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Print version ISSN 1679-4427

Mental vol.8 no.14 Barbacena  2010

 

ARTIGOS

 

A produção acadêmica brasileira acerca da pobreza na perspectiva da teoria das representações sociais

 

The Brazilian academic production about poverty in the perspective of social representations

 

 

Renata Danielle Moreira Silva* ; Lídio de Souza**

UFES

 

 


RESUMO

Este trabalho teve com objetivos mapear a produção científica sobre a pobreza e compreender suas representações sociais (RS) na produção científica. A pesquisa bibliográfica revisou 69 artigos indexados na Scientific Electronic Library – Scielo, publicados de janeiro de 1997 a julho de 2007, que contivessem nas palavras-chave um dos seguintes descritores: pobreza, áreas de pobreza, população de baixa renda, pobres, periferias e favelas. Os artigos foram submetidos a: 1) levantamento de informações sobre data, área do conhecimento e vinculação institucional dos periódicos e autores dos artigos; e 2) análise das palavras-chave dos artigos pelo programa EVOC. Os resultados indicam que as RS de pobreza se organizam em torno do elemento central Políticas Sociais. Verificou-se que a produção científica sobre pobreza é crescente e concentra-se no eixo Rio de Janeiro-São Paulo e que na área de Psicologia ainda se mostra incipiente.

Palavras-chave: Representações sociais, Pobreza, Produção acadêmica, EVOC, Periódicos científicos


ABSTRACT

The purpose of this paper was mapping out the scientific production on poverty and understands the Social Representations (RS) about this theme. The bibliographic research reviewed 69 articles indexed in the Scientific Electronic Library - Scielo, published from January 1997 to July 2007 that contained one of the following keywords: poverty, poverty areas, low income, poor neighborhoods and slums. The database, composed by 69 articles, was submitted to: 1) survey of information like date, area of knowledge and institutional linkage of articles and periodicals. 2) analysis of the keywords of articles by EVOC program. The results indicate that the RS of poverty is organized around the central element of social policies. Moreover, it was found that the scientific production on poverty is increasing and focuses on the Rio-Sao Paulo route and that in the field of psychology is still incipient.

Keywords: Social Representations, PPoverty, Scientific production, EVOC, Journals


 

 

1. INTRODUÇÃO

A pobreza é um fenômeno social multideterminado e, portanto, tem sido abordada por várias áreas do conhecimento. Nos últimos anos, um volume considerável de artigos ocupou as páginas de periódicos das Ciências Humanas (GARCIA; ABRAMOVAY, 2002; SOUZA, 2004; FERREIRA et al., 2010); Ciências da Saúde (ROMERO, 1998; PARKER; CAMARGO JR., 2000; NERI; SOARES, 2007; VAITSMAN et al., 2009) e Ciências Sociais Aplicadas (REZENDE, 2006; FREITAS, 2007; MANSO et al., 2010), com estudos realizados sob diversas abordagens teóricas e procedimentos empíricos que podem contribuir tanto para a compreensão do fenômeno, quanto para o desenvolvimento de ações que objetivam erradicar ou, ao pelos menos, minimizar os efeitos da pobreza. Essa constatação favorece o questionamento a respeito dessa temática, bem como a indagação sobre que áreas se ocupam dela, como as diferentes áreas da ciência vêm tratando-a e, ainda, quais são os enquadramentos teórico-conceituais utilizados nos estudos sobre pobreza.

O presente trabalho teve como objetivo apreender os significados e sentidos atribuídos à pobreza nas publicações científicas a partir do aporte teórico e metodológico da Teoria das Representações Sociais, tomando por base um mapeamento da produção científica acerca da pobreza em um período de dez anos (1997-2007).

 

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE POBREZA

No âmbito da economia tradicional, a pobreza é compreendida como insuficiência de renda, sendo o principal determinante da qualidade de vida de um indivíduo (ROCHA, 2003). Este fato se justifica pela correlação entre o nível de renda e os indicadores de bem-estar geral, uma vez que o acesso a bens e serviços se dá no mercado através de recursos monetários. Portanto, a insuficiência de renda acaba sendo um forte candidato escalar para medir a pobreza (PAES DE BARROS; CARVALHO, 2006).

De acordo com Rocha (2003), como as economias modernas são amplamente monetarizadas, definir uma linha de pobreza é estabelecer um valor monetário associado ao custo do atendimento das necessidades médias de uma pessoa de uma determinada população. É importante ressaltar também que a noção tradicional de linha de pobreza está associada ao conceito de pobreza absoluta, que corresponde ao não atendimento das necessidades mínimas vitais relativas à sobrevivência física (LAVINAS, 2003). Esta concepção é mais apropriada para aferição da privação em países pobres, pois é onde as questões de sobrevivência física têm maior relevância. O conceito de pobreza relativa, utilizado mais amplamente em países ricos, define necessidades a serem satisfeitas em função do modo de vida predominante em determinada sociedade, o que resulta incorporar a redução das desigualdades sociais como objetivo de políticas públicas. Trata-se, portanto, de identificar os "relativamente pobres" em sociedades em que o mínimo vital já é garantido a todos (ROCHA, 2003).

Embora a pobreza ainda seja predominantemente avaliada pelo critério da renda e a linha de pobreza seja estabelecida em termos de pobreza absoluta, existe uma forte corrente na literatura que defende a inclusão de dimensões não econômicas na análise das condições de vida das pessoas. Essa corrente também preconiza o reconhecimento cada vez mais amplo da importância de se avaliar também a pobreza relativa (SEN, 2001; SANTOS, 2007). Há uma busca constante por medidas socioeconômicas mais abrangentes, que incluam também outras dimensões fundamentais da vida e da condição humana.

Apesar de o reconhecimento de que a pobreza é um fenômeno multidimensional ser amplamente difundido no meio científico (KAGEYAMA; HOFFMAN, 2006), há uma divergência entre os pesquisadores sobre quais as dimensões mais relevantes, quais os indicadores utilizados para representar cada uma das dimensões e seus respectivos pesos, e como agregar a pobreza de todas as pessoas para se obter uma medida escalar. A abordagem das necessidades básicas (basic needs) (ROCHA, 2003) determina que uma pessoa é pobre se ela não consegue ter acesso a uma gama de "bens primários" que atendem às necessidades humanas elementares. Isto significa ir além das necessidades alimentares e incorporar um conjunto mais amplo de necessidades, como educação, saneamento, habitação e vestuário (ROCHA, 2003). Logo, a perspectiva das basic needs se diferencia da abordagem da renda por reconhecer o caráter multidimensional da pobreza, abandonando a linha de pobreza tradicional, expressa em valores monetários, em favor da adoção de parâmetros que reflitam "resultados efetivos em termos de qualidade de vida" (ROCHA, 2003, p. 20).

Amartya Sen ganhou notoriedade por sua vasta contribuição à temática da pobreza. Segundo este economista indiano, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998, a pobreza deve ser vista como "privação de capacitações básicas", em vez de ser considerada meramente insuficiência de renda (SANTOS, 2007). Essa perspectiva não nega a inevitável associação entre baixa renda e pobreza, porém defende a existência de fatores de ordem não econômica na determinação do grau de pobreza de uma pessoa. Ao mesmo tempo, inclui dimensões econômicas e não econômicas na determinação da qualidade de vida do indivíduo. Nessa perspectiva, limitar a pobreza à esfera da renda e da riqueza seria um erro grave do ponto de vista ético e moral. Sen (2001) desenvolveu uma nova abordagem para o entendimento da pobreza, identificando-a como insuficiência de liberdade (SANTOS, 2007). A proposta de Sen é uma avaliação da pobreza com base na liberdade para realizar coisas que se tem razão para valorizar.

 

3 SOBRE A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

A Teoria das Representações Sociais (TRS) tem seu início com o estudo de Serge Moscovici, intitulado "A Representação Social da Psicanálise", publicado originalmente em 1961 (MOSCOVICI, 1978). A TRS trabalha o pensamento social em toda sua dinâmica e diversidade, a partir de duas formas de conhecer e comunicar existentes em nossa sociedade: o universo consensual e o universo reificado. O universo consensual é constituído na conversação informal, na vida cotidiana, enquanto o universo reificado é elaborado no meio científico, sendo indispensáveis para a vida humana (ARRUDA, 2002; CARVALHO; ARRUDA 2008).

De acordo com Carvalho e Arruda (2008), a TRS investiga de que formas os grupos/indivíduos se apropriam do universo reificado e incorporam esse conhecimento ao cotidiano. Na gênese das representações sociais, dois processos sociocognitivos estão presentes no processo de tornar algo não familiar em familiar: a ancoragem e a objetivação (SÁ, 1993). Pela ancoragem, o objeto estranho se adequa a um paradigma ou protótipo já existente, sendo reajustado para se encaixar em determinada categoria. Toda ideia ou pensamento precisa de ancoragem, que visa, entre outros objetivos, facilitar a interpretação, permitir a compreensão de intenções ocultas e formar opiniões. Oliveira e Werba (1998) destacam que a ancoragem é sempre provida de juízo de valor, uma vez que as classificações não são isentas de subjetividade. A objetivação tem como função dar materialidade a um objeto abstrato e consiste em reproduzir um conceito em uma imagem. Esse mecanismo ajuda a tornar mais concreta uma realidade (OLIVEIRA; WERBA, 1998).

Abric (2001) define as representações sociais como visões de mundo que permitem aos grupos e indivíduos conferir sentido às suas práticas e compreender a realidade a partir de um sistema próprio de referências. Independentemente do modo como são abordadas, a teoria sustenta que as representações sociais não podem ser entendidas como reproduções, mas sim como construções socialmente compartilhadas (VALA, 1997). O processo de representar implica, portanto, a concepção de um sujeito ativo, produto e produtor da sociedade na qual se insere.

Jean-Claude Abric propôs a abordagem estrutural das representações sociais (ABRIC, 1998), afirmando que elas se organizam em um duplo sistema: o sistema central, também chamado de núcleo central, e o sistema periférico. O núcleo central tem uma determinação social ligada ao sistema de valores, crenças e memórias sociais daquele grupo e caracteriza-se por ser estável, resistente a mudanças, não suportar incoerências e ser pouco sensível ao contexto imediato (SÁ, 1993; ABRIC, 1998). Já o sistema periférico permite a integração da representação social com o contexto social imediato. É mais flexível que o núcleo central, está associado às experiências individuais dos sujeitos é tolerante à heterogeneidade e às contradições existentes (SÁ, 1993; ABRIC 1998). A ideia de que as representações sociais têm uma estrutura pode remeter à rigidez e imutabilidade, porém o fato de os sistemas central e periférico serem integrados permite que a dicotomia estrutura versus processo seja superada (TRINDADE, 1998).

Este estudo se fundamenta na teoria de Moscovici (1978) e na proposta complementar desenvolvida por Abric (1998), e tem como objetivo compreender as configurações do conhecimento científico sobre pobreza no País. Parte-se do princípio que certas áreas de conhecimento científico, como aquelas focalizadas neste estudo (Ciências Humanas, Ciências da Saúde e Ciências Sociais Aplicadas), favorecem uma proximidade maior entre os universos consensual e reificado. Arruda (2008) corrobora a perspectiva aqui utilizada ao afirmar que não existe hierarquia nem isolamento entre essas duas esferas do conhecimento e que as representações sociais são construídas no universo consensual, ou seja, ocorre a apropriação de objetos reificados pelo senso comum a partir dos processos de ancoragem e objetivação. Pode-se arriscar afirmar também que o inverso é verdadeiro, ou seja, que as representações sociais originadas no universo consensual podem penetrar o universo reificado.

Entre os objetivos específicos desta pesquisa estão: 1) realizar o mapeamento da produção sobre pobreza, observando aspectos referentes à produção e divulgação do conhecimento sobre este assunto; 2) apreender e sistematizar as representações sociais de pobreza desse conjunto de produções científicas a partir da análise das palavras-chave que constam dos artigos; e 3) localizar a produção e contribuição da Psicologia na construção do conhecimento sobre esse tema.

 

4. MÉTODO

4.1 Objeto de estudo

Artigos teóricos ou empíricos de periódicos brasileiros indexados pela biblioteca eletrônica Scientific Electronic Library Online – Scielo que contivessem entre suas palavras-chave os descritores "pobreza", "áreas de pobreza" e os seguintes sinônimos indexados: população de baixa renda e pobres; periferias e favelas.

4.2 Procedimentos de coleta

A terminologia DeCS/MeSH da Biblioteca Virtual de Saúde define o descritor "pobreza" como a discrepância dos meios econômicos do indivíduo ou da família para sua realização na sociedade, frequentemente decorrente de mecanismos e práticas de exploração econômica, social e cultural. O descritor "áreas de pobreza" é conceituado como áreas urbanas, suburbanas ou rurais caracterizadas por severa privação econômica. Essas definições foram adotadas neste estudo e serviram como parâmetro para a realização das buscas pelos artigos.

Foram adotados critérios de inclusão e exclusão de artigos para tornar o banco de dados coerente com os objetivos da pesquisa. Foram incluídos artigos teóricos e empíricos que apresentassem pelo menos uma das palavras-chave escolhidas e tivessem sido publicados no período entre 1997 e julho de 2007. Foram excluídos os artigos que incluíam participantes de baixa renda, mas não tratavam diretamente do assunto pobreza, publicações fora do período de interesse do estudo ou que continham alguma das palavras-chave pesquisadas, mas com significado diferente do adotado no estudo. Ao final da busca, foram encontrados 78 textos, dos quais 69 foram selecionados para análise e nove foram excluídos, com base nas indicações feitas anteriormente.

 

5. ORGANIZAÇÃO E TRATAMENTO DOS DADOS

5.1 Primeira etapa

Nesta etapa objetivou-se realizar um mapeamento geral dos artigos selecionados. A metodologia de pesquisa e a catalogação dos dados seguiram a proposta apresentada por Dantas (2007). Para tentar compreender a produção do conhecimento científico, duas perguntas iniciais são necessárias: 1) quem pesquisa? e 2) quem divulga? Para tentar respondê-las, realizou-se o levantamento de informações sobre data, área e grande área de conhecimento, definidas pelo CNPq, e vinculação institucional dos autores dos artigos e periódicos. Quando as informações sobre os autores não estavam presentes nos artigos, elas foram buscadas na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

5.2 Segunda etapa

Nesta etapa foram analisadas as palavras-chave dos artigos. O banco de dados recebeu formatação adequada à análise do EVOC (Ensemble de Programmes Permettant L'Analyse dês Évocations), que se caracteriza por ser um conjunto de programas que realizam a análise de evocações a partir dos parâmetros frequência e ordem de aparecimento das evocações. O cruzamento desses dois critérios permite o levantamento dos elementos que provavelmente se associam ao termo indutor e permite o levantamento da organização interna das representações sociais associadas a esses termos. Os resultados estão organizados em quatro quadrantes: no primeiro situam-se os elementos evocados nos primeiros lugares e citados com frequência elevada, constituindo o núcleo central da representação. No segundo estão os elementos que obtiveram uma frequência alta, mas que foram citados nas últimas posições; é o quadrante onde são encontrados os elementos periféricos mais importantes. No terceiro quadrante encontram-se os elementos que foram citados com uma frequência baixa, porém foram evocados primeiramente. No quarto quadrante estão os elementos que correspondem à periferia distante ou segunda periferia. Neste quadrante estão os elementos menos citados e menos prontamente evocados (RIBEIRO, 2000).

Os artigos receberam codificação numérica, como se fossem participantes, e a importância das palavras-chave foi aferida a partir da sequência apresentada no artigo, como se fossem evocações. Os descritores "pobreza", "áreas de pobreza", "periferia", "favela", "pobre" e "população de baixa renda" foram eliminados do banco, por terem sido utilizados nas buscas pelos artigos.

Para obtenção e análise das representações sociais de pobreza, dois programas do software EVOC foram utilizados: o CATEVOC (inclusão das palavras-chave em categorias) e o RANGFRQ (análise das palavras-chave a partir da ordem e da frequência de aparição no banco dos dados).

 

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para uma organização mais sintética dos dados optou-se por disponibilizá-los em tabelas, seguidas das discussões sobre as temáticas. Na Tabela 1 está a distribuição dos artigos publicados entre 1997 e 2007. Nota-se um crescimento da publicação sobre a pobreza a partir 2000 e o ápice no período de 2004 a 2006, que concentra 53,7% da produção. Apesar de a investigação realizada em 2007 ter contemplado período menor, verificou-se que os seis primeiros meses daquele ano apresentam uma produção proporcionalmente inferior à do mesmo período nos últimos três anos. No entanto, não é possível inferir com segurança a tendência de queda no interesse sobre o tema.

Como o homem é um ser social e como todos os processos socioculturais presentes em sua constituição, inclusive a pobreza e seus determinantes, devem ser contextualizados política, histórica e economicamente, optou-se por realizar um breve histórico para situar as duas hipóteses para o aumento a partir de 2000 e concentração da produção sobre pobreza no triênio 2004-2006. Essa contextualização irá abranger duas temáticas recorrentes em todo o processo da pesquisa sobre as RS de pobreza identificadas na produção acadêmica: as políticas sociais e políticas de saúde governamentais.

 

 

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelas mudanças no sistema de saúde, ocorridas no âmbito político-institucional, devido ao processo de redemocratização iniciado nos anos de 1980. Nessa mesma época começa o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, constituído inicialmente por uma parcela da intelectualidade universitária e por profissionais da área da saúde. Posteriormente, incorporaram-se ao movimento outros segmentos da sociedade, como centrais sindicais, movimentos populares de saúde e alguns parlamentares (NUNES, 2000). A principal conquista desse movimento foi o estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988, que foi posteriormente regulamentada através das Leis nº 8.080/1990 (BRASIL, 1990) e 8.142/1990 (BRASIL, 1990).

O SUS apresentou um novo modelo de atenção à saúde no País, já que essa passou a ser compreendida como um direito fundamental do indivíduo, cabendo ao governo (União, Estados e Municípios) garantir esse direito a partir de políticas públicas baseadas em três princípios fundamentais (VASCONCELOS; PASCHE, 2009): universalidade (o sistema de saúde deve atender a todos sem distinções ou restrições, oferecendo toda a atenção necessária, sem qualquer custo), integralidade (levar em conta todos os aspectos constituintes do indivíduo na formulação das políticas públicas de saúde) e equidade (disponibilização de recursos e serviços segundo as necessidades de cada indivíduo).

Essa modificação no funcionamento do sistema de saúde brasileiro alterou a concepção de saúde, que passou a incluir a participação comunitária na elaboração da atenção básica e o reconhecimento das condições históricas, políticas, sociais, econômicas e afetivas como importantes para a saúde do indivíduo (NUNES, 2000). Atualmente, as políticas de saúde incluem a ESF (Estratégia de Saúde da Família) e o PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde), que incentivam a participação comunitária a partir da valorização do controle social das ações e dos serviços públicos de saúde (ANDRADE, BUENO ;BEZERRA, 2009). A criação do SUS no Brasil, além de incentivar o interesse de profissionais de saúde pela pesquisa na área de saúde coletiva, bem como o fortalecimento e a criação de programas de pós-graduação em saúde pública, possivelmente também influenciou a grande incidência do termo pobreza como temática-chave nas pesquisas em saúde pública.

Na década de 1990, no bojo do processo de redemocratização do País e da promulgação de uma nova constituição, começou-se a pensar na reordenação das políticas sociais como resposta às demandas de uma sociedade com altos índices de desigualdade social e má distribuição de renda, ou seja, uma "democratização social" após a democratização política. Na gestão federal entre 1995 e 2002, adotou-se um modelo neoliberal em que a estabilidade econômica e o reordenamento das contas públicas foram vistos como meio para conquistar o crescimento econômico e as políticas de bem-estar social (SCHWARTZMAN, 2004).

Em 1º de janeiro de 2003 iniciou-se uma nova gestão federal e logo no primeiro dia de governo foi lançado o Programa Fome Zero, que tinha como meta a diminuição da fome e da pobreza no País. Da mudança de governo decorreu uma mudança de prioridades (do econômico para o social), difundindo-se a ideia de que o Brasil, considerado um país caracterizado por forte desigualdade social, pela fome e pela miséria, necessitava urgentemente de políticas redistributivas, de mobilização e promoção social como estratégias para a melhoria das condições de vida da população brasileira (SCHWARTZMAN, 2004). O fortalecimento dos programas sociais, bem como a necessidade de se criar instrumentos de avaliação dessas políticas, repercutiu em vários setores da sociedade, entre eles a mídia e a academia, o que pode ter refletido no aumento de artigos sobre essas temáticas justamente nos primeiros anos dessa gestão.

Na Tabela 2 está a estrutura das representações sociais de pobreza. Dois critérios devem ser observados: a frequência, ou seja, o número de vezes que o termo foi encontrado no banco de dados composto pelas palavras-chave do artigo, e a ordem que os termos apareciam nas palavras-chave dos artigos. A média representa a ordem de aparição da palavra. Palavras que apareciam em primeiro lugar entre as palavras-chave do artigo apresentam uma média menor.

O núcleo central das representações sociais (RS) de pobreza é constituído pelo elemento Políticas Sociais. Os elementos Políticas Públicas, Saúde Pública e Brasil, situados no sistema periférico, reforçam a ideia de pobreza como matéria de intervenção governamental.

Nos últimos anos, principalmente após a primeira eleição do atual governo, houve uma ênfase maior nas políticas públicas de combate às situações de pobreza, como a má distribuição de renda, a miséria e a fome. Nota-se claramente a inclusão do governo como elemento da representação da pobreza, o que também é verificado pela inclusão das palavras-chave relacionadas às ações governamentais (Tabela 3). A pobreza como objeto da intervenção governamental aparece a partir do século XIX, através das políticas higienistas e das práticas institucionalizadoras, como a criação de orfanatos, asilos e hospícios (DONZELOT, 2001).

 

 

As RS de pobreza também são constituídas por elementos relacionados à saúde, como AIDS, Desnutrição, Obesidade, Epidemiologia e Saúde Pública, e apresentam a categoria Saúde com 27,6% das palavras-chave dos artigos. Novamente destacam-se as questões relacionadas às políticas sociais governamentais. A Ciência da Saúde aparece como área que publica e produz conhecimento sobre a pobreza, tendo tradição na pesquisa, inicialmente com perspectivas eugenistas e higienistas da pobreza (BOARINI; YAMAMOTO, 2004), mas atualmente pensando a saúde pública a partir da participação comunitária e do controle social (NUNES, 2000).

Aspectos econômicos e sociais utilizados nas definições de pobreza também aparecem com grande frequência nas periferias das representações sociais de pobreza e nas categorias. Esses aspectos são encontrados nas palavras-chave de inúmeros artigos das Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas (responsáveis por 62,3% do total de artigos do banco de dados). Conhecimentos das áreas de política social, sociologia, antropologia, economia, administração e demografia são utilizados nas conceituações e explicações sobre a pobreza (ROCHA, 2003). As Ciências Sociais aparecem como elemento das RS de pobreza, bem como na categoria "Fatores econômicos e demográficos da pobreza", sendo representada como conhecimento científico legítimo preocupado em investigar a temática pobreza.

 

 

As categorias "resultantes da pobreza", "redução da pobreza" e "governo" apresentam elementos que se configuram de forma a produzir representações sociais de pobreza que podem ser, de certa forma, sintetizadas na seguinte sentença: "políticas sociais e políticas públicas governamentais são a forma de reduzir a desigualdade e exclusão social e gerar distribuição de renda".

Na Tabela 4 está a distribuição dos artigos por área de assunto onde foram publicados. O CNPq, em sua classificação das áreas do conhecimento, adota nove categorias: Ciências Exatas e da Terra, Ciências Biológicas, Engenharias, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes e Outros. Apesar de o processo de criação de banco de dados não se restringir à busca pelas palavras-chave a determinadas áreas do conhecimento, só foram encontrados artigos em que a palavra pobreza e demais descritores já mencionados apareceram nas seguintes áreas: Ciências Humanas, Ciências da Saúde e Ciências Sociais Aplicadas.

 

 

A área de Ciências Humanas (45%) foi a que concentrou o maior número de artigos publicados, seguida pelas Ciências da Saúde (38%) e Ciências Sociais Aplicadas (17%). A área de Ciências Humanas, além de possuir o maior número de artigos indexados, incorpora artigos de autores vinculados a outras áreas, principalmente das Ciências Sociais Aplicadas. Quanto à área de atuação dos autores dos artigos, verifica-se equilíbrio entre as áreas de conhecimento. Isso indica certo diálogo entre as áreas na produção de conhecimento sobre a pobreza e um ensaio de uma abordagem multidisciplinar sobre o tema: artigos das ciências da saúde abordam aspectos sociais e antropológicos; periódicos das Ciências Humanas publicam artigos de autores vinculados às Ciências Sociais Aplicadas. Dessa forma, uma opção por uma área de pesquisa não significa a adoção exclusiva de referenciais teóricos daquela área. Essa amplitude faz com que a abordagem conceitual da pobreza desse conjunto de artigos seja enriquecida e evidencia a natural complexidade do conceito de pobreza.

Destaca-se a presença pouco significativa de periódicos, artigos e autores filiados à Psicologia. Em dez anos de produção científica sobre a pobreza, foram identificados somente quatro artigos de Psicologia sobre o tema. Apesar de existirem inúmeros artigos empíricos publicados a respeito de populações pobres e excluídas socialmente, os fatores estruturais que resultam na pobreza não estão sendo abordados pela Psicologia. Esses resultados indicam que mesmo com os avanços teóricos, metodológicos e da prática profissional empreendidos pela psicologia social e comunitária, a pobreza ainda vem sendo tratada como um fenômeno isolado: fala-se muito dos pobres e pouco da pobreza, fato já indicado por Dantas (2007).

Sen (2001) conceituou a pobreza para além da carência material de recursos, caracterizando-a como privação de liberdade ou escolha que resulta em morte precoce, baixos índices educacionais, desemprego, morbidez, exclusão social, dentre outras deficiências. Nesta perspectiva, ela é vista como ausência de liberdade para realizar coisas que são valiosas para o viver humano, os chamados funcionamentos (LAVINAS, 2003; SANTOS, 2007), ou seja, um conjunto de capacidades ou habilidades que permitam ao indivíduo exercer a autonomia e viver a vida da forma que achar mais adequada. A complexidade dos aspectos incluídos na conceituação oferecida por Sen (2001) indica a necessidade de articulação dos conhecimentos produzidos em diferentes áreas.

No entanto, embora exista uma produção teórico-empírica diversificada, que considera aspectos históricos, morais, religiosos, políticos, sociais, antropológicos, culturais e psicossociais, constata-se que a articulação dos conhecimentos produzidos é incipiente e que as contribuições da Psicologia encontram-se, ainda, muito aquém do que esta subárea de conhecimento poderia oferecer.

A Tabela 5 ilustra a distribuição dos artigos em relação à localização da instituição à qual pertencem os periódicos que veicularam as publicações analisadas. Apesar de proporcionalmente haver concentração de um maior número de pessoas em situação de pobreza na Região Nordeste (IBGE, 2007), apenas um artigo produzido nesta região foi encontrado. A Região Sudeste ainda aparece como predominante na produção e publicação científica sobre a pobreza. Rio de Janeiro e São Paulo destacam-se como líderes em número de artigos publicados. Infere-se que a presença maciça dos grandes institutos de pesquisa, a concentração de programas de pós-graduação nesta região e a consequente desigualdade na distribuição de financiamentos de pesquisa, apontada por Yamamoto (2000), sejam os fatores responsáveis por esta situação.

 

 

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao contextualizar historicamente a produção acadêmica sobre pobreza, identificando a representação social a partir das palavras-chave dos artigos, em vez de ter certezas ou conclusões, surgiram indagações e questionamentos sobre a produção das representações sociais de pobreza no meio científico.

Observam-se o crescimento da produção a respeito da pobreza e o aumento do interesse de diversas áreas acerca dessa questão, porém tanto a divulgação quanto a produção científica ainda encontram-se concentradas no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Este fato indica a necessidade de incentivo à pesquisa científica sobre a temática da pobreza em outras regiões brasileiras, principalmente onde os índices de desenvolvimento humano são menores. Os resultados sobre a incipiente produção da Psicologia sobre pobreza evidenciam a necessidade de se pensar o papel da produção da área sobre as questões sociais. Também indicam a necessidade de articulação teórica e prática com outras áreas de conhecimento, principalmente das Ciências Humanas, como forma de contribuir para a produção de conhecimento a respeito da pobreza e criação de novas práticas e formas de intervenção que objetivam reduzir as desigualdades sociais e melhorar a qualidade de vida da população brasileira.

 

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em: 5/8/2009
Aprovado para publicação em: 11/7/2010

 

 

* Mestranda PPGP/UFES
** PPGP/UFES Apoio: Capes e CNPq

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