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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.18 no.2 Porto Alegre dez. 2014

 

ARTIGOS

 

Contextos familiares violentos: da vivência de filho à experiência de pai1

 

Violent family backgrounds: from the experience of son to the experience of father

 

 

Luciana Santos Rodrigues2 ;Anderson Almeida Chalhub3, I

I Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No âmbito da pesquisa sobre família, o tema violência, infelizmente, tem espaço. Apesar de ser o ambiente que, ao nível do ideal, deveria ser protegido, ao nível do real, a família aparece como um lugar de atos e práticas violentas contra os seus integrantes. Esse trabalho analisa, através de pesquisa bibliográfica realizada nas bases de dados Scielo e BVS-psi, a experiência de paternidade de homens oriundos de ambientes familiares violentos, buscando conhecer a relação entre a vivência de violência na família de origem e a experiência da paternidade na família atual. Foi possível identificar que a violência intrafamiliar vivenciada na infância influencia na experiência da paternidade, quando os filhos da violência tornam-se pais. No entanto, essa influência não determina a manutenção dos padrões relacionais disfuncionais da família de origem. Manter ou transformar padrões relacionais disfuncionais depende de uma conjunção de fatores de risco e proteção.

Palavras-chave: Paternidade, Violência intrafamiliar, Transmissão intergeracional.


ABSTRACT

As part of the research on family, violence has unfortunately space. Despite being the environment that, in the ideal level, should be protected, at the level of the real, the family appears as a place of violent acts and practices against its members. This study examine, through a literature research in the databases Scielo and BVS-psi, the experience of fatherhood of men from violent family backgrounds, seeking to know the relationship between the experience of violence in the origin family and the experience of fatherhood in the family today. We found that domestic violence experienced in childhood influences the experience of fatherhood, when the sons of violence become parents. However, this influence doesn’t determine the maintenance of dysfunctional relational patterns of the origin family. Maintain or turn dysfunctional relational patterns depends on a combination of risk and protective factors.

Keywords: Fatherhood, Domestic violence, Intergerational transmission.


 

 

Introdução

Somos tecidos de histórias. Para ser pais, é preciso narrar, mas a premissa é ter sido filho e saber disso de algum forma (Gutfreind, 2010, p. 11).

Um bebê nasce e torna-se mais um no ambiente familiar composto de outras pessoas, de diferentes vivências, experiências, interações, conflitos, histórias. Da qualidade do cuidado que recebe, adquire as suas primeiras experiências com suas figuras de apego, neste primeiro momento, mãe, pai e outros significativos.

Destas vivências – boas ou ruins – este bebê começa a construir os seus modelos de interação e de relação com o ambiente e com outras pessoas fora deste núcleo primário, o que lhe possibilitará a construção de novos vínculos. Como uma destas possibilidades, está o vínculo amoroso que pode proporcionar a este indivíduo uma nova experiência: a de ser mãe ou de ser pai.

Nesse processo de tornar-se pai é importante revisitar a condição de ser filho. Esta revisita pode possibilitar a manutenção ou a ressignificação e transformação de padrões relacionais disfuncionais, considerando que a transmissão intergeracional decorre da vivência compartilhada por indivíduos que convivem em um mesmo espaço, mas que correspondem a gerações diferentes. Sendo assim, os modelos de pai e de educação construídos ao longo da sua vivência de filho e no contato com outras pessoas significativas influenciam na construção do modelo de pai a ser adotado no exercício da paternidade.

Desta forma, filhos de famílias que tiveram a violência como padrão interacional e modelo de educação, podem reproduzir o contexto familiar violento quando da formação das suas famílias. É importante, portanto, tentar compreender o fenômeno da violência intrafamiliar pensando nas suas consequências para a criança, e na possibilidade ou não de repetição da violência no momento de exercer a paternidade.

Neste ambiente de interações disfuncionais e caracterizadas por uma comunicação de duplo vínculo (Bateson, 1956, In Osório, 2009), nas quais são passadas duas mensagens contrapostas (proteção e violência), como se daria a vivência de filho? Qual a imagem que o filho que sofre violência tem dos seus pais? E, ainda mais intrigante, como exercer a paternidade tendo sido vítima de contextos familiares violentos: reproduzindo ou ressignificando?

Dessa forma, este artigo tem como objetivo geral compreender a relação entre a vivência da violência intrafamiliar e a experiência de paternidade de homens oriundos de contextos familiares violentos. Especificamente, objetivou: a) entender o fenômeno da violência intrafamiliar no Brasil e no mundo; b) compreender a experiência da paternidade de homens oriundos de contextos familiares violentos; e c) elaborar um painel dos artigos que mostram algum tipo de relação entre a vivência de violência na família de origem e a experiência da paternidade, no que tange os fatores de risco e proteção para esse tipo de violência.

Como método, foi adotada a pesquisa bibliográfica, tipo de pesquisa cuja finalidade é "quantificar os processos de comunicação escrita e o emprego de indicadores bibliométricos para medir a produção científica" (Reveles; Takahashi, 2007, p. 246). Neste sentido, a presente pesquisa foi realizada mediante uma busca eletrônica de artigos indexados em bases de dados (Scielo e BVS- Psi), procurando identificar publicações em um período de dez anos (2002 a 2012) que trouxessem como foco a temática da violência intrafamiliar. Como termos descritores, foram utilizados: violência intrafamiliar e violência doméstica.

Foram selecionados estudos destes últimos dez anos em função do tema violência intrafamiliar ter saído da reclusão do privado e estar sendo mais discutido no âmbito público, inclusive com a participação legislativa efetiva, através da criação de leis que criminalizam esse tipo de violência (Lei Maria da Penha no. 11.340/06 e Lei contra a Violência Doméstica no. 10.886/04), resultando em um maior interesse da comunidade acadêmica em compreender as suas causas e consequências.

A representatividade da pesquisa acadêmica desta temática aparece na contribuição aos estudos sobre a família, em especial sobre a violência intrafamiliar, parentalidade e, especificamente, paternidade. Poucos são os estudos de campo nacionais que visam descobrir qual a influência da vivência de violência intrafamiliar, especificamente na construção do significado e da experiência da paternidade.

 

Compreendendo a violência intrafamiliar da vivência de filho à experiência de pai

O fenômeno da violência intrafamiliar no Brasil e no mundo

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), violência é

o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (UNICEF, 2009, p. 4).

Em 2002, quando da publicação do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, a OMS propôs a divisão do conceito de violência em três categorias: violência auto infligida, violência interpessoal e violência coletiva. Segundo Zuma (2004), a violência intrafamiliar está inserida na categoria violência interpessoal e pode ser definida como aquela que "ocorre em grande parte entre os membros da família e parceiros íntimos, normalmente, mas não exclusivamente, dentro de casa" (Krug, 2002, In Zuma, 2004).

Várias são as formas de violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, quais sejam: a) violência física; b) violência psicológica; e c) violência verbal psicológica (ver QUADRO 1).

 

 

Segundo Azevedo e Guerra (1993, In Ribeiro; Borges, 2005, p. 30-31), a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes é:

Uma violência interpessoal e subjetiva; um abuso do poder disciplinar e coercitivo dos pais ou responsáveis; um processo que reduz a vítima à condição de objeto de maus-tratos, uma forma de violação dos direitos essenciais da criança e do adolescente enquanto pessoas e, portanto, uma negação de valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade e a segurança.

Destes grandes tipos de violência intrafamiliar, um estudo mais apurado de Arón (2010) apresenta ainda as seguintes subdivisões relativas aos maus-tratos infantis, ou seja, toda conduta que, por ação ou omissão, interfira no desenvolvimento físico, psicológico ou sexual de crianças: a) maltrato físico; b) maltrato emocional; c) ser testemunha de violência intrafamiliar; d) exploração; e) abuso sexual; e f) abandono e negligência nos cuidados (ver QUADRO 2).

 

 

A violência intrafamiliar é uma questão de saúde pública em todo o mundo, impactando nos serviços de saúde, especialmente serviços de urgência, traumatologia, ginecologia e obstetrícia e pediatria. Mas não é um problema da contemporaneidade; é um fenômeno que transcende os tempos. Registros históricos comprovam que diferentes povos em diferentes culturas já praticavam esse tipo específico de violência contra aqueles que deveriam proteger. Historicamente, os mais atingidos pela violência intrafamiliar são aqueles considerados os membros mais frágeis: mulheres e crianças. No entanto, este fenômeno impacta a todo o corpo familiar, autores da violência e os que são atingidos direta e indiretamente por ela (Aldrighi, 2006).

Apenas na década de 60 do século passado, o tema passou a ser entendido como problema nos Estados Unidos, quando foi realizado o primeiro estudo sociológico sobre violência intrafamiliar contra crianças, com a descoberta, à época, que as principais autoras deste tipo de violência eram as mães (Benett, 1997, In Aldrighi, 2006). Na Inglaterra, em 1971, descobertas do acadêmico Erin Pizzey informam que, das mulheres abrigadas em função de terem sido acometidas por violência física dos maridos, mais de 50% eram tão ou mais violentas que seus maridos com os filhos (Aldrighi, 2006), o que se configura, segundo Ribeiro e Borges (2005), um ciclo de violência.

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, as vítimas dos maus-tratos e abandono na América Latina e Caribe, são crianças e adolescentes com faixa etária de zero a 18 anos que sofrem, ocasional ou habitualmente, atos de violência física, sexual ou emocional, na família ou nas instituições sociais. Estudos realizados entre 2000 e 2008 em alguns países da América do Sul (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Uruguai), mostram que, em geral, 60% das crianças e adolescentes dessas localidades sofrem violência intrafamiliar, com ocorrência de danos físicos, sexuais e psicológicos (UNICEF, 2009).

No Brasil, no que diz respeito à violência familiar contra crianças, estudo do Programa Médico de Família de Niterói/RJ (Rocha; Moraes, 2011), realizado em 2007 através de um inquérito de base populacional com amostra de 278 crianças na faixa etária de zero a nove anos, apresentou como resultado a ocorrência de 96,7% de agressão psicológica (humilhar, xingar, gritar, ameaçar bater, ameaçar expulsar de casa), de 93,9% de castigo corporal (dar palmada, bater no bumbum com objetos, bater nas mãos, pernas ou braços, beliscar, sacudir, dar tapa na face, cabeça ou orelhas), de 51,4% de violência física menor (bater em outras partes do corpo com objetos, dar soco ou pontapés, jogar no chão) e de 19,8% de violência física grave (agarrar pelo pescoço, espancar, queimar, ameaçar com faca ou arma) nos domicílios entrevistados. Apesar de a mãe aparecer como principal ente familiar agressor nos tipos de maus-tratos abordados no referido estudo, ambos os pais são responsáveis pela vivência de agressões psicológicas e punições corporais na comunidade pesquisada.

Os maus-tratos infantis vão contra o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1990) e contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH (ONU, 1948). É uma realidade cotidiana vivenciada pela população do país e do mundo, não distinguindo classe social, etnia e gênero, e se apresenta de diversas formas, incluindo agressões físicas e psicológicas, violência e abuso sexual e omissão, supressão ou transgressão dos direitos individuais e coletivos, abandono completo ou parcial, e, por ter como ambiente o familiar, tem como principais autores pai, mãe e outro adulto da família.

Pouco denunciado, este tipo de violência permanece em segredo, por medo de represálias, falta de informações sobre como denunciar, ou ainda, porque muitos acreditam que castigos físicos e verbais fazem parte do processo de educação e socialização da criança. Segundo Martins e Bucher-Maluschke (2005, p. 59),

educar de modo autoritário significa moldar, controlar e julgar o comportamento e as atitudes dos filhos de acordo com o padrão de conduta estabelecido pelos pais. Eles supervalorizam a obediência à autoridade como uma virtude e utilizam medidas punitivas, e até mesmo abusivas, para ‘quebrar a vontade do filho’, caso sintam que sua autoridade está ameaçada.

Em geral, até o final do século passado não existiam leis específicas sobre o tema e sistemas confiáveis de registros das poucas denúncias realizadas, apesar das estimativas darem conta de que, todos os anos, 275 milhões de meninos e meninas são vítimas de violência intrafamiliar no mundo (UNICEF, 2009).

Em função do quadro da violência intrafamiliar no Brasil e no mundo, o governo federal brasileiro começou a agir através de algumas ações como a realização da Oficina de Indicadores sobre Violência Intrafamiliar e Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, promovida desde 1998 pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), com apoio do Ministério da Justiça (Leal; César, 1998) e da publicação pela Secretaria de Políticas em Saúde do Ministério da Saúde de uma cartilha com diretrizes e orientações sobre a atuação nos serviços públicos de saúde em casos de violência intrafamiliar (Brasil, 2001).

Em 18 de junho de 2004, no Brasil, foi assinada a Lei 10.886/04, tipificando a violência intrafamiliar/doméstica no Código Penal Brasileiro. Com esta lei, a violência cometida contra "ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro" (Brasil, 2004), antes enquadrada como lesão corporal, agora constitui um crime específico com pena passível de detenção de seis meses a um ano.

Com esse reconhecimento, em lei, de que a violência intrafamiliar é um crime, vários setores da sociedade civil se mobilizaram para divulgar a ideia de que "um tapinha dói4" e de que qualquer tipo de violência deve ser combatido no âmbito familiar, através de programas, projetos e campanhas, tais como: a) Projeto Paz em Casa, Paz no Mundo, do Instituto Noos em parceria com o Instituto Avon (Teixeira; Maia, 2011); b) Rede Não Bata, Eduque, que tem como objetivo principal erradicar os castigos físicos e psicológicos contra crianças e adolescentes, com o estímulo a relações familiares baseadas no respeito, garantindo à criança e ao adolescente integridade física e psicológica imprescindível ao seu desenvolvimento pleno e saudável (Instituto Noos; Promundo, 2008); e c) Rede Nacional da Primeira Infância, que congrega diversas organizações não governamentais que atuam na proteção integral aos direitos das crianças em vários estados do país.

Segundo Isabel Cuadros Ferré, médica psiquiatra colombiana, os principais fatores de vulnerabilidade para a ocorrência de violência intrafamiliar contra crianças mudaram muito pouco desde 1962, quando o Dr. Henry Kempe, médico pediatra de Denver, Estados Unidos, descreveu para o mundo a síndrome da criança espancada, quais sejam: a) os pais terem antecedentes de privação psicoafetiva, abandono ou maltrato físico ou sexual na sua infância; b) a criança ser percebida como não digna de ser amada; c) existência de uma crise familiar; e d) a família ser nuclear, isolada dos sistemas de apoio da comunidade (UNICEF, 2009).

Neste particular, vários estudos já foram realizados trazendo indícios do que Straus e Gelles (1986, In Aldrighi, 2006, p. 201) chamou de "aprendizagem social da violência no núcleo familiar", com evidências de eventos de violência intrafamiliar em diversas gerações. Outros estudos relacionam a delinquência na infância e na adolescência à vivência de violência na família de origem; alguns autores chegam a citar que o aprendizado da violência contra o outro é realizado no ambiente familiar, ou seja, "os jovens aprendem a ser criminosos com suas próprias famílias" (Cerveny, 1994, In Aldrighi, 2006, p. 201). Pesquisa mais recente de Widow (2004, In Aldrighi, 2006) correlaciona a vivência de violência na família de origem por crianças com a ocorrência, na sociedade norte-americana, de delinquência juvenil, de criminalidade na vida adulta e de comportamentos violentos altamente destrutivos.

No entanto, não é preciso esperar a vida adulta para que as consequências da vivência da violência intrafamiliar sejam percebidas. Existem impactos a curto e médio prazos no desenvolvimento físico (danos físicos leves a danos cerebrais irreversíveis), comportamental (empobrecimento das relações interpessoais, agressão física, comportamentos antissociais e delinquência), cognitivo (baixo rendimento escolar, problemas de aprendizagem e de atenção) e psicológico (problemas de autoestima, depressão, uso de drogas, autoagressão e até suicídio) (Barone; Koller, 2007; Cepeda-Cuervo; Moncada-Sánchez; P. Álvarez, 2007; Roque; Ferriani; Silva, 2008; Pimentel; Araújo, 2009; Gabatz et. al., 2010).

A violência intrafamiliar, qualquer que seja o tipo (ver QUADROS 1 e 2), deixa marcas no desenvolvimento da criança/adolescente que, direta ou indiretamente, a vivencia. No momento do vínculo amoroso, tais marcas podem ressurgir quando o indivíduo se depara com uma nova experiência: a de ser mãe ou de ser pai.

De ser pai: significado e experiência

Ao abordar o termo ‘família’, deve-se ressaltar que este é um conceito que está em processo de mudança, tanto em sua concepção quanto na sua estrutura. Segundo Poster (1979, In Ramires, 1997, p. 15), "a história da família é hoje conceptualizada como descontínua, não-linear e não-homogênea ... consiste em padrões familiares distintos, cada um deles com sua própria história, cada um deles requerendo o seu próprio conjunto de explicações de origem e mudanças".

Sendo assim, pesquisar família é pesquisar questões históricas relativas à formação das sociedades, assim como compreender a multiplicidade de vivências e experiências subjetivas dos indivíduos que compõem os diferentes arranjos familiares. Resumindo: é transitar, de forma dinâmica e sistêmica, pelo macro e pelo microcosmo das relações humanas que se inter-relacionam seja em função da parentalidade biológica – relacionada estritamente à procriação – ou da parentalidade social – relacionada à criação, proteção e educação, não necessariamente de filhos biológicos (Barudy; Dantagnan, 2005), ou ainda "por laços legais, direitos e obrigações, religião e uma quantidade variada e diversificada de sentimentos psicológicos, tais como amor, afeto, respeito e medo" (Lévi-Strauss, 1966, In Chaves, 2006, p. 47).

No âmbito da família e, em especial, da parentalidade, fala-se e escreve-se pouco sobre a paternidade. O pai, no contexto familiar, parece ser relegado a segundo plano, a "uma porção insignificante no processo de criação das crianças" (Ramires, 1997, p. 25). No entanto, algumas pesquisas, geralmente realizadas em outros países, estão trazendo como objeto de estudo a experiência da paternidade, já que, diante das constantes mudanças socioeconômicas e da mudança da condição feminina na sociedade contemporânea, o pai hoje "é visto como tão importante quanto a mãe para o desenvolvimento emocional saudável dos filhos e do ambiente familiar" (Chaves, 2006, p. 56).

Ramires (1997) cita Robert Fein que apresenta uma nova concepção da paternidade, dividindo-a em três possibilidades segundo a imagem paterna: tradicional, moderna e emergente. No modelo tradicional, a imagem paterna está diretamente relacionada ao poder e à autoridade; é o pai provedor, que tem a função de "oferecer suporte emocional e apoio à sua esposa, com pouco envolvimento direto com os filhos/filhas" (Ramires, 1997, p. 31). Na perspectiva moderna, a imagem paterna está relacionada à moral e educação acadêmica; é o pai enquanto modelo de identificação de gênero, importante para o desenvolvimento acadêmico e moral. Já a perspectiva emergente traz que os "homens são psicologicamente capazes de participar numa longa escala de comportamentos paternos ... com um papel ativo nos cuidados e criação de seus filhos/filhas" (Ramires, 1997, p. 31). Sendo assim, o homem, segundo as pesquisas acadêmicas, tem tanta competência quanto a mulher para cuidar e criar seus filhos, pois, como conclui Fein (1978, In Ramires, 1997, p. 90), "as únicas funções na criação dos filhos das quais o pai está excluído são a gestação e a amamentação".

Parafraseando a conhecida filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir, ninguém nasce pai, torna-se pai5. E, nesse processo de tornar-se pai, é importante revisitar a condição de filho. Esta revisita pode possibilitar a manutenção ou a ressignificação e transformação de padrões intergeracionais disfuncionais. Segundo Gutfreind (2010, p. 43), "o intergeracional refere-se às interações de diferentes gerações que puderam conviver em vida, enquanto o transgeracional evoca as relações de gerações familiares que não conviveram diretamente".

Sobre padrões familiares disfuncionais, Osório (2009) conceitua as disfunções familiares como funções que se alteram, ocasionando um grau de sofrimento dos membros da família de forma individual e relacional, mas sobre as quais existe "a possibilidade de ... reversão ao estado funcional anterior" (p. 324). As disfunções familiares podem ser divididas de acordo com: a) a estrutura familiar; b) os vínculos familiares; c) a identidade do grupo familiar; e d) a conduta familiar, na qual estão incluídos os comportamentos relacionados à violência, abandonos e abusos sexuais (Osório; Valle, 2002, In Osório, 2009).

Sendo assim, os modelos de pai e de educação construídos ao longo da vivência de filho e no contato com outras pessoas significativas, em especial o referencial do próprio pai, influenciam na construção do modelo de pai a ser adotado no exercício da paternidade (Ramires, 1997).

Desta forma, filhos de famílias que tiveram a violência como padrão disfuncional relacional e modelo de educação, podem reproduzir o contexto familiar violento quando da formação das suas famílias, ocorrendo a transmissão multigeracional de um problema familiar (Penso; Costa; Ribeiro, 2008). Segundo Nichols e Schwartz (1998, In Penso; Costa; Ribeiro, 2008, p. 16), "o problema familiar é o resultado de uma sequência multigeracional em que todos os membros da família são agentes e reagentes".

Em todos os países, as experiências de violência e abuso sofridas pelo pai ou pela mãe durante a sua infância é o fator de risco mais relevante para que exista violência contra as crianças nas famílias, já que se produz uma transmissão intergeracional da violência. Além disso, o maltrato infantil no âmbito familiar está estreitamente relacionado – e se complementa – com a presença da violência contra as mulheres, quando eram filhas ou quando são mães e esposas (UNICEF, 2009).

Estudos apontam que cerca de 70% dos autores de agressão sofreram ou presenciaram situações de violência na infância em suas famílias, o que indica que essas vivências também podem influenciar na forma violenta de resolver conflitos (Martins; Bucher-Maluschke, 2005). Mas é importante ressaltar que nem todos que foram vítimas ou testemunhas de violência na infância reproduzem esse comportamento violento quando adultos.

Nesse processo de ressignificar a vivência da violência intrafamiliar, o entendimento do conceito de resiliência é essencial. Resiliência, segundo Cyrulnik (2006, p. 29), é a "retomada de uma espécie de desenvolvimento depois de uma agonia psíquica". É uma forma individual/pessoal de enfrentamento de fatos estressantes vivenciados que resulta na superação das dificuldades, por mais traumáticas que se apresentem (Ramos; Oliveira, 2008).

Com isso, ressalta-se que ter sido vítima de violência intrafamiliar não determina que, ao tornar-se pai, este indivíduo se tornará um agressor. A resiliência é uma possibilidade de transformação, de não repetição de padrões familiares disfuncionais, um antidestino, havendo, portanto, "esperança não só de ajudar aqueles que cresceram na insegurança, mas de evitar que isso seja transmitido a outros". (Bowlby, 2002, p. 149).

Relação entre vivência de violência na família de origem e a experiência de paternidade na família atual – achados teóricos

Após uma pré-seleção, através da leitura dos resumos e principais resultados divulgados, dos 291 artigos encontrados nas bases de dados, sob os termos descritores violência doméstica e violência intrafamiliar, chegou-se ao número de 52 artigos, sendo 44 artigos provenientes da base de dados Scielo e oito provenientes da BVS-Psi. Interessante observar que a maioria das publicações, com relação à área temática, se concentra nas áreas de Ciências da Saúde (28 artigos) e de Ciências Humanas (22 artigos), sendo o Brasil o maior produtor de conhecimento em ambas as áreas temáticas (28 artigos), em especial após o ano de 2004, quando ocorre a criação da Lei 10.886/04 (Brasil, 2004).

Mas os países de língua espanhola também publicam bastante sobre a temática da violência intrafamiliar, em especial Colômbia, Chile, Cuba, México e Espanha (24 artigos). Tanto nos artigos publicados em português quanto em espanhol, existe uma preferência em utilizar, como metodologia de estudo, as diversas possibilidades em pesquisa de campo (42 artigos); são poucas as pesquisas bibliográficas publicadas sobre o tema violência intrafamiliar, ressaltando a importância do presente artigo como contribuição à pesquisa teórica sobre o tema.

Em todos os 52 artigos analisados, a família aparece como um espaço de crescimento e desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, de socialização primária e de vivência de amor e afeto entre seus membros, em especial de crianças e adolescentes. Sendo assim, a violência, quando surge no ambiente familiar, transforma este ambiente saudável em um espaço de risco físico, moral e psicológico dos indivíduos vitimados direta ou indiretamente, aparecendo como forma de disciplina e educação (Almeida; Santos; Rossi, 2006; Roque; Ferriani; Silva, 2008).

Interessante observar que grande parte dos artigos publicados põe em evidência a multiproblematicidade da violência intrafamiliar. Raramente existe a ocorrência de somente um tipo de violência, um só autor da violência e, consequentemente, um único indivíduo vitimizado. O que acontece, em geral, é a ocorrência, no ambiente familiar, de um ciclo de violência, por exemplo, o pai, vitimado por eventos externos à família (pressões do trabalho e sociedade em geral), desconta na mulher que desconta a agressão sofrida pelo marido nos filhos. Com isso, são todos autores e vítimas da violência intrafamiliar (Gabatz et. al., 2010).

Como consequências imediatas da vivência de violência na família de origem, três artigos trazem a queda do rendimento acadêmico e influências negativas no desenvolvimento pessoal e social do indivíduo, que afetam a qualidade de vida das crianças em idade escolar (Cepeda-Cuervo; Moncada-Sánchez; P. Álvarez, 2007).

Segundo Prado e outros (2010), em estudo observacional realizado em 2008 na cidade de Pínar del Río, Cuba, ficou evidente que a violência intrafamiliar ocorre em famílias que já apresentam alguma disfunção do funcionamento, havendo mais ocorrência de atos violentos nestas famílias em relação às classificadas como funcionais.

Dos 52 artigos analisados, 30% trazem a importância da atuação em rede quanto à identificação e notificação de casos de violência intrafamiliar. Espaços como a escola, os serviços públicos e privados e profissionais de saúde têm a obrigação legal e moral de, na suspeita e/ou confirmação de que uma criança ou adolescente esteja sendo vítima de abusos físicos, sexuais, psicológicos ou de negligência, denunciar às instâncias jurídicas (Conselhos Tutelares, Varas da Infância e da Adolescência, Ministério Público, dentre outros) o ocorrido (Almeida; Santos; Rossi, 2006).

Na ocorrência de violência intrafamiliar com consequências lesivas graves, acontece a interveniência do Estado por meio do Ministério Público afastando a criança vitimada do autor da violência e encaminhando-a para uma instituição pública ou ainda para alguma família com vistas a proteger sua integridade física e psicológica. No entanto, nem sempre essa é a melhor decisão. Segundo estudos de Oliveira (2004) e Gabatz e outros (2010), o afastamento da vítima e do agressor, se não for bem conduzido, pode produzir consequências psicológicas graves para a vítima, incluindo a não ressignificação da violência sofrida e consequente ocultação de emoções conflitivas de amor e ódio com relação ao vínculo parental com o agressor.

A violência intrafamiliar aparece ainda como construto social que pode definir uma hereditariedade relacional violenta, reforçando a ideia de que a vivência da violência na família de origem pode contribuir para a manutenção do padrão familiar de violência quando da experiência da paternidade (Roque; Ferriani; Silva, 2008). No entanto, segundo Ramires (1997), como resultado de uma pesquisa qualitativa com realização de entrevistas semiestruturadas com 12 pais, foi encontrado que, no que tange o modelo de relacionamento pai-filhos/filhas, existe

um desejo de reformulação, reparação e resgate, na relação com os filhos/filhas, da vivência com o próprio pai. Esses homens me falaram sobre o seu propósito de identificar-se com as qualidades de seus pais e reformular os defeitos, que também servem como pontos de referência, mas para serem superados (p. 108).

Os estudos fazem questão de ressaltar que a chamada hereditariedade relacional violenta não faz parte de uma equação simples de causa e efeito; a violência intrafamiliar é um fenômeno multicausal e que, ao invés de falarmos de causalidade circular, devemos buscar compreender fatores de risco e de proteção para o desenvolvimento de atos e condutas violentas no ambiente familiar. Como fatores de risco, podemos citar, além da vivência de violência na família de origem, aqueles relacionados a precárias condições socioeconômicas (fome, desemprego, miséria e doenças crônicas), presença de membros familiares com doenças psiquiátricas sem tratamento adequado (incluindo uso e abuso de álcool e outras drogas), desajustes e desestruturação familiar acentuada (Barone; Koller, 2007; Roque; Ferriani; Silva, 2008; Pimentel; Araújo, 2009; Gabatz et. al., 2010). Segundo Arón (2010), outra característica das famílias em que ocorre a violência intrafamiliar é o isolamento social em que se encontram, dificultando a identificação do problema e a interrupção do ciclo de violência.

A inserção da precariedade socioeconômica como um dos fatores de risco não significa que as famílias pertencentes a classes socioeconômicas mais abastadas não apresentem problemas de violência intrafamiliar; o que acontece, em geral, é a subnotificação dos casos ocorridos nas classes média e alta (Almeida; Santos; Rossi, 2006; Cepeda-Cuervo; Moncada-Sánchez; P. Álvarez, 2007; Roque; Ferriani; Silva, 2008; Gabatz et. al., 2010).

Corsi (1994, In Arón, 2010) considera os seguintes elementos para avaliar o potencial de violência de uma família: a) grau de verticalidade da estrutura familiar; b) grau de rigidez da hierarquia; c) crenças sobre obediência e respeito; d) crenças sobre disciplina e valor do castigo; e) grau de adesão aos estereótipos de gênero; e f) grau de autonomia relativa dos membros. Oliveira (2004) lista alguns fatores que predispõem a ocorrência da violência intrafamiliar, quais sejam: a) estresse a que estão submetidas as famílias; b) estrutura de vida em família; c) uso de padrões sociais disfuncionais que reforçam o uso da violência como forma de solução de conflitos; e d) banalização da violência na socialização e disciplina das crianças, o que potencializa a transmissão intergeracional da violência intrafamiliar.

Como adição aos fatores de risco à ocorrência de violência intrafamiliar acima apresentados, De Antoni, Barone e Koller (2007) descrevem os seguintes indicadores de risco e de proteção: 1) indicadores familiares de risco – a) papéis familiares (formas como são desempenhados os papéis esperados no contexto familiar); b) patologias (condições médicas e/ou psiquiátricas que podem interferir nas relações familiares); c) práticas educativas ineficazes (crença em castigos físicos e/ou imposição de limites e regras baseadas na submissão e humilhação); d) comportamentos agressivos (interações familiares marcadas por atos violentos); e e) conflitos com a lei (envolvimento com atos ilícitos); e 2) indicadores familiares de proteção – a) rede de apoio social e afetiva (locais e pessoas que servem como suporte emocional, moral ou financeiro); b) valorização das conquistas (sentimentos positivos em relação aos sucessos pessoais e dos membros da família); e c) desejo de melhoria futura (relacionados aos membros da família). Segundo Cyrulnik (2006), a resiliência pessoal aparece como um fator de proteção importante para a não manutenção do padrão familiar abusivo apesar da vivência da violência na família de origem.

Como um dos resultados de pesquisa bibliográfica, sentimos falta de artigos acadêmicos publicados com pesquisas empíricas com homens que vivenciaram a violência nas suas famílias de origem e que passam pela experiência da paternidade que confirmassem a manutenção ou ressignificação da violência intrafamiliar vivenciada. Existe, portanto, uma lacuna de produção acadêmica que precisa ser preenchida por pesquisas de campo que deem voz a esses homens.

 

Considerações finais

Viver é continuar uma história que faz parte da história de alguém que veio antes, de um tempo, de uma época, de tal modo que estamos sempre lidando com restos, troféus e assombrações do passado (Gutfreind, 2010, p. 13).

A violência, enquanto comportamento que causa dano – físico, moral ou psicológico - não acidental a outra pessoa ou grupos, tem várias formas de manifestação. E a violência incomoda. Incomoda ainda mais quando presente no ambiente familiar no qual, teoricamente, se está protegido. O presente artigo se concentrou nesta forma de violência particular que, por ter como palco a família, por vezes, é de difícil acesso a intervenções.

Mas a vivência dos tempos pós-modernos demonstra que a violência intrafamiliar, apesar das iniciativas governamentais e da sociedade, continua existindo e quem sofre este tipo de violência está, quase sempre, desamparado e constantemente em conflito, pelo padrão comunicacional familiar estabelecido de duplo-vínculo, pois aquele que deveria somente cuidar e amar é justamente quem maltrata. No momento de se tornar pai, tal modelo comunicacional e de educação pode pautar a experiência da paternidade, ocasionando a transmissão intergeracional da violência intrafamiliar.

Vale ressaltar que a violência intrafamiliar, qualquer que seja o tipo, não é resultado de fatores somente individuais, ou exclusivamente familiares, ou somente relacionadas ao contexto cultural. A violência intrafamiliar é um fenômeno multicausal e, se não identificado e problematizado, multigeracional.

A hipótese desta pesquisa era que a violência intrafamiliar vivenciada na infância influencia na construção do significado e na experiência da paternidade, quando os filhos da violência tornam-se pais. De acordo com a pesquisa bibliográfica, foi possível identificar que a vivência de violência na família de origem é um fator de risco para a ocorrência de violência intrafamiliar quando da experiência de paternidade, ou seja, é uma possibilidade de manutenção dos padrões disfuncionais da família de origem. Mas isso não é uma sina, uma determinação do destino. Fatores de proteção individuais, relacionais e sociais contribuem para que haja ressignificação do padrão interacional baseado na violência. Dentre esses, a resiliência surge como principal fator de proteção.

Esta pesquisa acadêmica vem contribuir com os estudos sobre a família, em especial sobre a violência intrafamiliar, parentalidade e, especificamente, paternidade. Na pesquisa bibliográfica, encontramos dificuldade em encontrar estudos teóricos e de campo nacionais que focassem, em específico, a influência da vivência de violência intrafamiliar na construção do significado e na experiência da paternidade.

Torna-se necessário, portanto, aumentar a produção acadêmica no campo de estudo da família de origem e violência, além de paternidade e violência. Sendo assim, uma pesquisa que viria acrescentar informações relevantes para o campo de estudo, seria a realização de uma pesquisa de campo apresentando o olhar de pais residentes em Salvador/BA, trazendo a possibilidade de dar voz àqueles que foram vítimas de violência intrafamiliar para que possam, a partir da construção de uma narrativa sobre a sua vivência de filho, refletir e, quem sabe, ressignificar a sua experiência de pai, rompendo com o ciclo familiar da violência.

 

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Endereço para correspondência
Luciana Santos Rodrigues
E-mail: luccirodrigues@yahoo.com.br

Anderson Almeida Chalhub
E-mail: unijorge@chalhub.com.br

Enviado em: 16/09/2014
Enviado em: 06/10/2014
Aceito em: 20/11/2014

 

 

1 Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Psicologia, do Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE.
2 Psicóloga, graduada em 2012.2 pelo Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE. Endereço: Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE).
3 Psicólogo, mestre em Psicologia pela UFBA, professor do curso de Psicologia do Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE. Endereço: Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE).
4 Paráfrase da música "Um Tapinha Não Dói", composição de MC Naldinho, gravada por MC Naldinho no álbum Furacão 2000 – Tornado Muito Nervoso (Volume 2), de 2001.
5 No original: "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher" (Beauvoir, 1980, p. 9).