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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.21 no.1 Porto Alegre jul. 2017
ARTIGOS
Escolha profissional: teoria e intervenções sistêmicas voltadas ao adolescente e à família
Career choice: systemic theory and interventions for adolescent and family
Débora Tessaro1, I ; Beatriz Schmidt2, II, III
I Curso de Psicologia da Faculdade da Serra Gaúcha
II Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
III Núcleo de Infância e Família (NUDIF) da UFRGS
RESUMO
O objetivo desse estudo foi caracterizar o processo de escolha profissional na adolescência e discutir intervenções psicológicas pautadas na teoria sistêmica junto a adolescentes e famílias, por meio de revisão não sistemática da literatura. Constatou-se que as práticas sistêmicas permitem a compreensão e a ressignificação de aspectos do desenvolvimento pessoal e familiar, na perspectiva de maior prontidão à escolha, o que se associa à qualidade de vida presente e futura. Isso porque a orientação adequada no processo de escolha profissional se relaciona à promoção de bem-estar, à prevenção de problemas de comportamento e à redução do estresse no adolescente, bem como a resultados mais favoráveis ao desenvolvimento na adultez. Salienta-se a importância de se promover e qualificar a prática profissional e a pesquisa sobre o processo de escolha profissional na adolescência, do ponto de vista da teoria e das intervenções sistêmicas, o que parece pouco explorado na literatura científica nacional.
Palavras-chave: Família, Teoria sistêmica, Escolha profissional, Orientação profissional.
ABSTRACT
The aim of this study was to characterize the career choice process in adolescence and discuss psychological interventions guided by the systems theory with adolescents and families, by a non-systematic review. It was found that systemic practices allow understanding and reframing of aspects of personal and family development, from a perspective of greater career choice readiness, which is associated with quality of life in the present and the future. This is because appropriate guidance in the career choice process relates to health promotion, prevention of behavioral problems and stress reduction in adolescents, as well as better results in adulthood. This study highlights the importance of promoting and qualifying professional practice and research in the career choice process in adolescence, from a point of view of systemic theory and intervention, which remains little explored in the Brazilian literature.
Keywords: Adolescent, Family, Systems theory, Career choice, Career guidance.
Os importantes índices de evasão no ensino superior, fenômeno que se evidencia nacional e internacionalmente (Castro & Teixeira, 2014), bem como de insatisfação com o curso de graduação ou com a profissão (Basso, Graf, Lima, Schmidt, & Bardagi, 2013), são fatores que reforçam a relevância do processo de escolha profissional (Zimmerman & Kontosh, 2007). De maneira geral, é na adolescência que tem início a busca por uma carreira (Silva, Faria, & Foschesato, 2012), a qual pode ser compreendida como a sequência de experiências laborais ao longo da vida, envolvendo aspectos individuais e ambientais que se influenciam recursivamente. Esse momento de decisão é parte integral do desenvolvimento de carreira e se associa à seleção da formação necessária para segui-la (Patton & McMahon, 2014). O processo de escolha profissional nessa fase do ciclo de vida costuma ser considerado como uma ‘necessidade’ pela sociedade, o que tende a acarretar desdobramentos ao adolescente e à sua família, sobretudo face ao desgaste sofrido quando o filho apresenta dificuldades para decidir, ou mesmo quando os pais procuram se realizar por meio do filho (Santos, 2005).
Com base na perspectiva sistêmica, o desenvolvimento individual está circunscrito no desenvolvimento familiar, pois a família consiste no principal contexto de socialização dos indivíduos. Assim, as mudanças vivenciadas pelo adolescente não são isoladas, uma vez que todo o sistema familiar passa por transformações. A adolescência requer fronteiras mais permeáveis, de forma a permitir a aproximação dos filhos quando não se sentem seguros e o seu afastamento para experimentar, com graus crescentes de independência, relacionamentos interpessoais extrafamiliares (McGoldrick & Shibusawa, 2016). Igualmente, é também necessária a flexibilidade quanto à escolha profissional, propiciando acolhimento no caso de dúvidas, mas autonomia para que o filho faça a opção ‘do modo mais livre possível’. Toma-se o cuidado de pontuar sobre a importância desse processo se dar ‘do modo mais livre possível’, por se entender que, embora aparentemente individual, a escolha profissional se pauta em lealdades invisíveis ancoradas em expectativas familiares (Bacal, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014).
As lealdades conectam gerações passadas e futuras de uma família, por meio da transmissão de valores e de mitos familiares (Cenci, Teixeira, & Oliveira, 2014). Dessa forma, marcam o pertencimento a um determinado sistema familiar, o que aparece como uma característica grupal e também como uma atitude individual (Falcke & Wagner, 2005). Esses conteúdos, transmitidos de uma geração a outra e que se mantêm presentes ao longo da história familiar, nem sempre são tratados explicitamente. Contudo, eles são fundamentais para a compreensão da estrutura relacional familiar e das repetições que podem ocorrer nas diferentes gerações. Nesse sentido, tendem a influenciar, dentre outros processos vivenciados pelos membros da família, o de escolha profissional (Bacal et al., 2014).
Nas últimas décadas, particularmente pelas contribuições da teoria sistêmica, tem-se evidenciado uma maior ênfase à noção de que a família desempenha um importante papel nas decisões sobre a carreira (Cattani, Teixeira, & Ourique, 2016), ao passo que em momentos anteriores esse fenômeno foi estudado designadamente em uma perspectiva intrapsíquica (Larson, 1995). Não obstante, ainda há relativamente poucos estudos sobre a aplicabilidade da teoria sistêmica no que concerne ao desenvolvimento de carreira, muito embora as suas contribuições para a área de terapia familiar, por exemplo, já estejam bem descritas na literatura (Patton & McMahon, 2014).
Assim, o objetivo do presente estudo é caracterizar o processo de escolha profissional na adolescência e discutir intervenções psicológicas pautadas na teoria sistêmica junto a adolescentes e a famílias que se encontram nesse momento de seu ciclo de vida. Trata-se de uma revisão não sistemática de publicações nacionais e internacionais relacionadas ao tema, disponíveis em diferentes fontes (Portal de Periódicos da CAPES, SciELO, PePSIC, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e livros técnicos). Nas buscas, foram utilizadas versões em língua portuguesa e inglesa dos seguintes descritores: escolha profissional (career choice), orientação profissional (career guidance), orientação vocacional (vocational guidance), adolescência (adolescence), adolescente (adolescent), teoria sistêmica (systems theory) e pensamento sistêmico (systems thinking). Por se tratar de uma revisão não sistemática, o processo de busca pelas publicações considerou diferentes combinações desses descritores. Com o intento de melhor apresentar a síntese e a análise das informações, o presente artigo se subdivide em três seções: (i) escolha profissional na adolescência; (ii) teoria sistêmica como substrato à compreensão da escolha profissional; e (iii) prática sistêmica no contexto da escolha profissional. Com esse estudo, espera-se contribuir para o desenvolvimento científico da área, tanto do ponto de vista da prática profissional quanto da pesquisa.
Escolha profissional na adolescência
A adolescência consiste na fase compreendida entre a infância e a idade adulta, em que o indivíduo passa por uma série de mudanças físicas e psicológicas (Faria, Weber, & Ton, 2012; Gonzaga & Lipp, 2014; Lima & Dias, 2014). Parece ainda não haver consenso no que diz respeito à idade que delimita o período da adolescência. Assim, do ponto de vista da legislação brasileira, considera-se adolescente a pessoa entre 12 e 18 anos (Brasil, 1990). Por outro lado, para a Organização Mundial de Saúde, a adolescência é a segunda década da vida, ou seja, cronologicamente, dos 10 aos 19 anos de idade (Lima & Dias, 2014; World Health Organization – WHO, 2014).
De forma geral, as modificações corporais da puberdade são o marco de início da adolescência, ao passo que em seu término se espera a inserção na sociedade adulta (Schoen-Ferreira, Aznar-Farias, & Silvares, 2010). Logo, o início e o término da adolescência envolvem transformações sexuais, cognitivas e relacionais. Ademais, o adolescente se depara também com escolhas que definirão o seu futuro, com destaque à escolha profissional (Almeida & Pinho, 2008; Gonzaga & Lipp, 2014; Soares, 2002). Apesar de ser considerada uma das fases mais breves do desenvolvimento humano, as transformações vivenciadas na adolescência repercutirão não apenas nesse período em específico, mas ao longo de todo o curso de vida (WHO, 2014).
Nesse sentido, o adolescente vivencia um momento crucial no que concerne à sua preparação profissional para a futura carreira, com implicações para o seu bem-estar e o seu ajustamento, no período presente e também posteriormente. Um componente essencial na preparação da carreira do adolescente é a prontidão para a escolha profissional, definida como a capacidade de efetuar uma decisão fundamentada sobre a carreira, o que se associa a melhores resultados desenvolvimentais longitudinalmente (Hirschi, 2011). Essa estreita relação entre escolha profissional e maiores níveis de bem-estar e de ajustamento em curto, médio e longo prazo se deve, notadamente, à posição central que o trabalho ocupa na vida adulta (Patton & McMahon, 2014).
Segundo Hirschi (2011), a prontidão para a escolha profissional consiste em fenômeno ainda pouco explorado na literatura científica. Não obstante, com base na perspectiva sistêmica, é possível caracterizá-la por sua natureza contextual, em que é fortemente influenciada por aspectos históricos, culturais, econômicos e sociais. Logo, a prontidão para a escolha profissional se apresenta em graus diferentes em adolescentes com uma mesma idade, por se associar a uma série de variáveis, tais como traços de personalidade, níveis de autoconceito, presença de psicopatologias, conflitos interpessoais, informações sobre ocupações e mercado de trabalho. Todas essas variáveis individuais e ambientais podem prejudicar ou favorecer o processo de tomada de decisão no que tange à carreira. Contudo, no curso do desenvolvimento do adolescente, são esperados níveis progressivamente maiores de prontidão para a escolha profissional.
A escolha profissional não se constitui em uma decisão única, mas sim em um processo contínuo ao longo da trajetória de desenvolvimento (Sobrosa, Oliveira, Santos, & Dias, 2015). Isso porque abarca definir em que ambiente se almeja trabalhar, as atividades que pretende desempenhar, como gostaria que se organizasse a rotina, as expectativas sobre a remuneração e o estilo de vida (Almeida & Pinho, 2008; Filomeno, 2003). Assim, a partir das decisões relativas à escolha profissional, o adolescente tende a definir, em certa medida, quem ele quer ser ou não (Mahl, Soares, & Oliveira Neto, 2005; Silva et al., 2012). Dada a sua complexidade, tal fase de transição costuma ser marcada por insegurança e medo. Igualmente, constitui-se como um período potencialmente gerador de estresse ao adolescente (Gonzaga & Lipp, 2014). A necessidade de desenvolver habilidades para lidar com escolhas, bem como com cobranças e perdas, faz da adolescência uma das fases mais vulneráveis ao estresse. Assim, as pressões individuais e ambientais referentes à opção por uma dada profissão, à aprovação no vestibular e ao início do planejamento de carreira podem propiciar a manifestação de sintomas de estresse. Dentre os principais estressores a que estão expostos os adolescentes, destacam-se as cobranças da família concernentes ao sucesso profissional, o que costuma acompanhar a sobrecarga de atividades intelectuais (Faria et al., 2012).
De maneira geral, os pais criam projetos para os seus filhos antes mesmo do nascimento da criança (Bacal et al., 2014; Soares, 2002). Consequentemente, o indivíduo vem ao mundo inserido em uma história preexistente, da qual é herdeiro e também prisioneiro. Assim, ele pode se sentir compelido a cumprir as expectativas familiares, mesmo contra a sua vontade; por outro lado, quando tenta se comportar de modo oposto ao estipulado pela família, sofre as consequências, por não se adequar ao que foi preestabelecido (Falcke & Wagner, 2005). Ademais, é possível que os pais depositem no filho a expectativa de que ele alcance a realização profissional a partir de uma escolha que os pais não conseguiram seguir, eventualmente porque não puderam romper com o legado familiar (Soares, 2002). Em estudo realizado por Santos (2005) junto a 16 adolescentes com idades entre 16 e 18 anos, que faziam parte de um programa de orientação profissional de uma universidade pública federal brasileira, evidenciou-se a influência familiar na construção do projeto de vida dos estudantes, de forma que os participantes apresentavam dificuldades para conversar com os pais, quando o curso escolhido não era o esperado pela família.
As expectativas dos pais, de modo específico, e da família, de modo mais amplo, costumam ser expressas, ao longo do desenvolvimento do filho, por assinalamentos que valorizam ou desvalorizam determinadas profissões (Almeida & Pinho, 2008). Essas expectativas, que influenciam o processo de escolha profissional do adolescente e podem ser manifestadas explicitamente ou implicitamente (Filomeno, 2003), nem sempre são reconhecidas pelos filhos (Almeida & Pinho, 2008). As manifestações explícitas incluem, por exemplo, verbalizações que visam a induzir a escolha por uma carreira em particular. Por outro lado, as manifestações implícitas se caracterizam por opiniões acerca de determinados cursos ou profissões, percepções sobre o sucesso ou a frustração de quem decide por segui-las, além de valores que cada carreira tem para aquela família. Essas influências implícitas costumam ocorrer com maior frequência, inclusive por serem mais indiretas (Filomeno, 2003).
Não obstante, independentemente de serem explícitas ou implícitas, as influências da família no processo de escolha profissional do adolescente se mostram presentes tanto por meio do discurso dos pais, quanto por meio do discurso dos filhos (Almeida & Pinho, 2008). Além disso, é importante pontuar que o próprio momento vivenciado pelo adolescente também gera repercussões ao desenvolvimento familiar, recursivamente (McGoldrick & Shibusawa, 2016). Na escolha por uma profissão, o adolescente ambiciona a liberdade, a experiência de viver fora do domicílio da família de origem, além de questionar as regras e as ordens que são estabelecidas nesse sistema. Concomitantemente a isso, os pais também revisitam as próprias decisões com relação à carreira, ao futuro profissional e às relações interpessoais (Gabel & Soares, 2006). Algumas vezes, queixas familiares sobre o adolescente nesse período do desenvolvimento podem mascarar insatisfações profissionais ou pessoais dos pais nesse estágio do ciclo de vida familiar. Contudo, tal situação não significa que os sintomas eventualmente apresentados pelo adolescente não devam ser avaliados e manejados com cuidado (Carter & McGoldrick, 1995). Entretanto, deve-se levar em consideração que os membros de uma determinada família se influenciam mutuamente, como será abordado na seção a seguir.
Teoria sistêmica como substrato à compreensão da escolha profissional
Os fundamentos da teoria sistêmica têm sido descritos como inovadores para a compreensão de trajetórias de carreira (McMahon, 2011; Patton & McMahon, 2014). Logo, a escolha profissional, como processo dinâmico e complexo que é parte integral do desenvolvimento de carreira (Patton & McMahon, 2014), pode ser entendida com base na teoria sistêmica. Essa teoria passou a emergir já na primeira metade do século XX, de diferentes maneiras e em diferentes velocidades, com a transição do paradigma mecanicista ao paradigma sistêmico. Como todas as mudanças de paradigma (isto é, formas de agir e de perceber o mundo), essa também é lenta e implica avanços, retrocessos e oscilações. Assim, de modo não uniforme, notam-se ainda presentemente oscilações entre a visão mecanicista, que enfatiza as partes e está relacionada à ciência tradicional, e a visão sistêmica, que enfatiza o todo e está ligada à ciência novo-paradigmática (Schmidt, Schneider, & Crepaldi, 2011; Vasconcellos, 2002).
A visão mecanicista pressupõe a divisão dos fenômenos complexos em segmentos, na concepção de que é possível compreender o todo quando se analisam as propriedades de cada parte. Por outro lado, a visão sistêmica postula que, ao se separar os fenômenos complexos em segmentos, resta impossibilitada a análise do todo, uma vez que ele é mais do que a soma das partes (Capra, 2006). Em oposição ao paradigma mecanicista, o paradigma sistêmico é contextual, por considerar as conexões e as interações entre fenômenos em um dado ambiente. Logo, nenhuma das partes possuiria as propriedades essenciais do todo, visto que é justamente nas relações de organização entre essas partes que se forma o todo. Assim, ao invés dos objetos, enfatizam-se as conexões entre eles, ou seja, as redes de relações complexas e dinâmicas entre os fenômenos (Gomes, Bolze, Bueno, & Crepaldi, 2014).
De tal forma, a teoria sistêmica pressupõe que, para analisar um sistema, é imprescindível examinar o todo e as partes que o compõe (Cabrera, Cabrera, & Powers, 2015). No que concerne especificamente à análise do processo escolha profissional, destacam-se as relações recursivas entre os sistemas individual e social, os quais se interconectam ao longo do tempo, por meio de influências recíprocas (Shin & Kelly, 2013; Zimmerman & Kontosh, 2007). As decisões relativas ao desenvolvimento de carreira, por conseguinte, envolvem características individuais concernentes à idade, ao gênero, à personalidade, às habilidades, à orientação sexual e aos valores, da mesma maneira que aspectos referentes à família, aos amigos, à escola, à mídia, à localização geográfica, bem como às circunstâncias socioeconômicas, históricas e políticas, visto que os indivíduos vivem em um contexto específico, e não isoladamente (McMahon, 2011). Assim, tende a haver uma maior probabilidade de o adolescente escolher uma profissão que pareça coadunar com as suas características individuais, com a qual já teve algum tipo de contato (por exemplo, por conhecer profissionais da área), ou mesmo por se tratar de uma carreira valorizada em seu contexto de inserção.
Essas relações entre o indivíduo e o seu contexto, ou seja, as conexões entre a parte e o todo, são aspectos que interessam particularmente à compreensão sistêmica dos fenômenos (Cabrera et al., 2015; Gomes et al., 2014; Schmidt et al., 2011). De tal forma, destaca-se o modo como as variáveis individuais e ambientais interagem ao longo do tempo e influenciam trajetórias de vida. Para ilustrar esse processo, é possível citar como exemplo o autoconceito (percebido como auto-eficácia e autonomia), importante variável individual que se relaciona a variáveis ambientais e influencia o processo de escolha profissional. Em linhas gerais, o autoconceito tende a ser melhor, quanto maior for o envolvimento parental no processo de cuidado aos filhos, incluindo calor emocional e supervisão comportamental indutiva, o que se associa a resultados mais adaptativos em termos de desempenho acadêmico, saúde mental e interação com pares. Evidências empíricas sugerem que, quanto melhor o autoconceito (que se desenvolve ao longo do tempo, mediante interações da pessoa com o contexto), mais facilitada parece ser a tomada de decisão sobre a carreira (Zimmerman & Kontosh, 2007).
De todos os sistemas em que o adolescente está inserido e interage (por exemplo, os que envolvem a família, a escola ou o grupo de pares), o sistema familiar é o que parece mais investigado em estudos pautados na teoria sistêmica sobre escolha profissional. Diferentes autores indicam a influência da família de origem na escolha profissional, de modo específico, e no desenvolvimento de carreira, de modo mais amplo (Almeida & Pinho, 2008; Bacal et al., 2014; Larson, 1995; Patton & McMahon, 2014; Shin & Kelly, 2013; Zimmerman & Kontosh, 2007). Como exemplo, é possível citar o estudo qualitativo conduzido Bacal et al. (2014), o qual buscou investigar o processo de transmissão geracional da profissão na família. Os 15 participantes integravam três gerações de famílias que mantinham a tradição de uma determinada profissão. Os achados revelaram a naturalidade com que era percebida a escolha profissional na família, como um elemento de continuidade entre gerações. Além disso, evidenciou-se também a cobrança e o peso pelo sobrenome reconhecido nas áreas em que os participantes atuavam profissionalmente. Conforme as autoras, esses resultados sugerem a importância do vínculo de lealdade familiar, por meio da continuidade do legado familiar.
Não obstante, embora evidenciados em estudos empíricos, com frequência os aspectos familiares que influenciam a escolha do adolescente por uma carreira são deixados de lado no processo de orientação profissional (Almeida & Pinho, 2008). Nesse sentido, na seção a seguir são apresentadas contribuições para as intervenções sistêmicas, considerando adolescentes e suas famílias nesse estágio do ciclo de vida.
Prática sistêmica no contexto da escolha profissional
Tal como discutido anteriormente, sob a ótica da teoria sistêmica, as pessoas influenciam e são influenciadas pelo meio (Gomes et al., 2014; McMahon, 2011; Schmidt et al., 2011; Zimmerman & Kontosh, 2007). Diferentemente de outras abordagens, a sistêmica entende o indivíduo como um agente ativo, que pode redirecionar ou reforçar as suas respostas com base nos feedbacks que recebe e que envia ao ambiente onde está inserido, de modo recursivo e circular (Patton & McMahon, 2014). Logo, a análise de um sistema envolve, impreterivelmente, o exame das interações entre o todo e as partes dele componentes (Cabrera et al., 2015). Face à proposta da teoria sistêmica de compreender de modo integral os fenômenos complexos, a valorização dos diálogos interdisciplinares e dos diferentes saberes pode ser considerada uma de suas principais características (Cabrera et al., 2015; Gomes et al., 2014; Schmidt et al., 2011). Assim, essa perspectiva teórica vem sendo utilizada para pautar pesquisas e intervenções em diferentes áreas (Vasconcellos, 2006).
No que diz respeito especificamente às aplicações da teoria sistêmica ao campo da psicologia, considera-se que seu marco inicial foi na clínica da família. Isso porque, na primeira metade do século XX, a prática terapêutica hegemônica em psicologia clínica se pautava na psicanálise, com predomínio do entendimento de que o comportamento humano era regido por forças intrapsíquicas. Após a Segunda Guerra Mundial, passou-se a identificar mais fortemente um movimento de união das famílias, bem como de críticas à abordagem psicanalítica, dada a sua ênfase aos aspectos intrapsíquicos, em detrimento dos aspectos ambientais. Ganhou força, por conseguinte, a teoria sistêmica, em função da sua proposta de retirar o foco exclusivamente dos indivíduos para colocá-lo nos sistemas humanos, isto é, na perspectiva da transição paradigmática do intrapsíquico para o inter-relacional (Gomes et al., 2014).
Movimento semelhante ao que ocorreu na clínica da família passou a ser observado, anos após e de modo mais tímido, no que tange à área de desenvolvimento de carreira, a qual também começou a ser compreendida de forma inter-relacional, ao invés de preponderantemente intrapsíquica (Larson, 1995; Patton & McMahon, 2014). Entende-se que a prática sistêmica no processo de escolha profissional, tal como as intervenções sobre outros fenômenos com base na perspectiva sistêmica, implica o reconhecimento do sujeito em seu contexto e a abordagem dos fenômenos intrapsíquicos como constituintes de uma complexa rede de interações, em uma realidade que não é linear, tampouco presumível ou estática (Gomes et al., 2014).
Do ponto de vista prático, a intervenção profissional pautada na teoria sistêmica pode contribuir com a prontidão para a escolha, sobretudo quando leva em conta simultaneamente variáveis individuais e ambientais (Hirschi, 2011). Vale destacar que a orientação adequada no processo de escolha profissional se associa à promoção de bem-estar, à prevenção de problemas de comportamento e à redução do estresse no adolescente, bem como a resultados mais favoráveis ao desenvolvimento na adultez (Hirschi, 2009). Nesse processo, o profissional pode realizar atendimentos exclusivamente ao adolescente, ou mesmo ao adolescente juntamente à sua família, visto que essa etapa do ciclo de vida costuma desencadear ansiedades e conflitos aos seus membros globalmente (Almeida & Pinho, 2008; McGoldrick & Shibusawa, 2016). Considera-se, portanto, a noção de que todos os elementos do sistema interagem e se influenciam mutuamente (Schmidt et al., 2011).
Logo, ao propiciar aos pais e/ou aos demais membros da família reflexões sobre o estágio do ciclo de vida individual do adolescente, é possível reduzir as ansiedades e os conflitos potencialmente ligados à escolha profissional. Outrossim, se os próprios pais e familiares se mostram menos tensos e mais seguros nesse momento, a tendência é que o clima emocional familiar positivo traga benefícios ao adolescente (Almeida & Pinho, 2008). Salienta-se que os atendimentos familiares também contribuem para o desenvolvimento de fronteiras mais flexíveis, que permitam a aproximação e o distanciamento do adolescente (McGoldrick & Shibusawa, 2016). Isso porque, quando há aglutinação familiar, constata-se uma maior probabilidade de dificuldades na tomada de decisão com relação à carreira, pois os níveis de autonomia e de diferenciação entre os membros são relativamente baixos. Nesses casos, o padrão familiar disfuncional acarretaria desdobramentos ao processo de escolha profissional pelo adolescente (Santos, 2010).
Entretanto, é importante destacar que nem sempre os pais e/ou os demais familiares podem ou querem participar dos atendimentos juntamente ao adolescente. Nessas situações em que a intervenção familiar não é possível, há alternativas para se abordar aspetos contextuais exclusivamente por meio de atendimentos individuais. Assim, salienta-se a importância das perguntas circulares nas intervenções, para “presentificar” o terceiro nos atendimentos individuais e construir um mapa da rede de relações interconectadas (Boscolo & Bertrando, 2013; Camicia, Silva, & Schmidt, 2016). As perguntas circulares podem propiciar reflexões sobre as influências que o adolescente recebe no processo de escolha profissional, bem como sobre os desdobramentos da tomada de decisão na sua vida e nas suas relações. Igualmente, promovem formulação de hipóteses acerca dos pensamentos e das emoções de outras pessoas, e não somente de si próprio (Camicia et al., 2016; Reynolds, 2007). Isso permite ao adolescente a criação de conexões entre ideias e comportamentos, além de colocá-lo em uma posição de observador da própria história, tanto no momento presente, quanto ao pensar sobre o passado e ao planejar o futuro.
As perguntas circulares, referidas como uma das principais intervenções do terapeuta sistêmico, estabelecem uma linguagem relacional em atendimentos individuais ou familiares (Boscolo & Bertrando, 2013). Por conseguinte, entende-se que podem ser adaptadas ao processo de orientação profissional, dada a sua complexidade e dinâmica. Similarmente, a abordagem narrativa também pode ser adaptada à orientação profissional, à medida que privilegia as histórias de vida e a ressignificação de eventos vivenciados pela pessoa ou pela família, com destaque às variáveis individuais e ambientais que interatuam no desenvolvimento de carreira (Patton & McMahon, 2014). Conforme McMahon (2011), a abordagem narrativa consiste em uma das aplicações centrais da teoria sistêmica à orientação profissional. Nessa modalidade de intervenção, deve-se favorecer a promoção da autonomia do indivíduo, bem como das reflexões sobre as conexões entre eventos presentes e passados, na perspectiva da construção da trajetória de vida futura (McMahon, 2011). Compreende-se que, dessa forma, o adolescente tende a se envolver de maneira ativa no processo, visto que as suas experiências individuais e o seu contexto de inserção são enfatizados (Almeida & Pinho, 2008).
Outra técnica adotada na terapia sistêmica e que pode ser adaptada ao contexto de orientação profissional é o genograma familiar (Almeida & Pinho, 2008; Filomeno, 2003). O genograma consiste em uma representação gráfica que mostra o mapa ou o desenho da família, de modo a proporcionar uma ampla visão de três ou quatro gerações, bem como de seu movimento ao longo do ciclo de vida. Na adolescência, em particular, o genograma pode indicar características das fronteiras familiares, dos padrões que se repetem nas gerações, de modo a predizer o ajustamento da família nessa fase (McGoldrick & Gerson, 1995). Por meio dessa técnica, é possível lançar luz às aspirações e aos sonhos de cada membro da família, às profissões que podem ser transmitidas entre gerações, às mensagens nem sempre explícitas e às expectativas sobre os papeis a serem desempenhados no sistema familiar (Di Fabio, 2015). De tal maneira, é favorecido o entendimento do adolescente sobre as possíveis influências familiares que possa receber, o que aumenta a probabilidade de que tome uma decisão mais fundamentada sobre a carreira a seguir (Mahl et al., 2005). É importante salientar, ainda, que se utiliza o genograma em atendimentos junto a uma ou mais pessoas (Di Fabio, 2015).
A técnica da história do nome próprio também consiste em uma adaptação da terapia sistêmica à orientação profissional. Nessa proposta, solicita-se ao adolescente que questione os pais sobre os motivos pela escolha do nome e que busque o significado dele em livros, dicionários ou outras fontes. Essa técnica permite ao adolescente o reconhecimento da missão que lhe foi designada ao nascer (ou mesmo antes disso) e das expectativas dos pais ou da família com relação ao seu futuro. Muitas vezes, a seleção por um nome em específico está relacionada a pessoas ou a características que são valorizadas pela família (Filomeno, 2003), ou mesmo obedece às lealdades invisíveis (Bacal et al., 2014). Recorrentemente, ao conhecer e refletir sobre o significado do próprio nome, a pessoa identifica o quanto pode agir ou se relacionar de acordo com as expectativas que lhe foram depositadas (Filomeno, 2003).
Salienta-se que, além dessas técnicas pautadas na teoria sistêmica, a prática profissional deve levar em conta, também, o suporte para as aprendizagens sobre a carreira, bem como o fornecimento e o incentivo à busca de informações sobre o mundo do trabalho (Filomeno, 2003; Gonzaga & Lipp, 2014; Hirschi, 2011). Considerar todos esses fatores no acompanhamento ao adolescente e/ou à família é fundamental, à medida que há evidências empíricas de que o processo de escolha da carreira é um importante preditor da adaptabilidade à profissão (Hirschi, 2009).
Cabe destacar ainda, no que tange à prática sistêmica no contexto da escolha profissional, que não foram identificados estudos sobre avaliação de intervenções, considerando os descritores utilizados e as bases de dados pesquisadas na presente revisão de literatura. Nesse sentido, é importante salientar que estudos que se proponham a avaliar intervenções voltadas à orientação profissional são relevantes, à medida que possibilitam divulgar e refletir sobre os resultados da realização de um determinado serviço, bem como identificar a necessidade de modificações ou de adaptações a ele (Bardagi & Albanaes, 2015).
Considerações finais
O objetivo desse estudo foi caracterizar o processo de escolha profissional na adolescência e discutir intervenções psicológicas pautadas na teoria sistêmica junto a adolescentes e a famílias que se encontram nesse momento de seu ciclo de vida. Por meio de revisão não sistemática da literatura nacional e internacional, constatou-se que as práticas sistêmicas, as quais consideram relações entre variáveis individuais e ambientais, permitem a compreensão e a ressignificação de aspectos do desenvolvimento pessoal e familiar, na perspectiva de uma maior prontidão à escolha, o que se associa à qualidade de vida presente e futura.
Entende-se que o presente estudo apresenta limitações, por se tratar de uma revisão não sistemática, a qual considerou um número relativamente pequeno de bases de dados e de outras fontes de obtenção de publicações. Não obstante, pode se somar a outras produções acerca da temática, de modo a lançar luz à prática profissional e à pesquisa sobre o processo de escolha profissional na adolescência, do ponto de vista da teoria e das intervenções sistêmicas, o que ainda parece pouco explorado na literatura científica nacional.
Assim, como sugestão para pesquisas futuras, salienta-se a importância da avaliação de intervenções sistêmicas no contexto da escolha profissional. Em particular, recomenda-se a realização de estudos longitudinais, de modo a investigar o desenvolvimento e a adaptação ao curso e à profissão pelo jovem adulto que passou por acompanhamento profissional pautado na teoria sistêmica durante o processo de escolha profissional na adolescência, incluindo a análise das variáveis do contexto, ao invés de exclusivamente a análise das variáveis individuais.
Referências
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Endereço para correspondência
Débora Tessaro
E-mail: deboratessaro@gmail.com
Beatriz Schmidt
E-mail: psi.beatriz@gmail.com
Enviado em: 02/12/2016
1ª revisão em: 13/04/2017
Aceito em: 29/05/2017
1 Acadêmica do Curso de Psicologia da Faculdade da Serra Gaúcha.
2 Psicóloga, Especialista em Saúde da Família e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Núcleo de Infância e Família (NUDIF) da UFRGS.