Introdução
Nos últimos anos, as mudanças no mundo do trabalho tornaram os contextos laborais mais exigentes e complexos e, com isso, as atividades de preparação acadêmica passaram a ser fundamentais no desenvolvimento das carreiras (Lent, 2013). Como consequência, há uma valorização da educação superior e que, somada ao reconhecimento do seu papel na redução das desigualdades sociais e ao entendimento de que o aumento nos anos de escolarização é um atributo importante para a competitividade econômica entre os países, resultaram em um crescimento no acesso ao ensino superior (ES) em nível mundial (Heringer, 2018).
No Brasil, o ES vivenciou uma expansão nos últimos anos, mas as matrículas presenciais nas áreas de Licenciatura não acompanharam a mesma taxa de crescimento apresentada pela totalidade desse nível de ensino. Ao contrário, na última década, houve redução na porcentagem de estudantes que frequentam as carreiras acadêmicas orientadas para a formação de docentes da educação básica (Brasil, 2008; Brasil, 2018).
A baixa atratividade pela docência é realidade presente em países situados em distintos continentes, tais como: Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Turquia e Holanda (Hennessy & Lynch, 2017; Kim & Corcoran, 2018). As deficientes condições de trabalho, a baixa remuneração, as políticas de formação, a precarização do trabalho, a violência nas escolas ou o desconforto causado pela queda do prestígio social da profissão contribuem para o menor interesse pela carreira docente (Tartuce et al., 2010). Soma-se que, no Brasil, como em outros países, o recrutamento de estudantes altamente qualificados para os cursos de formação inicial de professores é um desafio e impacta a qualidade da educação básica (Lee et al., 2019; OCDE, 2018).
Além da menor procura pelos cursos de Licenciatura, tais percursos formativos convivem com a evasão, entendida como interrupção do ciclo de estudo ou abandono sem a sua conclusão (Brasil, 2018; Felicetti & Fossatti, 2014). A evasão é um fenômeno que não está restrito aos cursos de formação de professores, mas a sua presença nessas carreiras traz implicações diretas para o sistema educacional, com a redução dos professores graduados para ministrarem disciplinas na educação básica (Tartuce et al., 2010). Sobre esse tema é importante atender a fenômenos distintos como evasão do curso, da instituição ou do ensino, e às suas distintas modalidades: (a) abandono (não realização de matrícula no semestre ou ano subsequente ao frequentado), (b) desistência (oficialização junto à universidade), (c) exclusão por norma institucional, (d) transferência/reopção (mudança de curso), e (e) trancamento de matrícula (interrupção temporária nos estudos). Isso porque cada uma dessas modalidades tem formas de registros distintas, motivos associados diversos, além de consequências diferentes para os estudantes e para a instituição (Casanova et al., 2019; Rangel et al., 2019).
Nas instituições públicas estaduais e federais localizadas no estado de São Paulo, por exemplo, entre 2014 a 2018, constatou-se uma ampliação em 27,6% no número de alunos, mas um aumento de 48,8% nos trancamentos de matrículas e de 108,1% nas desvinculações, categoria na qual estão incluídos: abandono, desistência e exclusão por norma institucional (Brasil, 2014; Brasil, 2018), sendo trancamento e desvinculação as modalidades analisadas neste estudo. Apesar de reconhecer que a evasão pode impactar positivamente o desenvolvimento da carreira do estudante, associando-se a uma nova escolha de curso, pode também resultar no abandono do ES, comprometendo, nestes casos, além da carreira em construção, o projeto de promoção da educação de qualidade e oportunidades de aprendizagem para todas as pessoas, objetivos do desenvolvimento sustentável proposto pela Organização das Nações Unidas e dos quais o Brasil é signatário (ONU, 2023).
No que se refere à evasão, há perspectivas teóricas que buscam entendê-la e as mais utilizadas partem da proposição de Tinto (2012), que considera o abandono como fruto da interação, a longo prazo, entre características dos sistemas educativos, das instituições, dos cursos e de aspectos pessoais dos estudantes (Roberts, 2012; Stinebrickner & Stinebrickner, 2014). A evasão reflete um processo longitudinal de tomada de decisões que sofre influência de distintas variáveis que encontram-se em interação (Casanova et al., 2019; Stinebrickner & Stinebrickner, 2014; Tinto 2012). As ideias de Tinto compreendem que o background familiar, a escolarização prévia e as habilidades e expectativas dos estudantes, além de fatores externos, como trabalho e exigências familiares, influenciam as metas e os objetivos com a instituição e com a carreira escolhida. Essas metas e compromissos impactam o envolvimento do estudante com o curso e com as realidades acadêmicas e sociais, e que resultam em novas avaliações das experiências universitárias e da capacidade dos estudantes para enfrentarem os desafios. A partir dessas análises, os alunos redefinem os seus objetivos e os projetos de carreira, o que culmina na decisão de permanecer ou abandonar o curso e/ou a instituição (Tinto, 2012; Tinto, 2017).
Dentre as variáveis que impactam a permanência, destacam-se as características pessoais dos estudantes. Há estudos que apontam maior incidência da evasão em mulheres, pois são mais prováveis de concorrerem com pressões externas que limitam a sua permanência, como também são impactadas pelos estereótipos de gênero presentes em algumas áreas do conhecimento e que influenciam o desenvolvimento de suas carreiras (González & Arismendi, 2018). Por sua vez, nas licenciaturas, os homens têm maior probabilidade de evadirem (Kim & Corcoran, 2018), suportando esta decisão a menor identificação vocacional do gênero masculino com cursos conducentes à docência (Almeida et al., 2006) e pelas barreiras simbólicas vividas pelos homens diante da feminilização do magistério (Neves et al., 2019). Com relação à idade, a evasão ou o risco de realizarem menos créditos e não finalizarem o curso no prazo institucionalmente previsto é maior entre universitários mais velhos (Korhonen & Rautopuro, 2019), tendencialmente estudantes que acumulam responsabilidades familiares e de trabalho, o que dificulta conciliar tais tarefas com as atividades acadêmicas.
Quinn (2013) acrescenta que o risco de evasão é maior entre estudantes provenientes de grupos socioculturais minoritários e desfavorecidos, que podem apresentar experiências prévias de escolarização que os deixam em desvantagem para enfrentarem os desafios e as exigências do ES, com impactos no rendimento acadêmico e na motivação para permanecerem no curso. Aliás, universitários pertencentes a grupos socioculturais minoritários, mas com elevadas notas no ingresso no ES, apresentam taxas reduzidas de evasão (Chang et al., 2014; Stinebrickner & Stinebrickner, 2014). No Brasil, estudos não encontraram correlação entre o perfil socioeconômico e cultural do estudante e a evasão, contudo apontam para classificações mais baixas em termos de rendimento acadêmico e maiores dificuldades na adaptação ao estudo por parte dos estudantes que realizaram a educação básica em escolas públicas (Cavalcanti et al., 2010).
Dentre as políticas inclusivas no ES, há programas e serviços para viabilizar tanto a admissão como a persistência dos estudantes (Araújo et al., 2019). É consenso que o suporte financeiro aos estudantes vulneráveis economicamente e os distintos auxílios favorecem o desempenho, a permanência e a conclusão dos cursos (Araújo et al., 2019; Felicetti & Fossatti, 2014). O estudo de Andrade e Teixeira (2017) encontra correlações significativas, ainda que baixas, entre a satisfação com as políticas disponíveis na instituição e a intenção de permanecer. E nos alerta que as dificuldades enfrentadas pelos estudantes não se limitam aos recursos financeiros, e as políticas de permanência estudantil deveriam proporcionar também ações que viabilizem o desenvolvimento pessoal, a promoção da saúde, o aprimoramento dos processos de aprendizagem e o desenvolvimento de carreira dos estudantes (Araújo et al., 2019).
Além da influência das características pessoais e das políticas de permanência, sabe-se que a trajetória acadêmica do aluno impacta o abandono (Casanova et al., 2018; Kahu & Nelson, 2018). Investigações apontam o rendimento acadêmico e a aprovação em disciplinas como fortes preditores na decisão do estudante permanecer no ES, atentando-se para a existência de mediadores nessa relação (Casanova et al., 2018; Kim & Concoran, 2018). Isso ocorre porque o baixo rendimento acadêmico e as reprovações são fontes de estresse e insatisfação e influenciam o senso de autoeficácia, fazendo com que os estudantes não acreditem que possam executar as demandas solicitadas e, com isso, dispendam menos esforços nas atividades acadêmicas (Casanova et al., 2018). Nestas situações, o aluno pondera as suas aspirações, as conquistas e as dificuldades enfrentadas nos planos financeiros, emocionais, sociais e acadêmicos, o que resulta em uma revisão dos objetivos e metas e na decisão pela permanência ou evasão do ES (Casanova et al., 2018; Stinebrickner & Stinebrickner, 2014; Tinto, 2017).
Em síntese, a evasão é um fenômeno complexo e multifacetado, e integra um conjunto amplo de variáveis, que incluem questões pessoais, de carreira, curriculares e institucionais. A decisão de permanecer ou abandonar é construída na trajetória acadêmica dos estudantes, sendo as taxas de evasão mais elevadas nos dois primeiros anos da sua formação acadêmica. Esta ocorrência pode refletir dificuldades na adaptação dos estudantes ao contexto universitário e à carreira e os problemas acumulados no decorrer do curso, como um baixo rendimento acadêmico e falta de identificação com o curso, podendo explicar a existência de taxas mais elevadas de evasão em graduandos nos dois primeiros anos dos cursos de Licenciatura das instituições públicas paulistas (Brasil, 2018). Com o aumento de estudantes que continuam os estudos pós-educação básica, e a sua maior diferenciação, importa ampliar e diversificar as investigações sobre a evasão no sentido da implementação de políticas públicas e ações institucionais que favoreçam a democratização do sucesso, à medida que se avança numa crescente ampliação no acesso (Casanova et al., 2019).
Nesta linha, são relevantes estudos que diversifiquem as variáveis consideradas nas análises e, ao mesmo tempo, recorram a métodos estatísticos que atendam à interação de efeitos das variáveis em presença e à natureza dinâmica e sequencial do processo de desvinculação dos estudantes com os seus cursos/instituições. Sendo escassa a pesquisa sobre a permanência nos cursos de formação de professores (Roberts, 2012), e elevadas as taxas de evasão nas Licenciaturas (Brasil, 2018), avançamos para a realização deste estudo procurando analisar a influência direta e mediada das variáveis pessoais dos estudantes (sexo, idade e instituição de frequência do ensino médio) e de condições acadêmicas (recebimento de auxílio social e carga horária integralizada) na evasão verificada no 2º ano, de cursos de Licenciatura de universidades públicas paulistas.
Método
Material
Para atingir os objetivos estabelecidos optou-se por um estudo documental, com os microdados oriundos do Censo da Educação Superior Brasileira que é um instrumento autodeclarado de recolha de dados sobre as instituições nacionais que permite o acompanhamento do ensino superior, com destaque para a evasão (Hoffmann et al., 2019). Os microdados são constituídos por informações públicas, anonimizadas e sem qualquer possibilidade de identificação dos estudantes. Tais informações são de livre acesso, obtidas por meio do website do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Por se tratar de um estudo documental realizado com informações públicas, sem identificação dos estudantes, há dispensa da apreciação do protocolo de investigação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.
Neste estudo trabalhou-se com os Microdados publicados entre os anos de 2016 e 2018, referentes aos cursos de Licenciatura das sete instituições públicas paulistas que oferecem graduações presenciais, sendo três de natureza administrativa estadual e as outras quatro federais (um instituto federal de educação e seis universidades). O recorte pela análise de instituições paulistas reside no fato deste Estado concentrar 20% de todas as matrículas da educação básica (Brasil, 2019) e a evasão dos cursos de Licenciatura pode implicar em uma diminuição no número de profissionais graduados, com impactos na qualidade da maior rede de educação básica brasileira. O olhar exclusivo para as instituições públicas vincula-se à existência de programas específicos de apoio à permanência dos estudantes, ações que são bastante restritas no ES privado.
Organização do Bancos de Dados
Dos dados obtidos por meio dos Censos da Educação Superior, divulgados entre os anos de 2016 e 2018, foi produzido um banco de dados, extraindo-se informações sobre os estudantes inscritos no 2º ano. O banco foi composto pelo código do aluno, código da instituição, sexo, ano de nascimento do estudante, natureza administrativa da escola onde realizou o ensino médio (pública ou privada), ano do Censo e ano de ingresso. Foram incorporadas informações sobre a experiência universitária, nomeadamente o recebimento de bolsas de auxílio social e financeiras no ano (sim ou não), a carga horária total do curso e a carga horária integralizada. Essa última variável foi um indicativo da experiência acadêmica que remeteu às disciplinas e unidades curriculares aprovadas pelos estudantes e, consequentemente, a progressão que fez no curso. Para o trabalho com essa variável foram calculados a porcentagem individual cumprida por cada estudante, tendo por referência a carga horária total do curso, e os percentis das porcentagens, com a divisão em quatro quartis, com agrupamento dos estudantes de acordo com a porcentagem de créditos finalizados. A variável percentil foi utilizada nas análises e o primeiro quartil indica menores realizações e o último quartil indica maior avanço no curso, consistindo numa medida de desempenho acadêmico e em um bom preditor do abandono (Casanova et al., 2018; Ferrão & Almeida, 2021). A idade foi obtida pela diferença entre o ano de realização do Censo e o ano de nascimento do estudante. Quanto à variável dependente, o Censo descreve a situação acadêmica, nomeadamente, em curso, trancado, desvinculado, transferido para outro curso, formado e falecido. Neste estudo foram considerados matriculados os estudantes que estavam na condição “em curso”, e evadidos aqueles que estavam “desvinculados” ou “trancados” no Censo, no 2º ano de sua graduação.
Procedimentos de Análise de Dados
As análises estatísticas descritivas e inferenciais foram realizadas pelo software estatístico IBM – SPSS. Para o estudo da confluência das variáveis pessoais e das experiências acadêmicas na evasão recorreu-se ao método das equações estruturais, pouco frequente nos estudos sobre evasão (Felicetti & Fossatti, 2014; Rangel et al., 2019). A execução do teste de verificação dos dados ao modelo proposto deu-se por meio do software estatístico IBM AMOS, recorrendo ao método de estimação da máxima verossimilhança. Na realização da modelagem de equações estruturais tomou-se por referência os índices propostos na literatura: Goodness-of-fit (GFI), Ajusted Goodness-of-fit (AGFI), Comparative Fit Index (CFI), Normed Fit Index (NFI), sendo aceitáveis coeficientes maiores do que 0,90, e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA), admitindo-se valores inferiores a 0,08 (Hu & Bentler, 1999). Não foi utilizado o resultado do teste qui-quadrado devido a sua sensibilidade ao tamanho da amostra, muito elevado neste estudo, que contou com o registo de 16.434 estudantes. Na análise da significância estatística dos coeficientes obtidos tomou-se o limiar usual de p < 0,05.
Resultados
Nesse estudo foram analisados os dados de 16.434 estudantes do 2º ano, matriculados em cursos de formação de professores vinculados às áreas de Ciências Humanas e Artes, Exatas e Biológicas, de sete universidades públicas, sendo três estaduais e quatro federais paulistas. Desses, 56,7% eram do sexo feminino, 54% realizaram o ensino médio na rede pública e 84% não recebem apoio social da instituição. A idade destes estudantes no ano de coleta dos dados do Censo, ou seja, no segundo ano de graduação, oscilou entre 18 e 72 anos (M = 23,74, DP = 6,71). Da população investigada, 3041 (18,5%) estudantes evadiram no 2º ano de graduação. Na Tabela 1 os microdados públicos do Censo são descritos, discriminando os resultados a partir da situação acadêmica (matriculado ou evadido) dos estudantes, avançando-se para a verificação de uma associação significativa entre as variáveis tomando as frequências ou as médias.
Tabela 1 Caracterização dos estudantes de Licenciaturas e análise das diferenças entre os grupos
Variáveis | N | % | Matriculados | % | Evadidos | % | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
(13393) | 81,5 | (3041) | 18,5 | ||||
Sexo | N | % | N | % | |||
Feminino | 9310 | 56,7 | 7844 | 84,3 | 1466 | 15,7 | χ²= 108,32 |
Masculino | 7124 | 43,3 | 5549 | 77,9 | 1575 | 22,1 | p<0,001 |
Ensino Médio | |||||||
Público | 8873 | 54 | 7145 | 80,5 | 1728 | 19,5 | χ²= 12,05 |
Privado | 7561 | 46 | 6248 | 82,6 | 1313 | 17,4 | p<0,001 |
Apoio Social | |||||||
Não | 13806 | 84 | 10989 | 78,9 | 2908 | 2,1 | χ²= 374,90 |
Sim | 2628 | 16 | 2495 | 95,6 | 133 | 4,4 | p<0,001 |
Carga Horária | |||||||
1º Quartil | 4107 | 25 | 1939 | 47,2 | 2168 | 52,8 | |
2º Quartil | 4114 | 25 | 3570 | 86,8 | 544 | 13,2 | χ²= 4446,08 |
3º Quartil | 4105 | 25 | 4027 | 98,1 | 78 | 1,9 | gl = 3 |
4º Quartil | 4108 | 25 | 3857 | 93,9 | 251 | 6,1 | p<0,001 |
Min-Max | Min-Max | ||||||
Idade | 18-72 | 18-71 | t = -1,96 | ||||
M | DP | M | DP | gl = 16432 | |||
23,32 | 6,4 | 25,58 | 7,6 | p<0,001 |
Os resultados apontam para uma associação significativa entre o sexo e a idade dos estudantes (t = -14,54, gl = 16432, p < 0,001), sendo as mulheres (M = 23,1, DP = 0,06) mais jovens do que os homens (M = 24,6, DP = 0,09). As estudantes do sexo feminino, em maior número, realizaram o ensino médio na rede privada (χ² = 7,31, gl = 1, p = 0,007) e situam-se com mais frequência nos quartis mais elevados, com maiores finalizações das disciplinas e unidades curriculares com sucesso, quando comparadas aos homens (χ² = 407,02, gl = 3, p = 0,001). Por sua vez, os homens evadem com maior frequência (χ² = 108,32, gl = 1, p < 0,01), e todas essas diferenças são estatisticamente significantes.
Verifica-se que os estudantes com história prévia de escolarização na rede pública, quando comparados aos da privada, recebem apoio social com mais frequência (χ² = 569,99, gl = 1, p < 0,01) e tendem a se situarem nos dois primeiros quartis no cumprimento das atividades obrigatórias, com menos créditos finalizados e progressos no curso (χ² = 141,24, gl = 1, p < 0,01). Por outro lado, os estudantes oriundos da rede pública têm médias de idade (M = 24,31, DP = 7,11) superiores aos pares que realizaram o ensino médio nas instituições privadas (M = 23,07, DP = 6,12), sendo a diferença significativa (t = 11,91, gl = 16432, p < 0,01), além de evadirem com mais frequência (χ² = 12,05, gl = 1, p < 0,01).
Com relação à idade, os estudantes que estão no primeiro quartil, com menor porcentagem de conclusões de disciplinas (M = 24,85, DP = 7,70) e os que se localizam no último quartil, com alta finalização das unidades curriculares (M = 24,37, DP = 6,7) apresentam médias de idade mais elevadas comparados aos colegas do segundo (M = 23,50, DP = 6,53) e do terceiro quartis (M = 22,26, DP = 5,42), sendo essas diferenças estatisticamente significantes (F(3) = 15954,57, p< 0,01). Os estudantes com idades mais elevadas (M = 25,58, DP = 7,61) evadem com maior frequência quando comparados aos mais jovens (M = 23,32, DP = 6,4), com diferença significativa (t = -16,96, gl = 16432, p < 0,01). Soma-se o fato de os estudantes que não recebem auxílio social na forma de recursos financeiros (χ² = 374,90, gl = 1, p < 0,01) e os que estão no quartil inferior em termos de finalização dos créditos exigidos na grade curricular (χ² = 4446,08, gl = 3, p < 0,01) abandonarem as carreiras orientadas para a docência com maior ocorrência quando comparados aos seus pares.
Em relação ao objetivo principal do estudo, o modelo testado considerou o papel das variáveis pessoais (sexo, idade e natureza administrativa da instituição que frequentou no ensino médio) na evasão do ensino superior. Foram analisados, ainda, os efeitos mediados e diretos das experiências vividas no percurso acadêmico (recebimento de auxílio social e percentil da porcentagem de carga horária integralizada). Na Figura 1 apresentamos o sentido dos efeitos das variáveis em presença na situação do aluno (permanência versus evasão).
O modelo teórico proposto apresentou os seguintes coeficientes de ajuste: GFI= 0,999, AGFI= 0,972, NFI= 0,988, CFI = 0,988, RMSEA = 0,063 [0,05 – 0,076] e foi capaz de explicar 21% da variância da situação do estudante, ou seja, se está matriculado ou evadido. Constata-se que, mesmo na ausência de modificações, o modelo traz um bom ajuste aos dados empíricos face aos índices obtidos (Hu & Blenter, 1999).
Como é possível verificar na Figura 1, as variáveis pessoais dos estudantes, como sexo (β = 0,011) e idade (β = 0,006), têm influências significativas, mas reduzidas, na evasão. Apesar de os homens e os estudantes mais velhos terem risco maior de abandonar quando comparados às mulheres e aos mais jovens, o impacto dessas variáveis é muito pequeno. Por sua vez, as experiências que ocorrem durante o percurso acadêmico dos estudantes parecem ter um peso maior no abandono quando se comparam às suas características pessoais. Os estudantes que recebem apoio social na forma de recursos financeiros durante os anos iniciais têm risco menor de abandonar (β = -0,13) e o maior cumprimento das disciplinas e das atividades obrigatórias reduz as chances de evasão (β = - 0,15).
Ressalta-se, ainda, que a escolaridade anterior do aluno, descrita por meio da natureza administrativa da escola na qual realizou o ensino médio (pública ou privada), influencia indiretamente a evasão, sendo mediada pelo recebimento do apoio social (β = -0,14) e pelo percentil de créditos finalizados (β = 0,20). Os resultados indicam que os estudantes egressos da escola privada têm menores chances de receberem o suporte financeiro da universidade, mas risco aumentado de estarem nos percentis mais elevados em termos do cumprimento das atividades obrigatórias, ou seja, com uma porcentagem maior de disciplinas cursadas, aprovadas e progressos no curso. Por sua vez, apesar do efeito direto do gênero sobre o abandono, percebe-se um impacto indireto, mediado pelos créditos finalizados. Os homens têm riscos mais baixos de estarem nos percentis elevados em termos do cumprimento com sucesso das atividades obrigatórias (β = -0,28), comparados às mulheres e os estudantes mais velhos têm menor probabilidade de receberem suporte financeiro da instituição, apesar de a força dessa associção ser quase nula (β = -0,005).
A análise das distintas variáveis, em conjunto, demonstra um efeito maior das experiências que ocorrem durante o curso de Licenciatura na decisão de evadir, face às variáveis pessoais dos estudantes. As características anteriores ao ingresso, apesar da pequena influência direta sobre a evasão, têm o seu efeito mediado pelas experiências no ensino superior, com destaque para o papel do sexo e da escolaridade prévia, ou seja, se finalizou a educação básica em escolas públicas ou privadas, no cumprimento com sucesso dos créditos necessários à finalização do curso.
Discussão
O ensino superior, pelas suas características e objetivos, apresenta novas demandas aos estudantes e vários deles não dispõem dos recursos necessários para enfrentá-las (Casanova et al., 2020). Com isso, o ingresso neste nível de ensino é entendido como um processo dinâmico de transição desenvolvimental, exigindo dos estudantes mudanças pessoais e adaptações nos planos comportamentais, afetivos e cognitivos a fim de enfrentarem as exigências que se apresentam, se ajustarem ao novo nível de ensino e à carreira escolhida (Casanova et al., 2019). A transição para a educação superior é um fenômeno complexo e muitos estudantes vivenciam dificuldades nessa fase que podem associar-se a menor rendimento acadêmico, sentimentos de baixa autoeficácia e evasão (Almeida et al., 2016; Larose et al., 2019). Apesar de a literatura, ao abordar a transição, enfatizar o ano inicial, a elevada taxa de alunos evadidos no segundo ano sugere que as dificuldades não terminam nos dois primeiros semestres e que a evasão não ocorre de maneira impulsiva ou de forma inesperada, mas é um processo prolongado de tomada de decisão associado a desvinculações graduais. Assim, as ações voltadas à permanência não devem limitar-se ao primeiro ano, mas é crucial que acompanhem o aluno na sua trajetória acadêmica (Casanova et al., 2019; Stinebrickner & Stinebrickner, 2014). Soma-se a urgência na construção de conhecimentos que dialoguem com a realidade local, o que justifica a decisão desta investigação pelo recorte de análise centralizado nas universidades públicas paulistas, já que o conhecimento das particularidades das instituições e, também, de regiões ou países é ímpar na proposição de ações mais ajustadas à realidade dos estudantes (Kember et al., 2019).
Neste estudo, a influência do sexo no abandono dialoga com contribuições da literatura (Almeida et al., 2006; Kim & Corcoran, 2018), com maior incidência de evasão entre os homens. Nos cursos de Licenciatura, a feminilização da docência presenciada em países Ocidentais como o Brasil, desde o início do século XX, ocorre carregada por estereótipos de gênero que concebem o magistério como uma ocupação da mulher, culmina na desqualificação simbólica e econômica do trabalho feminino e cria barreiras para a aproximação dos homens nessas carreiras (Neves et al., 2019). É provável que o estudante do sexo masculino nos cursos de Licenciatura depare-se com a força de tais estereótipos de gênero, que inibe a construção do senso de pertencimento ao curso e à carreira e resulte em menos créditos finalizados e no abandono (Tinto, 2017). Em outras palavras, tratando-se das propostas de formação inicial de professores, e com o predomínio das mulheres nesses cursos, os homens podem não encontrar um ambiente cultural favorável que os incentive a continuar os estudos em tais carreiras (Almeida et al., 2006).
Por sua vez, investigações revelam aumento nas taxas de evasão nos homens matriculados em diversos cursos e não apenas nas Licenciaturas (Saccaro et al., 2019). A expansão do ES possibilitou acesso a públicos distintos, como as mulheres, mas as vivências presentes nos contextos de transição, da trajetória acadêmica e da finalização do curso, são bastante diferenciadas entre os gêneros, resultando, portanto, em experiências ímpares de sucesso e fracasso (Almeida et al., 2006; Pirmohamed et al., 2017). Assim, além do papel do sexo no abandono, merece destaque, no presente estudo, a sua influência no percentil de créditos finalizados, com indicativo dos homens apresentarem menores progressões no curso. Este dado dialoga com a meta-análise realizada por Voyer e Voyer (2014) que encontrou desempenho acadêmico mais elevado nas mulheres.
O entendimento de tais diferenças extrapola uma explicação causal entre gênero e sucesso, bem como destaca os limites nas compreensões que atribuem às habilidades cognitivas ou à inteligência tais resultados (Kahu & Nelson, 2018; Pirmohamed et al., 2017). Mas incorpora o engajamento acadêmico como variável chave para a análise sobre como são construídas as interações entre as características dos estudantes e os contextos socioculturais no desenvolvimento das carreiras (Kahu & Nelson, 2018). Evidências indicam que as mulheres se engajam com mais intensidade nas experiências acadêmicas quando comparadas aos homens, sendo esse um forte preditor para o rendimento e para a permanência (Kahu & Nelson, 2018; Mayhew et al., 2016). Isso ocorre porque o engajamento possibilita ao estudante contato com experiências diversas, o aproxima da carreira escolhida e viabiliza novas formas de interação com pares e professores.
Por sua vez, os mecanismos que contribuem para o engajamento são afetados por variáveis psicológicas, incluindo as crenças de autoeficácia. Descrita como um julgamento pessoal sobre a capacidade relativa a um domínio, vincula-se à concepção do estudante sobre sua capacidade de estabelecer e executar cursos de ações para atingir os objetivos estabelecidos (Tinto, 2017). Assim, os estudantes se engajam nas tarefas que julgam conseguir desempenhar. Investigações apontam que as mulheres matriculadas nas áreas de Humanidades e Artes apresentam crenças de autoeficácia mais elevadas do que os homens (Huang, 2013) e, portanto, sentem-se mais capazes de se engajarem com as atividades e tarefas acadêmicas, resultando em melhor aproveitamento acadêmico, aprovações e progressos no curso. Num processo cíclico e dinâmico, as avaliações sobre os resultados obtidos influenciam os objetivos e as metas com relação ao curso e à carreira e impactam na decisão de permanecer ou evadir (Tinto, 2012; Tinto, 2017). Assim, crenças elevadas de autoeficácia atuam sobre o engajamento, o qual impulsiona as realizações acadêmicas que, consequentemente, influenciam as metas com o graduar-se, mantendo o estudante na instituição e a continuidade no desenvolvimento de sua carreira. Neste sentido, a compreensão dos mecanismos pelos quais as características pessoais dos estudantes atuam na promoção da permanência é relevante para a implementação com equidade das políticas de permanência (Heringer, 2018).
Destaca-se que no presente estudo a maioria dos estudantes de licenciatura é do sexo feminino e realizou a educação pré-universitária na rede pública de ensino. Tal perfil corrobora com investigações anteriores, que destacam a influência do capital social dos estudantes, da qualidade do percurso escolar, da renda e do gênero na escolha de cursos. Os ingressantes pertencentes aos níveis socioeconômicos mais desfavorecidos e as mulheres tendem a escolher cursos das áreas de Ciências Humanas, como os de Licenciatura, menos concorridos e prestigiados no sistema de ensino superior (Almeida et al., 2006; Tartuce et al., 2010). No que diz respeito à escolha do curso, apesar do acesso de populações que historicamente estiveram pouco representadas no ES, há indícios de perpetuação das desigualdades de classe e de gênero nas decisões de carreira, com poucos indicativos de mobilidades sociais e culturais (Almeida et al., 2006).
Soma-se que as aspirações e projetos de carreira estão marcados por percepções sociais e de gênero nem sempre facilitadoras do sucesso e permanência acadêmica (Almeida et al., 2006). Explica-se os resultados deste estudo que apontam a influência da escolarização prévia no cumprimento dos créditos, com maiores chances de os alunos provenientes do ensino privado apresentarem mais progressos no curso em detrimento dos alunos das escolas públicas. Deve-se atentar que o crescimento das matrículas no ES é acompanhado por uma mudança no perfil dos alunos, inclusive em termos socioeconômicos. O pequeno número de bolsas disponibilizadas aos estudantes faz com que muitos tenham que conciliar as atividades de estudo com trabalho e, com isso, o tempo para o engajamento com as atividades acadêmicas é reduzido e, consequentemente, realizam menor número de créditos com sucesso (Korhonen & Rautopuro, 2019).
Não menos importante está o papel do suporte financeiro e outros apoios, tais como residência, transporte, alimentação e condições de saúde, enunciados como necessários para garantir a democratização das condições de permanência e sucesso (Araújo et al., 2019). Os resultados do presente estudo indicam que os estudantes que recebem o apoio social, muitas vezes, sob a forma de auxílio financeiro, têm menor risco de evadir, podendo os alunos com menores recursos econômicos, e suas famílias, investirem mais na formação acadêmica superior como forma de ascenção social. Mas os desafios enfrentados pelos estudantes extrapolam as condições financeiras e as políticas de permanência devem enfatizar o suporte psicopedagógico, já que notas, aprovações nas disciplinas e quantidade de créditos finalizados pelos estudantes têm um peso no sucesso acadêmico (Casanova et al., 2020).
Ainda no plano do desempenho, as exigências colocadas pelo ensino superior nem sempre são superáveis pelos estudantes. As metodologias de ensino requerem níveis adequados de autonomia e de autorregulação, principalmente na gestão de tempo, nas novas exigências avaliativas e nas expectativas vinculadas ao rendimento, observando-se que o fraco rendimento acadêmico é relevante na decisão de abandono do estudante (Casanova et al., 2019; Ferrão & Almeida, 2021; Stinebrickner & Stinebrickner, 2014). Baixas classificações e número menor de unidades curriculares finalizadas fazem o estudante ponderar os custos e benefícios da sua permanência acadêmica. Um pior rendimento acadêmico e a percepção de não estar progredindo como os demais colegas da turma impactam a motivação e satisfação dos estudantes, influenciam as metas e a decisão de permanecer ou evadir (Stinebrickner & Stinebrickner, 2014).
Corroboram com tais considerações a recente revisão sistemática da literatura sobre a influência do nível socioeconômico no desempenho acadêmico, realizada por Rodríguez-Hernández et al. (2020), cujos resultados enfatizam que o peso das experiências vividas no ES sobre o sucesso acadêmico é maior do que a influência do nível socioeconômico. A vivência de situações de fracasso no início do curso impacta as metas dos estudantes, os seus interesses e os distanciam do projeto inicial de graduar-se, diminuindo o seu compromisso e o engajamento com o curso, podendo resultar na evasão (Paniago et al., 2017).
Os resultados deste estudo alinham-se às investigações que mostram que um conjunto alargado de variáveis pessoais e institucionais influencia a permanência e, consequentemente, o projeto de carreira dos estudantes (Almeida et al., 2016; Casanova et al., 2018; Tinto, 2012). O efeito de tais variáveis é direto ou mediado pela participação dos estudantes nos ambientes acadêmico e sociais da universidade, pelos compromissos e disposições pessoais para agir com vistas a atingir as metas pessoais e as vinculadas à instituição (Tinto, 2012; Tinto, 2017).
Dos limites da presente investigação destaca-se o olhar para instituições públicas paulistas, sendo que novas pesquisas deveriam incorporar, também, os dados das instituições privadas, que também são responsáveis pela formação de professores, além de ampliar a amostra para estudantes matriculados em outros Estados do Brasil. O uso exclusivo de dados documentais é outro limite do estudo visto impossibilitar a inclusão de variáveis psicossociais dos estudantes que poderiam auxiliar na explicação do abandono, em particular entendendo a evasão como um processo de desvinculação do aluno com o seu curso/instituição.
Diante da presença da evasão no ES nacional, novos trabalhos deveriam, ainda, investigar as contribuições das notas de acesso à educação superior na permanência e no desempenho acadêmico dos alunos de licenciatura, considerando a escassez de estudos focados na diversidade de populações que ingressam no ensino superior brasileiro (Fernández-Mellizo & Constante-Amores, 2020). Como já pontuado no estudo de Rangel et al. (2019), permanecem indagações sobre o destino acadêmico dos estudantes evadidos e sugere-se a realização de estudos de seguimento a fim de compreender se a desvinculação foi uma evasão do sistema de ensino ou uma mobilidade acadêmica, se traduziu ou não numa entrada no mercado de trabalho em resposta a necessidades ou a novos projetos de carreira destes jovens-adultos, que decidem pelo abandono da formação para a docência. Finalmente, a evasão das carreiras de licenciatura pode alertar-nos para a qualidade dos projetos de carreira e para a motivação dos jovens pelo magistério, sendo estes aspetos, a par da formação assegurada, decisivos para a efetiva democratização e equidade da educação básica.