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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.4 no.6 Barbacena June 2006

 

ARTIGOS

 

A queixa escolar por quem não se queixa - o aluno

 

The school complaints according to those who never complain: the students

 

 

Carmen T. G. TrautweinI, II, III, *; Cleide NébiasI, IV, **

I Universidade São Marcos
II Faculdade Morumbi Sul
III Faculdade Paulista de Artes
IV USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, analisam-se, de acordo com os conceitos da Psicologia sócio-histórica, os sentidos que os alunos constróem sobre si, ao serem encaminhados ao serviço de atendimento psicológico, devido a queixas escolares ou a dificuldades de aprendizagem. No estudo de campo, realizamos pesquisa qualitativa por meio de entrevistas com alunos, de oito a 12 anos de idade, de escolas públicas, encaminhados para uma Unidade Básica de Saúde do município de São Paulo. Três desses alunos tiveram os seus dados coletados e categorizados em núcleos de significação, adotando-se para tal a análise de conteúdo com conotação construtivo-interpretativa. Dessa análise, pudemos apreender que cada um deles constrói um sentido próprio sobre seu processo de aprendizagem, sente-se capaz de aprender, pensa de modo prospectivo e considera a escola um espaço para aquisição de conhecimento, mesmo que com ela mantenha interações não educativas.

Palavras-chave: Queixas escolares, Dificuldades de aprendizagem, Interação social, Construção de sentido, Saúde e educação.


ABSTRACT

This article analyses the senses which students build on themselves when they are lead to psychological hearings due to school complaints or learning difficulties. This analysis is based on the social-historic concepts of Psychology. Regarding field research, a qualitative research had been carried out by means of interviews with students from public schools, ranging from eight to twelve years old, who had been brought to a given Basic Health Unit at the municipality of São Paulo. The collected data have been organized and presented in different meaning categories according to a pattern of constructive and interpretative connotation of three of the participants. On these basis, it was noticed that each of the participants (i) builds its own sense concerning its learning process, (ii) feels capable of learning and thinks in a prospective way, considering the school as the place where knowledge can be acquired, even in cases of schools which keep a non-interactive educative relationship with them.

Keywords: School complaints, Learning difficulties, Social interaction, Sense construction, Health and education.


 

 

As Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) recebem inúmeras queixas de dificuldades de aprendizagem levadas por mães de alunos que buscam, no atendimento psicológico dessas unidades, a solução para tais questões.

Os profissionais, por convenção, denominam "queixas escolares" as dificuldades que originam solicitações de atendimento ou encaminhamentos dos professores e coordenadores pedagógicos para os profissionais de saúde mental. Tais dificuldades podem se referir tanto ao comportamento quanto ao rendimento dos alunos no processo ensino-aprendizagem. Focalizamos, neste estudo, as queixas escolares relacionadas ao rendimento pedagógico que se caracterizam como dificuldade de aprendizagem.

Ao constatar que o desempenho dos alunos não corresponde ao esperado, o professor contata os pais para encaminhar o aluno ao psicólogo. Algumas vezes, como já foi evidenciado por Machado (1996a), o professor submete a busca pelo atendimento psicológico à continuidade da criança na escola. Os pais então, geralmente representados pela mãe, "saem à procura" do psicólogo, para ver porque o filho "é assim", porque ele não aprende, levando relatórios das escolas que, embora superficiais, subsidiam a queixa de que o aluno "não lê, não escreve, é disperso, não aprende, não memoriza, não se concentra".

Nossa experiência, confirmada pelos estudos de Souza (2000), mostrou-nos que a dificuldade na aquisição da leitura e da escrita tem sido o principal aporte para o encaminhamento dos alunos. Ao recebê-lo, o psicólogo irá confirmar ou negar a presença de alguma patologia e encaminhar a criança para tratamento, dependendo da forma com que lida com a questão da dificuldade de aprendizagem.

Assumimos o pressuposto de que as dificuldades de aprendizagem surgem da interação social do aluno com os demais membros da escola e que não podem se concentrar, individualmente, no aluno ou em sua família, entendida como determinante sócio-político-cultural de um tempo histórico específico.

Embora as UBS disponham de outros profissionais para receber as queixas de dificuldades de aprendizagem, como pediatras e fonoaudiólogos, os encaminhamentos dos professores são direcionados, primeiramente, aos psicólogos. Pela nossa observação e a de estudiosos como Machado (1996a) e Patto (1984, 1990), os psicólogos da Prefeitura de São Paulo também atribuem o fracasso escolar aos próprios alunos e às suas famílias, já que, após o psicodiagnóstico, independente do tipo de queixa, sugere-se, em geral, o trabalho de ludoterapia ou o atendimento psicomotor para as crianças, além de orientação familiar.

Essa realidade despertou-nos o desejo de pesquisar as dificuldades de aprendizagem como tema de conexão da saúde com a educação na rede pública. Embora o assunto já tenha sido tratado por muitos autores, desde a década de oitenta, e sob diversos aspectos, não se encontrou um estudo que tenha sido realizado sob o olhar do aluno.

Adotamos a abordagem do ponto de vista da criança e nos inspiramos na leitura do texto de Andreazi que, ao lançar um olhar sobre a escola pública, questiona:

Como o aluno se percebe em termos de competências e dificuldades? Que nível de compreensão tem e que juízo faz do que está indo fazer todos os dias na escola? Como percebe o professor - agente de mediação entre ele e o conhecimento sistematizado? Como se faz presente nas falas, nos gestos e no projeto de vida que seus professores organizam? (ANDREAZI, 1992, p. 75)

Concordamos com a proposta de Oliveira de que "focalizar a criança, entendê-la em seus símbolos e marcas, reveladas no cotidiano da escola e instituição de saúde, é uma tentativa de desdoentizá-la" (1992, p. 86).

O objetivo de nossa pesquisa foi, portanto, compreender que sentido as crianças constróem sobre si quando são encaminhadas para o serviço de atendimento psicológico, devido a queixas escolares e dificuldade de aprendizagem.

Tomamos, como referencial teórico, a abordagem sócio-histórica formulada por Lev Semenovich Vygotsky, devido à nossa identificação com o pensamento do autor, que concebe o ser humano como um ser de corpo e mente que não se dicotomiza. O homem é um ser biológico e social e humaniza-se pela participação em sua cultura, em um processo histórico. De acordo com Vygostsky, o indivíduo aprende para que possa se desenvolver. Para ele, toda criança possui capacidade de aprendizado, o que varia de acordo com sua história de vida e suas interações sociais. O conhecimento se desenvolve na relação do sujeito com o meio e deve ser significativo o suficiente para ser internalizado, para construir a subjetividade e expressar a forma de ver o mundo, ou seja, expressar o sentido.

Vygotsky enfatizou a interação que deve ser constante entre professor-aluno, aluno-aluno e entre os demais atores da escola. Essa questão é de especial importância para a sustentação teórica deste estudo, uma vez que é através da interação social que ocorre a internalização do conhecimento, a internalização como a "reconstrução interna de uma atividade externa" (1991, p. 63).

Sob nosso ponto de vista, é justamente nesse ponto que reside o "nó" das dificuldades de aprendizagem, tanto em relação ao trabalho do professor quanto ao desempenho do aluno que, na concepção daquele, não aprende.

A todo o momento, o professor parece se perguntar, segundo nossas observações da prática de alguns docentes, as formas de "embutir" o conhecimento na mente do aluno, uma vez que ele está sempre em processo de interação (não pára sentado, conversa muito etc). Segundo Vygotsky, a capacidade de controlar o próprio comportamento surge no jogo coletivo e antecede o controle voluntário como força interna. Essa questão tem especial importância para este estudo por verificamos que algumas crianças são encaminhadas para atendimento psicológico por dificuldade de aprendizagem quando apresentam, segundo os professores, "falta de atenção, indisciplina, hiperatividade" etc., associando a queixa a sintomas de comportamento.

Diante desse quadro, parece-nos que os professores, de acordo com Freire (1981), mantêm a concepção "bancária" de que o aluno aprende se permanecer em sala quieto, prestando atenção nas aulas. Como isso não acontece, devido à própria necessidade de interação da criança, todo comportamento desviante do esperado é "patologizado" e origina um número surpreendente de encaminhamentos a especialistas, com queixas de que a criança não consegue aprender (Souza, 2000).

Pela abordagem sócio-histórica, interpretamos as queixas de dificuldades de memorização e aprendizado do aluno, apresentadas pelos professores, como sintomas que podem ter surgido de interações não educativas. Segundo a concepção de Vygotsky (1991), com a qual concordamos, todo ser humano é capaz de aprender e esse processo se dá a partir de interações sociais, numa base biológica dada, que é o organismo. É por meio dessa interação, que se inicia no nascimento da criança, que os adultos vão mediar, gradativamente, as relações do bebê com o mundo. E é a partir dessa apresentação do mundo que o bebê se apropria dos instrumentos culturais que favorecem o desenvolvimento das funções psicológicas superiores que vão constituir sua subjetividade. As interações permitem a aprendizagem e impulsionam o desenvolvimento do indivíduo. Segundo Vygotsky:

O aprendizado desperta vários processos internos de desen-volvimento que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados esses processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança (1991, p. 101).

O aprendizado, para o autor, é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas. O autor russo valorizou o professor que, ao agir como coordenador (ou mediador), atua na zona de desenvolvimento proximal, ou seja, ele parte do que a criança já conhece e oferece condições para que ela alcance outro nível de desenvolvimento mais autônomo e passe a desenvolver habilidades humanas específicas, as funções psicológicas superiores.

Para Vygotsky, uma característica essencial da aprendizagem é que:

Engendra a área de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento no âmbito das inter-relações com outros que, na continuação, são absorvidos pelo curso interior do desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança (1988, p. 115).

A aprendizagem por si só não é considerada desenvolvimento. A aprendizagem escolar orienta e estimula processos internos de desenvolvimento; a organização correta da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, por ativar um grupo de processos de desenvolvimento que não se produziriam sem a aprendizagem. Para esse autor, é pela linguagem que o homem comunica seu modo de ser, de pensar e de sentir e forma para si sentidos e significados a respeito dele próprio, do outro e do mundo. É também pela linguagem que torna-se capaz para modificar seu ambiente e, ao fazê-lo, modifica-se e ao outro. Desse ponto de vista, a linguagem é fundamental pois, para interagir com alguém é necessário comunicar algo, e a comunicação pressupõe, no mínimo, um emissor e um receptor, além de um instrumento que faça a mediação do processo de comunicação. No caso de seres humanos, a linguagem é o instrumento de mediação por excelência, seja nas formas orais, escritas, gestuais e, até mesmo, artísticas.

Ao internalizar os conhecimentos aprendidos, o homem se desenvolve. Isso significa que, ao adquirirmos a linguagem de nosso ambiente sóciocultural, nós nos humanizamos, pois, segundo Aguiar (2002a), ao interar com as pessoas que nos rodeiam, penetramos num universo de valores, crenças, modos de pensar e de sentir. Ao utilizar a linguagem como instrumento mediador da relação entre nós e os outros, possibilitamos o desenvolvimento do pensamento e de outras funções psicológicas superiores, o que nos distingue dos animais. É, também, pela linguagem que significamos e damos sentidos à realidade e à nossa própria conduta.

O sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico que tem várias zonas de estabilidade desiguais. O significado é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido. O significado permanece estável ao longo de todas as alterações do sentido (VYGOTSKY, 1991, p. 181).

O significado é parte inalienável da palavra como tal e, dessa forma, pertence tanto ao domínio da linguagem quanto ao do pensamento. "Uma palavra sem significado é um som vazio que não faz mais parte da fala humana", afirmou Vygotsky (2000, p. 6). Uma vez que o significado da palavra é, simultaneamente, pensamento e fala, o autor determinou que ele é a unidade do pensamento verbal. A análise em unidade lhe demonstrou a existência de um sistema dinâmico de significados, em que o afetivo e o intelectual se unem e mostram que cada idéia contém uma atitude afetiva transmutada com relação ao fragmento de realidade ao qual se refere. Para Vygotsky, o significado das palavras é um fenômeno de pensamento, na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e "só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele" (2000, p. 151).

Os significados das palavras são formações dinâmicas e não estáticas. Modificam-se à medida que a criança se desenvolve e, também, de acordo com as várias formas pelas quais o pensamento funciona. O sentido se define como mediador entre o pensamento e a palavra com significado. Para o autor (2000, p.181), trata-se de algo mais amplo que o significado, o qual é apenas uma das zonas de sentido, a mais estável e fixa.

Ao dar voz aos alunos que são encaminhados aos serviços de atendimento psicológico por queixas de dificuldade de aprendizagem, estamos tentando compreender os sentidos construídos por eles, enquanto fenômeno psicológico que pode estar presente ou não na consciência.

Vygotsky (1982) nos alerta que, para compreender um processo interno, como é o caso do sentido, para além da simples aparência, é necessário exteriorizá-lo e relacioná-la com alguma atividade exterior. Assim é que o autor (2000) aponta a palavra com significado como unidade de análise, pois encerra as propriedades do pensamento e constitui-se em uma mediação dele. Por meio da palavra, podemos apreender os aspectos cognitivos, afetivos e volitivos que constituem a subjetividade.

Aguiar (2002a, p. 105), ao basear-se nas elaborações de Vygotsky, afirma que o sentido diz respeito "às expressões do sujeito, ao novo que ele é capaz de colocar no social, referindo-se aos sentidos subjetivos por ele construídos a partir da relação dialética com o social e a história".

Para González Rey, sentidos são entendidos como unidades constitutivas da subjetividade; nelas encontram-se as experiências de vida, os relacionamentos, os afetos e as emoções que motivam o comportamento humano. Aparece como "registro emocional comprometido com os significados e as necessidades que vão desenvolvendo-se no decorrer de sua (do sujeito) história" (2003, p. 235). Essa construção, segundo o autor, é inerente ao homem, que é um sujeito social e precisa construir para si o que existe, ou seja, o seu sentido.

A subjetividade, aqui, será definida, segundo González Rey (2002, p. 36-37), como "um sistema complexo de significações e sentidos subjetivos produzidos na vida cultural humana [...]. É um sistema processual, plurideterminado, contraditório e em constante desenvolvimento". Os novos processos de subjetivação implicados nesses processos culturais se integram como momentos constitutivos do desenvolvimento da cultura.

Assim, buscamos compreender qual é o sentido construído pelo aluno encaminhado ao atendimento psicológico por queixa de dificuldade de aprendizagem, considerando que a subjetividade, segundo Rey, constitui-se de dois momentos, o individual e o social, os quais se sobrepõem de forma recíproca ao longo do desenvolvimento do indivíduo.

A subjetividade individual se constitui em um indivíduo que atua como sujeito graças a sua condição subjetiva. O sujeito é histórico, uma vez que sua constituição subjetiva atual representa a síntese subjetivada de sua história pessoal, e é social, porque sua vida se desenvolve na sociedade, e nela produz novos sentidos e significações que, ao constituir-se subjetivamente, se convertem em constituintes de novos momentos de seu desenvolvimento subjetivo. Por sua vez, suas ações na vida social constituem um dos elementos essenciais das transformações da subjetividade social (ibid., p. 38).

Não há consenso entre os autores sobre a definição do termo "dificuldades de aprendizagem", mas encontramos em Hashimoto a definição que nos pareceu coerente com nossa experiência profissional:

Dificuldade de aprendizagem é uma situação momentânea na vida do aluno, que não consegue caminhar em seus processos escolares dentro do currículo esperado pela escola, acarretando comprometimento em termos de aproveitamento e ou avaliação (1997, p. 36).

Carvalho também caracteriza a dificuldade de aprendizagem como uma "situação momentânea na vida do aluno, decorrente de sua falta de compreensão do que está sendo proposto, em virtude de estratégias inadequadas utilizadas pelo docente em sala de aula" (2001, p. 71).

No caso específico das dificuldades na aquisição da língua escrita, destacamos as contribuições de Ferreiro e Teberosky (1986), expressas na Teoria Psicogenética da Língua Escrita, na qual as autoras estudam as hipóteses construídas pelas crianças para se apropriarem desse objeto de conhecimento. O fracasso e o sucesso na alfabetização, segundo Ferreiro e Teberosky, dependem

[...] das condições em que se encontre a criança no momento de receber o ensino. As que se encontram em momentos bem avançados de conceitualização são as únicas que podem tirar proveito do ensino tradicional e são aquelas que aprendem o que o professor propõe ensinar-lhes. O resto são as que fracassam, às quais a escola acusa de incapacidade para aprendizagem ou de dificuldades de aprendizagem, segundo uma terminologia já clássica (1986, p. 277).

Resende (2002) propõe a mudança de postura por parte dos professores e enfatiza o respeito aos padrões culturais e lingüísticos, bem como a forma de pensamento das crianças das camadas populares. No entanto, sob nosso ponto de vista, na prática, isso não acontece, pois o professor continua a valorizar os padrões culturais e lingüísticos da classe dominante e a ver seus alunos como pobres que lhe inspiram piedade, cuja carência precisa ser compensada.

A concepção que aqui defendemos, por acharmos que redimensionou a forma como as dificuldades de aprendizagem, até então, eram entendidas, é o modelo sócio-histórico. Nesse contexto, destacamos o trabalho de Vygotsky (1988, 1991, 2000). O autor concentrou sua atenção nas habilidades já desenvolvidas pelas crianças e importou-se menos com suas deficiências. Demonstrou que sob a orientação de um adulto, como, por exemplo, um professor, a capacidade de aprendizado de crianças com os mesmos níveis de desenvolvimento varia enormemente. Vygotsky relativizou o papel representado pela maturação, ao estabelecer que o conhecimento se constrói na e pela interação social, como já definido.

 

Método

Esta pesquisa busca compreender o processo de construção do conhecimento, por meio de estudo exploratório que foca a investigação nos sentidos construídos pelo aprendiz, "realizando análise de conteúdo com uma conotação construtivo-interpretativa". Baseamo-nos, especificamente, em González Rey (2002, p. 146), para quem o conhecimento não é visto como produto de fatos constatados no ato da pesquisa, mas como algo construído a partir da atribuição de sentido, no qual "o pesquisador integra, reconstrói e apresenta em construções interpretativas os indicadores obtidos durante a pesquisa".

Utilizamos entrevistas semi-estruturadas como instrumento de pesquisa para, de acordo com sugestão de Souza (1996), entender a dificuldade de aprendizagem a partir do ponto de vista do aprendiz: como ele se percebe no processo de aprendizagem e como se sente percebido por suas famílias e pelos profissionais com os quais interagem.

Não nos detivemos em avaliar os atendimentos psicológicos e definimos, como critério inicial para escolha de nossos entrevistados, apenas a solicitação dos atendimentos em psicologia por dificuldade de aprendizagem. Entendemos e utilizamos o termo "portador" para caracterizar aquele que porta, carrega, conduz, e que é, a nosso ver, o que acontece com o aluno que leva as queixas do professor ao psicólogo. Portanto, as queixas não são dos alunos.

Em relação à entrevista com crianças utilizada nesse estudo, Carvalho (2004) afirma se tratar de uma técnica pouco explorada na literatura devido ao fato de se pensar a criança como alguém incapaz de falar sobre suas próprias preferências, concepções e avaliações. No entanto, o recente questionamento dessas suposições tem levado ao crescente uso desse tipo de entrevista para se obter dados sobre fenômenos pouco susceptíveis de serem observados diretamente. Assim, essa escolha implicou um desafio. Ao utilizá-la, organizamos um conjunto de questões sobre o tema e permitimos, e até incentivamos, a fala livre dos entrevistados sobre assuntos que surgissem como desdobramento do tema principal.

Optamos em utilizar, também, com os mesmos sujeitos, a entrevista em grupo, o que favoreceu a interação entre os pares e possibilitou uma ação lúdica na busca do sentido sobre as dificuldades escolares. As respostas foram gravadas, transcritas e organizadas para posterior análise.

 

A Unidade Básica de Saúde

A UBS escolhida para a realização da pesquisa é responsável pelas ações de saúde de aproximadamente 37.000 habitantes em sua área de abrangência, na zona sul de São Paulo. Os moradores dessa região, onde prevalece o subemprego e o trabalho informal, recebem menos de cinco salários mínimos e representam 57,58% da população. Cinqüenta e três por cento do total de habitantes se concentra em área de urbanização irregular (favelas sobre córregos e morros). Em geral, as famílias têm como provedores as pessoas do sexo feminino. Segundo Camarote (2004), a região se compõe de grupos homogêneos de alta e de altíssima privação socioeconômica.

 

Os participantes

Para a realização das entrevistas foram escolhidas três pessoas, na faixa de oito a 12 anos, freqüentadoras das séries iniciais do ensino fundamental de escolas públicas, estaduais ou municipais, identificadas como portadoras de dificuldades de aprendizagem, que tenham iniciado ou em vias de iniciar o atendimento psicológico na UBS caracterizada como campo de estudo.

Consideramos que, após o primeiro ano de convivência escolar, o aluno tenha condições de falar sobre como se sente na escola. Estabelecemos o limite de idade dos pesquisados como doze anos por percebermos um significativo número de alunos nessa faixa etária que ainda não compreendem o sistema de representação da escrita, apresentando dificuldades semelhantes às descritas pelos iniciantes.

Os participantes, aqui apresentados com nomes fictícios, foram sorteados entre os pacientes da lista de espera por atendimento psicológico e os acolhidos na UBS, entre agosto e outubro de 2004, encaminhados por seus professores para esse serviço devido a dificuldades de aprendizagem.

 

Procedimentos

Após esclarecer aos pais e às crianças sobre a pesquisa e recolher a assinatura do termo de consentimento pelos responsáveis, foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas, individuais, com a duração de, aproximadamente, uma hora para cada um dos participantes, no período de outubro a dezembro de 2004. Realizamos, em seguida, entrevista grupal. Associamos ao "corpus" das entrevistas individuais os dados significativos da entrevista grupal, somadas às nossas observações e às informações obtidas no "acolhimento" com os pais.

 

Análise

Quanto à análise, seguimos as recomendações de Bardin (1977), iniciando o procedimento pela organização do material. Em seguida, efetuamos a "leitura flutuante" das entrevistas individuais e em grupo, registrando impressões e relações que surgiram durante a leitura. Imersões na leitura das transcrições das entrevistas revelaram indicadores relevantes, quer pela ênfase, pela emoção ou pela recorrência do tema. Leituras minuciosas do material nos levaram a destacar os núcleos de significação que possibilitaram realizar a reflexão construtivo-interpretativa (GONZÁLEZ REY, 2002). Destacamos os núcleos de significação, utilizando a palavra como unidade, e procuramos identificar as falas que representassem as emoções, as motivações e que denunciassem o envolvimento com o tema revelado na entrevista. Assim, garimpamos, nas falas dos participantes, frases, expressões e questões que pudessem ser agregadas a cada núcleo como pedras brutas à espera de lapidação.

Os núcleos de significação construídos foram as formas de os alunos perceberem a escola, as interações sociais com professores e colegas, o processo ensino-aprendizagem, as formas de serem percebidos pelas famílias na escola e as interações com o profissional de saúde.

 

Os sentidos atribuídos por Silvânia

Silvânia(*), de 12 anos, freqüenta a mesma escola desde seu ingresso. Em 2003, foi retida no terceiro ano do ciclo fundamental, precisando repeti-lo no ano seguinte. Silvânia foi encaminhada ao atendimento por apresentar dificuldade de aprendizado devido ao "bloqueio na cabeça" (sic) ocasionado pela separação dos pais. Lê com muita dificuldade e seus registros escritos são apenas cópias do que outros escrevem (professora e colegas). A escola solicitou à UBS laudo psicológico para possível encaminhamento à classe especial(**).

Durante a entrevista, Silvânia demonstra senso crítico ao dizer que a escola não está "aquela coisa que era antes. Está meio fraca". Sua fala expressa decepção com o comportamento da professora ao afirmar que: "pra mim ela não está sendo uma ótima professora porque está saindo muito da classe". Esse sentimento é ampliado para a totalidade da escola, fazendo com que Silvânia queira trocá-la: "É por isso que eu acho que eu queria mudar de escola, pra eu ir para uma classe especial. Mudaria. Eu ia estudar lá no [cita nome de uma escola]".1 No entanto, considera a escola um órgão sistematizador do conhecimento, pois para ela se trata de um lugar de preparo para exames.

Silvânia cita o SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) como um obstáculo a ser vencido, um objetivo a ser alcançado e, para isso, necessita das aulas.

Não vai ter aula mais. Não vai ter aula nem hoje nem quinta nem sexta mais... Vai ter conselho de classe, vai ter... como é que se diz? Vai ter eleição, tudo, aí não vai ter aula. Não teve aula sexta-feira porque faltou água na minha escola... Tudo isso eu acho que é errado. Fico sem aula. Aí eu fico sem aprender (sic).

Portanto, ela vê a importância da escola como elemento transmissor da herança cultural e da construção do conhecimento. Seu sentimento de decepção vem do fato de perceber que a escola não consegue cumprir seu calendário de aulas.

A aluna, que não sabe ler nem escrever e foi indicada para a avaliação psicológica, com vistas ao laudo para classe especial, mostra-se capaz de avaliar criticamente o desempenho de sua professora e, portanto, de toda a escola ao demonstrar insatisfação. Não seria o caso, se fosse dada a chance ao aluno, de também encaminhar seu professor ao psicólogo por dificuldade de ensinar?

Silvânia demonstra conceber o professor como um mediador por excelência do processo de aprendizagem. Ao reconhecer que sua professora sai a todo instante para falar ao celular, demonstra que tal comportamento impede a mediação, torna a escola fraca e leva a aluna a querer se mudar.

Silvânia também fala sobre as dificuldades para fazer os exercícios e sobre o fato de procurar a professora para sanar as dúvidas, mas "ela fica saindo muito de dentro da classe" (sic). Essa questão a incomoda: "ela explica a lição e depois, quando a gente vai perguntar, ela está conversando... Daí fica ruim". A aluna, então, desenvolve a estratégia: "eu pego, deixo pular [as linhas] do caderno, passo para outra, faço. Se não souber... Se não souber... aí eu pego e... aí não faço, continuo sem fazer".

Percebe-se, nesse ponto da fala da aluna, o comprometimento das interações sociais. A aluna desenvolveu uma estratégia para levar suas dúvidas à professora. Se esta não se mostra disponível, no momento em que é solicitada, a aluna não faz os exercícios. Observamos que Silvânia também não parece buscar entre seus colegas a ajuda para tirá-la do "continuo sem fazer" a lição. Sabemos que a relação de mediação aluno-aluno é fundamental no processo educacional, porém acreditamos que deva ser promovida pelo professor, por meio de atividades que busquem atingir esse fim. Embora essa prática ocorra no caso de Silvânia, "ela manda gente me ajudar", a utilização da expressão "gente", sem usar seus nomes, demonstra não haver intimidade com as pessoas que freqüentam sua classe. Parece que a integração entre os alunos não é valorizada pela professora.

Constatamos sua dificuldade na interação entre pares quando Silvânia afirma não ter amigos na série atual. Ao questionarmos a respeito de novas amizades, acaba mostrando a perda dos antigos amigos, pois "todos passaram para a quarta série" ou "saíram da escola" e "só eu que estou na terceira". Isso nos leva a interpretar que sua retenção na terceira série tornou-se um fato decepcionante, tendo, inclusive, levado ao desenvolvimento de sintomas físicos como febre, dor de estômago, crises de choro, entre outros. No entanto, Silvânia não desistiu de seus objetivos e chegou a desafiar a diretora ao afirmar que fará novamente a prova do SARESP. Diante disso, a diretora utilizou-se, a nosso ver, de chantagem emocional ao afirmar que, caso não passasse no exame, ficaria ainda mais triste. Dessa forma, conseguiu destituí-la da idéia de realizar outras provas naquele momento, como podemos observar no trecho que se segue:

Aí eu chorei, fiquei com febre e... não resolveu nada. A diretora falou que eu ia ter que fazer outra prova. E eu disse: 'eu faço'. Aí ela falou, mas se você não passar, você vai ficar mais triste ainda. Então está bem, eu fico na terceira série, não faço a prova, mas no SARESP eu vou ter que passar, por que se eu não passar, eu mudo de escola, não sei o que eu vou fazer, mas eu vou ter que mudar. Não dá.

Ao colocar para si a prova do SARESP como objetivo a ser alcançado, Silvânia também estabelece o limite de sua tolerância: "eu vou ter que passar, porque se eu não passar, eu mudo de escola, não sei o que eu vou fazer, mas eu vou ter que mudar. Não dá".

Interpretamos tais colocações como uma segunda chance dada à escola. Ela aceita permanecer mais um ano na terceira série "para não ficar ainda mais triste", na expectativa de se preparar, por meio da ação da escola e da professora, para passar no ano seguinte (nesse caso, em 2004). Caso isso não ocorra novamente, a menina que está sendo encaminhada ao psicólogo para obter um laudo-passaporte para a classe especial já tem, antecipadamente, a decisão tomada de sair da escola.

O episódio do resultado da prova do SARESP é exemplo de que as relações entre professor-aluno nem sempre são educativas, conforme nos mostrou Carvalho (2001), pois, ao final do exame, antes de obter o resultado, a professora lhe dá os parabéns "Ela falou: 'Você passou em tudo' e me deixou tão alegre que eu até chorei". Esses falsos parabéns levaram a menina a preparar-se para o ano seguinte: "peguei a lista de material e falei: 'pai, me dá dinheiro para eu comprar meus materiais da quarta série'. Mas, aí, quando eu chego lá na escola eu estava retida". Diante dessa nova situação, Silvânia constata a falta de resultados de seus esforços e adoece: "Aí eu chorei, fiquei com febre e... não resolveu nada".

A respeito da professora, o sentido construído por Silvânia se refere à questão da mentira: "não era para ter mentido. Se ela soubesse... Se ela contasse para todo mundo porque [não] tinha passado... Se ela falasse: 'Silvânia, você não passou por causa disso, disso e disso'... Não, ela falou: 'Você passou'".

Torna-se evidente o desconhecimento da aluna sobre as regras do ensino fundamental que impedem a reprovação dos alunos, exceto na quarta série, ou melhor, na etapa final do ciclo. Ao comparar sua idade em relação à série cursada, a história de Silvânia evidencia outras retenções (reprovações) anteriores, não relatadas pela família, mas que se deduz pela afirmação: "quando minha mãe foi ver eu tava retida de novo".

É interessante observar que, enquanto relata, de forma rápida e emotiva, que "se ela contasse para todo mundo porque [não] tinha passado", a menina omite o 'não', aqui por nós colocado, como se estivesse em dúvida de que realmente não havia sido aprovada. Tal omissão nos permite questionar a respeito do objetivo da prova do SARESP, pois, ao perguntarmos sobre seu significado, ela responde que "é uma prova. Tem que fazer para ver se passou".

A partir das colocações de Silvânia, chegamos à constatação de que a escola não está cumprindo a sua função, deixando a aluna despreparada. Registramos, no entanto, uma contradição no momento em que, apesar de reprovar a conduta da professora (de sair da sala para conversar ao celular), Silvânia pensa se tratar de uma "boa professora que me ajuda a fazer as coisas... Eu só acho errado porque ela faz isso, mas ela é minha amiga". Outra contradição surge no início da entrevista com a afirmação de que é legal estar na terceira série "porque aí eu vou aprendendo".

Na medida em que a classe especial se constitui numa esperança de aprender coisas diferentes e fazer novos amigos, percebemos que a decepção não dominou todos os espaços da subjetividade da aluna, pois ainda restou o desejo de aprender.

Infelizmente, o significado de "classe especial" não corresponde ao sentido dado por Silvânia ao termo. Nesse contexto, o psicólogo é visto como o profissional que fornece o laudo para esse tipo de classe: "Eu queria mudar de escola para ir para uma classe especial. Eu acho que se eu levasse atestado psicológico, acho que eu conseguiria. Eu acho que eu aprenderia mais, que eles devem passar coisa diferente... É, a sílaba... tudo... coisa diferente".

Ao tomar como base as palavras de Silvânia, percebemos que o profissional que a atendera havia reforçado a hipótese de que o problema estava com a menina, que sofria de carência afetiva devido à separação dos pais. Porém, na entrevista em grupo, Silvânia relacionou-se com facilidade com os colegas ao falar de seus problemas com certa naturalidade. Isso talvez indique que não seja a separação de seus pais, como ela mesma repete, que a tenha levado ao consultório psicológico, mas a dificuldade de aprendizagem. Na entrevista em grupo, revela: "Eu vou para a escola, mas eu não fico dentro da sala. Eu subo pra dentro e já desço, subo e já desço de novo. É que às vezes a minha professora não pode descer para pegar um negócio, então eu desço".

Apreendemos, nas entrelinhas, que, devido a esse comportamento, Silvânia seja marginalizada das atividades da classe, já que é vista pela professora como uma criança traumatizada pela separação dos pais. Identificamos, aqui, a concepção de base psicanalítica anunciada por Patto (1990) que explica todas as questões com base nos transtornos emocionais dos indivíduos. No caso de Silvânia, essa forma de pensar funciona como justificativa para excluir a aluna das atividades e contribuir para seu não-aprender.

O sentido mais amplo dessa questão, com o qual pudemos apreender as motivações de Silvânia, é o de alguém que, a despeito das interações pouco educativas da escola, deseja aprender. E, para tanto, enfrenta os desafios de realizar testes, procurar psicólogos e, se for o caso, estudar em uma classe especial ou, talvez, até mudar de escola. Isso porque constrói um sentido a seu respeito que revela se tratar de alguém capaz de enfrentar desafios e de aprender.

 

Os sentidos atribuídos por André

André(*), de oito anos, freqüentou a pré-escola e foi retido no último ano. Ingressou no primeiro ano do ciclo fundamental em 2004. Tinha um comportamento agitado, inquieto e agressivo, não costumava fazer as lições, não aprendia a ler e a escrever e, por essas razões, fora encaminhado ao atendimento psicológico(**).

Embora André goste de estar na escola, de cursar a primeira série "porque é para aprender melhor, depois ir para outra série, depois ir para outra, depois ir para a quinta", a concepção de escola que demonstra é a de um lugar onde "o primeiro dia ... foi legal, o segundo foi legal e o terceiro foi chato". Possivelmente, a perda de entusiasmo deve-se à descoberta das punições; André se queixa de "ficar sem recreio, ficar de castigo lá na sala com a professora". Deixa claro que a escola é um lugar onde são cometidas injustiças, pois "eu fui suspenso e ele não foi", diz, referindo-se a um colega. Diz também de um local onde não é permitido correr: "se não o guardinha pega. Às vezes vai e leva você para a diretoria ou para o diretor". Mesmo com toda essa vigilância, a agressividade se manifesta: "Ah! Às vezes eu bagunço, brigo na escola, bato nos moleques... Outro dia eu já quebrei o braço de um moleque. De outro também". A questão se refere, também, aos docentes: "Ela [a professora] beliscou a menina assim, segurou nas costas assim e puxou". Enfim, na visão de André, "a escola é muito ruim".

O aluno percebe a professora como alguém teimoso, agressivo, delator, autoritário, ameaçador e mentiroso. Entretanto, antes de explicitarmos as fontes de tantos adjetivos negativos relacionados à professora, queremos ressaltar que, contraditoriamente, André a considera "legal": "Ela não quer me ajudar, mas eu gosto dela". O menino compreende as variações de humor que os seres humanos apresentam e expressa sua compreensão como se estivesse explicando um princípio dialético, que a ele também se aplica pela reciprocidade: "às vezes eu sou legal com ela, às vezes ela é legal comigo. Às vezes eu não sou legal com ela e às vezes ela não é legal comigo".

Segundo André, a professora é teimosa, pois não o ajuda a fazer a lição, não realiza a mediação entre ele e o conhecimento e cria, segundo nossa interpretação, um clima competitivo na medida em que "ela só quer fazer lição com os outros, não quer me ajudar nunca ... ela não quer falar para mim, não me ajuda nunca". Em sua avaliação, a professora assume também o papel de delatora, porque conta a seu pai sobre as lições que não faz, o que o leva a apanhar "de fio de televisão", e o papel de autoritária quando manda apagar tudo o que faz.

Segundo nosso ponto de vista, o trabalho de um aluno que apresentasse resultado parcial insatisfatório não deveria ser totalmente invalidado. Cabe ao professor orientar esse aluno para que possa melhorar seu desempenho. Nesse caso, a professora demonstra agressividade ao puxar o braço do aluno e o beliscar; é ameaçadora ao prometer falar com o diretor, prometer castigo e não cumprir, passando, também, por mentirosa, segundo André.

A fala de André nos mostra sua reação diante da agressividade da professora: "Virgem! Eu não gosto na hora que grita comigo. Eu fico quietinho, não faço a lição". Mas, a despeito de todas essas formas de interação não educativas, ele busca apoio entre os colegas. Quando surgem dúvidas, "pergunto para o menino lá que é meu melhor amigo... Ele fala para mim, me explica e eu começo a fazer". Esse fato confirma que a transmissão do conhecimento não depende apenas do professor, mas também dos colegas.

Embora André afirme que também ajuda os colegas, parece mais receber essa ajuda do que oferecê-la.

A importância que dá às relações com os colegas demonstra também a necessidade de se sentir aceito e reconhecido. Como não consegue estabelecer esse tipo de relação com a professora, é junto aos colegas que busca esse vínculo ao evitar as brigas. André demonstra, dessa forma, o combustível emocional necessário à aprendizagem ou à base afetivo-volitiva, segundo Vygotsky.

Há situações em que André parece dialogar consigo quando fala, de forma automática, as frases que aprendeu em sala de aula: "o elefante bebe água pela tromba; girafa tem pescoço comprido; leão come carne; hiena dá risada". Ele demonstra vontade de aprender a ler para "ser policial e policial tem que trabalhar muito duro. Tem que saber sobre as drogas". Conclui-se que André valoriza a leitura como forma de adquirir conhecimento, transformando-a em ferramenta para o exercício de alguma atividade.

André se refere à interferência do pai nas punições sofridas na escola e pede para trocar as suspensões que o ausentam por dias sem recreio, o que o deixa "um monte de vezes com fome, comendo nada, só comendo em casa". É possível que o descontentamento com a escola tenha levado o pai a contar para a pesquisadora sobre a transferência do menino para a escola do município vizinho, visto pela população da região como detentora de ensino público de melhor qualidade. A visão da família fica clara na fala que André reproduz: "nessa [escola] eu não estou aprendendo nada, mas são elas que não ensinam".

Para André, o psicólogo é um facilitador da aprendizagem, pelo que observamos na frase: "Agora que eu comecei a vir aqui na psicóloga, eu vou aprender". Como se, para ele, o simples fato de ir ao atendimento já implicasse a melhora da queixa. Observa-se, aqui, a alta expectativa diante do trabalho do profissional. Apesar de toda essa expectativa em relação ao atendimento do psicólogo, não nos parece que André esteja com dificuldades de aprendizagem. Ao que tudo indica, ele está motivado a aprender "de tudo".

 

Os sentidos atribuídos por Rogério

Rogério (*), de dez anos, freqüenta a mesma escola desde seu ingresso. Cursou o terceiro ano do ciclo fundamental em 2004. Não consegue ler nem escrever, mostra-se nervoso quando cobram por tarefas escritas e não tem interesse pelos estudos, segundo seus professores. Na classe, de acordo com o pai, só Rogério apresenta problemas (**).

Durante a entrevista, a mais difícil de realizar, descobrimos um menino que parecia, ao mesmo tempo, cansado e distante. No entanto, ofereceu uma colaboração preciosa ao revelar forte sentimento de incompreensão do processo de aprendizagem e do sentido que constrói sobre si. Sua participação na entrevista em grupo confirmou o fato citado por outro participante: a violência física sofrida em casa como conseqüência da experiência vivida na escola.

A sensação de incompreensão sobre a situação escolar de Rogério já se manifesta na segunda pergunta, quando afirma não saber em que série se encontra. Porém, ao dizer "acho que é a terceira" está explicando que irá cursar, em 2005, o terceiro ano do Ciclo Fundamental. Apreendemos de sua fala que Rogério se posiciona de forma prospectiva, ou seja, diz o que vai cursar.

Para ele, as escolas servem "para aprender a ler e escrever", o que, em sua opinião, "é bom". No entanto, Rogério não sabe para que serve, especificamente, a sua escola, pois quando questionado responde: "sei não". Isso pode acontecer devido ao fato de não ver em sua escola o cumprimento dessa tarefa, já que ainda não se alfabetizou, apesar de freqüentá-la por três anos.

Rogério considera a professora "boa porque ela não fica falando alto, não manda ninguém ficar sem recreio... só". Isto é: a professora é vista pelo que não faz. Ela, por sua vez, o considera um aluno que ainda "não despertou" e, por isso, trabalha mais com as atividades de desenho. O conceito implícito nessa forma de conduta é o da falta de amadurecimento do aluno. De acordo com os responsáveis pelo ensino, tal amadurecimento ocorrerá a seu tempo, independente do esforço e do trabalho da criança e do professor. Compreendemos, a partir desse contexto, que Rogério pode estar sendo marginalizado das atividades de sala de aula, ao receber a tarefa de desenhar, enquanto não chega o seu "despertar".

Em sua obra, Vygotsky aborda a importância do desenho como elemento de transição para a escrita, mas, no caso de Rogério, ele se encontra descontextualizado e sem função. Não queremos fazer generalizações, já que dispomos de tão poucos elementos para análise dessa questão. Por isso, apenas relembramos que, para o autor, "a criança atrasada, abandonada a si mesma, não atinge a evolução do pensamento abstrato. A tarefa da escola é justamente desenvolver o que lhe falta" (VYGOTSKY, 1988, p. 114). Para a psicologia sócio-histórica, as crianças podem, com a ajuda de outros adultos ou pares, desenvolverem-se mais do que se deixadas apenas com suas capacidades consolidadas; logo, não há como esperar que a criança em idade escolar desperte para os processos de aprender a ler e a escrever.

Aqui, vamos ressaltar o papel do professor como mediador por excelência, do processo de desenvolvimento de seu aluno. No caso de Rogério, especificamente, o professor não parece ter a clara consciência desse papel e atua de forma ambígua: às vezes espera o "despertar", ao propor o desenho e, às vezes, busca formas alternativas de desempenhar a mediação, como, por exemplo, ao escrever em seu caderno. Rogério revela que a professora costuma escrever a lição em seu caderno, o que o permite entendê-la. Questionamos se a professora percebe esse fato quando diferencia sua estratégia de ensino.

A opinião de Rogério a respeito dos colegas não é muito clara. Ele afirma "não saber nada deles", como se nunca tivesse se perguntado sobre quem e como são. A entrevista parece levá-lo a tal descoberta. As interações com os colegas se restringem às discussões a respeito das brigas entre eles. Na entrevista em grupo, seus relatos revelam a agressividade, também presente em casa: "quando eu chego em casa eu apanho", "meu pai me bate de murro". Vemos, aqui, que crianças como Rogério são duplamente vítimas: na escola, onde sofrem agressões físicas e injustiças, e em casa, onde os responsáveis ainda usam castigos corporais para ensinar os filhos a se comportarem na escola, ou para obterem melhor rendimento.

Apesar disso, Rogério afirma gostar de ler: "eu aprendo um pouco a ler e escrever". Para isso, usa a técnica de segmentar as sílabas. Embora não utilize o que aprende na escola, repete o que, provavelmente, ouve de adultos em casa: o fato de que aprender a ler "serve para muita coisa". E completa: "Para passar de ano, para não ficar sem trabalho, ter carteira assinada quando crescer. É para isso que serve ler e escrever".

Diante de tantos significados interpsíquicos na interação com o meio, o menino afirma não sentir nada diante da frustração de não conseguir ler e escrever, embora sua voz se torne mais baixa e sua expressão triste quando fala que "todo mundo entende, só eu é que não". Rogério evidencia, aqui, um sentimento de profunda solidão em ser o único, segundo sua visão, a não entender o processo.

No movimento dialético do sentido que está em construção, a frase a seguir indica a existência de um processo de reflexão, baseado nas percepções familiares: "meu pai fala que eu sou burro". Possivelmente para amenizar seu conflito intrapsíquico, utiliza os argumentos da tia para refutar tal idéia, pois também sabe que "eu não tenho orelha assim [faz gestos] e rabo". Nesse trecho da conversa, no qual assume um caráter de fala para si, Rogério exemplifica que o universo psicológico é um mundo em relação dialética com o mundo social. Inicialmente, Rogério afirma não saber por que vai ao psicólogo. Repentinamente, lembra-se que vai para jogar dominó, memória e que continuaria a ir, caso fosse solicitado. É como se dissesse que freqüenta o atendimento psicológico para se divertir.

Ao analisar a entrevista de Rogério, apreendemos que o significado de não ter "despertado" o leva a construir um sentido para sua dificuldade, presente na fala: "todo mundo entende, só eu é que não". Ao interpretar essa fala, denotamos o significado da "burrice", dado pelo pai, e a incorporação desse conceito pelo menino.

A atitude da professora de restringir as atividades escolares aos desenhos parece confirmar a idéia de que Rogério seja incapaz de aprender e de se desenvolver, embora o próprio aluno demonstre o contrário.

 

Reflexões finais

Verificamos que os participantes constróem sentidos próprios a respeito de seus processos de aprendizagem. Tais sentidos se configuram como questões individuais, embora tenham se constituído a partir do significado, que é uma questão social. Para essa configuração, utilizam-se de elementos significados por seus professores e, especialmente, por suas famílias.

Dar voz aos alunos entrevistados mostrou ser estratégia significativa na mediação entre as dificuldades e seus portadores. Os participantes dessa pesquisa definiram os sentidos construídos na escola como desafio, decepção, desrespeito, dúvida e agressão.

Os alunos entrevistados explicitaram interações sociais que lhes forneceram elementos para constituírem sentido de que são responsáveis por suas dificuldades. Contraditoriamente, não se colocam como incapazes e demonstram enorme vontade e capacidade para aprender. Apesar de tudo o que sofrem, pensam de forma prospectiva, confiam em sua capacidade de aprender, acreditam na escola e têm o sentimento de ansiedade positiva em relação à escolarização.

Diante das colocações dos alunos, o psicólogo assume papel fundamental quanto às dificuldades ou queixas escolares, pois, por meio de seu trabalho, os alunos encontram ajuda para intermediar suas relações na escola, facilitar a aprendizagem com o uso de outras metodologias, ou mesmo, exercer a atividade de recreação.

Embora as crianças apontem a importância do atendimento psicológico, é preciso tomar cuidado e não fazer interpretações apressadas. É fato que elas denunciam a necessidade de serem ouvidas e que são vítimas dos mais variados tipos de violência por parte do professor, da escola e da sociedade.

Mesmo que seja alta a expectativa delas em relação ao trabalho do psicólogo, é necessário lembrar que utilizaram a situação de pesquisa para extravasar sentimentos, falar de dúvidas, decepções e injustiças que permearam suas interações escolares. Tais crianças necessitam de atenção, de apoio e de justiça nas escolas onde estão sendo vítimas, pois cultivam suas supostas dificuldades de aprendizagem e buscam a confirmação no trabalho do psicólogo.

Por outro lado, aceitar os pedidos de atendimento da forma como se tem feito, restringindo o processo ao aluno, seria reforçar a idéia de que a escola desenvolve um trabalho adequado às necessidades educacionais e não precisa questionar suas relações pedagógicas, tal como já foi apontado por autores como Patto (1984, 1990), Machado (1996), entre outros. Assim, torna-se necessário enfatizar a importância de se intervir na instituição escolar, para que o trabalho do psicólogo possa ampliar a consciência dos indivíduos sobre a realidade que os cerca e oferecer-lhes instrumentos para lidar com as dificuldades (AGUIAR, BOCK & OZELLA, 2002 b).

Este estudo, ao revelar o ponto de vista do aluno, trouxe elementos para se refletir sobre as formas de intervenção do psicólogo na comunidade escolar, de modo que não cristalizem as relações enquanto queixas.

Segundo González Rey (2002), a ciência sempre produz novos campos de sentido sobre os fenômenos estudados. Portanto, convidamos os leitores deste estudo a pesquisarem novos sentidos para a relação aluno-professor-psicólogo, que tem sido marcada pela limitação dos papéis dos profissionais que encaminham e recebem os alunos com dificuldades de aprendizagem.

 

Referências

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Artigo recebido em: 16/11/2005
Versão revisada para publicação recebida em: 23/11/2005
Aprovado para publicação em: 7/12/2005

 

 

* Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, psicóloga da Prefeitura Municipal de São Paulo e docente das faculdades Morumbi Sul, Paulista de Artes e Universidade São Marcos.
** Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e professora do programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.
(*) Nome fictício
(**) Informações obtidas com responsáveis.

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