Introdução
No Brasil, adolescentes que cometem atos infracionais cumprem medidas socioeducativas (MSE; Brasil, 1990). Um dos principais objetivos das MSEs é favorecer a construção de projetos de vida (PVs) que permitam a ruptura com o comportamento infrator. A construção de PVs em adolescentes é um processo complexo relacionado a diferentes dimensões pessoais e sociais (Dellazzana-Zanon & Freitas, 2015). Em adolescentes em MSE, esses processos adquirem complexidade ainda maior, considerando o contexto de vulnerabilidade ao qual são expostos (Lopes & Silva, 2021).
Medidas Socioeducativas
Compreende-se como MSEs as medidas aplicadas pela autoridade judicial a adolescentes autores de atos infracionais (Brasil, 1990). As MSEs são orientadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Brasil, 1990) e pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE; Brasil, 2006). Essas diretrizes legais são embasadas em uma visão de crianças e adolescentes como indivíduos em pleno desenvolvimento e que, portanto, devem ser protegidos por um sistema legal específico.
Segundo o ordenamento pedagógico do SINASE (Brasil, 2006), “as ações socioeducativas devem exercer uma influência sobre a vida do adolescente, contribuindo para a formação da identidade, de modo a favorecer a elaboração de um projeto de vida” (p. 52). Assim, o SINASE prevê o Plano Individual de Atendimento (PIA) como um conjunto de estratégias e ações a serem desenvolvidas segundo diretrizes fixadas por eixos de garantia de direitos fundamentais (educação, saúde, entre outros). O PIA deve ser elaborado com a participação dos adolescentes, o que envolve um diagnóstico polidimensional para a fundamentação das ações durante a MSE.
A despeito das orientações do SINASE, uma revisão sistemática investigou 30 pesquisas em unidades de internação e identificou que as MSEs parecem contribuir pouco para o desenvolvimento dos adolescentes (Coscioni et al., 2017). O trabalho revelou ainda que as pesquisas sobre o sistema socioeducativo descrevem de modo superficial os processos decorrentes do cumprimento da MSE. Assim, torna-se importante a investigação sobre a elaboração de PVs durante a MSE como meio de atestar se elas têm cumprido com o objetivo de possibilitar a ruptura com a conduta infracional.
Pesquisas brasileiras têm se dedicado ao estudo de PVs de adolescentes em MSE. Uma revisão sistemática analisou a produção brasileira sobre PVs na adolescência e identificou uma categoria exclusiva de trabalhos interessados na compreensão dos efeitos da MSE sobre os PVs dos adolescentes (Vieira & Dellazzana-Zanon, 2020). Essa categoria contemplava três artigos. De um lado, os resultados enfatizam a importância de investigar os PVs de adolescentes em MSE. Por um outro lado, os resultados indicam que os PVs de adolescentes em MSE devem ser investigados de forma específica em outros estudos de revisão. Isto é, estratégias de busca específicas podem ser utilizadas a fim de acessar outras pesquisas que tenham investigado os PVs de adolescentes em MSE.
Projetos de Vida
O termo PV é recorrentemente utilizado em pesquisas e intervenções com adolescentes em MSE. O termo é em geral mencionado de maneira vaga, como sinônimo de desfecho positivo para determinada intervenção. O uso indevido do termo pode se associar ao fato de o SINASE (Brasil, 2006) mencioná-lo como um dos principais objetivos das MSEs, sem trazer uma definição explícita. Por exemplo, em um relato de experiência de estágio (Rossato & Souza, 2014) os autores concluem: “a experiência, além de contribuir com o processo de formação profissional dos estagiários, mostrou-se como contexto rico para suscitar a reflexão, bem como contribuiu para a construção de novos projetos de vida” (p. 120). Ao longo do texto, o termo não havia sido discutido, tampouco foram apresentados resultados que indicassem construções de PVs. Na literatura internacional, o termo PV é menos utilizado, mas pesquisas utilizando termos relacionados (e.g., aspirações, expectativas) identificaram que ter clareza e esperança em relação ao futuro está associado com a extinção do comportamento infrator (Knight et al., 2017; Mahler et al., 2017).
Parte do uso indiscriminado do termo pode ser explicado pela própria ausência de consenso na literatura sobre o que é um PV. O termo é comumente utilizado sem nenhuma definição explícita, de modo a se subentender uma ideia pressuposta (Venturini & Piccinini, 2014). Uma revisão da literatura (Dellazzana-Zanon & Freitas, 2015) investigou a concepção de PVs adotada em 22 pesquisas publicadas em português e inglês, entre 2000 e 2012. Em 14 deles, a definição explícita de tal conceito era ausente.
No Brasil, o termo PV tem sido utilizado como a tradução de purpose, termo em inglês traduzido diretamente para o português como propósito (Araújo, 2009). Segundo Damon (2009), purpose é “uma intenção estável e generalizada de alcançar alguma coisa que é ao mesmo tempo significativa para o eu e gera consequências no mundo além do eu” (p. 53). Muito embora o uso dos termos PV e purpose como sinônimos possa ser questionável (Coscioni, 2021), o uso da abordagem teórica de Damon (2009) por autores brasileiros (e.g., Araújo et al., 2020; Dellazzana-Zanon et al., 2019) tem gerado importantes contribuições para a compreensão dos PVs de adolescentes.
Uma revisão da literatura investigou as abordagens teóricas sobre PVs (Coscioni et al., 2021) e identificou 15 abordagens oriundas da filosofia, ciências sociais, psicologia social, psicanálise, desenvolvimento humano e ciências aplicadas. Dentre as 15 abordagens, apenas quatro eram originárias no Brasil, de modo a articular contribuições nacionais e internacionais para o conceito de P V. Os resultados da revisão da literatura indicaram que as definições de PV diferem substancialmente conforme a abordagem. Assim, diferentes facetas de um PV ou mesmo diferentes construtos psicológicos são descritos com a mesma terminologia, o que leva o campo a conclusões divergentes.
Numa tentativa de integrar as diferentes abordagens teóricas sobre PVs, Coscioni (2021) definiu PV como “um processo em contínua evolução, constituído pela formação, execução e manutenção de estruturas e ações intencionais, que, em conjunto, formam uma narrativa significativa e prospectiva de longo prazo, capaz de incitar decisões e esforços na vida cotidiana” (p. 248). Tal definição integra os componentes do PV presentes na abordagem de Damon (2009), porém faz também menção a um componente ativo ausente na noção de purpose. O conceito de purpose refere-se a uma intenção, enquanto para Coscioni (2021) os PVs integram simultaneamente intenção e ação.
No Brasil, o termo PV é frequentemente adotado como sinônimo de aspirações, expectativas de futuro e perspectivas de futuro (Neiva-Silva, 2013). Aspirações se referem a metas para o futuro revestidas de importância (Mahler et al., 2017). As aspirações estão, portanto, no domínio intencional e cognitivo, isto é, são representações cognitivas de um conteúdo intencionado para o futuro. Não necessariamente se relacionam a planos de ação ou comportamentos efetivados a favor de metas (componente ativo).
O termo aspiração é frequentemente utilizado de modo incorreto como sinônimo de expectativa de futuro – que originalmente se refere à percepção de probabilidade de um evento ocorrer no futuro (Mahler et al. 2017). A expectativa é também uma representação cognitiva, mas de um conteúdo esperado – e não necessariamente desejado. Suponha-se um adolescente que deseje ser jogador de futebol, mas que considere as suas chances de sucesso nessa carreira muito baixas. Esse adolescente possui a aspiração de ser jogador de futebol, mas não tem a expectativa de se tornar um.
Quanto ao termo perspectiva de futuro, há uma polissemia associada a seu uso. O termo pode ser utilizado para se referir a um conjunto de representações cognitivas sobre o futuro, a um viés cognitivo associado ao futuro psicológico, a uma característica pessoal associada ao modo como as pessoas lidam com o futuro psicológico, a uma atitude frente ao futuro ou à percepção do tempo remanescente em vida (Coscioni et al., 2020).
Objetivo
Considerando que: (a) a construção de PVs é um objetivo fundamental durante a MSE; (b) o sistema socioeducativo tem se demonstrado inefetivo na promoção do desenvolvimento positivo; (c) pesquisas empíricas investigando os processos decorrentes das MSEs podem subsidiar ações profissionais; e (d) a literatura carece de estudos de revisão que integrem as pesquisas sobre os PVs de adolescentes em MSE; o objetivo deste estudo é identificar e sintetizar os principais resultados de pesquisas empíricas que caracterizaram os PVs de adolescentes em MSE no Brasil. Os objetivos específicos são: (a) identificar pesquisas empíricas que caracterizaram os PVs de adolescentes em MSE; (b) sintetizar os principais resultados desses estudos em relação à caracterização dos PVs dos seus participantes.
Método
Trata-se de uma revisão de escopo, um método de síntese do conhecimento cujo objetivo central é mapear a literatura de uma determinada área (Munn et al., 2018). A revisão de escopo integra estudos de diferentes perspectivas metodológicas, de modo a destacar conceitos, temas centrais e/ou características metodológicas relacionadas a um tópico ou área. Para a realização deste estudo, foi utilizado o protocolo PRISMA adaptado para revisões de escopo (PRISMA-ScR; Tricco et al., 2018). Dos 22 itens do PRISMA-ScR, quatro não foram reportados (itens 5, 12, 16 e 22). O item 5 alude ao registro do protocolo. Muito embora esta revisão não tenha sido registrada, ela foi conduzida com base em um protocolo avaliado por pares. Os itens 12 e 16 são relativos à avaliação da qualidade metodológica. Esses pontos são opcionais, sendo mais característicos de revisões sistemáticas. Por fim, o item 22 refere-se às fontes de financiamento. Contudo, tal aspecto tem maior importância em áreas em que financiamentos possam indicar conflitos de interesse, o que não é o caso desta revisão.
Seleção do corpus de análise
Em setembro de 2019, foram feitas buscas em bases de dados indexadas (SciELO, PePSIC, LILACS e Index Psi) utilizando-se os termos “projeto de vida”, “projeto vital”, “projeto futuro”, “projeto de futuro” e “projeto para o futuro” (no singular e plural) associados a termos relacionados à condição de conflito com a lei (i.e., “conflito com a lei”, “medida socioeducativa”, “ato infracional”, “infrator” e “privado de liberdade”; também no singular e plural). A opção por utilizar outros termos além de “projeto de vida” reflete o fato de que os outros termos são utilizados recorrentemente como sinônimos (Coscioni et al., 2021). Foram controladas as duplicações e selecionados somente os artigos que cumprissem com os seguintes critérios de inclusão: (a) ser um relato de pesquisa empírica; (b) conduzida com adolescentes em MSE (ou egressos) no Brasil; e (c) que acessavam os PVs dos seus participantes.
A mesma estratégia de busca foi realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. O currículo lattes dos autores das teses e dissertações foi analisado, a fim de verificar a ocorrência de publicações em formato de artigo com os dados provenientes de suas teses e dissertações. Para além dos trabalhos encontrados em buscas em bases de dados, foram inseridos no corpus outros dois manuscritos indicados por um especialista. A opção de incluir indicações deste especialista em específico reflete o fato de que ele tem se dedicado ao estudo de adolescentes em conflito com a lei, com particular ênfase sobre a construção de PVs durante a MSE. A Figura 1 sumariza o processo de seleção dos manuscritos. A composição do corpus foi realizada por dois juízes independentes. As diferenças foram tratadas por consenso e 24 pesquisas foram selecionadas ao final.
Extração e análise dos dados
Os trabalhos selecionados foram analisados observando-se o local, região e método de coleta de dados; gênero dos participantes e principais resultados. Os dados relacionados ao local, região e métodos de coleta de dados e gênero dos participantes foram tabulados. Em relação aos principais resultados, foi realizada uma análise temática (Braun & Clarke, 2006) com o objetivo de identificar padrões relacionados à caracterização dos PVs dos participantes. Inicialmente, os trechos relevantes dos artigos foram codificados, isto é, foram selecionados os trechos dos artigos que caracterizavam os PVs dos seus participantes. Em seguida, os trechos foram agrupados conforme similaridade semântica, de modo a se formar temas a posteriori. O processo de criação de temas foi supervisionado por um especialista em pesquisa qualitativa e em pesquisas com adolescentes em conflito com a lei.
Resultados
A Tabela 1 caracteriza as pesquisas em relação ao local, região de coleta de dados e gênero dos participantes. A maioria dos estudos foi realizada em unidades de internação (n = 12), seguido dos estudos em instituições de MSE de meio aberto (n = 7), semiliberdade (n = 5) e com egressos da MSE de internação (n = 1). Quanto à região de coleta de dados, a maioria dos estudos foi realizada nas Regiões Sul (n = 8), Sudeste (n = 8) e Nordeste (n = 6), com poucos estudos realizados nas Regiões Centro-Oeste (n = 1) e Norte (n = 1). Um estudo comparou adolescentes em conflito com a lei no Brasil e em Portugal. A maioria dos estudos foi realizada em regiões metropolitanas de capitais de estados brasileiros (n = 17). No que se refere ao gênero dos participantes, a maioria das pesquisas foi realizada somente com adolescentes do gênero masculino (n = 15), seguida de pesquisas com adolescentes de ambos os gêneros (n = 6) e somente do gênero feminino (n = 3).
Tabela 1 Local, região e método de coleta de dados, e gênero dos participantes.
Pesquisa | Local | Gênero | Região | Método |
---|---|---|---|---|
(Lopes, 2006) | Semiliberdade | Masculino | Belo Horizonte/MG | Entrevista |
(Oliveira, 2008) | Meio aberto | Masculino | Vitória/ES | Entrevista |
(Baquero et al., 2011) | Egressos | Masculino | São Leopoldo/RS | Entrevista e observação |
(Coutinho et al., 2011) | Internação | Masculino | Campina Grandee João Pessoa/PB | Entrevista |
(Jesus, 2011) | Internação | Feminino | São Paulo/SP | Entrevista, grupos e documentos |
(Sousa, 2012) | Semiliberdade e Internação | Feminino | Belém/PA | Entrevista, observação e documentos |
(Nardi & Dell’Aglio, 2013) | Meio aberto | Ambos | Porto Alegre/RS | Entrevista |
(Silva et al., 2013) | Internação | Masculino | Triângulo Mineiro/MG | Entrevista |
(Gomes, 2014) | Internação | Masculino | Fortaleza/CE | Grupos, entrevista e observação |
(Gomes & Conceição, 2014) | Meio aberto | Ambos | Brasília/DF | Grupos |
(Silva, 2014) | Meio aberto | Ambos | São Paulo/SP | Entrevista e grupos |
(Silveira et al., 2015) | Internação | Masculino | Interior do RS | Entrevista |
(Siqueira et al., 2015) | Semiliberdade | Masculino | Interior do RSe Portugal | Entrevista |
(Ferreira, 2016) | Internação | Masculino | Jaboatão dos Guararapes/PE | Entrevista |
(Koerich, 2016) | Meio aberto | Masculino | Canoas/RS | Entrevista e observação |
(Azevedo et al., 2017) | Meio aberto | Ambos | João Pessoa/PB | Grupos |
(Costa, 2017) | Internação | Masculino | João Pessoa/PB | Entrevista e documentos |
(Almeida & Leão, 2018) | Semiliberdade | Masculino | Interior de MG | Entrevista, observação e documentos |
(Carnevalli, 2018) | Meio aberto | Ambos | Não identificado | Entrevista e questionário |
(Coscioni et al., 2018) | Internação | Masculino | Cariacica/ESe Porto Alegre/RS | Grupos, observação e entrevista |
(Nunes, 2018) | Internação | Masculino | Unaí/MG | Entrevista, observação e questionário |
(Pereira, 2018) | Internação | Ambos | Curitiba/PR | Entrevista e observação |
(Ribeiro, 2018) | Semiliberdade | Masculino | Recife/PE | Entrevista e desenhos |
(Silva, 2018) | Internação | Feminino | Porto Alegre/RS | Entrevista e fotografias |
A Tabela 1 também descreve os métodos de coleta de dados utilizados. Todos os estudos utilizaram métodos qualitativos. A maioria das pesquisas utilizou a entrevista como principal técnica de coleta de dados (n = 20). Em alguns desses estudos, outras técnicas de coleta de dados foram utilizadas para complementar as entrevistas, tais como observações (n = 6), análise de documentos (n = 4), grupos (n = 2), questionários (n = 2), desenhos (n = 1), fotografias (n = 1) e diários (n = 1). Outros estudos utilizaram técnicas de coleta de dados em grupo como principal instrumento (n = 4), sendo que dois utilizaram entrevistas e observações como técnicas complementares.
Em relação aos principais resultados, a análise temática resultou em três temas, descritos nas seções subsequentes. A Tabela 2 indica quais temas foram encontrados em cada uma das pesquisas selecionadas.
Tabela 2 Temas encontrados em cada pesquisa
Pesquisa | Tema 1: Os projetos de vida referem-se sobretudo a trabalho, educação e família | Tema 2: Os projetos de vida são marcados pela incerteza e pela ausência de um plano de ação | Tema 3: Alguns projetos de vida referem-se à perpetuação da conduta infracional |
---|---|---|---|
(Lopes, 2006) | X | ||
(Oliveira, 2008) | X | X | |
(Baquero et al., 2011) | X | X | X |
(Coutinho et al., 2011) | X | ||
(Jesus, 2011) | X | ||
(Sousa, 2012) | X | ||
(Nardi & Dell’Aglio, 2013) | X | ||
(Silva et al., 2013) | X | ||
(Gomes, 2014) | X | X | X |
(Gomes & Conceição, 2014) | X | X | |
(Silva, 2014) | X | X | |
(Silveira et al., 2015) | X | X | |
(Siqueira et al., 2015) | X | ||
(Ferreira, 2016) | X | X | |
(Koerich, 2016) | X | X | X |
(Azevedo et al., 2017) | X | X | |
(Costa, 2017) | X | X | |
(Almeida & Leão, 2018) | X | X | X |
(Carnevalli, 2018) | X | ||
(Coscioni et al., 2018) | X | X | X |
(Nunes, 2018) | X | X | |
(Pereira, 2018) | X | ||
(Ribeiro, 2018) | X | X | |
(Silva, 2018) | X | X |
Os projetos de vida referem-se sobretudo a trabalho, educação e família
Este tema foi referido em todas as pesquisas e integra os resultados segundo os quais os participantes possuíam PVs ligados ao trabalho, à educação e à família. Em relação a trabalho, os PVs integravam ideias vagas de conseguir um emprego. Possibilidades de profissões foram apresentadas pelos adolescentes, envolvendo o desempenho de funções que necessitam de menos escolaridade (Carnevalli, 2018; Koerich, 2016; Pereira, 2018; Silva et al., 2013). Em algumas pesquisas, os participantes listaram profissões que exigem curso superior, em geral associadas aos contextos aos quais estão inseridos, tais como psicólogo, advogado e médico (Carnevalli, 2018; Coscioni et al., 2018; Jesus, 2011; Oliveira, 2008; Pereira, 2018; Ribeiro, 2018; Silva, 2018). Noutras, os adolescentes descreveram profissões vinculadas a sonhos pessoais, tais como jogador de futebol e lutador (Carnevalli, 2018; Coscioni et al., 2018; Silva, 2018), bem como fizeram menção à possibilidade de se tornar agentes socioeducativos (Coscioni et al., 2018) ou a continuar trabalhando com a família (Costa, 2017; Silva, 2014). Em uma pesquisa, os adolescentes revelaram intenção em abrir um negócio próprio lícito, realizar concurso público e se aposentar (Coscioni et al., 2018).
Os PVs relacionados à educação caracterizavam-se por respostas vagas, envolvendo desde a conclusão do ensino médio até a entrada no curso técnico ou superior. Em um estudo com adolescentes de classe média, os PVs educacionais eram mais complexos e envolviam conhecimento específico sobre profissões de curso superior (Oliveira, 2008).
Em relação ao domínio familiar, os PVs incluíam ideias de constituir a própria família e ajudar/viver com a família de origem. Os PVs associados à família encontravam-se por vezes vinculados à ideia de adquirir bens e melhorar a qualidade de vida. O seguimento de uma religião também esteve associado a este tipo de PVs em uma pesquisa (Almeida & Leão, 2018). A família foi descrita como principal motivação para uma mudança de vida em algumas pesquisas, seja a família de origem, seja a possibilidade de constituição de uma família no futuro. Destaca-se dentre elas uma em que um dos participantes vislumbrava um futuro diferente para seus filhos, em que eles pudessem estudar e não se envolver com a prática de atos infracionais (Baquero et al., 2011).
Os projetos de vida são marcados pela incerteza e pela ausência de um plano de ação
Este tema foi reportado em 14 pesquisas e refere-se à crença compartilhada entre os participantes de que a mudança de vida seria um grande desafio. Assim, os seus PVs eram vistos como incertos e desarticulados de um plano de ação. Os relatos eram acompanhados de menções a fatores que aumentavam a dificuldade, tais como o preconceito da comunidade (Coscioni et al., 2018; Ribeiro, 2018), conflitos com facções criminosas rivais (Coscioni et al., 2018; Costa, 2017; Gomes & Conceição, 2014; Koerich, 2016; Nunes, 2018), privação econômica (Azevedo et al., 2017; Baquero et al., 2011; Coscioni et al., 2018; Koerich, 2016; Ribeiro, 2018; Silva, 2014; Silva, 2018), baixa escolaridade e/ou problemas na escola (Koerich, 2016; Ribeiro, 2018; Silva, 2018), vinculação com pares (Ribeiro, 2018) e desemprego (Oliveira, 2008). Em alguns estudos, a morte precoce e novos encarceramentos foram aceitos como possíveis (Almeida & Leão, 2018; Coscioni et al., 2018; Ferreira, 2018). Noutros estudos, a mudança de cidade foi cogitada como única possibilidade de rompimento com a criminalidade (Coscioni et al., 2018; Costa, 2017; Nunes, 2018).
De modo geral, os PVs dos participantes não pareciam se enquadrar em um sentido de ação que permitisse sua realização. Alguns estudos concluíram que a ausência do plano de ação resultava na ausência de um PV, de modo que as metas em relação a educação, trabalho e família deveriam ser vistas como aspirações ou sonhos (e.g., Gomes, 2014). Outros estudos consideraram que tais metas em relação ao futuro poderiam ser consideradas como PVs, mesmo estando desacompanhadas de um plano de ação (e.g., Gomes & Conceição, 2014).
Somente em três estudos verificou-se a expressão de um sentido de ação entre seus participantes com vistas à interrupção da conduta infracional. Em um deles, uma adolescente informou que estudava, frequentava um curso de auxiliar em enfermagem e ajudava sua irmã em um salão de beleza (Silva, 2014). No outro estudo, o adolescente apresentava um sentido de ação favorecido pelo acesso a recursos, tendo em vista que sua família possuía boa condição financeira (Coscioni et al., 2018). Um estudo com adolescentes de classe média corrobora o entendimento de que o acesso a recursos favorece a elaboração de um plano de ação, tendo em vista que seus participantes apresentavam em geral uma concepção bastante clara sobre o que desejavam fazer no futuro (Oliveira, 2008).
Alguns projetos de vida referem-se à perpetuação da conduta infracional
Este tema foi referido apenas por seis pesquisas e integra os resultados que indicam a intenção de perpetuar a conduta infracional. Para algumas pesquisas, o discurso sobre a permanência no mundo do crime era o resultado da ausência de PVs (e.g., Baquero et al., 2011). Esses estudos descreviam a presença da intenção de mudança da realidade atual (com vistas ao rompimento com a criminalidade), todavia acompanhada de uma verdadeira descrença na real possibilidade de concretização dessa intenção. Os participantes compreendiam a inserção no mundo do crime como uma espécie de estratégia de sobrevivência que possibilitava o acesso a recursos e o afastamento da miséria.
Foram poucas as pesquisas que identificaram a permanência no mundo do crime como um PV formal. Um estudo identificou o desejo de vingança em um de seus participantes, que mencionou a intenção de executar as pessoas responsáveis pela morte de membros familiares (Silveira et al., 2015). Em outra pesquisa, os participantes revelaram que a prática infracional proporcionava acesso a bens de consumo e prestígio social (Koerich, 2016). Com relação ao futuro em longo prazo, os adolescentes apresentaram concepções distintas, que variavam conforme o grau de envolvimento com as práticas infracionais. Um primeiro grupo era composto por adolescentes que possuíam inserções pontuais no mundo do crime e que vislumbravam possibilidades de um futuro diferente. Um segundo grupo compunha-se de adolescentes com maior envolvimento com atos infracionais e que investiam no mundo do crime como uma espécie de desejo pessoal. Dualidade semelhante foi encontrada em outra pesquisa, cujos participantes com maior envolvimento com a criminalidade revelaram PVs envolvendo o crescimento no tráfico de drogas, o enriquecimento a partir do roubo e a vingança (Coscioni et al., 2018).
Discussão
Esta revisão de escopo identificou e sintetizou os principais resultados de 24 pesquisas empíricas que caracterizaram os PVs de adolescentes em MSE no Brasil. A maioria das pesquisas foi realizada a partir de entrevistas em unidades masculinas de internação localizadas em regiões metropolitanas. A concentração de estudos com populações masculinas encarceradas em centros urbanos pode se relacionar à prevalência de violência urbana entre jovens do sexo masculino em capitais (Waiselfisz, 2015), bem como à tendência em atribuir MSEs de internação de modo indiscriminado. No que se refere às questões metodológicas, a menor frequência de estudos de perspectiva quantitativa pode se associar à carência de instrumentos que mensurem PVs. Recentemente, foi publicada a Escala de Projeto de Vida para Adolescentes (Dellazzana-Zanon et al., 2019). Entretanto, à época de composição do corpus, a escala ainda era pouco conhecida e não havia sido utilizada no contexto das MSEs. Ademais, a tendência à realização de estudos qualitativos com adolescentes em MSE é também observada em revisões anteriores (e.g., Coscioni et al., 2017).
Quanto aos principais resultados, uma análise temática gerou três temas. O primeiro deles, citado em todos os artigos, descrevia os anseios dos participantes em relação ao futuro, sobretudo associados a educação, trabalho e família. Assim, os PVs de adolescentes em MSE possuem semelhanças aos PVs de adolescentes participantes de pesquisas em outros contextos. Educação, trabalho e família são elementos comuns aos PVs, aspirações e expectativas de adolescentes (Vieira & Dellazzana-Zanon, 2020), estejam eles em conflito com a lei, ou não. A principal diferença entre adolescentes que estão em conflito com a lei e adolescentes que não estão em conflito com a lei parece se relacionar às incertezas quanto ao retorno das práticas infracionais. Esse aspecto é abordado nos outros dois temas identificados.
O segundo tema salienta que os PVs dos participantes eram marcados pela incerteza e careciam de um plano de ação. Tais relatos referiam a dificuldades encontradas quando da tentativa de romper com as infrações, destacando-se um contexto de exclusão social que desfavorece a elaboração de PVs desvinculados da criminalidade (Lopes & Silva, 2021). Podem se relacionar também à inefetividade do sistema protetivo que esses adolescentes deveriam receber durante a MSE (Coscioni et al., 2017). O PIA, nesse sentido, se configura como importante instrumento que, elaborado conjuntamente com os adolescentes, pode auxiliar no processo de mudanças (Moreira et al., 2015).
O terceiro tema, reportado em frequência bastante menor, inclui as menções a PVs vinculados à criminalidade. A menor frequência desse tipo de relato contradiz os elevados índices de reincidência no ato infracional característicos da realidade do sistema socioeducativo brasileiro (Instituto Sou da Paz, 2018). A predominância de PVs socialmente aceitos pode se relacionar ao que é discutido em um dos manuscritos como discurso de mudança (Gomes, 2014), ou seja, à reprodução de ideias correspondentes ao que o Poder Judiciário espera dos adolescentes. Nesse sentido, os adolescentes emitem discursos socialmente aceitos que refletem um cuidado sobre o que deve ser dito no contexto institucional em que se encontram imersos. Em um dos estudos investigados (Silva, 2014), o discurso de mudança ficou bastante claro a partir da notícia de que um dos adolescentes entrevistados foi apreendido pela autoria de novo ato infracional, um dia após a coleta de dados. Durante a entrevista, o adolescente havia mencionado que tinha se desvinculado da prática infracional e que estava elaborando um novo PV.
As pesquisas em que os participantes revelaram a intenção de perpetuar a conduta infracional possuem características metodológicas que possivelmente reduziram o viés associado ao discurso de mudança. Estes trabalhos optaram pelo uso de grupos focais (Coscioni et al., 2018; Gomes, 2014) ou etnografia (Almeira & Leão, 2018; Baquero et al. 2011; Koerich, 2016). Esses são métodos que permitem maior aproximação do contexto de pesquisa com a realidade (Weller, 2006). Os outros trabalhos conduzidos a partir de técnicas grupais (Jesus, 2011; Silva, 2014) foram mediados por funcionários das instituições participantes, o que pode ter favorecido a emergência dos discursos de mudança e menor envolvimento dos participantes. Assim, a predominância do uso de entrevistas pode ter favorecido respostas enviesadas pela desejabilidade social criada nesse contexto de coleta de dados.
É preciso questionar o entendimento da intenção de permanência da conduta infracional como a ausência de PVs dos participantes. Essa concepção traduz um entendimento de PVs com base no que era esperado dos adolescentes a partir do previsto no SINASE (Brasil, 2006). Ainda que a perpetuação da conduta infracional possa ser compreendida inicialmente como um comportamento de risco, ela pode promover o acesso a bens de consumo e a um sentimento de pertença. Assim, pode se configurar como elemento valorizado no futuro psicológico de adolescentes em MSE (Pessoa et al., 2017).
As pesquisas analisadas possuem resultados bastante semelhantes a estudos que investigaram as aspirações e expectativas de adolescentes em MSE. Um estudo com adolescentes do sexo feminino em semiliberdade revelou que suas participantes apresentavam aspirações positivas, especialmente no que diz respeito à constituição de família (Monteiro et al., 2011). Em um estudo com adolescentes do sexo masculino também em semiliberdade, os participantes encontravam-se divididos entre dois grupos: (a) os que desejavam se desvincular de práticas infracionais; e (b) os que tinham marcada incerteza quanto à real possibilidade de romper com a conduta infracional (Brandão Neto et al., 2010). Um estudo conduzido com adolescentes em MSE de internação verificou que seus participantes possuíam aspirações quanto a escolarização e trabalho, mas não apresentavam um sentido da ação para o futuro (Muller et al., 2009). Um levantamento investigou as expectativas de adolescentes em MSE e identificou que a maioria apresentava expectativas mais altas com relação a ter uma família, ser respeitado na comunidade, ser saudável, ter casa própria e ter amigos que darão apoio. As expectativas quanto a entrar na universidade e concluir o ensino médio eram mais baixas (Nardi et al., 2014). A semelhança dos resultados de pesquisas que investigaram aspirações, expectativas e PVs de adolescentes em MSE indicam que as pesquisas sobre PVs têm se concentrado nas metas dos PVs. O componente ativo dos PVs ainda é pouco explorado.
Considerações finais
Esta revisão de escopo identificou e sintetizou os principais resultados de 24 pesquisas empíricas que caracterizaram os PVs de adolescentes em MSE no Brasil. Os trabalhos investigados foram todos de caráter qualitativo, com ênfase sobre o uso de entrevistas. Grupos focais e etnografias demonstraram-se mais efetivos na redução do viés associado ao discurso de mudança. Em pesquisas futuras, os funcionários do sistema socioeducativo e os familiares dos adolescentes podem ser incorporados enquanto participantes. Pesquisas documentais podem ser conduzidas, investigando as intervenções sobre PVs registradas nos PIAs. Estudos de perspectiva longitudinal podem ser desenvolvidos, de modo a acompanhar os adolescentes durante e após a MSE.
Este estudo apresenta algumas limitações. Como mencionado, o uso do termo PV não é consensual, de modo que a estratégia de busca utilizou outros termos semelhantes, tais como projeto de futuro e plano de vida. De um lado, essa estratégia permitiu acessar mais pesquisas. De outro lado, ela não diferenciou termos que podem, na verdade, ter outros sentidos. Ademais, a estratégia de busca restringiu-se a artigos, teses e dissertações indexados em bases iberoamericanas. Livros, outros tipos de literatura cinza e outras bases de dados internacionais poderiam ter sido incluídos. Por fim, as características teóricas dos artigos poderiam ter sido analisadas, de modo a contribuir para o debate em torno das definições de PV na literatura da área.
Mesmo com as limitações, a revisão de escopo permitiu estabelecer um conhecimento abrangente sobre os PVs de adolescentes em MSE. As pesquisas indicam que educação, trabalho e família aparecem como elementos centrais nos PVs dos seus participantes, ainda que o sistema socioeducativo brasileiro se caracterize pelo alto índice de reincidência infracional. Os resultados podem refletir um contexto que dificulta a realização desses PVs. Podem indicar também a inefetividade da MSE na construção de novos PVs. Foram encontrados poucos relatos sobre PVs associados à prática infracional. Isto pode se relacionar a um discurso de mudança que inibe os participantes a declararem intenções contrárias ao que lhes é esperado durante o processo socioeducativo. O estabelecimento de um rapport com a equipe de pesquisa pode se configurar como elemento importante no planejamento dessas pesquisas. Isto é, um período de aproximação com os participantes, antes dos procedimentos formais de coleta de dados, pode significar ganhos significativos na validade dos achados, diminuindo a propensão de os adolescentes apresentarem respostas socialmente aceitáveis.
Com base nos resultados das pesquisas selecionadas, pode-se pensar em possíveis ações conforme o modo como os adolescentes se projetam no futuro. Aos adolescentes com aspirações associadas a educação, trabalho e família, devem ser desenvolvidas intervenções que visem ao fornecimento de subsídios claros para a construção de um plano de ação que possibilite a concretização desses anseios. Nesse sentido, atividades como capacitações profissionais e geração de renda podem ser efetivas. Quanto aos adolescentes que possuem PVs associados à permanência da conduta infracional, as intervenções podem sugerir novas formas de existir que favoreçam outras inserções sociais. Essas novas opções devem possibilitar a satisfação das necessidades psicológicas que são saciadas de modo ilícito a partir do envolvimento com práticas infracionais. Isto é, devem ser construídas possibilidades lícitas de acesso a bens materiais, bem como a sentimentos de pertença a novos grupos sociais. As ações direcionadas a ambos os grupos (os que desejam romper com a criminalidade e os que investem nela) devem envolver não somente o domínio individual (isto é, o/a adolescente), mas também a comunidade e a rede de atendimento. Tal como estabelece o SINASE (Brasil, 2006), os adolescentes devem não somente ser capacitados para fazer escolhas, mas terem oportunidades para exercitar sua capacidade de escolha.