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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre July 2013

 

ARTIGOS

 

A violência doméstica a partir do discurso de mulheres agredidas

 

Domestic violence from the perception of battered women

 

 

Natália Zancan1, I; Virginia Wassermann2, II; Gabriela Quadros de Lima3, II

I Pós-graduanda de Especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental na Faculdade Meridional (IMED)
II Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo compreender a percepção de mulheres sobre a violência sofrida pelo parceiro íntimo. A partir de abordagem metodológica qualitativa, o estudo foi desenvolvido com a participação de quatro mulheres que responderam a uma ficha de dados pessoais e sociodemográficos e a uma entrevista semiestruturada. Os conteúdos obtidos através das entrevistas foram codificados por categorias de respostas através da técnica de análise de conteúdo. Identificou-se que a violência representa para as mulheres o medo das constantes ameaças, e que a permanência no relacionamento ocorre devido à esperança da mudança de comportamento do cônjuge. O uso de álcool e/ou outras drogas e o ciúme por parte do parceiro, assim como a presença de violência na família de origem são fatores associados à violência atual.

Palavras-chave: Violência contra a mulher, Violência doméstica, Percepção da violência sofrida.


ABSTRACT

This paper aims to understand women's perception of intimate partner violence. In accordance with qualitative methodological approach, the study was conducted with the participation of four women who answered to a personal and socio-demographic data sheet and a semi-structured interview. The information obtained through the interviews have been coded into answers categories using content analysis technique. It was identified that violence represents to women the fear of threats, and staying in a relationship is due to a hope for change in the spouse's behavior. Alcohol and/or other drugs use and the jealousy by the partner, as well as the presence of violence in the family of origin, are factors related to the actual violence.

Keywords: Violence against women, Domestic violence, Perception of suffered violence.


 

 

Introdução

A violência presente nas relações interpessoais tem merecido lugar de destaque entre as preocupações dos profissionais da saúde por ser considerada um problema de saúde pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS), ao publicar o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, define a violência como o uso intencional de força ou de poder físico, de fato ou como ameaça, contra si mesmo, outra pessoa, grupo ou comunidade, que cause ou tenha muita probabilidade de causar lesões, morte, danos psicológicos, transtornos de desenvolvimento ou privações (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi, & Lozano, 2002).

Diante desse complexo fenômeno da violência, amplamente presente na sociedade, encontra-se a violência contra a mulher, sendo a sua forma mais comum, segundo Schraiber et al. (2007), a perpetrada por parceiros íntimos. Santi, Nakano e Lettiere (2010) referem que a violência contra a mulher se manifesta de diferentes maneiras e em diversas ocasiões. Dentre essas, destacam-se aquelas cometidas no ambiente socialmente estabelecido para as mulheres, que é a esfera privada, a família e o domicílio. Assim, a violência doméstica refere-se a todas as formas de violência e aos comportamentos dominantes praticados no âmbito doméstico e familiar, podendo ser psicológica, física ou sexual.

Nesse contexto, Schraiber, D'Oliveira e Couto (2006) mencionam que a violência no domínio das relações familiares muitas vezes deixa de ser entendida como violência pela sociedade, sendo frequentemente invisível e caracterizada como uma situação normal. Contudo, entende-se que a violência doméstica não pode ser vista como um fato costumeiro e, no campo da saúde, é necessário ampliar seu olhar além das consequências à saúde, preocupando-se também com a sua prevenção. Gomes, Minayo e Silva (2005) referem que a violência contra a mulher é uma violação dos direitos humanos e estima-se que esse tipo de violência cause mais mortes às mulheres de 15 a 44 anos que o câncer, a malária, os acidentes de trânsito e as guerras. Como forma de agressão se incluem assassinatos, estupros, abusos físicos, sexuais e emocionais, prostituição forçada, mutilação genital, violência racial, entre outras. Importante destacar que a violência vivenciada pela mulher deixa marcas físicas e consequências psicológicas. De acordo com Sá (2011) a violência tem sido considerada um sério fator de risco à saúde mental da mulher, tendo em vista que deixa suas vítimas altamente suscetíveis psiquicamente, ocasionando sérios agravos à sua qualidade de vida e ao desenvolvimento de comportamentos de risco.

No Brasil, a violência contra a mulher ganhou expressão através do movimento feminista. A vitimização da mulher no espaço conjugal foi um dos maiores alvos do movimento, trazendo para a esfera pública um assunto que até então era visto como de âmbito privado. Do ponto de vista legislativo, a Lei 11.340 (Código Civil Brasileiro), de 7 de agosto de 2006, foi sancionada criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Por essa lei, todo caso de violência doméstica contra a mulher é considerado crime, passando por inquérito policial, e remetido ao Ministério Público. A lei possibilita que o agressor seja preso em flagrante, ou tenha sua prisão preventiva decretada quando ameaçar a integridade física da mulher. São incluídas medidas de proteção para a mulher e espera-se o afastamento do homem do ambiente familiar. Esta lei entrou em vigor em 22 de setembro de 2006, recebendo o nome de “Lei Maria da Penha". Também, foram criados serviços específicos voltados para o enfrentamento do problema, como as delegacias especializadas de atendimento à mulher (DEAM) (Nobre & Barreira, 2008).

No entanto, muitas mulheres ainda deixam de prestar queixa contra o agressor e outras não reconhecem a situação vivida como violência. Também pode ocorrer de as mulheres se sentirem envergonhadas e culpadas pela agressão sofrida, passando a ocultar os fatos (Monteiro & Souza, 2007; Schraiber et al., 2007).

Com base nessas constatações, surgem questionamentos sobre o porquê de muitas mulheres se submeterem a situações de violência dos seus parceiros conjugais por muito tempo. Partindo do pressuposto de que algumas mulheres repetem esse padrão de funcionamento considerando que sofreram ou presenciaram situações de violência durante a infância e/ou adolescência na família de origem, Hirigoyen (2006) descreve que as mulheres com maiores fatores de vulnerabilidade, como tendência à sujeição, encontrarão maiores dificuldades para se afastar dessa situação. Levando em consideração que uma relação se inicia partindo da ligação de dois psiquismos que se complementam, parte da vulnerabilidade das mulheres poderá estar vinculada/associada à sua história de vida pessoal. Exemplificando esta correlação, é comumente identificada a escolha conjugal na qual um indivíduo ocupa o papel de vítima e o outro de agressor, complementando-se de forma doentia. Desse modo, Hirigoyen (2006) afirma: “já que um traumatismo anterior as fez perderem todas as suas defesas, essas mulheres sabem menos que as outras se defenderem e reagirem a tempo, pois ficaram, de certo modo, fragilizadas” (p. 82).

Assim, o objetivo deste estudo foi identificar as características sociodemográficas de mulheres em situação de violência e compreender a percepção que as mulheres participantes têm sobre a violência perpetrada pelo parceiro íntimo. De acordo com Hirigoyen (2006), “compreender por que se tolera um comportamento intolerável é também compreender como se pode sair dele” (p. 16).

Ressalta-se que este trabalho teve como inspiração a Dissertação de Mestrado de uma das autoras, que teve como objetivo estudar a influência da história de vida na escolha conjugal de mulheres que sofrem violência doméstica (Lima, 2010).

 

Método

O presente estudo, de cunho descritivo, foi desenvolvido por meio de abordagens metodológicas qualitativas. Participaram do estudo quatro mulheres, localizadas por conveniência, maiores de 18 anos, independente de raça, nível socioeconômico e escolaridade, que sofreram violência doméstica perpetrada pelo parceiro íntimo, usuárias de uma Casa de Apoio à Mulher Vítima da Violência, localizada em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Meridional a coordenadora da Casa de Apoio da cidade de Passo Fundo foi contatada para a realização deste estudo.

As mulheres eram convidadas a participar da pesquisa após o devido atendimento prestado pela Casa de Apoio. Foi lido e entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) explicando detalhadamente os objetivos do estudo e, esclarecendo as possíveis dúvidas. Após a aceitação em participar da pesquisa, assinaram o TCLE e preencheram uma Ficha de Dados Pessoais e Sociodemográficos para caracterização da amostra. Os nomes utilizados neste trabalho foram alterados para preservar a identidade das mulheres pesquisadas.

Participaram, também, de uma entrevista semiestruturada com questões abertas. As entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas e codificadas por categorias de respostas pela técnica de análise de conteúdo de Bardin (1991), na proposta de Moraes (1999), resultando nas seguintes categorias: O tipo de violência sofrida; A percepção das mulheres sobre a agressão sofrida pelo parceiro íntimo; As principais causas das agressões; Os motivos pelos quais as mulheres permanecem no relacionamento íntimo violento; A presença de violência no contexto familiar durante a infância.

 

Resultados e discussão

Os dados sociodemográficos, coletados pela Ficha de Dados Pessoais e Sociodemográficos, das quatro participantes do estudo podem ser visualizados na Tabela 1 (nomes fictícios). De forma resumida, apontam que as participantes possuem idade entre 26 e 34 anos, vivem com o parceiro agressor no mínimo há cinco anos e elas já apresentaram mais de uma queixa policial. Quanto à família de origem, três participantes apontaram história de violência doméstica na família. Sobre os parceiros das mulheres entrevistadas, a maioria faz uso de substâncias como álcool e/ou outras drogas.

 

 

A) O tipo de violência sofrida

A respeito do tipo de violência sofrida pelas mulheres deste estudo, foram identificadas ocorrências de violência física, psicológica e sexual. Nos episódios de agressões físicas as participantes da pesquisa referiram ser agredidas por meio de socos, empurrões, ou ainda com facas. No entanto, a violência psicológica esteve sempre presente através de ameaças, humilhações e ofensas.

Caracterizando os tipos de violência de acordo com publicação do Ministério da Saúde que aborda a Violência Intrafamiliar (Brasil, 2001), a violência física é aquela que ocorre quando uma pessoa está em relação de poder sobre outra e causa, ou tem intenção de causar, dano pelo uso da força física ou de algum tipo de arma que pode provocar lesões. Por sua vez, a violência psicológica é definida como “toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa” (p. 20). Nesta são incluídas ações como agressões verbais, rejeição, privação da liberdade, humilhações, ameaças de espancamento e de morte, ofensas, exploração, entre outras. A frequente ocorrência de violência psicológica pode levar a pessoa a sentir-se desvalorizada e adoecer facilmente. Em casos mais graves, quando perpetrada por muito tempo, pode levar a pessoa a apresentar ideias suicidas e, até mesmo a cometer suicídio.

Os relatos a seguir demonstram as situações vivenciadas pelas participantes do estudo:

Ele pulou pra cima de mim e me deu um tapa, e ele falava que se eu fizesse alguma coisa ele ia ficar com a guarda dos meus filhos porque eu não trabalhava e não tinha direito. Ele me ameaçava direto se eu fizesse qualquer coisa que desagradasse, que eu não tinha direito e ia me deixar sem nada. Às vezes era até pior do que agressão mesmo (Roberta).

Ele tirou toda a minha roupa, e era frio, me amarrou com as mãos pra trás, amarrou as pernas, botou um pano na minha boca e me botou no piso e me jogava água gelada. Uma vez ele me deu uma facada no braço e na barriga. ... Eu não falava pra ninguém porque ele sempre dizia que se eu fizesse alguma coisa que ele fosse preso de novo, ele me matava, e eu tinha medo disso (Raquel).

Apesar de existirem diferenças entre os tipos de violência, Silva, Coelho e Caponi (2007) ressaltam que elas se entrelaçam e se misturam de diferentes maneiras. Dando enfoque à violência psicológica, seu desenvolvimento ocorre silenciosamente e progride sem ser identificado, deixando marcas nas pessoas envolvidas. As autoras referem que a “principal diferença entre violência doméstica física e psicológica é que a primeira envolve atos de agressão corporal à vítima, enquanto a segunda forma de agressão decorre de palavras, gestos, olhares a ela dirigidos, sem necessariamente ocorrer o contato físico” (p. 98). Considerando suas características, a violência psicológica geralmente evolui para a violência física.

É importante destacar que a violência sexual também se fez presente, como pode ser visto no relato de Paula:

Às vezes eu tava dormindo e quando eu via eu tava sem roupa já, ele tinha tirado tudo. Eu chorava e pedia por favor, e ele dizia: Tu não é minha mulher?. ... Ele vinha pra cima de mim e eu não tinha como sair de baixo, ele segurava os meus braços e ele botava os pés em cima dos meus pés.

A violência sexual, também presente no cotidiano das mulheres, é caracterizada como um ataque em que o agressor, sem o consentimento da mulher, obriga-a a manter relações sexuais pela força ou por ameaças. As situações podem envolver estupro, assédio sexual, coerção a pornografia, entre outras (Gomes et al., 2005). De acordo com Monteiro e Souza (2007), a violência sexual ocasiona às mulheres sentimentos de submissão e dependência, além de torná-las intensamente humilhadas por serem obrigadas a se sujeitar como objeto sexual do parceiro.

B) A percepção das mulheres sobre a agressão sofrida pelo parceiro íntimo

Buscando compreender o significado da vivência da violência cometida pelo parceiro íntimo, pelo relato das mulheres participantes da pesquisa foi possível identificar a compreensão vaga sobre a ocorrência da violência no ambiente doméstico:

Eu fico a pior pessoa do mundo, fico humilhada. Por tudo o que eu faço, tudo o que eu sou pra ele e ele me trata desse jeito, eu e os filhos. Me sinto muito mal, e fico pensando o porquê disso. Um dia eu quero entender por que ele tem tanto ódio da gente, que estamos sempre apoiando ele (Márcia).

... Depois que passava isso (violência) eu queria entender o porquê, sabe? Eu sempre fui boa dona de casa, fazia comida, lavava as roupas, era tudo certinho. Não saía, não tinha um porquê. Eu só queria entender isso, só isso (Raquel).

O estudo de Monteiro e Souza (2007) descreve que as mulheres têm uma compreensão vaga e mediana sobre os sentidos da vivência de violência conjugal. O cotidiano dessas mulheres envolve conflitos constantes de submissão, menosprezo, solidão e humilhação, expostos pela violência física, sexual e psicológica, no qual a expressam como uma convivência encoberta pelo dominado, por ausência de cuidados e afeto. Assim, a violência conjugal se torna indecifrável, de tal modo que as mulheres não compreendam quão violentadas se encontram.

Nesse sentido, Schraiber, D'Oliveira, Couto, Hanada, Kiss, Durand, Puccia e Andrade (2007) apontam que as mulheres vítimas de violência apresentam pouca percepção a respeito da vivência de violência, pois não reconhecem o ato em quaisquer situações de agressão. Contudo, observa-se o uso do termo violência para as situações de agressões por estranhos e, principalmente, de ordem sexual.

Ainda, Monteiro e Souza (2007) referem-se à compreensão vaga das mulheres como uma forma de aprisionamento através se sentimentos de humilhação e vergonha que sentem delas próprias por permanecerem nessa situação. O arraigado aprisionamento oculta os sentimentos de negação e de submissão, nos quais refletem em uma autoestima fragilizada.

Levando em conta que as agressões físicas são relatadas com mais expressividade, é importante destacar a manifestação de efeitos negativos na saúde mental dessas mulheres, revelando dependência emocional e financeira do seu companheiro, sem perspectiva de crescimento, o que se configura em prejuízos intensos que se relacionam com a qualidade de vida da mulher.

C) As principais causas das agressões

A respeito dos principais motivos de violência, três participantes da amostra relataram o uso de álcool e/ou outras drogas como um importante fator desencadeador das agressões. Segundo seus relatos, frequentemente as agressões ocorriam quando o parceiro estava sob o efeito dessas substâncias:

Ele me manteve refém, não me deixava sair, sabe? A casa era trancada e ele me ameaçava com uma faca, ele inventava qualquer coisa e vinha agredir a família. Bebia na rua e vinha agredir a família, era costume de toda a semana (Márcia).

Quando ele tava drogado, eu não falava com ele porque não ia adiantar. ... Daí eu perguntava por que ele fazia isso, e ele dizia que se arrependia, que era por causa das drogas naquele momento, por isso que ele fazia. ... Sempre acontecia quando ele tava usando drogas. Quando ele tava normal, a gente brigava bastante, discutia, mas nunca chegou a me dar um soco (Raquel).

Percebe-se que o uso de álcool pelo agressor cumpre papel importante em situações de violência. Conforme Deeke, Boing, Oliveira e Coelho (2009), o alcoolismo não só desencadeia o comportamento violento, mas também é visto como motivo de desentendimento entre os casais. Os homens atribuem ao vício o comportamento agressivo, pois o fato de estarem alcoolizados provocaria as agressões.

A probabilidade da ocorrência de violência de homens contra mulheres aumenta quando há consumo de álcool. Estudos (Zaleski, Pinsky, Laranjeira, Ramisetty-Mikler & Caetano, 2010) sugerem que uma grande proporção de indivíduos está sob efeito de álcool quando as agressões acontecem e que indivíduos com problemas relacionados ao álcool, consumido excessivamente, têm maior possibilidade de se envolverem em relacionamentos violentos.

É possível identificar as dificuldades que as mulheres encontram em deixar um relacionamento de violência associado ao uso de álcool e/ou outras drogas pelo parceiro. Mesmo que as agressões não ocorram com frequência, “o comportamento adicto estimula o sentimento de responsabilização sobre o parceiro, visto como doente” (Deeke et al., 2009, p. 255).

Ainda, as quatro participantes da pesquisa referiram que a presença de ciúmes por parte do parceiro provocava o aumento da tensão entre o casal. O ciúme pode constituir uma prática de domínio do homem sobre a mulher, marcado pelo desejo de mantê-la como uma propriedade exclusiva. Quando o ciúme é patológico, Almeida, Rodrigues e Silva (2008) o descrevem como um vulcão emocional sempre prestes a entrar em erupção. O ciúme sugere certa restrição do outro, uma vez que interfere no comportamento do parceiro e em sua liberdade, tornando-se possessivo e controlador e sendo capaz de representar uma ação agressiva. As participantes da pesquisa relataram que seus parceiros manifestavam desconfiança de que estivessem saindo com outros homens, como pode ser visualizado nos relatos a seguir:

Ele desconfiava que eu tava traindo ele, sabe essas coisas assim que é o que ele via, mas não existia. Ele podia ficar comigo 24 horas, não saía de perto dele, e mesmo assim ele dizia que eu tava com outro. ... Ele ia pro presídio no sábado e só volta na segunda, e me deixava trancada dentro de casa. No sábado e domingo eu ficava trancada (Raquel).

Ele foi aos poucos mostrando aquele ciúme, aquela coisa doentia. Eu não podia ter amizade, não podia sair, ele não queria nem que eu trabalhasse. Se fosse por ele eu nem tinha trabalho ainda até hoje. ... Ele sempre imaginava coisas, imaginava que eu tinha outro. Imaginava às vezes quando eu não queria fazer nada, sabe? Ele queria todo dia e falava que eu tinha outro (Márcia).

Uma vez eu tava conversando com um colega e ele enlouqueceu de ciúmes. Me pegou, me botou dentro do carro e começou a me empurrar, me pegou pela blusa e me socava contra o carro, eu fiquei toda roxa, toda machucada. ... Daí eu lembro que, quando chegamos em casa, ele dizia que ia me matar. Ele via coisas e me ameaçava, sabe? (Paula).

Deeke et al. (2009) apontam em sua pesquisa que o ciúme é um importante fator desencadeador das situações de violência. O homem manifesta a desconfiança sobre a traição insistindo que sua suspeita seja confirmada e afirma sentir ciúme da parceira em relação a amigas e ex-namorados ou maridos. Desse modo, o ciúme acaba sendo um dos maiores motivos desencadeadores de discussões e ocorrências de violência. No entanto, o ciúme ainda pode ser considerado como uma forma de justificar a agressão atribuindo a culpa à parceira, considerando que os eventos desencadeadores da agressão não são de sua responsabilidade.

D) Os motivos pelos quais as mulheres permanecem no relacionamento íntimo violento

Ao exporem o motivo que as levaram a permanecer por tanto tempo com os agressores, as participantes da pesquisa referiram pensar serem incapazes de enfrentar a situação por medo das constantes ameaças que sofriam. Nesse sentido, buscando compreender o significado da violência doméstica a partir do discurso da mulher, as motivações ou obstáculos para enfrentá-la ou para aceitá-la, Souto e Braga (2009) identificaram em sua pesquisa a representação da violência doméstica por meio de sentimentos de medo e aprisionamento. O medo é atribuído à sensação de ameaça sobre o perigo da agressão, sendo uma maneira de controle e intimidação, mantendo a violência em silêncio, sem reação. Nessa direção, Tavares e Pereira (2007) mencionam que as mulheres expressam o medo e a insegurança, pois não sabem o que poderá desencadear a fúria do agressor. O medo faz com que as testemunhas e a vítima fechem os olhos e se omitam de qualquer atitude de proteção, assim, não denunciam o agressor.

As mulheres que sofrem violência doméstica recorrem a mecanismos de defesa de estratégia de adaptação e de sobrevivência. Esses fatos se associam ao processo de sujeição das mulheres, o qual contribui para sua permanência em longo prazo na situação de violência. O aprisionamento é relacionado com a perda de liberdade e de dominação pelo outro, encobre sentimentos de negação e de submissão, resultando, assim, numa fragilizada autoestima. O medo de ficar sozinha pode ser um coadjuvante ao aprisionamento da mulher. Desse modo, a condição de mulher, atendendo ao estereótipo de gênero, mantém a subordinação para a prática do abuso (Narvaz & Koller, 2006).

Souto e Braga (2009) relatam que são evidenciadas condutas que atribuem a condição feminina de sujeição ao homem e à violência, destacando a forma como algumas mulheres são socializadas a alcançar a sua realização no casamento idealizado, atendendo às expectativas do parceiro e sendo cuidadora do lar. O casamento é visto como o ponto mais importante a que poderiam chegar, mesmo vivenciando episódios de violência perpetrados pelo parceiro íntimo. Na relação conjugal, a desigualdade de gênero é mais presente, principalmente nos modelos tradicionais de família e casamento, nos quais a posição de provedor econômico configura-se no homem, e a de mãe e cuidadora do lar, na mulher. Ainda, a mulher é mais propensa às relações desiguais de poder, de tal modo que os aspectos característicos da masculinidade confirmam as relações de dominação sobre as mulheres, como no relato de Roberta:

... Ao mesmo tempo que ele não me deixava trabalhar, ele me jogava na cara que me dava de tudo e eu não dava valor pra ele. ... Eu sei que não é verdade, mas tu tenta argumentar pelos filhos, eu morria de medo de deixá-los passar fome.

Considerando que a violência física é mais reconhecida e vista como a mais perigosa, Sagot (2007) expõe em seu estudo que as mulheres relatam a agressão psicológica como a mais dolorosa. Na maternidade, sexualidade e relação com os filhos encontra-se o núcleo do poder feminino como mães, esposas e amantes, e é nesses aspectos que o agressor controla sua companheira. Outra arma de maltrato psicológico é a infidelidade, pois se transforma em motivo para o agressor chantagear e manter o controle, sendo sustentada pela socialização que ensina às mulheres a realizarem os pedidos dos homens para não perdê-los. Ainda, a autora expõe que os homens costumam fazer chantagens psicológicas envolvendo os filhos.

E) A presença de violência no contexto familiar durante a infância

Outro ponto referido pelas mulheres da amostra foi a esperança de que o cônjuge mudasse suas atitudes. Por meio de pedidos de perdão e promessas de que não ocorrerão outros episódios de agressão, o agressor reforça a crença de que realmente pode mudar. Ainda, o comportamento violento do cônjuge é justificado pelo seu papel de bom pai e bom marido nos momentos em que não ocorrem as agressões.

... Eu me sinto sozinha, sinto que não posso reagir, que nem todas às vezes que eu tentei sair de casa. ... Eu tinha pena. Ele chorava, implorava, e eu tenho o coração assim, não adianta, implorava pra mim voltar, eu sempre fui assim (Márcia).

Eu não falava pra ninguém porque eu gostava dele e eu sabia que se ele fizesse alguma coisa, ia pra cadeia de novo, e naquele tempo eu não queria isso porque eu achava que com o tempo ia mudar, né? ... Ele falava que ia mudar, chorava, fazia escândalo, e era isso que eu tinha esperança. Eu fiz de tudo pro casamento dar certo, ele nunca pode se queixar de nada porque eu fiz de tudo (Raquel).

Ele foi muito ruim pra mim e muito ruim pro meu filho, mas também ele foi bom pra nós. ... Ele tá bem proposto a mudar, das outras vezes ele mudava, mas nunca chegava a sentar e falar “eu vou mudar”, e dizia que ele não tava errado, ele não admitia que tava errado. E agora ele falou que viu que não tinha noção de tudo que tava fazendo (Paula).

Cunha (2008) descreve que a relação conjugal violenta é marcada pela ambivalência. As mulheres referem que seus parceiros são “bons” e “maus” ao mesmo tempo, dando a entender que os atos de violência são fatos isolados, porém inseridos na dinâmica do relacionamento. Assim, o parceiro violento está situado em um conflito entre a repulsa e a afeição, visto que desrespeita e bate na sua companheira, mas também a protege, sustenta e é visto como um bom pai. Essa ambivalência, segundo a autora, dificulta o enfrentamento da violência, pois as características positivas do parceiro parecem justificar suas atitudes e criam esperança nas mulheres em relação à mudança de comportamento do parceiro.

Como características negativas algumas mulheres relatam que o comportamento agressivo de seu parceiro é decorrente de dificuldades emocionais, traumas, entre outros. Conforme Cunha (2008), essa interpretação retira a culpa do agressor, inocentando-o de seus atos. No entanto, tanto as características positivas como as negativas parecem proteger as mulheres das dificuldades de estabelecer o rompimento da relação, ao mesmo tempo em que a vítima possui a disposição de perdoar, compreender e suportar a violência. Nesse contexto, o homem é visto como vítima de si mesmo, doente, impulsivo e descontrolado. Desse modo, a compreensão da violência nas relações conjugais é um aspecto que dificulta as rupturas, reafirmando a impotência da mulher para o enfrentamento do problema.

Um importante fator associado à violência que esteve presente na fala das mulheres investigadas refere-se à presença de violência no contexto familiar durante a infância. Além disso, mencionaram que seus parceiros sofreram agressões na infância, as quais podem ter influenciado no caráter violento. É importante destacar o fato de essas mulheres identificarem a semelhança de seus relacionamentos com o dos seus pais no que diz respeito à violência sofrida.

... Meu pai era bem agressivo com minha mãe e com a gente. Ele sempre foi assim. Desde quando a gente era criança nós passamos muitos anos na mesma situação que eu to passando agora. ... A minha irmã tá passando pela mesma situação, parece que isso vai passando de geração pra geração (Márcia).

Meu pai batia na minha mãe, então eu cresci vendo aquela violência. Depois ele não agredia mais fisicamente, mas verbalmente, humilhando ela, e a gente via aquele desprezo que ela tinha por ele. ... Com a mesma idade que eu vi meu pai batendo na minha mãe o meu filho viu meu marido batendo em mim, tava repetindo aquela história (Paula).

Ele (cônjuge) sofreu bastante durante a infância também, o pai era agressivo com os filhos. Se criou assim, o pai e a mãe bebendo dia e noite, não tinha amor de mãe, não tinha amor de pai. Acho que isso aí também ajuda, né? (Márcia).

Os estudos de D'Oliveira et al. (2009) corroboram esses dados destacando que são importantes fatores de risco associados com a história de vida das mulheres. Essas experiências vivenciadas na família de origem têm indicado forte relação com a violência doméstica posterior. Desse modo, presenciar a violência cometida contra a mãe no ambiente doméstico e sofrer violência cometida pelos pais pode aumentar o risco de sofrer violência doméstica no futuro. Como consequência, a mulher torna-se menos capaz de se proteger, com pouco apoio familiar, além de a violência se tornar comum nas relações conjugais.

De acordo com Silva, Neto e Filho (2009), os padrões de sofrimento e violência doméstica na família, se não cessados, podem continuar sendo perpetuados ao longo das gerações. Segundo as autoras, mulheres que sofreram ou presenciaram violência durante a infância são mais propensas a desenvolver problemas psíquicos, o que muitas vezes contribui para a formação de um indivíduo mais vulnerável a vivenciar agressões por parte de seus parceiros. Desse modo, como não foram aprendidos outros modelos de relações familiares, a história de violência vivenciada por homens e mulheres na infância ou adolescência tende a ser reproduzida na vida adulta. Portanto, mesmo a violência transgeracional estando presente no cotidiano da relação familiar, sempre esteve socialmente invisível devido à autoridade do homem na estrutura familiar.

Na constituição de um casamento é importante ressaltar a interferência da cultura em que um casal e/ou uma família está inserida. Alguns casais reportam fenômenos da família de origem, dificultando a sua identidade como casal. É considerável que muitas brigas de casais possuem ligações com as heranças familiares e culturais. Assim, as identificações a que os sujeitos estão relacionados vão além daquelas provenientes da convivência mais próxima, visto que é estabelecido um ciclo entre a cultura, a família, o casal e o indivíduo, podendo ocasionar seu aprisionamento, de tal forma a impedi-lo de desenvolver e de criar um espaço que lhe permita obter modificações nas relações amorosas (Anton, 2009).

A violência doméstica não discrimina nível de escolaridade ou camada social. Pode ocorrer com frequência, considerando que se projeta no espaço das relações familiares, envolvendo atos repetidos que se agravam intensamente por humilhações, agressões físicas e sexuais, desqualificações e ameaças e, o que pode ocasionar danos físicos e psicológicos duradouros (Cunha, 2008).

Com base no exposto, percebe-se que “a violência tem, como pano de fundo, uma relação que, mesmo desfeita, ainda deixou questões inacabadas”. Os vínculos afetivos permanecem permeados por mágoas, ressentimentos ou dependência psicológica, que dificultam a identificação da vítima sobre uma situação de violência. Ofensas constantes estabelecem uma agressão emocional tão intensa quanto a física, o pior da violência doméstica não é a violência propriamente dita, mas a angústia psíquica e a convivência com o medo e o terror (Silva et al., 2007, p. 97).

 

Considerações finais

A ocorrência de violência contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo pode repercutir em diversas consequências. Seja física, seja psicológica ou sexual, a violência é um grave problema, que acontece em todas as camadas sociais e se torna comum no cotidiano do casal. A complexidade das questões envolvidas na dinâmica da violência resulta em desigualdades de autonomia, de posições e de direitos.

É importante ressaltar que a violência conjugal é de caráter multifatorial, tendo em vista os diversos fatores correlacionados. Desse modo, não podemos falar de uma causa única. Conforme os relatos das mulheres da pesquisa, o abuso de substâncias como álcool e/ou outras drogas e o ciúme por parte do parceiro são fatores importantes que contribuem como causas da violência. O ciúme provoca aumento da tensão entre o casal, demonstrando um caráter de dominação e posse. Quando os agressores estão alcoolizados, muitas vezes as mulheres não os denunciam por considerá-los outra pessoa naquele momento.

Outro importante fator identificado na pesquisa associado à violência doméstica contra a mulher diz respeito a um ambiente familiar com histórico de violência presenciada ou sofrida na infância, o qual pode abrir espaço para o comportamento violento. Também indica a vulnerabilidade do gênero, fortemente relacionada com a violência sofrida na vida adulta. Com base nisso, é possível constatar que, se esses padrões de violência na família não forem cessados, poderão se reproduzir através de outras gerações.

Por fim, foi possível identificar que a permanência ao longo do tempo num relacionamento violento ocorre em virtude da esperança de que o cônjuge mude seu comportamento, do medo das constantes ameaças e do controle manipulado pelo agressor. De acordo com Souto e Braga (2009), isso faz com que as mulheres se afastem de pessoas que têm para elas bom significado afetivo, isolando-se socialmente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Natália Zancan
E-mail: natalia.zancan@yahoo.com

Recebido em: 24/07/2012
Revisado em: 01/06/2013
Aceito em: 20/06/2013

 

1 Psicóloga. Pós-graduanda de Especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental na Faculdade Meridional (IMED).
2 Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS/Capes), Especialista em Terapia de Casal e Família (Domus); Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
3 Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS). Doutoranda em Psicologia Clínica (PUCRS). Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).