Introdução
Ao descobrir que se tornará mãe pela primeira vez, a mulher que trabalha passa a vivenciar mudanças na sua relação com o trabalho. A experiência da gestação ocasiona inúmeras adaptações na vida da mulher que a levam a perceber o trabalho como algo concorrente (Alstveit et al., 2011; Bailey, 2000). O preconceito no mundo do trabalho em relação à mãe trabalhadora persiste e se alimenta de crenças de que a maternidade repercute, por exemplo, no aumento do absenteísmo pela necessidade de cuidar dos filhos (Godoy et al., 2011).
Outra crença vigente no meio empresarial é a de que contratar uma mulher grávida aumenta as despesas organizacionais pelos custos indiretos, como licença-maternidade remunerada (Manente & Rodrigues, 2016; Rodrigues & Sapucaia, 2016), pausa para amamentação, auxílio-creche e estabilidade à gestante no emprego, todos previstos na legislação brasileira (Madalozzo & Blofield, 2017; Nascimento & Villas Bôas, 2016; Silva, 2016). No entanto, embora as leis regulem os direitos da mãe trabalhadora, na prática se mostram pouco efetivas para garantir o equilíbrio entre maternidade e trabalho ao longo de todas as etapas da criação dos filhos (Nascimento & Villas Bôas, 2016).
A trabalhadora grávida, muitas vezes, enfrenta dificuldades em suas atividades laborais desde o início. Relatos apontam a não aceitação de atestado médico pré-natal, recusa em fornecer uniforme adequado aos estágios da gravidez, desvio de função, rebaixamento de cargo, exigência de desempenho em atividade incompatível com a gestação e descaso para com os sintomas próprios da gravidez, como exaustão, fadiga, dores, náuseas e vômitos (Baima et al., 2016). Sentir-se discriminada por estar grávida pode contribuir para a decisão de a mulher abandonar ou se afastar do trabalho (Millward, 2006), prejudicando sua ascensão profissional (Cech & Blair-Loy, 2019) e o orçamento familiar em um momento em que as despesas familiares aumentam (Madalozzo & Blofield, 2017; Shimabuku & Orsiolli, 2019).
Na licença-maternidade, a mulher inicia uma nova etapa de sua vida, a do relacionamento com a criança, colocando em segundo plano as interações com os amigos e o trabalho (Alstveit et al., 2010). Ao retornar da licença-maternidade, a trabalhadora enfrenta o desafio de conciliar as demandas de família e do trabalho (Feddersen et al., 2018). Evidências empíricas apontam que priorizar uma esfera da vida em detrimento de outra pode desencadear sofrimento emocional (Borelli et al., 2017; Costa, 2018; Kulik & Liberman, 2013), levando a prejuízos na saúde e na qualidade de vida da mãe trabalhadora (Carvalho et al., 2018; Khandelwal & Sehgal, 2018). A natureza bidirecional da relação trabalho-família é discutida por duas perspectivas teóricas que fundamentam este estudo.
A primeira é a de Greenhaus e Beutell (1985), cujo modelo aponta incompatibilidade entre as exigências das esferas familiar e do trabalho. Para esses autores, há uma interferência recíproca entre ambas as demandas, ocasionando três tipos de conflito: tempo, tensão e comportamento. O conflito de tempo se dá quando as horas dedicadas a um papel impedem a dedicação ao outro (e.g., uma mãe que trabalha por turnos e não consegue apoiar o filho nas atividades escolares). O conflito de tensão ocorre quando o exercício de um papel dificulta o desempenho do outro (e.g., um dia de trabalho intenso pode levar a mãe a ficar impaciente com o filho). Por último, o conflito de comportamento acontece quando há antagonismo entre as condutas exigidas para os dois papéis (e.g., no trabalho, espera-se da mulher maior competência na comunicação oral, enquanto na família, espera-se que seja, sobretudo, uma ouvinte ativa).
Em contraposição a essa concepção tradicional de relação de conflito, surgiu a perspectiva da interface positiva entre trabalho e família (Aguiar & Bastos, 2018), que assume que as experiências vividas em cada uma dessas esferas geram benefícios diretos e significativos mútuos. Para representar o aspecto positivo das relações entre trabalho e família, a literatura adota algumas nomenclaturas como: (i) enriquecimento, em que as experiências e recursos gerados em um domínio se tornam responsáveis por melhorar o desempenho e/ ou o estado afetivo em outro domínio, (ii) a facilitação, em que a participação em um papel é melhorada/facilitada em virtude da participação em outro papel, (iii) a valorização, em que os recursos e as experiências em um papel mostram-se benéficos para os indivíduos no desempenho do outro papel, e (iv) o extravasamento, em que as experiências em um domínio transferidas para outro domínio aproximando as experiências entre eles. A produção científica existente sobre a interface positiva trabalho-família é reduzida quando comparada com o corpo de conhecimento sobre o conflito trabalho-família (Chambel & Santos, 2009), sendo praticamente inexistente quando se trata da mãe trabalhadora.
Na perspectiva de conflito trabalho-família, as inúmeras demandas do trabalho se tornam mais difíceis para a mulher que se torna mãe, tornando o equilíbrio entre essas duas esferas um grande desafio. Apresentam-se como demandas conflitantes do âmbito de trabalho: cumprir carga horária extra, aumentar o grau de envolvimento no trabalho (Hwang & Ramadoss, 2017), viajar a trabalho (Swenson & Zvonkovic, 2016), participar de reuniões profissionais fora do horário de expediente (Vanalli & Barham, 2008), lidar com as exigências emocionais do trabalho, apresentar alto nível de desempenho profissional e manter a pontualidade e assiduidade. No espaço familiar, as mães enfrentam outras demandas tais como realizar atividades domésticas, administrar a rotina familiar, cuidar do filho e do marido, ter momentos de convivência familiar (Vilela & Lourenço, 2018).
A mãe trabalhadora precisa atender tanto às exigências do trabalho, para aperfeiçoamento constante, quanto as provenientes da família, que consomem tempo e dedicação (Kulik & Liberman, 2013; Rocha-Coutinho & Coutinho, 2011). Uma forma de lidar com o aumento dessas demandas e dar maior equilíbrio às duas esferas é buscar suporte social (Alstveit et al., 2011; Martins et al., 2015). O suporte social para a mãe trabalhadora compreende as redes de apoio, abrangendo o cônjuge (Manente & Rodrigues, 2016; Shimabuku & Orsiolli, 2019), a família extensa, como avós e tios (Treister-Goltzman & Peleg, 2016; Vanalli & Barham, 2008), instituições educacionais, como creches e escolas e serviços de terceiros, como babás e empregadas domésticas (Piccinini et al., 2016).
O suporte social envolve, também, o apoio das empresas empregadoras por meio da flexibilização do tempo e do local de trabalho (Khandelwal & Sehgal, 2018; Treister-Goltzman & Peleg, 2016) e do desenvolvimento de um ambiente de trabalho acolhedor (Hennekam, 2016; Silva, 2016). A esfera governamental também oferece suporte social ao garantir políticas públicas de proteção materno-infantil (Vanalli & Barham, 2008) e direitos para as mães trabalhadoras (Rodrigues & Sapucaia, 2016; Silva, 2016).
Evidências empíricas apontam que o suporte social facilita a conciliação de demandas do trabalho e da família (Khandelwal & Sehgal, 2018; Treister-Goltzman & Peleg, 2016), contribuindo positivamente para a satisfação da mãe no trabalho (Fontoura & Moreira, 2019). A presença de suporte social também auxilia na adaptação ao trabalho quando do retorno da mãe às atividades laborais após o nascimento do primeiro filho (Martins et al., 2015).
Mesmo contando com uma vasta rede de suporte social, especialmente quando se trata do primeiro filho, as mães trabalhadoras vivenciam sentimentos (Martins et al., 2015) associados à crença de “maternidade intensiva” (Akyol & Arslan, 2020; Martins et al., 2019), que apregoa que uma boa mãe é a que se dedica totalmente à criança, investe tempo e dinheiro e prioriza a maternidade em relação às outras dimensões da vida (Akyol & Arslan, 2020). Esse ideal de maternidade pode levar a mulher a vivenciar emoções negativas, como o medo de distanciar-se das rotinas do bebê, a desconfiança em relação à competência do cuidador substituto ou ainda o ciúme na relação desse cuidador com o bebê (Martins et al., 2019).
A ansiedade igualmente se faz presente diante de situações específicas, como doença e férias do cuidador ou horário de funcionamento da escola ou creche (Rocha-Coutinho & Coutinho, 2011). Outras emoções comuns às mães são a culpa, por não cumprir as responsabilidades de cuidado e atenção devida para com a família (Rocha-Coutinho & Coutinho, 2011), a preocupação para com o bem-estar da criança quando se encontra distante (Andrade et al., 2018).
Considerando a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre a relação entre maternidade e trabalho, foi proposto o presente estudo com o seguinte objetivo: analisar as possíveis mudanças na relação entre maternidade e trabalho, tendo em conta as expectativas profissionais, os afetos, os conflitos trabalho-família e as interfaces positivas trabalho-família de mulheres primíparas em três momentos distintos: na gravidez, na licença-maternidade e no retorno ao trabalho.
As variáveis incluídas no estudo foram as seguintes: i) expectativas profissionais, relacionadas ao que deseja e espera para o futuro profissional; ii) as situações no trabalho de valor afetivo, condizentes com as experiências no trabalho que guiam sentimentos e emoções. iii) conflitos trabalho-família, referente às demandas do trabalho que geram interferência negativa na família e vice-versa; iv) interfaces positivas trabalho-família, que consideram os aspectos positivos experienciados no trabalho que geram benefícios para a família e vice-versa.
Acredita-se que este estudo possa contribuir para a compreensão da relação maternidade e trabalho em mães primíparas sob vários aspectos. Primeiro, a relevância teórica decorre da lacuna científica sobre a compreensão da relação entre maternidade e trabalho da mulher que se torna mãe pela primeira vez, considerando conjuntamente as expectativas profissionais, as situações no trabalho de valor afetivo, os conflitos trabalho-família e as interfaces positivas trabalho-família. Há, também, relevância metodológica, dada a escassez de metodologias longitudinais que abranjam outros períodos (e.g., a gravidez, a licença-maternidade) sobre a relação entre maternidade e trabalho.
Este estudo também é relevante para subsidiar gestores e empregadores na construção de um ambiente profissional mais acolhedor e de práticas de gestão com foco no suporte à mulher mãe e trabalhadora. Em relação às políticas públicas, o estudo pode colaborar para o desenvolvimento de políticas materno-infantis que viabilizem a permanência da mãe no mercado de trabalho, facilitando a conciliação entre maternidade e trabalho. Finalmente, o conhecimento produzido pode embasar as práticas profissionais daqueles que atuam na assistência às mães trabalhadoras em seu processo de adaptação a sua nova condição de ser mãe e trabalhadora.
Método
Estudo qualitativo e de desenho longitudinal (Abbad & Carlotto, 2016; Minayo, 2017) para avaliar as mudanças nas expectativas profissionais, nas situações no trabalho de valor afetivo e nos conflitos e interfaces positivas trabalho-família de mulheres trabalhadoras de mães primíparas em três momentos distintos.
Participantes
Participaram 12 mulheres trabalhadoras e primíparas, residentes em Salvador (Bahia) entrevistadas na gravidez (n=12), na licença-maternidade (n=12) e no retorno ao trabalho (n=11). Uma das entrevistadas não retornou ao trabalho para cuidar do filho doente.
A amostra foi homogênea e não aleatória. O tamanho da amostra não foi definido previamente, haja vista as especificidades do grupo-alvo da pesquisa. Sendo um estudo qualitativo e de caráter exploratório, considerou-se que as 12 voluntárias que atendiam aos critérios de inclusão (estar trabalhando, estar grávida pela primeira vez, pretender retornar ao trabalho após a licença-maternidade, e aceitar ser entrevistada nos três momentos do estudo) permitiriam cumprir os objetivos da pesquisa respeitando o desenho metodológico escolhido (Minayo, 2017). O único critério de exclusão foi ser menor de 18 anos. As participantes foram recrutadas em cursos gratuitos para gestantes fornecidos por três maternidades particulares de Salvador (Bahia).
A idade das participantes variou entre 27 e 41 anos. Seis mulheres declararam-se negras, cinco pardas e uma branca. A maioria era casada ou em união estável, sendo que duas delas eram solteiras. Todas possuíam ensino superior completo e profissões distintas: corretora de imóveis, gestora de recursos humanos, assistente social, engenheira química, consultora de negócios, agente comunitária de saúde, contadora, técnica de enfermagem, secretária, diretora escolar e enfermeira (2 participantes). O tempo de serviço no atual trabalho variou entre 4 e 15 anos, enquanto a jornada de trabalho semanal compreendeu entre 20 e 50 horas. A maioria delas (n=8) havia planejado a gravidez.
Instrumentos
Para a coleta de dados foram utilizados três roteiros de entrevista semiestruturada, um para cada momento. A cada entrevista com a participante, considerou-se o relato anterior para subsidiar novas perguntas. No primeiro roteiro havia uma ficha de registro com perguntas para a caracterização das participantes. As perguntas dos três roteiros abordaram situações no trabalho de valor afetivo; expectativas profissionais; conflitos trabalho-família; e interfaces positivas trabalho-família.
Procedimentos de coleta de dados
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (CAAE: 04079018000005577). Realizou-se um estudo-piloto para aprimorar o roteiro de entrevista e os procedimentos de coleta com onze mulheres durante a gravidez, selecionadas pela técnica da bola de neve (Bailer et al., 2011). Posteriormente, apresentou-se a pesquisa em quatro maternidades de Salvador (Bahia) que ministram cursos para gestantes, sendo que três aceitaram divulgar a pesquisa às partícipes do curso. A divulgação foi presencial e durou dois meses. Ao final da apresentação, entregava-se à gestante o convite de participação e uma ficha sociodemográfica que incluía seu contato pessoal.
A técnica de amostragem foi não aleatória, considerando a disponibilidade em participar das gestantes. Após a confirmação do aceite, agendou-se dia, horário e local da coleta de dados nos três momentos. No total realizaram-se 35 entrevistas, três para cada participante, excetuando-se apenas uma participante que foi entrevistada somente em dois momentos, pois não retornou ao trabalho.
No primeiro momento, a pesquisadora fez os esclarecimentos éticos necessários a respeito da pesquisa e obteve a assinatura das participantes do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram realizadas pela primeira autora e gravadas com o consentimento das participantes nos seguintes períodos: março e abril de 2019 (primeiro momento); outubro e novembro de 2019 (segundo momento) e abril a junho de 2020 (terceiro momento). Cada entrevista durou entre 22 e 53 minutos, com uma média de 37 minutos. As entrevistas do primeiro e do segundo momento foram presenciais. No terceiro momento, em função da pandemia da COVID-19, as entrevistas foram realizadas por videochamada por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp ®.
Procedimentos de análise de dados
As entrevistas realizadas nos três momentos de coleta foram inteiramente transcritas. Os três corpora (plural de corpus textual, ou conjuntos de textos considerados na análise) derivados das transcrições foram analisados com apoio do software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) (Ratinaud, 2014). Esse software foi escolhido por oferecer uma análise de dados qualitativos com base na estatística textual, ou lexicometria, sendo, assim, ade quado ao objetivo deste estudo (Sousa et al., 2020).
Objetivando comparar as três fases para analisar a prevalência de discursos, os três corpora foram integrados em um corpus único, criando-se a variável fase (gravidez, licença-maternidade e retorno ao trabalho). O material foi submetido a duas análises: i) análise lexical fundamentada na Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que agrupa os segmentos de texto de um corpus em classes lexicais com base na co-ocorrência de formas linguísticas nos enunciados do texto; ii) Análise Fatorial por Correspondência (AFC), que indica o grau de aproximação e distanciamento entre as classes e seus conteúdos característicos (Sousa et al., 2020).
A análise baseou-se nos perfis lexicais de cada classe, no conteúdo dos seus segmentos de texto característicos e nos resultados de testes de qui-quadrado para verificar possíveis associações entre variáveis categóricas e classes (Souza et al., 2018). A força associativa é verificada quando o resultado do teste atender ao ponto de corte (χ² ≥ 3,84; p < ,05). O menor valor do qui-quadrado representa uma relação mais fraca entre as variáveis. O qui-quadrado é um teste estatístico que permite avaliar tendências na distribuição de formas lexicais e variáveis categóricas nas classes lexicais resultantes da CHD. Quando são identificadas diferenças significativas entre a frequência esperada e a frequência observada de uma variável em determinada classe, fala-se em sobrerrepresentação ou em sub-representação estatística (Sousa, 2021). A sobrerrepresentação indica que a forma lexical ou variável de contexto ocorreu na classe com frequência significativamente maior do que o esperado, enquanto a sub-represesentação é interpretada no sentido inverso, indicando que a característica ocorreu menos do que o esperado.
Resultados e discussão
Apresentamos, inicialmente, os resultados descritivos das classes lexicais. Em seguida, a comparação dos resultados entre os três momentos de coleta de dados.
Análise descritiva dos eixos e das classes lexicais e de suas relações
A CHD indicou que, do total de 2.430 segmentos de texto do corpus, 87,41% (2.124 segmentos) agruparam-se em quatro classes lexicais. O material analisado reuniu os três momentos de coleta de dados e foi organizado em dois eixos lexicais. A Figura 1 ilustra o dendrograma representativo dos eixos, das classes (cl.) e suas palavras mais características, tomando como parâmetro os valores do qui-quadrado e sua significância.

Fonte: Elaborada pelos autores com base nos resultados do IRaMuTeQ.
Figura 1. Dendrograma com as classes lexicais resultantes da CHD e seus principais conteúdos
Denominou-se o primeiro eixo “relação positiva entre maternidade e trabalho” pela identificação de segmentos textuais que traziam reflexões e comentários favoráveis sobre as relações entre essas duas esferas de vida. Este eixo uniu duas classes: “Interfaces positivas trabalho-família” (cl.3), agrupando segmentos de texto que ressaltaram os aspectos positivos das experiências vividas no trabalho ou na família e que geraram benefícios mútuos, e “Expectativas profissionais” (cl.4), agrupando os segmentos de texto referentes ao que a mulher deseja e espera para seu futuro profissional.
Por sua vez, o segundo eixo denominou-se “Relação negativa entre maternidade e trabalho”, considerando que os segmentos textuais contemplavam reflexões e comentários desfavoráveis sobre as relações entre essas duas esferas. Esse eixo uniu duas classes: “Conflitos trabalho-família” (cl.2), agrupando segmentos de texto que destacaram as interferências negativas que as demandas de uma esfera (trabalho ou família) provocam na outra, e “Situações no trabalho de valor afetivo” (cl.1), agregando segmentos de texto que trouxeram referências sobre as impressões subjetivas manifestas diante de uma situação no trabalho que teve um valor afetivo. A cl.3 é a que teve maior representação (30,6%) no corpus, seguida da cl.2, com 29,9%, da cl.4, com 26,6%, e, finalmente, da cl.1, com 12,9%. A Figura 2 apresenta os resultados da AFC.

Fonte: Elaborada pelo software IRaMuTeQ com base nos resultados da pesquisa.
Figura 2. Representação dos resultados da Análise Fatorial por Correspondência (AFC)
De acordo com a AFC (Figura 2), a cl.2, “Conflitos trabalho-família”, ficou próxima da cl.3, “Interfaces positivas trabalho-família”, por ilustrar os relacionamentos interpessoais, que se referem à relação da mãe trabalhadora com o parceiro de interação. Pela AFC, identificou-se também que a cl.1, “Situações no trabalho de valor afetivo”, aproximou-se da cl.4, “Expectativas profissionais”, pois ambas abarcaram as relações intrapessoais, que se referem à relação da mãe trabalhadora consigo mesma.
Comparação das classes lexicais nos três momentos
O estudo também buscou confrontar as características lexicais dos conteúdos produzidos nos três momentos da coleta dos dados (gravidez, licença-maternidade e retorno ao trabalho). A Figura 3 destaca a evolução de cada uma das classes lexicais que apareceram ao longo do tempo.

Fonte: Elaborada pelos autores.
*p <0,05
**p <0 ,01
Figura 3. Reprentação dos resultados de testes associação entre os conteúdos das classes e os momentos da participante (i.e., gravidez, licença-maternidade e retorno ao trabalho)
Ao analisar possíveis mudanças nas características lexicais do discurso das participantes ao longo do tempo, evidenciou-se, por meio de testes qui-quadrado, associações entre o conteúdo das classes e o momento da pesquisa. Resultados significativos são interpretados como indicadores de sub-representações e sobrerrepresentações dessas características. No presente contexto, a sobrerrepresentação é confirmada quando, nos enunciados produzidos em um dos momentos, a ocorrência do vocabulário característico de uma classe lexical é significativamente superior ao esperado, caso a sua representatividade estatística não variasse em função da fase de vida das entrevistadas. Por sua vez, a sub-representação é caracterizada quando a ocorrência do vocabulário de uma classe é significativamente inferior ao esperado. Os resultados sugerem que os três momentos se relacionam com maior ou menor focalização sobre determinados temas em cada etapa da experiência de ser uma mulher trabalhadora e mãe primípara.
Os segmentos de texto apresentados a seguir (e.g., seg.1, seg.2 etc.) exemplificam os principais temas de cada classe e foram escolhidos dentre aqueles que apresentaram os maiores valores de qui-quadrado total, de acordo com a soma dos indicadores de associação entre as formas linguísticas do enunciado e a classe correspondente. Algumas das palavras mais características de cada classe, contidas no dendrograma apresentado na Figura 1, são destacadas em itálico nos segmentos de texto a seguir.
Na cl.4 (expectativas profissionais), os segmentos de texto produzidos no período da gravidez ficaram sobrerrepresentados (χ2 = 14**), enquanto, no momento do retorno ao trabalho, ficaram sub-representados (χ2= -12,9**). Em resumo, as mulheres relataram mais sobre as expectativas profissionais durante a gravidez do que o esperado, ao passo que o futuro profissional se mostrou menos presente no discurso quando retornaram ao trabalho.
Na gravidez, foi relatado o desejo da mulher de adiar e reorganizar os planos de ascensão e aprimoramento profissional pela chegada da maternidade: “agora é pensar em como é que eu vou organizar, reorganizar os meus planos profissionais com esse filho na minha vida, né? Voltar aos estudos?… Eu tinha a pretensão de tentar o mestrado esse ano” (cl.4, seg. 4).
No retorno ao trabalho, o desejo de se sentir realizada profissionalmente aparece e, para isso, a mulher busca o equilíbrio entre os papéis profissional e maternal: “eu sou uma pessoa, eu sou uma mulher que tem uma vida profissional e que eu tento a todo momento equilibrar essa balança, eu desejo me sentir realizada, completa, talvez, me sinto realizada no trabalho” (cl.4, seg. 6).
De forma análoga à cl.4 (expectativas profissionais), a cl.1 (situações no trabalho de valor afetivo) apresentou uma sobrerrepresentação de segmentos de texto produzidos no momento da gravidez (χ2 = 4,2**) e uma sub-representação no momento de retorno ao trabalho (χ2 = -7,3**). Ou seja, os discursos sobre as situações de valor afetivo foram mais ou menos presentes, respectivamente, na gravidez e no retorno ao trabalho, do que o esperado.
Na gravidez, houve relato de sentir-se mais pressionada a não ter falhas no seu desempenho, para demonstrar que a condição de gestante não prejudicava o trabalho. Outra narrativa aludiu a sentir medo de ser demitida ou de perder uma função ou cargo por ter que delegar suas responsabilidades profissionais a um substituto durante a licença-maternidade. Outro sentimento manifestado foi o de se sentir ignorada no local de trabalho, principalmente pela incompreensão da chefia sobre suas necessidades de adaptação: “é um medo de você não se enquadrar mais naqueles projetos que a empresa está fazendo, porque daqui a cinco meses você não vai estar, você vai estar de licença, então você sofre uma pressão, tem que trabalhar muito mais agora para você desempenhar o seu trabalho e deixar o seu mérito ali” (cl.1, seg. 13).
Na cl.1, mesmo com uma sub-representação no momento de retorno ao trabalho, ainda existiam relatos sobre as situações no trabalho de valor afetivo. As entrevistadas relataram a preocupação de se adaptarem às mudanças ocorridas no ambiente de trabalho durante o período em que estiveram afastadas: “foi aquela preocupação de estar me ambientando novamente ao que tinha acontecido, porque eu fiquei afastada seis meses, o período da licença e mais um mês de férias, e eu cheguei até no final do ano” (cl.1, seg. 17).
Em resumo, esses achados apontaram que as expectativas profissionais (cl.4) e as situações no trabalho de valor afetivo (cl.1) mudaram ao longo do tempo, estando mais presentes nos discursos das mulheres durante a gravidez. Isso sugere que a mulher trabalhadora primípara, no momento da gravidez, volta-se para seus próprios sentimentos e expectativas (perspectiva intrapessoal), procurando repensar o lugar do trabalho na sua hierarquia de valores.
As expectativas profissionais das trabalhadoras grávidas não parecem ter sido estudadas por muitos pesquisadores. Os resultados desta pesquisa corroboram o estudo de Alstveit et al. (2010), que retratam o quanto a mulher trabalhadora grávida organiza o trabalho a fim de se preparar para a licença-maternidade e tornar o trabalho mais fácil para o colega que a substituirá.
Sobre as situações no trabalho de valor afetivo, os resultados estão alinhados aos de Treister-Goltzman e Peleg (2016), que constataram que a condição de grávida traz à mulher trabalhadora o receio de impactos negativos no seu futuro profissional. Ainda segundo Godoy et al. (2011), o empregador, muitas vezes, ignora as necessidades da trabalhadora gestante, não lhe oferecendo suporte adequado. Isso pode acarretar à mulher a sensação de ser menos valorizada como profissional (Alstveit et al., 2010) e de estar sendo discriminada no trabalho (Baima et al., 2016).
A cl.2 (conflitos trabalho-família) apresentou uma sub-representação de segmentos de texto no momento da gravidez (χ2 = -19,2**) e uma sobrerrepresentação no retorno ao trabalho (χ2 = 15,1**). Isso indicou que, durante a gravidez, as mulheres falaram menos sobre os conflitos trabalho-família. É no retorno ao trabalho que esses conflitos se mostraram presentes em suas falas além do esperado. Isto pode significar que, com o advento da maternidade, somam-se às exigências dos papéis conjugais e profissionais anteriormente existentes, as demandas parentais, intensificando os conflitos vivenciados pela mãe trabalhadora.
A despeito da cl.2 ser sobrerepresentada na gravidez, houve relatos sobre a dificuldade de atender certos tipos de demandas do trabalho na condição de gestante, o que demandava mudanças nas suas atribuições profissionais e, consequentemente, um esforço adaptativo às novas funções. Além disso, observaram-se narrativas de que as demandas do trabalho interferiam na família, como a sobrecarga das atividades profissionais que gerou, no ambiente familiar, diminuição do tempo de convivência, cansaço e exaustão: “vai ter uma licitação e eu recebi um e-mail para responder a essa licitação. Eu faço isso em outro horário, entendeu? Aí eu levo trabalho para casa, o que me deixa exausta” (cl.2, seg. 7).
No retorno ao trabalho, observaram-se relatos de que as demandas familiares, como o tempo dedicado à amamentação e as orientações ao cuidador do filho, interferiam na pontualidade: “e assim, eu sempre tive o cuidado, deixei bem claro lá. Eu estou errada em chegar atrasada, mas em momento algum eu deixo de cumprir minha carga horária e, se eu chego atrasada, eu saio depois” (cl.2, seg. 10). Também foi afirmado que o desejo de ter mais tempo para a criança acabou levando ao gerenciamento da carga horária do trabalho, à falta de vontade de realizar hora extra e a pouca proatividade: “olha, eu tenho horário, eu preciso chegar em casa em tal horário, então, tipo, eu meio que cortei isso de hora extra, entendeu? Eu ainda faço, mas não com a intensidade, como antes, que eu ficava despreocupada lá fazendo até terminar a hora” (cl.2, seg. 11). Também a exigência de deixar o filho com alguém e em algum lugar para ir trabalhar evocou sofrimento emocional: “no primeiro mês, o mês de dezembro foi o pior mês da minha vida. Foi muito difícil deixar meu filho, sair e ele ficar com a babá na casa da minha sogra. Mas, assim, sabia que ele estava sendo bem cuidado, mas para mim foi muito difícil” (cl.2, seg. 12).
Em resumo, esses resultados apontaram diferenças ao longo do tempo em relação aos conflitos trabalho-família, mostrando-se mais presentes nas falas das mulheres no momento do retorno ao trabalho, quando elas seguem com suas responsabilidades maternas e voltam a assumir responsabilidades profissionais das quais ficaram distantes no período da licença-maternidade e que não se mostravam concorrentes na gravidez. É nesse período que fica nítida para a mulher a influência mútua das demandas do trabalho e da família e que a prioridade de uma dessas esferas pode entrar em conflito com a outra.
Observou-se, também, que é preciso um ambiente profissional favorável para permitir que a mulher volte da licença de forma a equilibrar as demandas da família e do trabalho. É possível inferir que, nesse período, a existência de poucos relatos sobre as expectativas profissionais e as situações no trabalho de valor afetivo das entrevistadas deve-se à trabalhadora estar mobilizada para equilibrar as demandas das esferas trabalho e família, como a busca de uma rede de suporte social para atender às demandas familiares, especialmente a de cuidar do bebê, como apontam alguns estudos (e.g., Piccinini et al., 2016; Rocha-Coutinho & Coutinho, 2011).
Os achados desta pesquisa também são consistentes como os de Alstveit et al., (2010), ao retratarem que a dificuldade de a mãe trabalhadora lidar com as demandas do trabalho pode dar origem a uma sensação de fracasso profissional. Evidências na literatura sugerem que a incapacidade de gerenciar o equilíbrio trabalho-família tem efeito negativo na saúde e na qualidade de vida tanto da mãe trabalhadora quanto do seu filho (Borelli et al., 2017; Carvalho et al., 2018; Costa, 2018; Kulik & Liberman, 2013).
Outros estudos concluíram que as demandas profissionais se tornam ainda mais difíceis com a maternidade (Hwang & Ramadoss, 2017; Swenson & Zvonkovic, 2016), com efeitos na qualidade do processo de reintegração da mulher ao ambiente de trabalho (Millward, 2006). A separação do bebê faz com que a mulher experimente incertezas e sentimentos sobre a qualidade de sua maternidade no atendimento às necessidades da criança, tornando ainda mais evidente a necessidade de suporte social na família e no ambiente de trabalho (Alstveit et al., 2011).
No momento da licença-maternidade, não foram encontradas sobrerrepresentação ou sub-representação dos enunciados das participantes em qualquer uma das classes: cl.4 (χ2 = 0,0 ns), cl.3 (χ2 = -0,8 ns), cl.1 (χ2 = 0,6 ns), cl.2 (χ2 = 0,1 ns). Na licença-maternidade, a mulher experimenta o afastamento remunerado do ambiente de trabalho e tem a oportunidade de cuidar do filho em tempo integral. A estada no ambiente familiar e a imersão no cuidado do bebê distanciam trabalhadora das situações no trabalho de valor afetivo, das projeções para o futuro profissional e das tensões e interfaces positivas presentes nas relações trabalho-família.
No que tange especificamente à cl.3 (interfaces positivas trabalho-família), não foram encontrados indícios de sobre ou sub-representação nos três momentos: gravidez (χ2 = -0,5 ns), licença-maternidade (χ2 = -0,8 ns) e retorno ao trabalho (χ2 = 0,8 ns). Isso pode sugerir que o discurso da mulher sobre os aspectos positivos das experiências vividas no trabalho e na família, geradores de benefícios mútuos, mantém-se estável nos três momentos. O que se destacou foi o compartilhamento das experiências sobre a maternidade com outras mães trabalhadoras, aumentando a segurança no exercício do papel de mãe. Essas trocas também promovem o aproveitamento do aprendizado da mulher na maternidade para melhorar o seu desempenho profissional.
Considerações finais
Ao analisar as possíveis mudanças na relação entre maternidade e trabalho de mulheres primíparas, considerando os aspectos relacionados às expectativas profissionais, às situações no trabalho de valor afetivo, aos conflitos trabalho-família e às interfaces positivas trabalho-família em três momentos distintos (a gravidez, a licença-maternidade e o retorno ao trabalho), este estudo apresenta cinco conclusões:
i) Considerando-se os períodos da gravidez, da licença-maternidade e do retorno ao trabalho, duas perspectivas caracterizaram as relações entre maternidade e trabalho das mulheres primíparas: “relações positivas” e “relações negativas”. As relações positivas foram representadas pelas expectativas profissionais e pelas interfaces positivas trabalho-família. As relações negativas envolveram as situações no trabalho de valor afetivo e os conflitos trabalho-família. As expectativas profissionais e as situações no trabalho de valor afetivo se aproximam por pertencerem ao âmbito de relacionamento intrapessoal. Analogamente, as interfaces positivas trabalho-família e os conflitos trabalho-família convergiram, pois pertencem ao domínio interpessoal.
ii) As expectativas profissionais e as situações no trabalho de valor afetivo pelas mulheres primíparas mudaram ao longo do tempo, estando mais presentes nos discursos das mulheres durante a gravidez, quando a mulher receia perder o trabalho por transferir suas atividades profissionais a um substituto. É neste período também que a mulher vivencia necessidades de ajustes no trabalho que, quando não acontecem da forma esperada, a fazem se sentir ignorada, principalmente pela chefia. Além disso, há um desejo de adiar e reorganizar os planos de ascensão e aprimoramento profissional por causa da chegada da maternidade na sua vida.
iii) Os conflitos trabalho-família vivenciados pelas mulheres primíparas também variaram ao longo do tempo, mostrando-se mais presentes nas falas das mulheres no momento do retorno ao trabalho, quando a mãe trabalhadora percebe que as demandas profissionais e familiares se influenciam. Por exemplo, o tempo dedicado à amamentação e as orientações ao cuidador do filho interferem na pontualidade. Além disso, a mulher se vê diante do desafio de encontrar caminhos para conciliar as duas esferas, o que parece depender, além de seu desejo pessoal, do suporte social que a empresa oferece e da rede social familiar.
iv) As interfaces positivas trabalho-família não se alteraram ao longo dos três períodos. Destacou-se nesse aspecto o compartilhamento das experiências sobre a maternidade com outras mães trabalhadoras – que reforça a confiança em sua própria maneira de ser mãe – e o aproveitamento do aprendizado da mulher na maternidade para melhorar o seu desempenho profissional.
v) No momento da licença-maternidade, a permanência no ambiente familiar e a imersão no cuidado do bebê distanciaram a mulher das situações no trabalho de valor afetivo, das projeções para o futuro profissional e das tensões e interfaces positivas presentes nas relações trabalho-família.
A primeira limitação desse estudo se relaciona à similaridade do nível de escolaridade das entrevistadas (nível superior), representando somente um segmento pequeno do gênero mulher trabalhadora e mãe. É importante frisar que a escolaridade frequentemente está associada ao padrão de renda, o que pode impactar, por exemplo, na qualidade do suporte social obtido (e.g., creche, cuidador profissional).
Por ser este estudo um recorte muito específico de uma realidade bem diversa vivenciada por mães trabalhadoras brasileiras, sugere-se que estudos futuros considerem: i) a inserção de marcadores sociais como raça e classe social; ii) variáveis de relevância no contexto profissional (mulheres gestoras, por exemplo) e familiar (como mulheres chefes de família, que têm orientação sexual homoafetiva, de baixo poder aquisitivo, que vivenciaram o processo de adoção do filho, dentre outras).
A segunda limitação refere-se ao uso de entrevista como único instrumento de coleta de dados. Visando aprofundar a compreensão de um fenômeno complexo e dos resultados ora apresentados, recomenda-se: i) aplicação de outros instrumentos de coleta (e.g., questionários e escalas); ii) adoção de múltiplas abordagens de natureza quantitativa (e.g., estudos de correlação e experimentais) e qualitativa (e.g., grupos focais); iii) utilização de outras técnicas de coleta e análise de dados (e.g., análise de conteúdo, análise do discurso).
Para concluir, destacamos que os resultados deste estudo, de modo mais amplo, geram insumos para políticas públicas voltadas para conciliar maternidade e trabalho. De modo mais específico, oferecem contribuições para a prática clínica de profissionais que atuam no cuidado às mulheres primíparas e as práticas de gestão de pessoas em organizações de trabalho.