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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre jul.dez. 2020
ARTIGOS
Mapa de rede social de usuárias do Centro de Referência de Assistência Social
Map of the social network of users of the Reference Center of Social Assistance
Gabriel Fernandes de Oliveira1 ; Laura Vilela e Souza2, I ; Carla Guanaes-Lorenzi3, I
I Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi compreender as possibilidades do uso do Mapa de Rede Social no atendimento social e psicológico ofertado em um Centro de Referência de Assistência Social. Mapas de oito usuárias desse serviço foram construídos e analisados como estudo de casos múltiplos a partir de teóricos sistêmicos e construcionistas sociais. A construção do Mapa permitiu gerar informações significativas sobre as fontes de apoio dos/as usuários/as, identificar situações de violência dentro e fora da família, discutir as consequências da migração de território para as famílias, analisar os efeitos do posicionamento das profissionais do CRAS e da rede pública de saúde na vida dessas pessoas e analisar em quais âmbitos da vida da pessoa o apoio tem sido mais efetivo e onde poderia ser ampliado. A construção do Mapa pode servir para o planejamento de intervenções voltadas para o que a política de atenção social básica prevê, uma atuação preventiva e a favor do fortalecimento de vínculos entre famílias e comunidade.
Palavras-chave: Mapa de rede social, Família, CRAS/SUAS, Construcionismo social.
ABSTRACT
The objective of this research was to understand the possibilities of using the Social Network Map in social and psychological care offered at a Social Assistance Reference Center. Maps of eight users of this service were constructed and analyzed as a multiple case study from systemic and constructionist theorists. The construction of the Map allowed to generate significant information about the users' support sources, to identify situations of violence inside and outside the family, to discuss the consequences of territory migration to the families, to analyze the effects of the positioning of CRAS professionals and the public health network on life of these people and analyze in which areas of the person's life the support has been more effective and where it could be expanded. The construction of the Map can serve to plan interventions focused on what the basic social care policy provides, a preventive action and in favor of strengthening bonds among families and community.
Keywords: Social network map, Family, CRAS / SUAS, Social constructionism.
Menezes e Castellá Sarriera (2005) apresentam as redes sociais como sistemas abertos em permanente construção, que se constroem individual e coletivamente utilizando o conjunto de relações que possuem uma pessoa, uma família e um grupo, servindo como fontes de reconhecimento, de sentimento de identidade, de competência e de ação. As redes sociais individuais variam de cultura para cultura, tanto em sua configuração a nível micro, se referindo às pessoas específicas com as quais o indivíduo se relaciona, quanto na sua diferenciação a nível macro, se referindo aos grandes grupos culturais que o indivíduo faz parte.
O estudo de redes sociais é discutido na literatura a partir de seu potencial de apresentar a relação entre desenvolvimento humano e a qualidade das redes sociais com as quais o indivíduo interage (Sluzki, 1997, 2010; Crepaldi & Moré, 2012; Uber & Boeckel, 2014). Além disso, o Mapa de Redes Sociais é tomado como instrumento de pesquisa que permite construir com as pessoas narrativas de si, bem-estar, competência e agenciamento ou autoria, incluindo os hábitos de cuidado da saúde a capacidade de adaptação em uma crise ou mudanças (Sluzki, 2010; Von Zuben et al., 2013).
Muito utilizado no contexto das práticas sistêmicas, sobretudo com famílias, o uso do Mapa de Rede Social como instrumento metodológico tem se mostrado promissor por se adaptar a diversos contextos e apresentar resultados úteis para compreensão das relações interpessoais em diferentes contextos (Crepaldi & Moré, 2012; Fontes, 2003; Pinheiro & Guanaes-Lorenzi, 2014; Von Zubenet et al., 2013). Por ser fonte de obtenção de informações-chave sobre uma população específica, o Mapa de Rede Social também pode ser utilizado em serviços públicos para a qualificação do atendimento a/aos seus/suas usuários/as e seus/suas famílias.
Von Zuben et al. (2013) utilizaram o instrumento de mapa de redes sociais para investigar, em um estudo de caso, como a relação entre o contexto de vulnerabilidade, o impacto do diagnóstico e os discursos em torno do HIV interferem na vida de uma mulher soropositiva, com ênfase nas influências sofridas em sua rede social. Crepaldi e Moré (2012) apresentaram como o uso desse instrumento possibilita uma compreensão mais ampla da saúde de quem é atendido nos serviços públicos de saúde permitindo a ampliação de intervenções com o foco nas famílias. Fontes (2003) abordou o Mapa de Rede Social como instrumento para compreender o engajamento comunitário e a sensação de pertencimento de pessoas com baixa renda socioeconômica.
Neste estudo, objetivamos compreender o uso do Mapa de Rede Social com usuários/as em situação de vulnerabilidade social atendidas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Os CRAS são as unidades estatais responsáveis pela oferta de serviços de proteção social básica no Sistema Único de Assistência Social no Brasil. Considerando-se o propósito da proteção social básica de prevenção de situações de risco e fomento do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários (PNAS, 2004), acreditamos que o Mapa de Rede Social pode ser instrumento significativo para gerar informações sobre os vínculos relacionais e afetivos dos/as usuários/as e suas fontes de apoio e para o planejamento de ações dos/as profissionais junto às famílias atendidas no CRAS.
Método
Contexto do Estudo, Participantes e Cuidados Éticos
O estudo foi realizado em um Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) de uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo, Brasil. Esse CRAS contava com uma equipe de quatro assistentes sociais, sendo uma delas coordenadora do serviço, e uma psicóloga. Os/as usuários/as potenciais participantes da pesquisa foram indicados/as pela psicóloga e as assistentes sociais do serviço e foram contatadas/os pelo pesquisador primeiro autor deste artigo. Das 15 usuárias com as quais o pesquisador entrou em contato no período de quatro meses de coleta de dados (outubro e novembro de 2017), oito aceitaram participar da pesquisa. As demais usuárias chegaram a agendar horário, mas não compareceram. As potenciais participantes indicadas pelas profissionais do CRAS para o pesquisador foram todas mulheres. As participantes são descritas na tabela 1:
Todas participantes formalizaram sua anuência na participação na pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto de pesquisa que deu origem a esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da (informação omitida para avaliação por pares), Protocolo CAAE (informação omitida para avaliação por pares). Os nomes utilizados para as participantes são fictícios.
Procedimentos de Produção das Informações
A confecção do Mapa de Rede Social nesta pesquisa foi feita a partir da estrutura oferecida por Sluzki (1997) adaptada ao contexto da pesquisa.
Como pode ser visualizado nas figuras dos resultados deste estudo, o autor sugere a sistematização gráfica do Mapa por meio de um círculo com quatro quadrantes nos quais uma pessoa vai posicionar as pessoas significativas com relação a: 1) Família; 2) Amizade; 3) Relações de trabalho ou escolares; e 4) Relações comunitárias, de serviço ou credo. Esses quadrantes possuem três níveis: 1) Um círculo mais interno de relações íntimas; 2) Um círculo intermediário de relações pessoais com menor grau de compromisso e 3) Um círculo externo de relações ocasionais e distantes. O centro do Mapa representa a participante, de modo que quanto mais perto alguém estiver do centro, mais forte é a ligação e quanto mais longe, mais fraca é essa ligação.
Os desenhos dos Mapas foram feitos a mão utilizando-se uma folha de papel sulfite com distinção de cores para os quadrantes e níveis. O Mapa era apresentado à participante esclarecendo seu desenho e forma de preenchimento. Pedia-se para a participante contar como eram seus vínculos com cada pessoa colocada no mapa, em que situações ela recorria ou se sentia à vontade para recorrer a ela e como esses membros respondiam a esse pedido. Por fim, perguntava-se se a participante notava que algum membro do mapa tinha se afastado ou se aproximado ultimamente, visando uma reflexão acerca de mudanças possíveis que poderiam acontecer na rede ao longo do tempo. Esse afastamento foi representado graficamente com uma seta que saia do ponto representante do membro e aponta para longe do centro. A aproximação teve a seta na direção inversa. Todas as conversas durante a construção do mapa foram áudio gravadas com o uso de aparelho de gravação de áudio em Mp3 e transcritas na íntegra e literalmente.
Dois mapas piloto foram realizados para se verificar a necessidade de adaptação de seu uso a população deste estudo. A adaptação necessária teve relação com os quadrantes do Mapa nomeada Trabalho/Escola. Como as participantes da pesquisa, em sua grande maioria, não trabalhavam ou estudavam, foi perguntado se as participantes guardavam vínculos de momentos anteriores de sua vida do contexto da escola ou do trabalho.
Entendemos que diferentes perguntas e modos de construção do mapa levam a distintos significados para esse instrumento e, assim não assumimos as categorias do mapa como autoexplicativas, mas partíamos da definição dada pela pessoa a elas. Ou seja, o foco estava na narrativa que era construída e nas justificativas para colocar-se a pessoa em um ou outro quadrante. Os membros do mapa foram nomeados utilizando-se as próprias palavras das participantes como por exemplo em “vizinhos”, “conhecidos”, “amigos” etc.
Procedimentos de Análise das Informações
Dentre as diferentes formas de se compreender o trabalho com Mapas de Rede Social, é possível fazer uma leitura construcionista social sobre esse instrumento (Von Zuben et al., 2013). Entende-se, nesse sentido, que a representação da rede social permite, no momento interativo, a construção situada de uma determinada narrativa sobre a pessoa no contexto de seus relacionamentos, em uma realidade que vai sendo coconstruída.
Tratamos a análise dos mapas como estudo de casos múltiplos (Stake, 2000). Cada mapa foi analisado separadamente e depois uma análise comparativa foi realizada a partir dos objetivos da pesquisa. A análise dos mapas de rede social foi guiada pelo modelo proposto por Sluzki (1997, 2010) retomado por Crepaldi e Moré (2012), com análise em três níveis: características estruturais da rede, funções dos vínculos e atributos dos vínculos.
As características estruturais da rede foram avaliadas em termos de seu tamanho (quantidade de membros), densidade (qualidade das relações), distribuição (referente a posição dos membros nos quadrantes, e dispersão (referente à distância geográfica entre a pessoas). As funções foram categorizadas em: 1) Companhia social: referente a alguém com quem se realiza atividades em conjunto, 2) Apoio emocional: onde há trocas que incluem empatia, estímulo e compreensão, 3) Guia cognitivo e de conselhos: alguém que provê informações e modelos de referência para ser e agir, 4) Regulação social: alguém que evoca responsabilidades e autoridade e favorece resolução de conflitos, 5) Ajuda material e de serviços: alguém que oferece auxílio financeiro ou de serviços especializados como serviços de saúde, e 6) Acesso a novos contatos: alguém que possibilita abertura para o estabelecimento de relações com novas pessoas ou redes.
Os atributos foram analisados em termos de sua multidimensionalidade (número de funções desempenhadas na rede), reciprocidade, intensidade (o grau de compromisso da relação), frequência dos contatos e histórico da relação.
Resultados
O mapa de Fabíola pode ser considerado grande e denso (20 membros), todavia, a mudança recente de endereço levou ao afastamento de muitas pessoas:
Fabíola saiu de uma situação de moradia precária tendo sido contemplada com um programa de moradia no qual havia subsídios para que pudesse ter um apartamento em um conjunto habitacional. Segunda ela, com essa mudança ela “perdeu tudo praticamente”, toda sua família ficou no endereço antigo. Acrescentou que no novo endereço não tinha ninguém com quem contar e que precisava pegar quatro ônibus para visitar seus conhecidos, o que dificultava a retomada de seus vínculos.
As pessoas que estavam se aproximando dela no Mapa eram todas profissionais dos serviços da saúde e assistência social. A psicóloga foi mencionada como tendo as funções de “conselho” e “amizade”. Esse vínculo assumia um caráter intenso e frequente, já que Fabíola tinha o hábito de conversar semanalmente com a profissional e “dependia” dela para resolver questões relacionadas aos seus benefícios. Prestadores de serviços assistenciais e de saúde apareceram como mais importantes na vida de Fabíola do que os membros de sua família, de um modo geral, quando comparamos a distribuição de ambos no mapa. Os agentes comunitários, a psicóloga e a enfermeira do posto tinham como função a “amizade”, de “emergência”, de “cuidado” e de “ponte” (para o contato com outros membros da rede).
Uma amiga da comunidade que recebeu as funções de “parceria”, “emergência”, “conselho” e “amizade”, relação descrita pela participante como recíproca e intensa. O pai de uma de suas filhas tinha as funções de “conselho”, “amizade” e “emergência”. Os familiares da camada interna do mapa foram descritos como relações de baixa reciprocidade, ou seja, relações nas quais Fabíola mais ajudava do que era ajudada, com exceção da relação com as três filhas. Dos membros posicionados na camada interna do quadrante da família, Fabíola identificou todos como tendo a função de “amizade”. Um irmão tinha a função de “emergência” e outro irmão já mais próximo tinha função de “ponte”, mediando situações de necessidade. Fabíola não apresentou nenhum vínculo com pessoas que conheceu ou conviveu na escola ou no trabalho.
Ao terminar o mapa, Fabíola se surpreendeu com seu preenchimento: “Olhando assim, tenho mais pessoas em minha vida do que pensava” e reconheceu pontos positivos em ter se mudado, como a proximidade de serviços que considera importantes: “Porque aonde eu morava a gente não tinha esse apoio de assistente social, núcleo, CRAS, a gente não tinha, agente comunitário, a gente nunca teve”.
O mapa de Andréia apresentou variados recursos de apoio social com oito membros na camada mais interna e um membro na camada mais íntima do quadrante de trabalho:
Andréia afirmou que podia contar com a família, possuindo vínculos de reciprocidade e intensidade, principalmente com a irmã e o sobrinho, com ajuda desde uma carona de carro, ou para comprar leite para os filhos. Andreia atribuiu a esses familiares funções de companhia social e apoio emocional, além de serem descritos como contatos frequentes e íntimos.
O/as trabalhadores/as sociais e de saúde foram figuras identificadas como tão importantes quanto figuras familiares pela distância do centro. A participante relatou a importância do apoio material que recebia do CRAS. Ela também saiu de uma situação de moradia precária passando a morar em um conjunto habitacional. Relatou que a mudança de endereço foi boa, principalmente porque a partir de então pôde contar com serviços sociais, e porque não precisava mais pagar aluguel, mas ressaltou que com relação a amizades, não viu grande diferença. Não apontou pessoas de seu antigo endereço como membros de sua rede social de apoio.
Ítala também teve a recente experiência de mudança de território por programa de municipal de moradia. Ela apresentou um mapa de densidade mediana com oito membros, com distribuição concentrada em seu centro:
Uma amiga que tinha a função de companhia social de seu antigo endereço mudou-se com ela, preservando-se a frequência do vínculo. Quando questionada, ao final da conversa, sobre a quantidade de pessoas no mapa, afirmou que estava “bem” com isso. Das pessoas colocadas no mapa, Ítala enfatizou a importância das filhas em sua vida, e disse que a reciprocidade afetiva na sua relação com elas a motivava a viver. A participante caracterizou o vínculo com as filhas como de ajuda mútua. Afirmou que o marido era companheiro e amigo, no entanto ele estava em situação de encarceramento em outra cidade, sendo difícil manter o contato. A psicóloga e a assistente social apareceram na camada interna do mapa em vínculos de intensidade. Todavia, diferentemente das participantes anteriores, Ítala caracterizou os vínculos com a assistente social e com a psicóloga do CRAS como tendo função de ajuda material e de serviços e não de apoio emocional ou de conselhos.
O Mapa de Flávia pode ser considerado mediano (10 membros) e com distribuição mais diversa que os anteriores, ainda que também não apresentasse membros no quadrante escola e trabalho:
Os membros da família tinham função de companhia social e eram vínculos de reciprocidade e intensidade. Flávia apontou a psicóloga e a assistente social do serviço como pessoas importantes e com quem podia contar, elegendo posições no mapa para cada uma delas na camada interna do quadrante da comunidade e serviços e lhes atribuindo a função de ajuda material. A enfermeira do serviço de saúde tinha a função de guia cognitivo e de conselhos e também de apoio emocional. Flávia contou que a enfermeira a ajudou muito por ocasião do nascimento de seu filho, era atenciosa, ligava para lembrar de comparecer ao postinho, buscava saber sobre o desenvolvimento do filho e oferecia conselhos.
A participante, que também passou por um processo de migração de moradia, mostrou que tinha pessoas com quem contar no seu atual endereço, mas apenas a filha da vizinha foi colocada no Mapa. Ressaltou que não procurava investir tanto em conseguir novas amizades, pois hoje em dia “não havia tanta amizade produtiva, principalmente na periferia”.
Do Mapa de Denise nota-se que há apenas membros no quadrante da família, sugerindo uma rede social bastante restrita (cinco membros), pouca densa, pouco heterogênea, pouco distribuída:
O início da confecção do Mapa foi marcado pela fala da participante de que a pessoa com quem mais podia contar era ela mesma. Quando perguntada sobre de quem lembrava de ter recebido uma ajuda significativa, respondeu que quando o marido estava desempregado o irmão lhe ajudou emprestando dinheiro para comprar comida, assumindo função de ajuda material e de serviços. Disse também que quando tinha 15 anos, uma vizinha ligou para polícia para denunciar seu padrasto por estupro, e essa foi uma ajuda muito importante. Tanto o irmão quanto a vizinha são vínculos com poucas funções e pouca fonte de apoio. Denise contou que tem um filho de 22 anos que sempre a ajuda com dinheiro ou com conversas, transitando entre a função de companhia social e ajuda material e de serviços. Disse que antes podia contar muito com a mãe que faleceu há quatro anos.
Denise, também contemplada em programa de moradia, tendo mudado de endereço, afirmou que não gostava de seu endereço atual, pois no endereço antigo sentia a mãe mais viva em sua memória. A mãe parece ter sido um vínculo multidimensional, com várias funções, além de ter alto grau de compromisso. Denise também contou que sua enteada, descrita como portadora de transtornos mentais e com uma filha pequena, vivia em condições insalubres e Denise decidiu cuidar dela e da criança para que ela tivesse a oportunidade de não crescer longe da família, algo que foi sofrido para Denise. A enteada não ajudava nas atividades domésticas nem na criação de sua filha. Denise foi descrita pelas assistentes sociais do CRAS como “muito fechada” e elas pouco sabiam dos detalhes da história de Denise contados por ela na construção do mapa.
O Mapa de Ludmila foi pequeno (quatro membros) de pouca densidade e distribuição, com escassez de recursos de apoio social:
Apenas um membro da família foi mencionado na camada interna, porém era um vínculo do qual Ludmila estava se afastando. Ludmila posicionou três membros na camada mais interna sendo que um deles era um vínculo pouco frequente. Ludmila trabalhava como funcionária de limpeza contratada por uma empresa e comentou sobre uma pessoa do trabalho com quem podia contar e que a acolheu frente a uma atitude ofensiva e injusta de sua chefe, mas não a posicionou no Mapa.
A figura religiosa do Pastor apareceu como a mais importante, seguida pela assistente social do CRAS. Ludmila falou da importância do pastor que era seu “orientador”, “uma pessoa experiente”, mais “velha, amadurecida”, “que tem paz, sentimento e sabedoria”, com função de guia cognitivo e de conselhos e regulação social. Sua relação com Ludmila possuía alta frequência e grau de compromisso desde que ela começou a frequentar o culto. Disse que além do pastor, podia contar com o marido, mas não para tudo. Disse que ele ajudava nas despesas da casa, tendo, portanto, função de ajuda material, mas que gostaria que ele ajudasse com os filhos, pois ele lhes dava muita liberdade e a contradizia. Mencionou o serviço de assistência social como importante e enfatizou que podia contar com uma assistente social em específico, que a ajudava bastante com orientações sobre como ajudar o filho quando “não sabia mais o que fazer”.
Amanda construiu um Mapa mediano (11 membros), com maior densidade e maior distribuição. Uma figura religiosa também foi marcada em posição de destaque:
Ela afirmou que passou a frequentar a igreja há um mês e que recorreu ao pastor para pedir orientações sobre como lidar com as dificuldades da vida. Tal relação assumiu função de apoio emocional, guia cognitivo e de conselhos e de ajuda material e de serviços.
Os diretores da escola das/os filhas/os foram posicionados como membros importantes para a participante, dada a posição na camada interna do quadrante. Os diretores tinham a função de guia cognitivo e de conselhos. A assistente social apareceu na camada intermediária da comunidade, alguém em quem ela dizia poder confiar. Os pais assumiam a função de guia cognitivo e de conselhos e o irmão de companhia social. Amanda também disse que podia contar muito com duas amigas da comunidade, especialmente com uma delas que a ajudava no trabalho e levava seus filhos ao médico ou à escola. Apontou que as amizades da igreja, embora recentes, lhe traziam bastante confiança e que sentia que podia recorrer a elas caso precisasse. O pastor também teve a função de acesso a esses novos contatos. Seu companheiro, descrito como “amigo que a ajuda no trabalho”, mas que morava com ela, também a ajudava em atividades domésticas ou quando precisava de companhia.
O Mapa de Sandra era muito escasso (dois membros) e apresentou apenas uma pessoa na cama interna do quadrante da família:
A narrativa de Sandra foi de ser uma pessoa sozinha, que não podia contar com ninguém, pois os seres humanos “não eram confiáveis”. Sandra morava com os três filhos e o marido e afirmou que podia contar apenas com a irmã, Deus, e sua cachorrinha. Relatou uma história de vida difícil que envolvia rejeição e agressões do marido que morava com ela e que era a pessoa que ela “mais odiava nesse mundo”. Sua irmã morava em outra cidade e isso tornava muito difícil seu contato com ela. Diante de situação de abandono em sua infância, a participante mencionou ter se apoiado em Deus. Sandra não mencionou as profissionais do CRAS em seu Mapa, afirmando que o serviço é útil pela ajuda material que disponibilizava. As profissionais não sabiam da situação de violência na qual ela vivia.
Discussão
O uso do Mapa de rede social com as participantes permitiu a identificação de como a mudança de endereço foi significativa na reconfiguração de suas redes de apoio, incluindo mudanças nas relações familiares. Sluzki (1997, 2010) chama a atenção para como o fenômeno de migração de pessoas perturba sua rede social significativa, laços importantes são deixados para trás e as famílias sobrecarregam-se com as funções que antes dividiam com família extensa e vizinhos. Segundo o autor, a migração pode resultar em estresse e conflitos familiares e, nesses casos, a construção do Mapa de Rede Social pode provocar reflexão sobre estratégias para equilibrar essa rede e lidar com tais intercorrências. Pessoas que se mudaram recentemente de endereço apresentam uma rede social reduzida e menos variada que pessoas bem estabelecidas em suas comunidades (Sluzki, 1992, 2010). Menezes e Castellá Sarriera (2005) também reconhecem a migração como causadora de estresse nas dimensões física, psíquica e social.
A mudança de endereço, no caso das participantes desta pesquisa, ao mesmo tempo em que trouxe perdas significativas de contatos familiares e comunitários, como contou Fabíola, inclusive desconectando as participantes de memórias familiares, como contou Denise, permitiu o acesso aos serviços da rede pública de assistência social e saúde, conforme relato de Fabíola e Andreia. Se por um lado esse é um ganho importante, pois assegura o direito de assistência, por outro pode limitar as funções exercidas pelos vínculos das redes sociais dessas pessoas às funções que são próprias às profissionais desses serviços.
O uso do Mapa serviu para se reconhecer como o profissional do CRAS está posicionado na vida das participantes e entender os efeitos desse posicionamento na assistência a ser oferecida. No CRAS estudado, dificuldades de gestão municipal e de organização do serviço faziam com que não estivessem sendo oferecidas, à época da construção dos Mapas, o acompanhamento sistemático das/os famílias nem ações de articulação de rede, coletivas ou de engajamento comunitário – o que contrasta com a própria missão dos CRAS de prevenir situações de risco e fortalecer vínculos familiares e comunitários (PNAS, 2004). Isso pode ter sido uma das razões pelas quais as profissionais do CRAS terem sido mencionadas como tendo funções mais individualizantes de apoio material, guia cognitivo e orientações. Iniciativas coletivas de enfrentamento da pobreza e vulnerabilidade social fomentariam a função dessas profissionais de acesso a novos contatos nas redes sociais das usuárias, função que apareceu pouco nos Mapas e apenas na figura dos pastores.
O uso dos Mapa também permitiu a compreensão de quais são os vínculos institucionais das participantes. Nessa pesquisa, as figuras religiosas foram apresentadas como tendo múltiplas funções e garantindo uma série de apoios e ajudas para as usuárias. Marques (2009) afirma que a participação em comunidades religiosos, no caso de populações pobres, tem efeito sobre as redes sociais das pessoas, apresentando maior diversidade.
O uso do Mapa permitiu Denise falar da violência que sofria, aspecto, segundo ela, desconhecido pelas profissionais do CRAS. O Mapa também pode gerar informações para o reconhecimento de fontes de apoio e recursos que possam ser acessados por mulheres em situações de violência. Netto et al. (2017) afirmam, a partir de seu estudo sobre redes sociais e violência de gênero, como a construção do Mapa pode permitir que profissionais atuassem na articulação com a rede mais ampla de serviços disponíveis no território.
O Mapa de rede permitiu a percepção de como os homens são figuras escassas nas redes sociais das participantes. Os companheiros ou maridos são mencionados como figuras ausentes (o marido de Ítala que era fonte de apoio mas está na prisão), ou se afastando, como figuras que poderiam ajudar mais (como no caso de Ludmila que gostaria de apoio na educação dos filhos) ou autores de violência (como no caso de Denise). Esse fenômeno, como menciona Pereira e Guareschi (2017), aponta para a responsabilização e sobrecarga das mulheres nesse lugar solitário de cuidado e/ou sustento da família – uma construção social relacionada ao gênero que precisa ser problematizada.
Considerações Finais
Considerando que os CRAS, como um serviço de proteção social básica, têm sua missão construída em torno da busca por fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, a presente investigação dá visibilidade para o potencial do mapa de rede na construção de diálogos produtivos, favorecendo, a partir disso, a construção de planos de ação junto aos/às usuárias e suas famílias.
Os resultados deste estudo ressaltaram o Mapa de Rede Social como instrumento de reconhecimento das fontes de apoio das participantes, da identificação de situações de violência dentro e fora da família, da análise das consequências da migração de território para as famílias, do posicionamento das profissionais do CRAS na rede das usuárias, e do entendimento de em quais âmbitos da vida da pessoa o apoio tem sido mais efetivo e onde poderia ser ampliado.
O Mapa nesta pesquisa serviu para identificar as perdas da migração nessas famílias, o que alerta para que as políticas de moradia sejam pensadas em termos dessas perdas, e permite que o Mapa de rede possa ser pensado como instrumento para os/as profissionais do CRAS identificarem, em famílias com mudanças de endereço quais são as atuais fontes de apoio que elas possuem e como podem colaborar para ampliá-las. Por fim, cabe ressaltar que a aplicação de Mapas de rede social no CRAS ainda tem um potencial a ser explorado com análises longitudinais com acompanhamento das participantes notando as modificações no mapa com o passar do tempo e o possível efeito terapêutico de seu uso.
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Agência de Fomento: Edital 2015 PIBIC-CNPq
Endereço para correspondência
Gabriel Fernandes de Oliveiral
E-mail: gabriel.psico50@gmail.com
Laura Vilela e Souza
E-mail: laura@ffclrp.usp.br
Carla Guanaes-Lorenzi
E-mail: carlaguanaes@usp.br
Enviado em: 05/05/2020
1ª revisão em: 04/12/2020
Aceito em: 16/12/2020
1 Psicólogo, graduado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.