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versión impresa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.25 no.2 Porto Alegre dic. 2021
ARTIGOS
Terapia narrativa e neuroplasticidade: pensando suas conexões
Narrative therapy, neuroplasticity and their connections
Cláudia Sanini1, I ; Lisandra das Neves Santos2, I ; Marli Kath Sattler3, I
I Domus - Centro deTerapia de Casal e Família
RESUMO
Foi investigado, nesse artigo, a forma com que a terapia narrativa, a partir da construção de histórias alternativas, pode estimular a plasticidade neuronal, promovendo mudanças psicológicas e comportamentais. Realizou-se uma revisão bibliográfica para analisar as contribuições teóricas e práticas da relação entre histórias alternativas e a neuroplasticidade. Foi observado que esta interface tem sido pouco estudada enquanto tema unificado. Na terapia narrativa o terapeuta ajuda o paciente a olhar detalhes até então não percebidos de sua história, trazendo novos estímulos e permitindo ao paciente recontar repetidas vezes sua própria história alternativa. Isso contribui para uma ressignificação de sua história e o desenvolvimento de novos pensamentos e sentimentos, que resultarão em novos comportamentos. A vivência desse processo, ativa a neuroplasticidade do cérebro e cria novas conexões neuronais, gerando mudanças saudáveis e funcionais na vida do paciente.
Palavras-chave: Terapia narrativa, Neuroplasticidade, Histórias alternativas, Mudanças comportamentais.
ABSTRACT
This work investigates how narrative therapy can stimulate neuroplasticity, with basis on the construction of alternative histories, thus promoting psychological and behavioral changes. A literature review was carried out to analyze the contribution, theoretical and practical, arising from the relationship between neuroplasticity and alternative histories. It was noticed that this interface has been little studied as a unified theme. In narrative therapy, the therapist helps the patient to look at details of his/her history so far unnoticed, bringing new stimuli and allowing the patient to recall his/her alternative history, over and over again. This contributes to a resignification of his/her history and the development of new thoughts and feelings, which will result in behavioral changes. The experience of the process of creating and recalling such alternative history, activates brain’s neuroplasticity, establishing new neural connections and contributing to healthy and functional changes in the patient's life.
Keywords: Narrative therapy, Neuroplasticity, Alternative histories, Behavioral changes.
Introdução
Nós, enquanto seres humanos, somos seres sociais e, devido a isso, precisamos do outro para nos constituir enquanto sujeitos psíquicos. O ser humano é a única espécie que necessita de um grande período de dependência do outro para sobreviver e sem os cuidados do outro não sobreviveria. Esse convívio social vai estruturando o ser e pode acontecer de várias maneiras: pelo contato, pela observação, pelo afeto, pela comunicação, dentre outros, além das experiências que escolhemos deixar registradas na nossa história.
Nossa história de vida é marcada por todas as vivências que tivemos. No entanto, nem todas elas terão a mesma importância e ênfase em nossas vidas. Umas serão mais destacadas que outras e se tornarão influentes em nossas vidas contribuindo, ou não, na forma como nos sentimos, nos posicionamos e lidamos com as situações. Essa história que vai se estruturando por algumas vias, e que é definida por cada um, passa a ser a história dominante de nossas vidas e, por isso, repetidamente contada. Estaremos atentos a ela, aos seus efeitos, nos familiarizando com seu enredo e, de certa forma, naturalizando-a em nossas vidas. Passamos a aceitar que é dessa forma que as coisas acontecem e vamos nos enredando nessa teia construída que, muitas vezes, pela forma que se estrutura, nos mantém presos em uma única forma de vivenciar e responder às situações.
Considerando estes aspectos, a terapia narrativa surge como uma alternativa de mudança das concepções dominantes, buscando e ofertando ao paciente variações para essas histórias e possibilitando, assim, ampliar suas percepções sobre a forma de ver e lidar com o que acontece em sua vida. Neste sentido, se há a possibilidade de modificar a forma de olharmos e contarmos nossas histórias de vida estamos, também, viabilizando mudanças em nosso funcionamento comportamental, emocional e, porque não, cerebral. Quanto a este último, podemos nos basear no conceito de neuroplasticidade cerebral, muito estudado nos últimos anos e que tem possibilitado mudanças e ressignificações na vida das pessoas, demonstrando as mudanças possíveis para o ser humano (Bittel, 2008; Dias, et al., 2011).
O campo das neurociências teve grande desenvolvimento nos últimos 30 anos, assim, o antigo conceito de que o cérebro era “estático” foi substituído por uma palavra que representa, de maneira fidedigna, a enorme capacidade adaptativa dos circuitos neurais, que é neuroplasticidade (Portela, 2013). Este termo se refere à propensão dos neurônios de modificar suas funções, sua organização química e sua estrutura, o que permite facilitar a recuperação, por exemplo, de uma lesão ocorrida no sistema nervoso central (SNC) (Bittel, 2008). O cérebro não é um órgão enrijecido, mas uma estrutura dinâmica em contínua reorganização. Corpo, mente e cérebro são expressões de uma mesma estrutura, desta forma, os fenômenos psicológicos também podem se manifestar a partir de processos neurobiológicos. Progressos e avanços no estudo da neurobiologia possibilitaram estabelecer correlações de funções psicológicas em termos de genética e cognições. As investigações em plasticidade estrutural e funcional permitiram mudanças e maior compreensão acerca do que é possível e do que pode ser obtido pelas várias formas de psicoterapia (Souza, 2013), dentre elas, destaca-se a terapia narrativa.
Sendo assim, se estruturas fisiológicas e orgânicas podem ser modificadas, supõe-se, então, que vivências e emoções também podem sofrer influência desta plasticidade do SNC. Esta acepção nos faz pensar que a terapia narrativa, a partir da construção de histórias alternativas, pode influenciar no processo plástico do SNC, tornando-se uma facilitadora na ressignificação das vivências narradas pelo paciente. Um método psicoterapêutico que ocorra num contexto de intensidade afetiva deverá logicamente se beneficiar de neuroplasticidade aumentada (Marx & Silva, 2013).
Neste sentido, neste artigo busca-se investigar e refletir sobre a importância da terapia narrativa no fenômeno da neuroplasticidade, de forma mais específica explorar e discutir de que forma a técnica de terapia narrativa, mais especificamente a busca e identificação de histórias alternativas, contribui para o processo de neuroplasticidade. Esta investigação caracteriza-se por uma revisão bibliográfica, que tem como objetivo analisar a produção científica e as possíveis contribuições, teóricas e práticas, da relação entre a terapia narrativa e o fenômeno da neuroplasticidade. Este modelo metodológico, permite descrever e discutir o desenvolvimento e o avanço de determinado assunto, sob o ponto de vista teórico ou contextual (Rother, 2007).
Cabe destacar que a interface entre a terapia narrativa e a neuroplasticidade ainda tem sido pouco estudada enquanto tema unificado no campo das terapias e das neurociências, o que justificaria tal investigação. Além disso, a busca de pontos de vista sobre o tema e suas possíveis divergências e/ou convergências pode ajudar a enriquecer e contribuir para o entendimento desta interface e para a possível aplicação clínica desses conhecimentos, representada pela busca de novos percursos e roteiros que permitam às pessoas, que buscam ajuda terapêutica, reformular suas histórias de vida (Lion, 2017).
Terapia Narrativa
Para abordar esta temática é necessário, inicialmente, definir narrativa. De acordo com o dicionário se refere à “ação, efeito ou processo de narrar, de relatar, de expor um fato, um acontecimento, uma situação (real ou imaginária), por meio de palavras; narração... Maneira de narrar, de contar alguma coisa” (Houaiss, et al., 2001, p. 1996). De acordo com Brockmeier e Harré (2003), o interesse pela narrativa nas ciências humanas surgiu na década de 1980, com a verificação de que a forma de história, seja oral ou escrita, constitui um parâmetro linguístico, psicológico, cultural e filosófico fundamental para a tentativa do ser humano explicar a natureza e as condições de sua existência. Quanto aos aspectos referentes à vida humana, é principalmente pela narrativa que compreendemos os textos e contextos mais amplos, diversificados e mais complexos de nossa experiência.
Desta forma, narrativas seriam onipresentes em nossas vidas. Crescemos nesse meio, inicialmente ainda na infância, ouvindo as histórias fictícias e aquelas contadas sobre nós mesmos. Depois, passamos a contá-las, reproduzi-las, narrá-las, o que é uma característica típica de nossa linguagem e cultura. Assim, a narrativa vai se tornando familiar e naturalizada em nossas vidas, nos permitindo adquirir conhecimentos que estruturam a experiência de mundo e de nós mesmos (Brockmeier & Harré, 2003). A narrativa seria uma forma pela qual as pessoas tentam dar sentido às suas experiências, usando-a como um modo específico de construção e constituição da realidade (Bruner, 1991, como citado por Brockmeier & Harré, 2003).
É pelas nossas histórias que construímos a nós mesmos como parte de nosso mundo. Por isso que o desejo e a disposição de uma pessoa para contar algo sobre si raramente decorre da simples necessidade de registrar os fatos da vida. Os tipos de narrativa assumem determinadas formas pelas exigências da situação em que ocorrem. Contar sobre a vida e viver essa vida seria fundamentalmente a mesma coisa? (Freedman & Combs, 1996). De acordo com Brockmeier (1999, como citado por Lahm-Vieira, et al., 2011), vida e história de vida possivelmente possam ser entendidas como intrinsecamente interligadas em uma sucessiva produção de significado e sentido.
Conforme Bruner (1990, como citado por Brockmeier & Harré, 2003), uma das funções essenciais da narrativa é abrir-nos para o hipotético, para o espectro de perspectivas reais e possíveis que constituem a vida genuína da mente interpretativa. Nesse sentido, a narrativa traz essa possibilidade de ampliação, de olhar para uma mesma história e poder encontrar outros significados e ênfases, que falam do sujeito que conta a história e poder reformulá-la, recontá-la, enfatizando outros aspectos também importantes, mas não devidamente considerados até então.
É nesse sentido que podemos situar a terapia narrativa, considerada um elemento participante das recentes propostas terapêuticas desenvolvidas na esfera da terapia familiar e, também, do contexto clínico individual (Lahm-Vieira, et al., 2011). Desenvolveu-se a partir da década de 1980 e é o resultado da parceria entre Michael White e David Epston (White & Epston, 1993). White, australiano, era terapeuta familiar com formação em Serviço Social, e Epston, neozelandês, também era terapeuta familiar, e com formação inicial em antropologia (Gonçalves, 2008).
No início do trabalho nessa área e influenciado pelas ideias de Bateson, White desenvolveu novas suposições sobre o sofrimento humano, principalmente em relação à forma como as pessoas concebem suas percepções sobre o mundo (Nichols & Schwartz, 2007). De acordo com o modelo narrativo, os processos psicológicos são estruturados de forma narrativa, assim como a elaboração de significados sobre si mesmo e sobre o mundo decorre a partir da construção e desconstrução de histórias (Gonçalves & Henriques, 2002). Uma narrativa pode ser comparada à ação de um fio que tece e entrecruza acontecimentos, formando uma história, que é construída diariamente pelas nossas vivências e às quais conferimos significados (Morgan, 2007). Nesse sentido, as histórias são o ponto central para o entendimento do trabalho narrativo.
A terapia narrativa pode ser considerada uma prática com base no Construcionismo Social, o qual refere a realidade como socialmente construída na linguagem e nas relações sociais. Dessa forma, o outro sempre estará presente nas histórias de vida, validando-as, sejam elas histórias ricas e robustas, que tratam de potencialidades, ou estreitas e ralas, que restringem possibilidades. De qualquer forma, o objetivo da terapia narrativa, é criar um contexto conversacional que possa ajudar o sujeito a reformular sua história de vida dominante, de versões estreitas e limitantes, para a busca de histórias alternativas que permitam uma percepção e narração mais rica dessa mesma história de vida, contribuindo para uma nova visão de si mesmo e da vida (Paschoal & Grandesso, 2014).
A concepção narrativa de White e Epston destaca que as experiências de vida se caracterizam por um jogo de forças entre as histórias dominantes e as alternativas, com as quais estamos seguidamente negociando e interpretando as vivências. Estes eventos narrados em terapia estão relacionados a outros pelo tempo, caracterizando um script sobre determinado tema dominante, ao mesmo tempo em que outras narrativas se mantêm ocultas ou menos significativas (Morgan, 2007). Aqueles eventos que não se encaixam nas histórias dominantes, nas pautas já conhecidas pela pessoa em sua experiência vivida, tendem a ser ignorados, dando destaque para aqueles que confirmem a forma de vida observada e acreditada pelo sujeito, fortalecendo, assim, as histórias dominantes e geralmente limitantes (Paschoal & Grandesso, 2014).
De acordo com Bruner (1994, como citado por Paschoal & Grandesso, 2014), a experiência sempre será muito mais abundante do que aquilo que se narra sobre ela. Desta forma, muitos olhares, percepções, interpretações e, consequentemente, narrativas podem ser criadas a partir de uma mesma história. No entanto, há uma tendência do ser humano a negligenciar os fatos que não se encaixam no enredo da história dominante. O trabalho, a partir da terapia narrativa, é poder ir além de uma história dominante, favorecendo novas narrativas que ajudem a contar novas histórias e possibilidades para a vida do sujeito. Mesmo as novas histórias, poderão ser revisadas, uma vez que nenhuma narrativa é completa. Esta, sempre passará pelo viés do narrador, com suas lacunas e contradições, suas ênfases e omissões, o que permite que novas descrições sejam construídas e modificações realizadas, incluindo novos sentidos de identidade. A vida é multi-historiada, ou seja, vivemos muitas histórias ao mesmo tempo, justapostas, sendo que nenhuma está completa, o que nos dá a possibilidade de sempre reescrever histórias (Paschoal & Grandesso, 2014).
A ideia ao trabalhar com a terapia narrativa é libertar o sujeito da ação restritiva das histórias dominantes, geralmente estreitas e limitantes, e que habitualmente fazem com que o sujeito desenvolva uma percepção negativa sobre si mesmo sentindo-se, por isso, ineficaz e vulnerável para tratar dos problemas de sua vida. Assim, o objetivo da terapia narrativa é ajudar o sujeito a encontrar formas mais enriquecidas e com outros olhares e percepções sobre a sua história de vida, a fim de que possa reescrevê-la, utilizando-se das histórias alternativas (Paschoal & Grandesso, 2014).
O que seriam histórias alternativas, na terapia narrativa? Os seres humanos vivem suas vidas de acordo com as histórias que contam sobre si mesmos, e dependendo da forma como uma história é contada, surgirão percepções diferentes acerca do enredo, da personalidade do sujeito que narra e dos possíveis problemas apresentados. O formato narrativo pode influenciar o conteúdo do que está sendo dito. Um mesmo fato pode ser contado de várias maneiras, seja ocultando informações, enfatizando-as ou, ainda, minimizando-as. Este roteiro escolhido irá estruturar uma história que, pelas nuances escolhidas, seguirá um caminho dominante. Havendo uma história dominante, a tendência é fixar-se nela e deixar de lado outras possibilidades de compreensão da mesma história, ou seja, as possíveis histórias alternativas. Dessa forma, as histórias alternativas caracterizam-se pela possibilidade de olhar para uma mesma história a partir de outras perspectivas e, assim, poder dar atenção e importância a outros aspectos, diferentes daqueles aos quais o sujeito está acostumado a considerar. É um processo de resgatar as identidades que antes eram dominadas pelos problemas (Lion, 2017). Portanto, quando histórias alternativas são criadas e inseridas na narrativa do paciente, produzirão uma versatilidade que permitirá à pessoa encaminhar-se para mudanças, minimizando alguns fatos e valorizando outros, até então, não considerados. Nesse sentido, a elaboração de narrativas caracteriza-se por uma experiência participativa, que conta, também, com a colaboração das relações interpessoais, estabelecidas pelas trocas linguísticas, que faz com que os significados sejam construídos e, consequentemente, outras percepções da realidade (Ramos, 2001).
Esse trabalho colaborativo na construção de narrativas, deve acontecer também no setting terapêutico quando se trabalha com terapia narrativa. De acordo com White e Epston (1993), a terapia narrativa considera a pessoa que procura ajuda como a especialista em sua história de vida. Nesse sentido, não se caracteriza pela busca da verdade em uma história que forneça informações para o terapeuta chegar a um diagnóstico e desenvolver um plano de tratamento (Grandesso, 2008). O objetivo do trabalho terapêutico não é acessar a realidade, já que ela se torna inacessível, uma vez que não somos feitos para perceber a realidade como ocorre na natureza, mas, sim, construímos nossas próprias histórias sobre o funcionamento do mundo. Paciente e terapeuta trabalham juntos para que as vivências do paciente, traduzidas em forma de narrativa, sejam questionadas, pontuadas e reformuladas, a fim de se encontrar uma forma útil e adaptativa de narrar a história de vida do paciente, de forma que o problema não defina a pessoa e não limite seus modos de perceber a realidade. O terapeuta cria um contexto conversacional para analisar os aspectos omitidos da experiência do paciente, que contribuem para ampliar o olhar e a compreensão sobre sua vida e suas relações (White, 1997, como citado por Grandesso, 2008).
Na concepção narrativa de White e Epston, o terapeuta deve estar atento à forma como o paciente narra sua vida. O objetivo não é buscar o enfrentamento da pessoa com seus problemas, mas sim, pela investigação da história do indivíduo, compreender como este vem enfrentando o problema ou reagindo a ele, tentando identificar momentos que não confirmam a história-problema (Nichols & Schwartz, 2007). Então, nas conversas de externalização, após nomear o problema, a meta é traçar a trajetória do problema na vida do paciente. Uma vez que a pessoa consiga olhar o problema como algo objetivo e separado de sua identidade, pode sentir-se em condições de refletir sobre como o problema tem influenciado em sua autoestima, em suas decisões e comportamentos, bem como pode identificar situações em que o problema não se manifestou. Essas novas opções são denominadas de acontecimentos extraordinários, que seriam episódios ou circunstâncias que contrapõem o impacto do problema, favorecendo o desenvolvimento de novos significados no momento atual. Vale destacar que essas histórias alternativas devem ser elaboradas de forma que sejam significativas e façam sentido ao paciente. Somente ele pode implementar uma narrativa alternativa, já que é ele que tem acesso direto às suas experiências. Dessa forma, como coautor, seu papel será desenvolver a história de sua vida (Grandesso, 2008). Assim, se permite ao sujeito revisitar o passado, reexaminar suas histórias e conferir novos significados às suas experiências influenciando a concepção que a pessoa tinha de si mesma (White & Epston, 1993).
Em adição as conversas de externalização, acima mencionadas, a terapia narrativa oferece outras opções para a prática terapêutica, tais como as conversas de re-autoria, as conversas de remembrança, além de elementos práticos envolvendo cerimônias, entre outros (Morgan, 2007).
O terapeuta deve munir-se de duas características principais: permanecer em estado de curiosidade pela história do paciente e fazer perguntas para as quais realmente não saiba a resposta. Ele será um facilitador, instigando o paciente com perguntas direcionadas a determinados temas dominantes, fazendo com que o problema seja dissolvido em uma história alternativa (Barbetta, 2005). Inspirado nos conceitos do filósofo francês Jacques Derrida sobre métodos desconstrutivos, White defende que o diálogo esteja a serviço da desconstrução das histórias e conceitos de conformidade pelas quais as pessoas organizam as estreitas e dominantes narrativas sobre suas vidas e relacionamentos para que novas versões possam emergir (Grandesso, 2008).
O terapeuta não assume o papel de expert e nem mantém a neutralidade, mas passa a compor discussões reflexivas com o paciente, em uma produção dialógica conjunta, que possibilitará transformações (Diniz & Romagnoli, 2008). A escuta do terapeuta narrativo também estará centrada no não dito; no implícito daquilo que é dito, ele irá procurar pelos significados escondidos, pelas lacunas e discrepâncias nas histórias narradas. Toda história narrada irá apresentar lacunas e contradições, que convidam as pessoas implicadas a procurar preenchê-las e a dar-lhes um sentido. Ou seja, as narrativas que as pessoas constroem sobre si mesmas e sobre suas vidas são constitutivas, uma vez que determinam e modelam sua forma de enxergar o mundo, influenciando, assim, a forma como se percebem, a forma como irão se relacionar com os demais e fazem um recorte acerca do que deve aparecer de sua história, se destacar ou desaparecer., definindo a identidade do sujeito (Rasera & Japur, 2004). Para Lahm-Vieira, et al., (2011), as abordagens narrativas parecem expandir intensamente a capacidade perceptiva dos terapeutas, assim como possibilitar aos pacientes a interpretação da multiplicidade de experiências vivenciadas, uma vez que cria a possibilidade para sustentar suas percepções e construções de sentido em novas bases discursivas. Essa prática pode levar à uma modificação na forma de olhar para as situações e enfrentá-las, transformando, também, a experiência do sujeito frente a estas situações. Em vista disso, tais mudanças emocionais e, consequentemente, comportamentais devem influenciar e, também, causar alterações nas sinapses neuronais, ampliando os mapas corticais a elas relacionados e, possivelmente, conduzindo o sujeito a outras formas de perceber uma situação, avaliá-la e senti-la, que seria o efeito da neuroplasticidade cerebral em nosso comportamento. O setting terapêutico se caracteriza por um espaço para impulsionar esse processo.
Para podermos compreender como acontece essa relação entre terapia narrativa e neuroplasticidade e quais as suas influências, precisamos abordar a neuroplasticidade para que, posteriormente, possamos estabelecer tais conexões.
Neuroplasticidade
A neuroplasticidade tem sido abordada em diferentes campos de estudo. Dentre eles, temos como exemplo: a fisioterapia com foco na reabilitação, que trata de lesões no cérebro que causam alguma limitação motora; a área da aprendizagem, visando compreender a importância do estímulo ambiental no processo de plasticidade cerebral; e a psicologia, como forma de entender, em termos neurológicos, as mudanças comportamentais decorrentes da terapia. Ao revisarmos os conceitos trazidos na literatura sobre o tema, todos eles mencionam o fenômeno da neuroplasticidade como consequência de estímulos ambientais. Vejamos os conceitos deste fenômeno para que possamos analisar de que forma a plasticidade cerebral reforça e explica a eficácia das práticas psicológicas, mais especificamente, em se tratando de psicoterapia.
Bastos, et al., (2017) citam o conceito de Bittel (2008), que se refere à neuroplasticidade como a capacidade dos neurônios de alterar suas funções, seu perfil químico e sua estrutura. Esta plasticidade do sistema nervoso central ocorre em condições normais ou patológicas, nas quais o cérebro se adapta e se reorganiza frente às alterações ambientais. Nessa acepção, Lundy-Ekman (2008), Raineteau e Schwab (2001) e Souza (2004), (como citados por Bastos, et al., 2017) concordam que o cérebro humano está em constante mudança, mesmo na vida adulta. Essas mudanças causam alterações sinápticas individuais, circuitos ou trajetos nervosos alternativos.
Para Carr e Shepherd (2008, como citado em Bastos, et al., 2017) a neuroplasticidade seria “a capacidade natural do cérebro em se adaptar aos diversos tipos de ambientes, contribuindo para o desenvolvimento estrutural do sistema nervoso, como também para o restabelecimento funcional no pós-lesão cerebral” (p. 3). Destacando que o ambiente inclui, além da estrutura física, o relacionamento com outras pessoas.
O primeiro autor a levantar a hipótese de que o cérebro é capaz de mudar sua organização de forma contínua foi o anatomista Ramón Y Cajal, no início do século XX (Reis, et al., 2009). Ele sugeriu que o processo de aprendizagem seria capaz de causar mudanças na estrutura e funcionamento do cérebro. Em 1948, Jerzy Konorsky contribuiu com essa ideia propondo que essas mudanças seriam possíveis através de uma combinação apropriada de estímulos, os quais ativariam os neurônios e, assim, possibilitariam a mudança na sua organização (Reis, et al., 2009).
Logo após os postulados de Konorsky, et al., (1949, como citado por Reis, et al., 2009), pesquisador de redes neuronais, propôs que as mudanças na organização cerebral proposta por Ramón Y Cajal e Jerzy Konorsky ocorriam na sinapse, ou seja, se dois neurônios ficassem ativos simultaneamente e isso ocorresse repetidas vezes, a ligação entre eles se fortaleceria. Sendo assim, concluiu que as sinapses podem se alterar em resposta à experiência, pois as conexões entre células que são ativadas ao mesmo tempo ficam cada vez mais fortalecidas em detrimento de outras, que menos ativadas tendem a enfraquecer. Nessa perspectiva, os circuitos de neurônios interconectados que são ativados repetidamente passam a explicar a criação de hábitos em nossa rotina e a forma como nos adaptamos a novas experiências (Fishbane, 2016).
As primeiras pesquisas realizadas sobre os impactos da experiência na organização do sistema nervoso central foram realizadas na década de 1940 e início dos anos de 1950, por Rosenzweig e colaboradores (Reis, et al., 2009). No início, os estudos que demonstravam a plasticidade cerebral eram realizados em animais (ratos) e, ainda assim, foi através destes estudos que o cérebro deixou de ser visto como um sistema estático, quando a ciência passou a observar sua capacidade de adaptação frente a experiências externas. As pesquisas mostraram que ambientes com diferentes níveis de complexidade produzem alterações cerebrais a nível neuroquímico, neuronal e neuroanatômico (Reis, et al., 2009).
Nesse seguimento, Fishbane (2016) salienta que mesmo sendo comprovado de que o cérebro é capaz de neuroplasticidade e neogênese durante a vida inteira, é preciso que vivenciemos novas experiências pois, como verificado, para que ocorra a mudança, o cérebro precisa receber estímulos ambientais para que os neurônios sejam ativados e se reorganizem. A autora cita que “a neuroplasticidade é a base para a resiliência no funcionamento humano, para mudança na terapia e para transformação nas relações de casal e familiares” (p. 559). Com base nesses achados no que concerne à possibilidade de neuroplasticidade e que a mesma possibilita mudanças, inclusive na terapia, vamos analisar, de forma mais específica, quais elementos estimulam a neuroplasticidade na terapia narrativa
Elementos Que Estimulam a Neuroplasticidade na Terapia Narrativa
Quando pensamos no conceito de neuroplasticidade como resposta neuronal a estímulos ambientais, podemos relacioná-lo, dentre outros fatores, também com as psicoterapias pois, se definirmos a psicoterapia de forma simples, podemos dizer que é um estímulo externo com o objetivo geral de causar mudanças psicológicas e comportamentais. Sabemos que estas mudanças já podem ser explicadas no âmbito neurobiológico, através do conceito de neuroplasticidade.
Neste trabalho buscamos investigar a terapia narrativa e de que forma a técnica de narração de histórias alternativas pode estimular mudanças comportamentais e psicológicas, e promover a plasticidade neuronal. Vários aspectos chamaram a atenção quanto a este modelo de terapia, dos quais, destacamos a história que o indivíduo narra como o ponto de partida do trabalho, a qual demonstra os aspectos dominantes na vida do paciente e para os quais ele se mantém atento para sustentar sua história. Sendo assim, a pessoa vive sua vida de acordo com a história que conta sobre si mesma. Outro tópico a destacar é que, neste modelo, o paciente é considerado o especialista de sua própria história e o terapeuta, pela conversa narrativa, irá ajudá-lo a encontrar novas histórias, as histórias alternativas, que proporcionam outros olhares e atenção a outros aspectos que permitam resgatar as identidades que antes eram dominadas pelos problemas (Lion, 2017). O objetivo é libertar o sujeito da ação restritiva das histórias dominantes. Para que essa dinâmica se estabeleça, o desenvolvimento de um bom vínculo entre paciente e terapeuta tem um importante papel nesse processo, destacando que o mesmo se constrói em uma perspectiva recíproca, bidirecional, com uma postura que valoriza a posição de co-construção discursiva. Assim, o terapeuta sai da posição de especialista e o paciente tem uma importante contribuição na construção da própria história, estabelecendo-se uma relação mútua do processo terapêutico, na qual cada um assume uma função significativa neste contexto.
Para que o paciente consiga se aventurar em novos caminhos, para além de sua história dominante, é importante que ele confie no terapeuta para que, juntos, consigam construir histórias alternativas. O objetivo do terapeuta é auxiliar o paciente a criar uma espécie de filtro narrativo perante sua história, reorganizando esse filtro em relação às novas experiências, permitindo filtrar ou selecionar aspectos ou eventos que não estejam relacionados à história dominante, saturada do problema. Dessa forma, a relação estabelecida entre o terapeuta e o paciente é um dos fatores determinantes das mudanças clínicas, ressaltando que diferentes tipos de relação podem ser estabelecidas ao longo da psicoterapia, o que permite que temáticas distintas possam ser trabalhadas em outros momentos (Santos, et al., 2013). Além disso, a terapia narrativa supõe que se em um dado momento da vida o sujeito entra em sofrimento, este sofrimento pode estar relacionado com a forma como este sujeito lê e conta a sua própria história, o que pode motivá-lo a buscar o tratamento pessoal.
Na terapia narrativa, após o terapeuta ouvir a história de vida narrada pelo paciente e o mundo de sentidos e significados atribuídos a ela, inicia-se o trabalho com a técnica de narração da história alternativa e é nesse momento que conjecturamos ser possível promover, no sistema nervoso, o fenômeno da neuroplasticidade. O paciente reconta a sua história, porém, desta vez, é ajudado pelo terapeuta a olhar detalhes dos fatos nunca antes percebidos, experiências, até então, não registradas. Ocorre, nesse processo, uma ressignificação de sua história e, consequentemente, uma mudança de sua visão de si e do mundo. Observamos tais mudanças em termos comportamentais, verificada na postura do paciente diante de determinadas situações e em uma alteração no seu discurso; assuntos antes tratados com pesar, por exemplo, passam, com o tempo, a serem narrados de uma forma positiva e resolutiva. O processo de busca de histórias alternativas é um exercício psicológico e linguístico que promove mudanças de paradigmas pessoais, proporcionando ao paciente um novo estímulo ambiental que se traduz na transformação de comportamento e de discurso. Ou seja, no momento em que o paciente consegue dar sentido a novas histórias em sua vida e perceber que existem outras formas de significar uma situação, isso pode motivá-lo a seguir em frente nesta tarefa e a repetir estes novos comportamentos, gerando mudanças e, consequentemente, contribuindo com o desenvolvimento da neuroplasticidade cerebral.
Supomos que ao recontar a própria história alternativa repetidas vezes, durante o processo terapêutico, o cérebro do paciente cria novas conexões neuronais, permitindo que a história alternativa vá se tornando naturalizada para o sujeito, reconstruindo um novo mundo de sentidos e significados. A criação de uma história alternativa exige do paciente esforços cognitivos significativos, uma vez que o trabalho envolve o levantamento de hipóteses e questionamentos nunca antes cogitados por ele. Estão incluídos nesse processo os mecanismos de memória, atenção, planejamento, percepção, emoções, dentre outros, criando-se, assim, um ambiente propício para que ocorra a plasticidade neuronal. O avanço da neurociência ajuda o terapeuta a compreender o efeito das intervenções oferecidas no processo psicoterápico, o que por sua vez, pode influenciar na qualidade do atendimento.
A expansão da neurociência para a psicologia, deu origem à neuropsicologia, que tem se ocupado com as relações entre o cérebro e as manifestações psíquicas e comportamentais do sujeito. Ao fazermos as conexões entre neuroplasticidade e terapia narrativa percebemos a importância de compreender o quanto as várias dimensões do ser humano estão conectadas: corpo, mente, comportamento, sentimentos, anatomia e fisiologia, ao mesmo tempo em que se retroalimentam e se influenciam concomitantemente.
Como vimos, quando falamos no ser humano e nos elementos que o compõe usamos conceitos concretos, como anatomia e fisiologia, ou seja, o cérebro e sua estrutura e funcionamento, assim como também utilizamos conceitos abstratos, como mente, pensamento e sentimentos. Isso nos faz lembrar o significado da palavra Psicologia (psique, do grego - alma, e logos, do grego – estudo), ou seja, estudo da alma. Com isso queremos dizer que nós, psicólogos, que nos concentramos nos conceitos abstratos, precisamos também entender o sujeito como um todo e a abrangência de nossas técnicas em todas as dimensões do ser humano. No entanto, nosso material de trabalho é, e sempre será, o que não se pode avaliar em laboratório, o que não aparece em nenhum exame de imagem, aquilo que só pode ser sentido e, na maioria das vezes, traduzido em forma de palavras. Nossa área está no campo do abstrato e aí está a beleza da nossa ciência e a essência do fazer psicológico.
Considerações Finais
Foi abordado neste trabalho a colaboração da terapia narrativa para a promoção da plasticidade neuronal. Questões relevantes do desenvolvimento (técnico) da terapia narrativa especialmente no que se refere à construção de histórias alternativas, bem como o avanço da neurociência e a descoberta da neuroplasticidade, foram exploradas, Reflexões e questionamentos foram instigados. Se, amparadas por pesquisas neurocientíficas, podemos falar da capacidade do cérebro de mudar em resposta a estímulos ambientais, perguntamos se através da psicoterapia podemos promover a mudança em um paciente com padrão disfuncional de comportamento.
Verificou-se que os estímulos ambientais estão constantemente influenciando nosso cérebro e que os registros adquiridos a partir das vivências, tendem a formar pensamentos e sentimentos que, por sua vez, geram comportamentos. Assim, supomos que, novos estímulos ambientais, desde que enviados de forma contínua e amparados pela motivação e confiança, possam formar novos pensamentos e sentimentos que resultarão em novos comportamentos. Esse conhecimento nos abre portas para novas perspectivas no tratamento psicológico.
Ao explorar as conexões entre a terapia narrativa e a capacidade cerebral de plasticidade neuronal, é possível perceber o quanto a abordagem psicoterápica em questão pode influenciar e promover a mudança do paciente e como a mudança pode ser explicada em termos neurobiológicos. Este aspecto reforça o potencial terapêutico e gerador de mudanças das práticas psicoterápicas, de forma geral, e não somente a que foi tratada no presente trabalho.
Ponderamos que há muito, ainda, para se descobrir, tanto em termos neuronais, quanto psíquicos e comportamentais. Por hora, nos agrada constatar que já existe um consenso na literatura científica a respeito da integração e influência mútua entre essas áreas de estudo.
Referências
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Endereço para correspondência
Cláudia Sanini
E-mail: psicologa.claudiasanini@gmail.com
Enviado em: 17/03/2021
1ª revisão em: 18/05/2021
Aceito em: 24/06/2021
1 Psicóloga Clínica, Pós-graduanda em Psicoterapia Individual Sistêmico-Integrativa (Domus), Especialista em Psicologia Escolar; Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS).
2 Psicóloga Clínica, Pós-graduanda em Psicoterapia Individual Sistêmico-Integrativa (Domus).
3 Psicóloga, Mestra em Psicologia Clínica, Membro da Coordenação, Docente e Supervisora do Domus, Psicoterapeuta Individual, Casal e Família.