, escolhidos de antemão pelo experimentador: evita-se a coincidência de um dos nomes "arbitrários" ser de alguém conhecido pelo sujeito.

Pedia-se, em seguida, que fossem escritas, numa folha separada, frases incluindo, cada uma, um dos 15 nomes de pessoas (as listas -correspondentes a amigos, inimigos e desconhecidos - permaneciam na frente do sujeito) e um de 15 objetos de uma lista fornecida.

Os objetos foram escolhidos de acordo com os critérios de Greenwald e Banaji (1989): eram nomes de objetos concretos, comuns, começavam todos por uma letra diferente e pertenciam a categorias diversas. A lista final incluía os seguintes objetos: BARALHO, ESCOVA, TESOURA, DIPLOMA, GARRAFA, COBERTOR, MARTELO, RAQUETE, SACOLA, ÔNIBUS, PORTEIRA, FOGUETE, ANTENA, LANTERNA, XAROPE.

Na folha de resposta, constavam os nomes destes objetos, na ordem indicada acima, pareados a números de 1 a 15, estes em ordem casual. A tarefa do sujeito era inventar uma frase com cada objeto e com o nome de pessoa correspondente ao número. Os pares nome-objeto eram variados para evitar o viés decorrente de uma associação sistemática entre certos objetos e uma das categorias (amigos, inimigos e desconhecidos).

Nenhum dos sujeitos, quando questionado após o término do experimento, revelou ter desconfiado de que seria testada sua memória dos nomes de pessoas ou de objetos.

Tarefa intermediária

Terminada a etapa de formação de frases, os sujeitos recebiam um folheto com 10 itens, relativos a informações extraídas de várias áreas do conhecimento humano. Cada item era composto de uma pergunta e da resposta correspondente que competia ao sujeito decorar. Dava-se 10 minutos para o sujeito completar a memorização.

Um exemplo de item era: (Pergunta) Neil Armstrong foi o primeiro homem a pisar na lua em julho de 1969, no comando da Apoio 11. Antes disso, porém, já havia realizado uma missão importante. Qual e quando foi ela? (Resposta) Em março de 1966, no comando da Gemini-8, realizou o primeiro encontro espacial entre dois veículos cósmicos.

No fim da tarefa intermediária, apresentavam-se as perguntas de cada item, devendo o sujeito rememorar a resposta correta. Este desempenho, evidentemente, nada tinha a ver com o objetivo do experimento.

Testes de retenção

Os verdadeiros testes de retenção (inesperados) eram então aplicados.

1) evocação livre dos objetos. Requeria-se do sujeito que desse todos os objetos de que fosse capaz de se lembrar, em qualquer ordem.

2) evocação dos objetos na presença de dicas. O experimentador lia cada um dos nomes de pessoas, sendo tarefa do sujeito fornecer o objeto e a frase correspondentes. Dada a dificuldade em se avaliar, de modo suficientemente rigoroso, o grau de retenção envolvido nas frases evocadas pelos sujeitos, resolveu-se considerar apenas, para análise, as respostas relativas aos objetos.

3) evocação dos nomes de pessoas. O sujeito tinha de dar todos os nomes de pessoas de que fosse capaz de se lembrar.

Avaliação do nível afetivo do relacionamento

Como última tarefa, antes de receber explicações sobre o real objetivo do experimento, o sujeito tinha de avaliar cada um dos amigos e cada um dos inimigos numa escala de 7 pontos, que ia de 1 (DETESTO) a 7 (GOSTO MUITO), passando por 4 (INDIFERENTE). Pretendia-se, a partir das avaliações, verificar se a memória dos objetos ou dos nomes de pessoas estaria influenciada pelo nível afetivo do relacionamento, mais precisamente, se revelaria ser maior no caso de relacionamentos mais intensos (notas extremas da escala).

 

Resultados

Lembrança de objetos

A categoria de pessoa (amiga, inimiga ou desconhecida) cujo nome foi usado na geração de frases afetou significativamente a quantidade de objetos lembrados, tanto no teste de evocação livre (Friedman, n = 40, X2 = 18,35, p < 0.001) quanto no de evocação em presença de uma dica (Friedman, n = 20, X2 = 24,3, p < 0,001, Figura 1).

 

 

A polaridade afetiva do relacionamento (amigo x inimigo) não influenciou a evocação: a proporção dos objetos lembrados quase coincidiu entre condições (Figura 1). Não há diferença significativa nem na evocação livre (Wilcoxon, z = 0,782, p > 0,05) nem na obtida em presença de dicas (Wilcoxon, z = 0,2535, p > 0,05).

Em contrapartida, foi claramente melhor a lembrança de objetos associados a conhecidos (amigos e inimigos) do que a associada a desconhecidos. No teste de evocação livre, houve superioridade da categoria amigos em relação à categoria desconhecidos (Wilcoxon, z = 4,111, p< 0,001); e superioridade da categoria inimigos em relação à categoria desconhecidos (Wilcoxon, z = 3,742, p < 0,001). No teste de evocação em presença de uma dica, o mesmo padrão de resultados foi encontrado (Wilcoxon, Amigos x Desconhecidos, z = 3,823, p < 0,001; Inimigos x Desconhecidos, z = 3,642, p < 0,001).

Terá a dica (oferecer um nome de pessoa como estímulo para a emissão do objeto correspondente) um efeito facilitador sobre a recuperação da informação mnêmica? Se sim, esperar-se-ia escores mais altos no teste de evocação em presença de uma dica do que no de evocação livre. O resultado obtido é, no entanto, oposto: um número maior de objetos foi lembrado em evocação livre do que na evocação em presença de uma dica (Wilcoxon, z = 2,508, p < 0,01).

Lembranças de nomes de pessoas

A quantidade de nomes lembrados diferiu significativamente de acordo com a categoria (amigos x inimigos x desconhecidos; Friedman, n = 20, X2 = 23,025, p < 0,001, Figura 1).

Como no caso dos objetos, não houve diferença significativa entre a categoria amigos e a categoria inimigos (Wilcoxon, z = 0,770, p < 0,05), mas sim entre conhecidos e desconhecidos (Wilcoxon, Amigos x Desconhecidos, z = 3,724, p < 0,001; Inimigos x Desconhecidos, z = 3,621, p < 0,001). Nota-se (Figura 1) que a lembrança dos nomes foi melhor do que a dos objetos, em qualquer das categorias.

A natureza das frases geradas

As frases, geradas para unir nomes de pessoas a objetos, poderiam funcionar como recursos mnêmicos, facilitando a codificação pessoa-objeto e a recuperação posterior de um ou outro componente. Em sua grande maioria, as frases com nomes de amigos ou inimigos não se distinguiram das com nomes de desconhecidos ("Cláudio anda de ônibus", "Rosely abre a porteira", "Alberto esqueceu o cobertor", "A sacola do Márcio ficou em sua casa", etc.), e parecem indicar a escolha pelos sujeitos de fórmulas simples e superficiais de formação, não sendo alcançados níveis de processamento de informação autobiográfica ou de pormenores que individualizassem as pessoas usadas como objeto.

A influência do tipo de relacionamento se nota, contudo, em algumas das frases construídas com nomes de amigos e, principalmente, de inimigos. As atitudes que se traem na forma da frase poderiam constituir dicas de memória. Exemplos: "Estou de antena ligada no Guilherme","Recusaria qualquer coisa do Clodoaldo, até mesmo um cobertor no inverno", " Telma vive enchendo minha sacola"," A Georgia deveria embarcar num foguete e morar em Marte", " Por mim, enfiava a Renata dentro de uma garrafa e punha a rolha", " O Celso poderia trabalhar como porteiro de porteira de chiqueiro", " Caio irá receber o diploma do cara mais chato do ano"," A Márcia é como uma tesoura, está sempre cortando o barato", etc.

Nível afetivo do relacionamento e memória

A escala DETESTO-GOSTO MUITO expressa a intensidade do nível afetivo de relacionamento, além de sua direção. Esperar-se-ia, aceita a idéia de que codificar e conservar informação depende da intensidade do afeto, que houvesse maior memória nos níveis extremos da escala do que nos níveis intermediários.

Para avaliar a evocação de objetos em cada nível afetivo de relacionamento, usou-se o índice L/A x 100, onde L é o número de objetos lembrados num determinado nível afetivo e A é o número de pessoas que o sujeito avaliou como pertencentes a este mesmo nível.

Comparou-se, entre níveis afetivos de relacionamento (1 a 7, correspondendo aos pontos da escala), a distribuição dos indivíduos com índice de 0 a 25; de 26 a 50; de 51 a 75 e de 76 a 100. Não houve diferença significativa entre níveis afetivos de relacionamento quanto à distribuição de escores (X2 = 10.933, gl. = 18, p > 0,05). Os resultados que indicam não ser a intensidade uma variável relevante, neste contexto, são expressos graficamente na Figura 2, onde se vê o índice L/A x 100 médio para cada nível afetivo de relacionamento.

 

 

Não se constatou, tampouco, diferença significativa entre os nomes de amigos ou inimigos evocados, de acordo com os níveis afetivos de relacionamento.

 

Discussão

Nossos dados replicam o resultado central da pesquisa de Greenwald e Banaji (1989), qual seja, o melhor desempenho mnêmico no caso de frases construídas com nomes de amigos (Figura 1), do que com nomes quaisquer. Trata-se de um resultado extremamente forte: foram raros os casos em que um sujeito lembrasse mais objetos, no caso de nomes desconhecidos do que nomes de amigos.

Seria este efeito uma decorrência específica dos afetos positivos que acompanham, associados a ele, o nome de uma pessoa querida ? Se assim fosse, esperar-se-ia que a evocação de objetos ligados ao inimigo se situasse em nível inferior, talvez tão baixo quanto o da evocação de objetos ligados a nomes quaisquer. O que mostra a pesquisa, ao contrário, é a equivalência dos nomes de amigos e inimigos, seja no teste de evocação dos mesmos, seja em testes relativos aos objetos associados (evocação livre e evocação em presença de uma dica). Mostra também que os nomes de inimigos foram consistentemente superiores, enquanto facilitadores de memória, aos de desconhecidos.

Parece, assim, afastada a idéia de efeitos assimétricos do afeto, no caso da memória referente ao "eu". Uma série de resultados, em outras áreas de investigação da memória, reforçam a hipótese de simetria. Numa pesquisa sobre memória cotidiana (Ades et al., 1990), em que participantes anotavam eventos diários, sendo testados mais tarde a respeito deles, os eventos de teor afetivo desagradável foram tão lembrados quanto os eventos agradáveis e ambos foram rememorados melhor do que eventos neutros. A intensidade do afeto (independentemente de sua qualidade) era, aparentemente, a variável crucial. É interessante notar que, nesta pesquisa, quando questionados a respeito dos eventos que mais tendiam a lembrar (uma pergunta " metapsicológica") os participantes mencionavam na maioria das vezes (76,9%) eventos " que provocam sentimentos fortes" ou que "têm importância pessoal". "Eventos agradáveis" apenas contavam por 7,7% das respostas.

Embora houvesse indícios de que o afeto entrava na formação das frases (como testemunham as sentenças pouco elogiosas a respeitos dos "inimigos") e que talvez estivesse envolvido no mecanismo de recuperação ulterior de informação, ele não parece ser o motor principal do efeito que Greenwald e Banaji (1989) chamam de auto-geração. Se fosse, haveria de ser notada uma relação entre o nível afetivo de relacionamento (respostas extremas à escala DETESTO-GOSTO MUITO tomadas como indicadoras de um afeto intenso, respostas intermediárias tomadas como indicadoras de afeto baixo) e o desempenho em tarefas de evocação. A ausência desta relação, se não elimina a validade da hipótese da intensidade afetiva, reduz-lhe certamente o alcance.

A interpretação mais parcimoniosa para os dados é a que postula que estruturas cognitivas ricas em associações fornecem uma base melhor para a aquisição de novas informações do que estruturas parcas. O nome de um amigo, ou de um inimigo gera uma classe densa de lembranças, conforme os próprios sujeitos, após o experimento, às vezes, relatavam. Não é imprescindível que esta estrutura esteja ligada ao "eu" enquanto sistema de memória, acontece que a informação que temos a respeito de nós-mesmos, por motivos óbvios, é das mais ricas e elaboradas e afetivamente coloridas que temos. Outras estruturas desempenhariam o mesmo papel facilitador, contanto que suficientemente guarnecidas de informação. No Experimento 4 de Greenwald e Banaji (1989), em que se pedia aos sujeitos que formassem frases, não com nomes de amigos, mas com o de artistas e pessoas famosas da mídia, o efeito facilitador de evocação continuava significativo. Um ornitólogo ou um ictiólogo processariam a nível mais profundo frases com nomes de pássaros ou de peixes.

Como é que se dá a facilitação? Segundo Greenwald e Banaji (1989), o efeito de auto-geração teria semelhanças notáveis com técnicas mnêmicas, como, por exemplo, o método dos locais (method of loci, Bellezza, 1981) em que itens a serem lembrados são associados a uma seqüência de lugares familiares, como, por exemplo, os quartos de uma casa. Em ambos os casos, uma informação pessoal, idiossincrática, é gerada, adquire uma associação com um item arbitrário e, depois, é utilizada como elemento mediador na recuperação mnêmica deste item. Informações auto-geradas seriam mais eficientes, como dicas mediadoras, do que as fornecidas por outrem. Um resultado da presente pesquisa, também encontrado por Greenwald e Banaji (1989), coloca, contudo, um grão de areia na interpretação mediacional da facilitação. O número de objetos lembrados foi maior no teste de evocação livre do que em presença do nome de pessoa, que no entanto deveria funcionar como dica poderosa.

Uma alternativa (ou explicação complementar) a ser considerada é pensar que assuntos que despertam interesse são submetidos a um exame mais minucioso do que assuntos irrelevantes, suscitam os níveis mais profundos de processamento, níveis aos quais corresponde um melhor desempenho mnêmico conforme sugerem muitas pesquisas feitas desde o artigo clássico de Craik e Tulving (1975). O fator motivacional não é tomado, nesta explicação, como atuando diretamente sobre a memória, mas como propiciando mudanças em atividades de prestar atenção e manipular conceitualmente o material presente.

No final de um artigo de revisão, Westen (1992) conclui não ser válido um conceito unitário de " eu" e convida para a análise do conceito em termos dos processos e funções que participam de sua definição. A colocação do "eu" como sistema de informação mnêmica é um passo nesta direção, interessante na medida em que, ao mesmo tempo em que respeita os aspectos idiossincráticos do funcionamento do indivíduo, mostra uma possível interpretação em termos de princípios gerais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 A pesquisa, cujos resultados foram apresentados por ocasião da 43ª Reunião Anual da SBPC, no Rio de Janeiro, foi executada durante a vigência da bolsa de pesquisador (CNPq) de C. Ades. Agradecemos a Cristiane seixas Duarte, Marcelo Munhoz Teixeira, Maria Eugênia Arruk, Patrícia Cardoso de Mello e Patrícia Gazire pela participação no planejamento e coleta de dados.