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Revista Brasileira de Orientação Profissional
versão On-line ISSN 1984-7270
Rev. bras. orientac. prof v.7 n.1 São Paulo jun. 2006
ENSAIO
Se alguma coisa existe, ela existe em certa quantidade e pode ser mensurada: o valor preditivo dos exames vestibulares
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto
Recentemente, os docentes da USP viram os seus e-mails serem sobrecarregados por inúmeras mensagens no início do ano de 2006, relacionadas a um hipotético “manifesto” que veiculava virtualmente, no qual pessoas se posicionavam contrariamente a duas afirmações proferidas pela Pró-reitora de Graduação da Universidade de São Paulo, acerca dos Exames Vestibulares (EV). As polêmicas afirmações da Pró-reitora foram: “a forma como o vestibular era feito até agora não dá certo” (...) “vamos passar a cobrar raciocínio e uma postura crítica com relação ao conhecimento e não acúmulo de informações”.
Refletindo sobre tais afirmações, bem como sobre a polêmica por elas ocasionada, pode-se depreender dois aspectos que julgamos fundamentais. Primeiro: a prontidão das várias áreas do saber da Universidade de São Paulo em discutir o assunto e, em segundo lugar, a diversidade opinativa individual, tanto cognitiva quanto emocional, manifesta em resposta às diferentes mensagens recebidas. Ou seja, alguns se exaltaram contra a grande quantidade de e-mails recebida que, por sobrecarregar as caixas postais, provocou um pedido exasperado de exclusão de seus nomes na lista circulante; enquanto que outros analisaram detidamente o teor do manifesto e as colocações da Pró-reitora, entendendo, de antemão, que o tema da discussão não possui respostas corretas, dicotômicas, do tipo sim/não ou certo/errado, mas sim respostas que só podem ser geradas após intensos e contínuos debates acerca de sua natureza, modelo, forma e função.
Assim esclarecido, entendo que ambas as colocações da Pró-reitora podem ser sumariadas por meio de duas questões que, usualmente, permeiam os processos de avaliação e/ou constructos de natureza psicológica. Primeira, quais são as dimensões e/ou fatores que devem compor os EV? Segunda, qual é o valor preditivo dos EV? (Da Silva, 2003, 2005).
A primeira questão trata da dimensionalidade dos EV? Quantas dimensões cognitivas podem ser capturadas pelos EV. Principiemos, portanto, da definição do que é uma dimensão. Pense uma dimensão como uma linha numérica. Se quisermos mensurar o constructo, temos que decidir se este pode ser adequadamente mensurado com uma única linha numérica ou se é necessário mais que uma linha. Como exemplo para tanto, tomemos a altura. Ela é um conceito que é unidimensional, ou seja, pode ser representado unicamente por uma dimensão. Assim como ela, o peso e a temperatura também são unidimensionais.
Mas pense agora sobre o EV. Enquanto exame, prova, escala ou teste ele pode ter qualquer número de dimensões, embora a maioria tenha apenas poucas dimensões. Vá mais além e pense quais constructos cognitivos podem ser capturados pelos EV. À semelhança disso, pense sobre o conceito de inteligência, bem-estar subjetivo, qualidade de vida, personalidade, avaliação da excelência do ensino e/ ou professor, da produtividade acadêmica e muitos outros similares. Se você achar que pode mensurar muito bem qualquer um desses atributos com uma simples régua, variando de baixo a alto ou de pouco a muito, então você, provavelmente, tem um constructo unidimensional.
Por outro lado, o que seria um conceito multidimensional? Muitos modelos de exames de admissão, entre eles os EV, postulam que as provas, ou os itens e questões, devem ser compostos pela avaliação de, no mínimo, duas dimensões: o conhecimento cristalizado, ou seja, todo conteúdo que é processado e sistematizado pelo pensamento, e a capacidade fluída, ou seja, capacidade de resolver problemas. Um exemplo típico de exame multidimensional é o SAT (Scholastic Assessment Test), que mede uma mistura destes dois constructos, a saber, habilidade e realização, ambos comumente aferidos em estudantes norte-americanos. A propósito, as correlações entre o SAT e os testes de inteligência geral são usualmente superiores a 0,70 (Frey & Detterman, 2004). Este modelo traz uma forte analogia com o modelo da estrutura do intelecto humano, baseado na tradição psicométrica descrito pela teoria da inteligência fluída e inteligência cristalizada.
A teoria da inteligência fluída e cristalizada distingue estas duas habilidades. A habilidade fluída é demonstrada pela solução de problemas para os quais experiência prévia e conhecimento aprendido são de pouco uso. Ela é mensurada por testes, provas e exames, tais como tarefas verbais, que repousam sobre relações entre palavras familiares, ou tarefas perceptuais ou figurativas, tendo pouco conteúdo escolástico ou cultural. Neste caso, o processamento cognitivo não está necessariamente associado com qualquer domínio de conteúdo específico. Ao contrário, a habilidade cristalizada reflete conhecimento consolidado ganho por meio da educação, acesso a informação cultural, bem como, através da experiência. É um processamento cognitivo que envolve conhecimento previamente adquirido e armazenado a longo prazo (Blair, 2006).
Certamente a habilidade cristalizada de um indivíduo origina-se com a habilidade fluída, mas ela é desenvolvida por meio do acesso e seleção de experiências de aprendizagem. Conseqüentemente, entre pessoas de contextos educacional e cultural similares, as diferenças individuais na habilidade fluída são supostas influenciar as diferenças individuais na habilidade cristalizada. Contudo, pessoas de diferentes contextos culturais, com o mesmo nível de habilidade fluída, são preditas diferir em habilidade cristalizada. Mas é certo que as funções fluídas desempenham um papel determinante em decodificar e em recuperar o conhecimento cristalizado armazenado a longo prazo (Sternberg, Grigorenko & Bundy, 2001).
Assim, entendo que a Pró-reitora, ao comentar rapidamente a necessidade de se cobrar raciocínio, certamente quis dizer que se torna necessário que os EV atuais, por melhor que eles sejam, passem a valorizar (talvez, mais do que o fazem) a habilidade fluída e não apenas a habilidade cristalizada como muitos, aparentemente, julgam que eles façam.
A segunda questão trata de um grande problema que ataca todos os exames vestibulares, ou seja, qual o seu valor preditivo. Por definição, qualquer modelo de EV é cultural, social e ideologicamente enraizado. Como indicadores, os EV têm, supostamente, a intenção de predizer o sucesso acadêmico e mesmo profissional numa dada sociedade (isto é, num grande grupo social carregando o seu próprio conjunto de valores). Certamente os EV foram originalmente designados para especificamente predizerem o desempenho e/ou realizações educacionais. Na realidade, todos que os defendem têm adotado a concepção da causalidade recíproca entre desenvolvimento cognitivo e educação. Altos índices cognitivos são preditivos de mais realizações educacionais e mais educação torna-se preditivo de altos resultados intelectuais. O problema é: quais dimensões e/ou fatores dos EV (questões de física, de química, de matemática, de português, de redação, ou um total composto, etc.) são mais preditivos, ou se correlacionam, mais altamente, com o desempenho acadêmico, ou que permitam melhor predizer o sucesso na carreira profissional. Também, questiona-se qual o valor preditivo do EV para o sucesso na carreira e a sua relação (correlação) com o bem-estar-subjetivo.
Responder a estas questões constitui-se num grande desafio para aqueles interessados na mensuração de constructos psicológicos desta natureza e, principalmente, para aqueles envolvidos na elaboração do melhor processo seletivo para adentrar à academia. É óbvio que muitos outros fatores e habilidades contribuem para o desempenho e sucesso acadêmico e na carreira profissional. Mas, ainda assim, o problema é estatístico e resume-se em saber qual, dentre vários fatores, explica mais da variância encontrada. Nada mais. Para isso, deveríamos programar uma análise exaustiva do valor preditivo dos nossos exames vestibulares, procurando analisar suas correlações com vários critérios externos, sejam estes os desempenhos nas notas de diferentes disciplinas curriculares, bem como, com os indicadores de sucesso, valorizados em nossa sociedade e cultura.
Não há razão para complacência. Devemos procurar sempre os melhores preditores e tentar mensurar todas as variedades de habilidades que podem contribuir para o sucesso acadêmico e profissional. O aprimoramento dos EV deve ser dinâmico, regular e contínuo, no presente e no futuro. Assim, entendo que tem razão a Pró-reitora de graduação ao afirmar que devemos buscar novos modelos de EV, visando encontrar melhores preditores para o sucesso pessoal, profissional e acadêmico. Estudos desta natureza devem ser realizados com freqüência nos moldes daqueles desenvolvidos pelo Educational Testing Service (ETS) da Universidade de Princeton (USA).
REFERÊNCIAS
Blair, C. (2006). How similar are fluid intelligence and general intelligence? A developmental neuroscience perspective on fluid cognition as an aspect of human ability. Behavioral and Brain Sciences, 29, 109-160.
Da Silva J. A. (2003). Inteligência Humana: Abordagens Cognitivas e Biológicas. São Paulo: Lovise.
Da Silva, J. A. (2005). Inteligência, resultado da genética, do ambiente ou de ambos? São Paulo: Lovise.
Frey, M. C. & Detterman, D. K. (2004). Scholastic Assessment or g? The relationship between the Scholastic Assessment Test and General Cognitive Ability. Psychological Science, 15 (6), 373-378.
Sternberg, R. J., Grigorenko, E. L. & Bundy, D. A. (2001). The predictive value of IQ. Merrill-Palmer Quarterly, 47 (1), 1-41.
Recebido: 30/06/06
1ª Revisão: 06/07/06
Aceite final: 10/07/06
1 Endereço para correspondência: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Departamento de Psicologia e Educação, Campus USP, Av. Bandeirantes, 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, SP. E-mail: jadsilva@ffclrp.usp.br
Sobre o autor
* José Aparecido da Silva é professor Titular do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-RP); atual Prefeito do Campus da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto; autor de obras acerca da Inteligência Humana e Mensuração e Avaliação de Dor; é Ph.D. pela University of California, Santa Bárbara (USA); foi professor Visitante da Hokkaido University (Japão), da Universidade de Coimbra, (Portugal), da Universidad de Barcelona (Espanha), da Universidad Nacional de Tucumán (Argentina), e Université de Paris XI, França.