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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Estrutura e dinâmica de funcionamento das famílias de origem de casal com gravidez na adolescência

 

Structure and functioning’s dynamics of origin’s families of a couple with pregnancy in adolescence

 

 

Daiane Wiltgen Tissot1, I, II ; Denise Falcke2, II

I Unimed Encosta da Serra
II Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo da dinâmica familiar envolvida na gravidez na adolescência ainda é escasso no Brasil, apesar dos muitos e variados trabalhos sobre o fenômeno. Assim, o objetivo desse estudo foi investigar, sistemicamente, a estrutura e dinâmica de funcionamento das famílias de origem de um casal que vivenciou duas gestações na adolescência. O estudo de caso único teve três etapas de coleta de dados por meio de Questionário sociodemográfico, Genetograma, Entrevista semiestruturada e Entrevista Familiar Estruturada (EFE). Como principais resultados da análise temática e triangulação de dados, verificou-se a existência de patologias de fronteiras, com disfuncionais comunicação e expressão de afeto, triangulações emocionais diante da violência intrafamiliar e dependência química, e mudanças positivas no funcionamento familiar após a incidência da primeira gestação. Concluiu-se que as gestações representaram marcos para o início de evoluções familiares, mostrando a importância de intervenções preventivas que possibilitem outras vias de acesso à saúde do sistema familiar.

Palavras-chave: Gravidez na adolescência, Família, Relações familiares.


ABSTRACT

The study of family dynamics involved in teenage pregnancy is still scarce in Brazil, despite the many and varied work on the phenomenon. Thus, the purpose of this study was to investigate, systemically, the functioning’s structure and dynamics of the origin’s families of a couple who experienced two pregnancies during adolescence. The single case study had three stages of data collect through a Sociodemographic Questionnaire, Genetogram, Semi-Structured Interview and Structured Family Interview (EFE). The main results of thematic analysis and data triangulation were borderline pathologies, with dysfunctional communication and expression of affection, emotional triangulation in the face of intrafamily violence and chemical dependence, and positive changes in family functioning after the incidence of the first gestation. It was concluded that the pregnancies represented milestones for the beginning of family evolutions, showing the indispensability of preventive interventions that allow other access routes to the health of the family system.

Keywords: Adolescent pregnancy, Family, Family relations.


 

 

Introdução

A saúde mental teve suas técnicas mais tradicionais concebidas e fundamentadas a partir do interesse pela dinâmica individual. Segundo Minuchin (1982), há a tendência de caracterização do sujeito a partir de patologias diante da análise dos dados advindos diretamente do mesmo. A terapia familiar, ou sistêmica, amplia essa visão, considerando o indivíduo como pertencente a grupos sociais e sendo parte ativa e reativa no coletivo do qual faz parte. Isso significa que a pessoa é vista a partir de uma análise contextual, já que o indivíduo influencia e é influenciado pelo ambiente no qual está inserido (Biagi & Rasera, 2018; Osório, 2013). Assim, a família, geralmente como primeiro grupo social no qual o indivíduo convive, tem especial papel em sua constituição psíquica.

Cada família possui um modo próprio de funcionamento, desenvolvendo padrões de interação entre os membros. A essa organização, Minuchin (1982) denominou Estrutura Familiar. Dentro do grupo familiar, pode haver subgrupos, ou subsistemas definidos por geração, gênero ou interesses em comum. Os que estão geralmente presentes, segundo o autor, são conjugal, parental e fraternal. As famílias possuem barreiras invisíveis que permeiam suas interações, demarcando os subsistemas, que são denominadas fronteiras. Essas são necessárias para que todos se comuniquem de maneira adequada ao seu papel dentro da família, respeitando hierarquia e regras familiares de funcionamento. As fronteiras familiares variam de rígidas, quando há pouca interação entre os subsistemas, podendo ocasionar afastamento, a difusas, quando há muita troca que pode conduzir à dependência, ao emaranhamento. A partir desses aspectos estruturais a dinâmica de funcionamento familiar pode ser avaliada (Nichols & Schwartz, 2007; Lazzari, Ferrari, & Zacharias, 2018).

Teóricos da comunicação situam a origem da patologia familiar nas dificuldades de comunicação dentro do sistema (Féres-Carneiro, 1996; Maldonado, 2018). Além desse pressuposto, considera-se outro aspecto que influencia na dinâmica familiar: a propensão à homeostase. Segundo o conceito, o grupo familiar tende a repetir padrões a fim de não modificar a estrutura subjacente. Assim, qualquer mudança abalaria os setores acomodados e provocaria desestabilização do grupo. O sintoma, em muitos casos, tem a função de acomodar e manter o equilíbrio do grupo, ainda que propicie o sofrimento do seu portador. O comportamento sintomático, apesar disso, é considerado adaptativo, já que denuncia a disfunção familiar (Féres-Carneiro, 1996).

Autores sistêmicos (Carter & McGoldrick, 2007; Carr, 2019; Pratta & Santos, 2007) refletem acerca do desafio das famílias diante do enfrentamento das crises desenvolvimentais esperadas, como a adolescência. Mesmo que previsível essa etapa do ciclo vital provoca mudanças nos relacionamentos entre pais e filhos. Isso se deve, dentre outros motivos, à tendência do adolescente a questionar o funcionamento familiar no que diz respeito a valores e regras, além das características peculiares a essa fase, permeada por inseguranças, confusão, angústias e sentimento de injustiça e incompreensão. O acompanhamento da família, por meio do diálogo, pode facilitar a resolução das referidas turbulências emocionais. Diante dessas constatações, é relevante a reflexão sobre a importância da qualidade das relações familiares, em todos os subsistemas, com destaque ao parental, a fim de evitar o desenvolvimento de problemas afetivos e comportamentais nos filhos (Pratta & Santos, 2007), especialmente, para fins do presente estudo, os adolescentes.

A ocorrência de gravidez na adolescência, com foco no apoio familiar e social percebido por gestantes adolescentes, foi estudada por Levandowski et al. (2012). O estudo exploratório com dezenove adolescentes primíparas objetivou coletar dados a respeito de sua percepção acerca do apoio familiar diante da gestação, e como isso refletiu no enfrentamento dos desafios inerentes à condição nesta faixa etária. O estudo encontrou melhoras na reação familiar à gravidez com o passar do tempo, já que a adolescente e sua família reorganizaram suas vidas diante da irreversibilidade do processo. Quanto às figuras familiares de apoio, a mãe e as irmãs foram as mais citadas, em detrimento do pai e do parceiro. Os tipos de apoio mais recebidos dos familiares foram financeiro, com itens necessários ao bebê; informacional, com conselhos a respeito de novas gestações e acolhida das dúvidas sobre a atual; e emocional, com ajuda e suporte para os cuidados com o bebê. As adolescentes deste estudo, de modo geral, perceberam apoio familiar, essencialmente feminino, o que significou um fator protetivo à vivência da maternidade no contexto socioeconômico vulnerável.

Essa percepção de maior envolvimento materno no contexto da gestação precoce, também foi mencionada por Delatorre, Patias e Dias (2015). As possíveis influências parentais na constituição da condição de gestação precoce foram estudadas por meio de cinco adolescentes em situação de gestação e seis adolescentes sem essa vivência. O estudo visou discutir aspectos críticos da adolescência, dentre eles a gestação precoce, sob o ponto de vista das relações vividas com os pais. Para isso, foi analisado o manejo parental diante das manifestações típicas da adolescência. O foco direcionou-se à compreensão dos estilos parentais e práticas educativas. Foram encontrados dados de práticas mais positivas nas mães das adolescentes não grávidas. Nas mães de adolescentes gestantes foram percebidas mais práticas educativas negativas, como distanciamento afetivo e dificuldade de diálogo. Dessa forma, o estudo associou as práticas maternas negativas ao fenômeno da gestação adolescente, porém sem afirmação de causa e efeito, já que no grupo de não gestantes também foram encontradas práticas maternas de risco.

Estudos internacionais também investigaram o fenômeno sob a ótica familiar. Destaca-se a pesquisa de Trujillo et al. (2013), que investigou a funcionalidade familiar de adolescentes grávidas na Colômbia. As famílias de origem de 190 adolescentes grávidas foram investigadas em temáticas como educação sexual e estrutura familiar. Os resultados indicaram disfuncionalidade familiar entre leve e severa em 72,1% dos casos analisados; a educação recebida dos pais foi julgada inadequada (70,5%), bem como a relação com os pais (46,9%); houve informação de pouca ou nenhuma conversa sobre educação sexual com a família (70,6%); confirmação de presença de violência intrafamiliar (38,9%); presença do fenômeno transgeracionalidade da gravidez na adolescência, alto consumo de álcool na família e constatação de 25,8% de depressão em pelo menos algum membro da família. Os achados deste estudo remontam à importância da família na ocorrência de gravidez na adolescência, demonstrando um significativo componente sistêmico envolvido.

Na mesma direção, a família foi destacada por Miller, Benson e Galbraith (2001) como claramente influente no risco de gravidez na adolescência, em uma revisão de duas décadas da literatura sobre o tema. Os autores encontraram dados que indicam que a conexão entre pais e filhos, em termos de suporte, proximidade e “calor” (afetivo) são fatores relacionados com a diminuição do risco de gestação adolescente. Isso se justifica pelo impacto dessas dimensões no sentido de atraso da iniciação sexual, diminuição das relações sexuais e do número de parceiros e no uso mais consistente de métodos contraceptivos. A falta de proximidade com os pais também é associada ao aumento da influência dos pares na atividade sexual adolescente. Em relação ao controle/monitoramento parental do adolescente, os estudos revisados não trazem consenso, porém indicam que o controle excessivo ou muito baixo está associado ao aumento do risco de gravidez, necessitando um grau de equilíbrio no monitoramento das atividades dos filhos. Além disso, são citados como influentes os valores parentais acerca da sexualidade, a comunicação familiar geral e sobre sexualidade, estrutura familiar e contextual, além de variáveis biológicas.

Aproximando-se mais do interesse pelas dinâmicas familiares em sistemas com adolescentes grávidas, SmithBattle e Leonard (2014) realizaram um estudo qualitativo e prospectivo, com vinte e dois anos de duração. Neste período, acompanharam os processos familiares de sistemas com gestantes adolescentes, buscando compreender como as relações se desenvolveram e impactaram essas meninas (atualmente mulheres de meia-idade) e o restante da família ao longo dos anos. Os autores pesquisaram uma lacuna da literatura sobre o tema da gravidez precoce, visando identificar os padrões de envolvimento dos pais (avós do bebê) com a adolescente grávida. O foco foi investigar as vidas de adolescentes gestantes, salientando as relações familiares multigeracionais, além das práticas parentais exercidas. Como resultado, foram encontrados exemplos de cuidados contraditórios, fenômeno que influencia a maternidade, no qual os avós da criança assumem seus cuidados ou acabam se tornando espectadores críticos do processo.

Os resultados foram discutidos pelos autores em termos de estrutura familiar, revelando fronteiras geracionais “borradas” ou “pobres” (difusas), sem clareza de papéis. No primeiro caso discutido, a família assumiu o cuidado do bebê, impedindo o desenvolvimento da maternidade adequada, e contribuiu para que o vínculo mãe-filhos se tornasse frágil, desencadeando repetição do histórico de gravidez precoce e dificuldades de desenvolvimento emocional nos filhos. No segundo caso, a tentativa de estruturação familiar foi feita pelo estabelecimento de “fronteiras invisíveis” por parte da mãe da adolescente, por meio da interrupção do contato entre elas. Essa expressão utilizada pelos autores pode ser compreendida como correspondente a fronteiras rígidas, já que houve o estabelecimento de um impeditivo comunicacional entre o subsistema. Os autores discutem que os membros da família “repetem o que eles denunciam” (p.94), referindo que quanto mais lutam para ser diferentes, mais percebem o quanto são parecidos. Em um terceiro caso, evidencia-se o desenvolvimento da maternidade saudável, a partir da saída da filha de casa com um parceiro adequado que lhe ajudou a assumir os cuidados da criança e formar uma família com limites e afeto, impedindo a interferência da família de origem e conseguindo desafiar o estereótipo de dependência das mães adolescentes (SmithBattle & Leonard, 2014). Este último caso representa o estabelecimento de fronteiras nítidas, com cada membro da família ocupando o seu papel.

No estudo de Santos et al. (2014), a gravidez trouxe melhoras ao relacionamento familiar, sendo a família percebida pelas adolescentes como apoiadora, após passado o primeiro impacto da notícia. Não houveram manifestações contrárias ao prosseguimento da gravidez, e sim mobilizações familiares no auxílio à mãe ou ao casal adolescente. A partir dessa informação, os autores destacam a importância familiar para que a gestante possa tomar conta do bebê e continuar os seus projetos de vida. Resultado semelhante foi encontrado por Hoga, Borges e Reberte (2010), desta vez a partir da percepção dos familiares das adolescentes. Segundo eles, a chegada do bebê trouxe alegrias, paz e uniu a família, além de ter contribuído para a aquisição de maturidade e responsabilidade na mãe, que passou a ter melhoras em seus comportamentos antes vistos como problemáticos, dentre os quais se destacam as saídas em companhias duvidosas para situações potencialmente danosas. Como questões influentes na constituição da gestação, os familiares relatam: a busca por autonomia e liberdade; início precoce dos namoros e falta de cuidados com a anticoncepção; influências das amizades consideradas ruins, em contextos socioeconômicos precários; gravidez como manifestação da rebeldia e incitação de aborrecimentos à família; crenças religiosas, com resignação “à vontade de Deus”; e atribuição de culpabilização ao desempenho materno como falho. Nesse estudo, foram percebidos sentimentos de corresponsabilidade nos familiares pela gravidez adolescente. Isso se justifica pela identificação de problemas no relacionamento familiar, impactando na capacidade para o diálogo com a adolescente, principalmente no que diz respeito à sua sexualidade.

Conforme visto, a literatura traz trabalhos que investigaram o contexto familiar no fenômeno, entretanto, são escassos estudos brasileiros que atentem para a organização familiar como foco principal do entendimento da ocorrência da reprodução nessa faixa etária (Santos et al., 2018). Assim, o presente estudo visou compreender a estrutura e a dinâmica de funcionamento das famílias de origem de um casal com gravidez adolescente, a partir da perspectiva teórica sistêmica.

 

Método

Foi realizado um estudo qualitativo, com delineamento exploratório, no formato estudo de caso único (Yin, 2015) em corte transversal, com três etapas ao longo de quatro meses. A escolha do caso único se deu por sua especificidade, que envolveu uma segunda gestação ainda na adolescência, de um casal com pouca diferença de idade entre si. Além disso, houve intenção de analisar o fenômeno em profundidade e por meio de diferentes fontes de evidência a serem trianguladas, visando não a busca por probabilidades, mas uma expansão do pensamento teórico envolvido (Yin, 2015).

 

Participantes

Os participantes foram um casal com uma gestação em curso, no qual pelo menos a gestante era adolescente, residentes no interior do RS, e suas respectivas famílias de origem. O casal, chamado pelos nomes fictícios Joana e Bruno, vivenciava, na ocasião, sua segunda gestação. Na primeira, Joana tinha 14 anos e Bruno, 18. Estavam juntos havia três anos, sendo que no último ano formalizaram a união com o casamento religioso. Residem em peça separada embaixo da casa dos pais dela, desde que a primeira gestação foi anunciada às famílias. O segundo bebê nasceu em meio à coleta de dados da pesquisa, quando o casal tinha 17 e 20 anos. A seleção se deu por conveniência, e a composição familiar participante da pesquisa é apresentada abaixo:

 

 

Instrumentos

Os instrumentos de coleta de dados foram: 1) O questionário sociodemográfico (elaborado pelas autoras), para a exploração de dados da história dos casais e caracterização de suas famílias; 2) A entrevista semiestruturada com o casal (elaborada pelas autoras), visando explorar questões individuais, diádicas e, principalmente, percepções a respeito das famílias de origem e o significado da gravidez; 3) A entrevista semiestruturada familiar (elaborada pelas autoras), em que foram exploradas questões de história, estrutura e dinâmica de funcionamento familiar; 4) Genetograma Familiar (Carter & McGoldrick, 2007), representação gráfica que permite vislumbrar um quadro trigeracional da família e dos movimentos dela ao longo do ciclo de vida, registrando os padrões familiares da história e a estrutura básica; e 5) EFE- Entrevista Familiar Estruturada (Féres-Carneiro, 2005), instrumento que consiste em um método clínico para avaliação das relações familiares, com parecer favorável no SATEPSI, composto por seis tarefas, verbais e não-verbais, que avaliam os padrões básicos do funcionamento do grupo familiar. Possibilita a observação das interações familiares nas dimensões comunicação, papéis, liderança, manifestação da agressividade, afeição física, interação conjugal, individualização, integração, autoestima e promoção de saúde emocional.

Procedimentos éticos, de coleta e de análise dos dados

O casal foi selecionado a partir da indicação de uma Unidade Básica de Saúde de uma cidade gaúcha, após anuência do responsável pela Secretaria Municipal de Saúde e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos, sob parecer CAAE 62563216.0.0000.5344. Após apresentação e assinatura de todos os participantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os instrumentos foram aplicados na residência dos mesmos em três datas diferentes: Inicialmente, foi realizada a entrevista semiestruturada com o casal na residência do mesmo, bem como o preenchimento dos questionários sociodemográficos, que já introduziram dados familiares. Em uma segunda data, foi realizada visita domiciliar à família da adolescente gestante, na qual foram aplicados os instrumentos entrevista semiestruturada familiar, Genetograma familiar e Entrevista Familiar Estruturada (EFE). Na terceira data, foi realizada visita domiciliar à família do rapaz, procedendo da mesma forma indicada anteriormente. Nesses momentos familiares, o casal se dividiu, cada um participando com sua família sem que o outro estivesse presente. Os dados e o anonimato dos participantes foram preservados, bem como as demais recomendações éticas para a realização de estudos com seres humanos, de acordo com a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Foi solicitado ao casal e às famílias a autorização para gravação em áudio e vídeo das entrevistas, para posterior transcrição e análise dos dados.

A análise de dados foi qualitativa, a partir da perspectiva teórica sistêmica e por triangulação (Yin, 2015). Os dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas foram avaliados através de análise temática (Braun & Clarke, 2006). O Genetograma incluiu a análise das famílias nas últimas três gerações: a do adolescente, de seus pais e de seus avós; também foram registrados os padrões de interação familiar e outras características que o grupo apontou como marcantes e a entrevistadora percebeu como relevantes para a aproximação do entendimento sobre o funcionamento familiar. A Entrevista Familiar Estruturada (EFE) (Féres-Carneiro, 2005) foi analisada qualitativamente.

 

Resultados e discussão

Gravidez na adolescência

A primeira gestação do casal foi mantida em segredo até os seis meses, quando o pai da adolescente descobriu, por meio da observação do corpo e das atitudes da filha e também por olhar o celular dela, prática comum dele, tendo pego algumas mensagens com Bruno. Na época, ela passou por uma cirurgia de retirada de cisto, já grávida e ciente de sua condição, e não a mencionou. Os pais dela referem terem passado por “um choque, né... porque imagina né, com 15 anos...” [sic]. A mudança do papel de pai para avô é citada como impactante para o pai de Joana: “Imagina, trinta e poucos anos, vô! [risos]. Mas fazer o que, é a vida... na hora foi um susto, mas depois... foi passando né, abandonar você não pode, tem que acolher, né? O que você vai fazer, né? É uma vida que hoje tá aí, dando alegria” [sic]. Diante da notícia, o pai de Joana mobilizou a família de Bruno para uma conversa, visando uma união do casal e a participação ativa deles nas responsabilidades com o bebê. Um espaço embaixo da casa da família de Joana foi reformado e cedido ao casal, para que fixassem residência e assumissem os cuidados com a criança. A segunda gestação, aos 17 anos, foi recebida com menos tensão, já que a estrutura estava montada. Segundo Joana: “Da segunda gravidez foi assim: eles tinham comprado umas coberta e eles levaram lá embaixo pra nós, de presente. E eu de presente dei o exame, que eu tava grávida. Eles logo não entenderam o que era, e daí eu falei eu tô grávida de novo e tal... daí eles me olharam assim ‘eu não acredito’ [risos]” [sic].

Bruno soube da gravidez desde o início, porém quando veio à tona, “eu tinha até feito que não sabia de nada”, por medo de que as famílias brigassem com ele. Atualmente, pensa que “tu amadurece bastante, nossa... tu acaba vendo a vida de outro jeito, né? Eu acho que Deus não faz nada por acaso, porque era isso que eu precisava pra assumir certas responsabilidades que eu não tinha, então graças a Deus foi através dela [primeira filha] que a gente pôde amadurecer, ela [Joana] também” [sic].O pai de Bruno refere que “foi cedo, um momento muito cedo na vida dos dois, poderiam ter formado melhor a estrutura familiar [...] pra não sofrer tanto [...] queimaram etapas” [sic]. A família ficou muito surpresa, mas teve a mesma atitude da família de Joana, acolher e auxiliar. Sentiram-se “traídos”, pois “tu confiou tanto, sabe?”, ou “bah, eu não achei que tu ia fazer isso” [sic]. Inicialmente, voltaram-se mais para os cuidados com a nora, para certificarem-se de que estaria bem. O pai dele refere que tiveram a intenção de “corrigir o que foi feito e abraçar, principalmente amando, não deixando o sentimento de ‘por que tu fez!’, porque não ia resolver, então o melhor caminho: orientação, que é o que a gente faz até hoje” [sic]. Quanto à segunda gestação, a mãe de Bruno refere ter dito “mas Joana, por favor!” [sic], tendo ficado mais surpresa ainda: “vocês não pensam?”, mas a notícia foi se tornando muito positiva com o passar do tempo. No momento da conversa, as fotos dos netos podiam ser vistas na estante da sala, mostrando o orgulho em tê-los.

A gravidez na adolescência, na família de origem de Joana, aparece apenas na experiência da avó paterna, aos 17 anos. Na família de origem de Bruno, a avó materna engravidou a primeira vez aos 18 anos. Durante a construção do genetograma, sobre a idade da primeira gestação da avó paterna, aos 28 anos, Bruno comenta: “Bah, velha, né?” [sic].A que o pai responde: “Não... na hora certa” [sic]. Esse “debate” de pai e filho mostra-se relevante para a reflexão acerca do aspecto histórico da gravidez na adolescência, temática que nem sempre foi considerada indesejada, conforme discutem Lima e Correia (2014) em suas observações sobre as mudanças no paradigma social. Esse movimento se conecta com as alterações no papel social feminino, em resposta ao modelo patriarcal, com impactos nas relações familiares e visões sobre gênero (Coutinho & Menandro, 2015), ainda que esteja “em processo a superação das diferenças consolidadas pela tradição” (p. 67) e sofra diferenças de acordo com o nível socioeconômico da mulher. Especificamente para o que interessa a essa pesquisa, as concepções tradicionais de gênero se mostraram intimamente conectadas à ocorrência de gravidez na adolescência, em especial nos contextos mais vulneráveis socialmente, nos quais a gestação pode representar para a menina um projeto de vida (Patias et al., 2014).

Família Joana

Genetograma

 

 

Estrutura e dinâmica de funcionamento familiar

Durante a entrevista do casal gestante, Joana relembra uma infância muito conturbada. Com o comportamento alcoolista do pai, haviam muitas brigas entre o casal parental, sendo que ela, muitas vezes, “precisava separar né, porque eles brigavam bastante [...]; Uma vez, acho que se não fosse eu ligar pra minha tia... ela [mãe] tinha matado o meu pai, porque... de tanta raiva que ela ficou ela pegou o que tinha na frente dela, não sei se era uma faca agora, mas foi pra cima dele.” [sic]. Como pais, recorda que foram ausentes, não participando das atividades na escola, brincando ou conversando com ela. Joana refere ter sido muito revoltada por conta disso: “eu brigava bastante na escola.” [sic].  Esse funcionamento trouxe muito desgosto para ela: Então o pouco que eu sei eu tive que aprender sozinha...”. Acrescenta: “Eu sempre, no caso, fiz as coisas escondidas, porque daí eu não tinha a presença deles, pra mim não ia fazer diferença se eles tentassem me ajudar ou não, porque eu nunca tive a presença deles, com essas coisas de falar e tal...” [sic].  Essa ausência familiar na vida de Joana foi modificada após a gravidez da primeira filha, conforme relata: “Os meus pais, no caso, o carinho que eu não ganhava quando era pequena, o amor, eu fui começar a ganhar depois que eu descobri que tava grávida da nenê, daí a gente teve a relação entre pais e filha.” [sic].

Essas observações foram corroboradas durante a entrevista familiar, que revelou duas fases diferentes da família, sendo a primeira gravidez de Joana um marco para a mudança. Segundo relato do pai, o casal sempre foi muito trabalhador. Chegaram na cidade atual sem nada e sem rede de apoio, e começaram a vida trabalhando muito e passando por muitas dificuldades. Quando pensa sobre essa história, faz comparações com o início da vida a dois da filha: “A gente passou 30 dias aos trancos e barrancos, mas guentemo, né? Então pra eles já foi diferente. Quando tudo aconteceu, eles já ganharam até casa pra morar. Se fosse no nosso tempo uma ajuda dessa, nossa, era uma maravilha.” [sic]. Referem que por esse foco em construir melhor qualidade de vida, faltou espaço para maior presença na vida de Joana. O pai relata: “Eu era mais agressivo, sabe. Nunca fui de muita conversa. A Joana mesmo sabe, ela fazia uma coisa errada eu tinha que espancar, eu tinha que bater, nunca fui de conversar. E hoje quando a Joana fala com a nenê eu digo ‘ó, Joana, senta e conversa, não era assim que você pedia pra mim fazer?’. Ela mesmo dizia ‘ó pai, conversa comigo, tu só me bate!’. Eu era mais... claro, hoje graças a Deus tô liberto do vício né, da bebida, então... porque eu já era alcoólatra, todo dia bebida, então, acho que isso também muda bastante a pessoa né, agora eu sou mais família.” [sic]. Atualmente, o pai percebe que o lado afetivo fez falta para a filha e busca corrigir essa falha com o apoio e suporte para ela e os netos. A mãe não conseguiu expressar sentimentos ou pensamentos, mesmo tendo recebido a palavra diretamente dirigida a ela. Se mostrou reticente e o marido assumiu em diversos momentos: “Essa daqui [esposa] só dizia ‘vamo faze o que agora?’. Vamo fazer nada, vamo criar. Vamo casar e vão se virar, né? Vão passar pelo trabalho que a gente passou, mas eles não passaram nem a metade do que a gente passou.” [sic].

A entrevista em família revelou uma mãe muito quieta, sendo a liderança assumida pelo pai. A mesma dinâmica foi percebida na entrevista com o casal gestante, sendo o jovem pai muito mais falante e aberto do que a adolescente, que se dizia “envergonhada”. Joana faz essa observação, diante das falas vagas da mãe: “A mãe é que nem eu [risos]. A entrevistadora observa: “Os dois homens são os que conversam”, ao que ela responde: “E conversam! Nós duas já é mais quieta” [sic].

A relação com os pais, ao longo do desenvolvimento de Joana, demonstrou distanciamento afetivo, representado por fronteiras rígidas (Nichols & Schwartz, 2007). Estavam ausentes e não havia diálogo. Na infância, Joana “era mais do pai” [sic], e hoje está mais voltada para a mãe. Após o nascimento dos filhos, entretanto, a relação com o pai vem apresentando fronteiras mais claras, com ele referindo refletir continuamente sobre as faltas que teve nesse aspecto emocional. A mãe, por outro lado, mostra ter se tornado emaranhada com Joana, não conseguindo estabelecer papéis claros (Nichols & Schwartz, 2007). Tende a proteger, mesmo que não consiga expressar os sentimentos com clareza, mostrando permissividade. Parece haver entre o casal também um distanciamento emocional, com algum receio da esposa diante do marido. Esse movimento fica claro na aplicação da EFE, na qual, diante da tarefa de planejarem uma mudança, primeiramente as duas mulheres olham para o homem, esperando uma resposta. Depois, Joana pensa que precisariam de uma casa bem grande, com vários quartos, “que aconchegasse bem todos”, o que a mãe corrobora, dizendo que todos morariam juntos. O pai contrapõe, dizendo que acha que cada um deveria alugar uma casa, já que “são duas famílias, né, então cada um tem que seguir seu destino”, apesar de “não ser fácil separar mãe e filha; o pai sai fora mas mãe e filha ficam juntas né [risos]”. Quando Joana considera a opinião do pai, vendo sentido, a mãe assente “bom, se ela prefere assim, né...” [sic]. A mãe é vista como a primeira opção de Joana diante de uma dificuldade; já o casal não demonstra contar um com o outro para isso, ficando evidente que buscam resolver sozinhos suas dificuldades. A rotina de trabalho do casal ainda é intensa, dificultando a conciliação de momentos de lazer juntos. Atualmente não estão presentes atitudes impulsivas que culminem em agressão física ou verbal, como outrora ocorria; A comunicação por meio do diálogo se tornou a primeira alternativa da família, com a crença de que Deus teve um papel importante nessa modificação. Apesar disso, ainda é presente a dificuldade de demonstração de afeto, o que pode ser visto diante da incapacidade de resolver a tarefa não-verbal do instrumento EFE, de mostrar a uma ou mais pessoas o que sente por elas, sem dizer nenhuma palavra. Os três ficaram paralisados, claramente constrangidos, mas sem tomarem qualquer atitude. Pai e filha se olham e riem, perguntando um ao outro se compreenderam a tarefa. Enquanto isso, a mãe permanece imóvel, sem falar ou fazer nada. A postura física do pai indica uma atitude protetiva durante toda a aplicação da EFE, já que senta ao lado da filha que tem a neta no colo, e coloca o braço em torno delas no sofá, fazendo um abraço sem contato físico. A mãe senta em outro sofá, distante dos dois. Ao final, o pai faz um carinho na neta, que está no colo da filha ao seu lado e comenta: “é mais fácil fazer um gesto pra irritar a pessoa do que né... é bem mais fácil...” i[sic], verbalizando o embotamento afetivo.

Família Bruno

Genetograma

 

 

Estrutura e dinâmica de funcionamento familiar

Ao longo da entrevista com o casal gestante, Bruno revela uma infância difícil, principalmente por conta da instabilidade propiciada pela dependência química do pai. A mãe foi essencial nesse momento, pois mantinha o sustento da família com três empregos. Diante dessa dificuldade, desde cedo ele precisou ajudar em casa. Com seis anos, já limpava a casa, fazia comida para o irmão e tomava conta dele. Mais tarde o levava para a escola, e seguia auxiliando a mãe em casa. O vínculo entre irmãos é tão forte que o mais novo teve ciúmes e raiva da cunhada e sentiu falta do irmão, quando ele foi morar com ela. O desempenho escolar do menino baixou nesse momento da saída de casa do irmão mais velho: “ele sentiu muito isso aí, o amigo dele foi embora” [sic]. Bruno refere admirar muito ambos os pais, mas reflete que durante essa fase difícil, o pai fez muita falta: “faz toda a diferença o pai estar, a presença do pai faz toda a diferença na família” [sic]. Não refere mágoas do pai, pois antes dessa fase ele foi trabalhador e presente, por isso o admira como exemplo de superação. Mas conclui: “eu quero fazer o contrário disso, eu quero estar sempre presente, porque isso é muito importante pra criança, fica gravado pra ela”. Bruno também vivenciou episódios de violência em casa. Relembra hoje rindo, mas percebe a gravidade do que presenciou na época: “Meu pai tinha saído e ficado sumido uns três dias, eu acho. E daí minha mãe tava em casa, eu até tava com febre, e daí meu pai apareceu e tal. E daí ele foi entrar em casa e minha mãe tava com um porrete assim sabe, e daí minha mãe foi pra dar uma porretada nele e eu me meti na frente pra separar e ela me acertou uma porretada no meu beiço assim, e daí eu fiquei com o beiço desse tamanho assim, e no outro dia eu tinha que ir pra aula” [sic].  Refere que essa prática de separar os pais era frequente, além de “ter que esconder o meu irmão pra ele não ver” [sic].

Durante a entrevista em família, o pai assumiu a liderança, falando mais que os demais membros. Todos tiveram espaço para se comunicarem e o fizeram; Entretanto, pôde-se perceber alguns receios, contenções sutis, em relação a assuntos do passado. Os temas do período conflituoso da história familiar foram trazidos pela mãe enquanto refletia sobre os motivos para as gestações, referindo-se às ausências afetivas que acabaram ocorrendo. Percebeu-se uma tendência do pai à evitação da recordação sobre essa fase, como uma forma de autodefesa, alegando que não se pode atribuir a isso, já que ele teve ausência de pai, e outras famílias têm ausência de pai e mãe e nem todos têm ou tiveram filhos na adolescência. Atualmente, na função de pastor, o pai tem um papel de líder na comunidade e pareceu pouco à vontade para relembrar momentos difíceis, demonstrando querer evitar sua culpabilização e suscitar a responsabilização do filho pelas suas atitudes. Na fala da mãe, percebe-se culpa por não ter correspondido no papel materno, afetivamente. Na fala dos filhos aparece claramente a superação do problema, a mudança de percepção sobre a história familiar. Bruno expressa que a falta que o pai fez no passado, ele compensa atualmente. A visão que tem sobre os pais hoje é muito positiva: “Vejo eles como um casal feliz, apesar de todas as dificuldades. Que pena que eles não vão durar para sempre, eu vou sentir bastante falta porque eles tão sempre me auxiliando e tudo o mais... sempre que eu puder eu vou tá perto deles.” [sic]. O irmão mais novo demonstra entrar em maiores embates com o pai quando há divergência de opiniões, tendendo a contrapô-lo, como quando ele evitava pensar que sua ausência pudesse ter trazido impactos para os filhos: “sim, mas a mãe tá falando sobre a nossa família, não sobre outras” [sic]. Apesar disso, complementa que atualmente o vê como exemplo de vida.

A comunicação dentro dessa família, atualmente, é dita aberta. Entretanto, antes da primeira gravidez, percebe-se que havia a presença de fronteiras rígidas (Nichols & Schwartz, 2007), como nesse exemplo: Bruno mentia sobre a iniciação sexual, por medo de o pai brigar, já que a crença religiosa da família orienta a manter a sexualidade dentro do casamento. Para o pai: “ah eu fico hoje com essa, depois eu fico com a outra, depois com uma outra... você tá colocando na tua mente um histórico de relações sexuais, aí chega no momento de você ter tudo aquilo que é pra um determinado momento e tu não tem mais prazer, porque tu já fez isso antes com várias pessoas” [sic]. A família reflete que a primeira gravidez os tornou mais unidos e acessíveis emocionalmente, e trouxe o sentimento de vazio pela saída do filho de casa (Carter & McGoldrick, 2007). Entretanto, apesar de essa família estar apresentando maior proximidade na direção de fronteiras nítidas, ainda aparecem alguns aspectos aparentemente conflitivos e disfuncionais: referem que, atualmente, Bruno tem receio de levar alguns assuntos a eles, “para não incomodar” [sic] como quando falta algo em casa, por exemplo, o que Joana pede com maior facilidade aos sogros. Também o fato de terem ajudado tanto no início da conjugalidade dos filhos, e ainda os ajudarem muito, possibilita uma interferência da família de origem nas decisões do casal, o que pode ser visto como um ônus da gravidez precoce. Segundo a mãe: “Se precisar correr um pouquinho mais pra ajudar eles, a gente corre... só parar por aí, né? Dois tá bom, né!”, a que o irmão de Bruno responde: “a decisão é deles”, desafiando esse funcionamento, e a mãe: “não, mas eu disse pra ele ‘vou cair fora desse barco aí’ [risos] [sic]. Assim, o apoio, apesar de tão essencial, também traz a consequência de todos sentirem-se implicados no planejamento familiar do casal, podendo participar de decisões que pertenceriam à díade.

Durante a aplicação da EFE, sentaram-se todos, lado a lado. Casal no meio, de mãos dadas, Bruno ao lado do pai de mãos dadas e o irmão mais novo ao lado da mãe, sendo abraçado por ela. Ao longo da resolução da primeira tarefa, o pai se desvencilhou sutilmente do contato físico e cruzou as mãos, pensando; a mãe e o filho mais novo mantiveram-se de mãos dadas. Na tarefa da mudança de casa, todos se dirigem ao pai, esperando sua opinião, e depois vão participando e entram em consenso com facilidade. No momento de refletir sobre pedir ajuda, a mãe refere cogitar o marido e os filhos; Bruno indica o pai como sua opção; o irmão mais novo indica Bruno; e o pai refere não pedir ajuda a princípio, esperando para ver se dará conta sozinho. Somente depois de esgotar suas possibilidades por conta própria, pede ajuda. Todos citaram gostarem em si mesmos atributos emocionais e cognitivos, como facilidade de aprender (irmão mais novo), perseverança (mãe), desafiar-se (pai) e esforço próprio (Bruno). Os dias de folga e feriado são preenchidos em família, com tendência de buscarem atividades em conjunto, que agradem a todos. O casal em si não faz muitas atividades sozinhos, sempre com os filhos ou netos junto. A mãe demonstra a tendência a revelar os conflitos; o pai demonstra reação de “não dar mais continuidade naquele assunto e depois a gente se acerta” [sic], ou de ser impulsivo. A afetividade foi demonstrada na tarefa não-verbal, com a iniciativa de Bruno em um abraço coletivo; depois, o irmão mais novo abraçou um por um, e a mãe também. O pai não tomou iniciativa, mas retribuiu os carinhos, sempre justificando ou reiterando algum aspecto, mesmo diante da orientação não-verbal. Percebeu-se maior facilidade dos filhos na demonstração de afeto, com a mãe sendo carinhosa e o pai demonstrando algumas restrições.

Análise global do caso

O desenvolvimento infantil do casal participante foi em ambientes familiares muito instáveis, permeados pela dependência química dos pais, violência física e verbal, descontrole e desamparo emocional dos cuidadores. A análise dos genetogramas propicia reflexões sobre algumas questões transgeracionais que ajudaram a construir essa realidade. Nos dois históricos, verifica-se que os cônjuges adolescentes, quando crianças, participavam de triangulações com os pais, estratégia que para Bowen (1966), citado em Nichols e Schwartz (2007), envolve a participação de um terceiro na dissolução da ansiedade presente na dupla, aqui, parental. Ambos recordam claramente seus papéis de separarem brigas dos pais, tendo se sentido muito prejudicados por conta disso. Na família de Joana, o casal parental pareceu não ter conseguido retomar a intimidade e parceria, demonstrando viverem em torno da filha e dos netos e, por isso, parece ser difícil, principalmente para a mãe, separar-se dela e voltar a focar-se na conjugalidade. A família de Bruno também se mostrou voltada para o todo familiar, sendo que o casal percebe estarem fazendo falta atividades apenas conjugais.

O apoio familiar para esse casal foi primordial, representando, como para Levandowski et al. (2012), um fator protetivo para a vivência da parentalidade na adolescência. Nesse caso, ao contrário do estudo mencionado, todos se envolveram no suporte à gestante, não ficando o cuidado mais restrito ao gênero feminino: parceiro, pais, mães e irmão participaram ativamente na adaptação à nova necessidade. Essa constatação vai ao encontro da tendência observada por Bernardi (2017) de graduais mudanças no papel masculino no cuidado com os filhos, sendo os homens cada vez mais requisitados na parentalidade, convidados – e autorizados – a exercerem uma paternidade que vá além de conceber e prover: a vivência do direito de ser reconhecido com o mesmo grau de importância atribuído à mãe no campo afetivo da criança. Bruno verbaliza em sua fala a falta que o pai fez, caracterizando uma ausência paterna que ele tem buscado não repetir, estando presente na vida dos filhos, o que é considerado no trabalho de Cúnico e Arpini (2013) como uma busca que não somente o pai, mas a sociedade precisa empreender. O apoio familiar é discutido por Patias et al. (2013) tanto como fator de proteção como de risco, já que pode propiciar a reincidência do acontecimento, o que ocorreu nesse caso. Na fala do pai de Joana aparece essa consideração, de que o jovem casal não passou o mesmo trabalho que os pais passaram no início da vida, havendo uma crítica implícita sobre a pouca valorização disso.

Foram percebidas melhoras nos relacionamentos familiares após o nascimento do bebê, assim como visto em Santos et. al. (2014), após passado o primeiro impacto da notícia. Como em Hoga et al. (2010), também foi percebido um sentimento de corresponsabilidade das famílias no desenvolvimento da condição de gestação, por conta dos problemas vivenciados na história familiar pregressa. Desse modo, o movimento de mudança na estrutura das duas famílias, passando de fronteiras rígidas a difusas, pode ser refletido como uma alternativa encontrada pelos sistemas para reparo do déficit anteriormente presente. Esse emaranhamento não afeta os papéis de pai e mãe, avós e avôs, que estão claramente definidos diante das crianças, diferente do exemplo encontrado por SmithBattle & Leonard (2014). Parece afetar a autonomia do casal, o sentimento do jovem pai em dar conta de suas responsabilidades e a independência da adolescente para exercer seu papel sem tanta interferência. Apesar de as famílias verem esse movimento como uma melhora, utilizando o passado como parâmetro, a disfuncionalidade ainda está presente, mesmo que tenha diminuído, pois ainda não foram alcançadas fronteiras nítidas (Nichols & Schwartz, 2007). Assim, percebe-se que a gravidez não deve ser vista como uma estratégia para o tratamento da disfuncionalidade familiar, já que pode propiciar novas disfunções que venham a repercutir nessa nova geração.

 

Considerações finais

O presente trabalho mostrou a gravidez na adolescência como um recurso para esses adolescentes lidarem com algumas dificuldades vivenciadas nas relações familiares. Não se pode simplificar a ocorrência de fenômeno tão complexo, desconsiderando outras variáveis; Contudo, as variáveis familiares aqui compreendidas demonstram ser significativas para entender essa vivência. Vista como estratégia para mudança, a gravidez cumpriu algum papel nessas famílias. Entretanto, tantas outras questões apontadas pela literatura e algumas por esses participantes sobre o ônus da vivência nessa faixa etária, remetem à necessidade de serem encontradas novas estratégias que visem a mudança nas estruturas e dinâmicas familiares disfuncionais, sem que seja necessária a inclusão precoce de um novo membro no sistema familiar. Sugere-se o trabalho preventivo como potencialmente eficaz para o enfrentamento dessas dificuldades, e propõe-se, para isso, a realização de estudos longitudinais que viabilizem o acompanhamento dessas experiências em longo prazo, pois o caráter transversal desse estudo é uma limitação do seu potencial.

 

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Endereço para correspondência
Daiane Wiltgen Tissot
E-mail: daianewtissot@gmail.com

Denise Falcke
E-mail: dfalcke@unisinos.br

Enviado em: 04/05/2019
1ª revisão em: 26/06/2019
2ª revisão em: 08/10/2019
Aceito em: 29/11/2019

 

 

1 Psicóloga (FACCAT) e Mestre em Psicologia Clínica (UNISINOS). Psicóloga Clínica Sistêmica. Psicóloga da Unimed Encosta da Serra. Colaboradora do NEFAV (Núcleo de Estudos de Família e Violência).
2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. Psicóloga (PUCRS), Mestre e Doutora em Psicologia Clínica (PUCRS), Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Coordenadora do NEFAV (Núcleo de Estudos de Família e Violência).

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