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Vínculo
versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.7 no.1 São Paulo jun. 2010
ARTIGOS
Indicações para uma terapia de casal
Indications for a couple therapy
Indicaciones para una terapia de pareja
Isabel Cristina GomesI,1; Lidia LevyII,III,IV,2
IDepartamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
IIDepartamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
IIISociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
IVSociedade de Psicanálise Iracy Doyle
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir, por meio de um caso clinico, em quais circunstâncias seria mais conveniente um encaminhamento para terapia de casal quando comparado à terapia familiar ou individual. Enfocaremos uma clinica de casal onde a conjugalidade fica determinada pela parentalidade e pelos pactos inconscientes dos parceiros. No espaço analítico com o casal, esses pactos são questionados, possibilitando desvincular o conjugal do parental.
Palavras-chave: Terapia de casal; Conjugalidade; Parentalidade.
ABSTRACT
The purpose of this article is discuss by a clinical case in which circumstances it would be more appropriate a referral to couple therapy when compared to individual or family therapy. We will focus on a couple’s clinic where the conjugal is determined by parental and the unconscious pacts partners. In the analytic setting with the couple these pacts are questioned allowing releasing the marriage of parental.
Keywords: Couple therapy; Conjugal; Parental.
RESUMEN
El propósito de este artículo es discutir, por medio de un caso clínico, en qué circunstancias sería más apropiado indicar la terapia de pareja comparándola con la terapia individual o familiar. Enfocaremos una clínica de pareja donde la conyugalidad está determinada por la parentalidad y por los pactos inconscientes de los cónyuges. En el espacio analítico con la pareja eses pactos son puestos en cuestión permitiendo desconectar el conyugal del parental.
Palabras clave: Psicoterapia psicoanalítica de parejas; Conyugalidad; Parentalidad.
Neste artigo, pretendemos discutir em quais circunstâncias seria mais conveniente realizar um encaminhamento para terapia de casal em lugar de uma indicação para terapia familiar ou individual. Dentre os argumentos utilizados por alguns autores (Lemaire, 1998; Eiguer,1998; Levy-Alvarenga, 1996) para fundamentar a indicação de uma terapia de casal, destacamos aquele que é constantemente citado; ou seja, esta é uma clínica que favorece o desenvolvimento do vinculo conjugal quando os limites individuais são pouco claros, e os cônjuges, em função de suas próprias questões, se envolvem em um pacto inconsciente que os imobiliza.
As indicações mais comuns para uma terapia de casal, segundo Lemaire (1998), remetem a situações nas quais os indivíduos apontam a relação ou o parceiro como o foco de seus sofrimentos. As queixas revelam uma dependência simbiótica entre eles ou uma relação essencialmente conflitiva e agressiva ou ainda decorrem de sintomas comuns significativos, como uma disfunção sexual. Nestes casos, o autor considera um erro acreditar que se deveria indicar um trabalho individual, pois seria simplista pensar que sujeitos mal individuados, organizados enquanto casal, a partir de uma colusão inconsciente, sustentariam uma análise individual.
Para Levy e Gomes (2008), quando os membros do casal se mantêm fundidos, os afetos são da ordem da violência, da irritação e da hostilidade. Os sujeitos permanecem aprisionados numa estrutura vincular, capturados numa rede imaginária que é reafirmada pelo imaginário do parceiro. A presença de ambos na sessão permite um confronto que provoca uma série de reorganizações, no sentido de romper a cristalização da queixa e dar mobilidade a posições até então rigidamente assumidas.
Por outro lado, existem situações em que os cônjuges lançam mão das dificuldades de seus filhos como justificativa para procurar ajuda. Geralmente, os terapeutas preferem trabalhar o conjunto da família nuclear. Entretanto, é possível e às vezes desejável, responder às perturbações existentes nos filhos por uma intervenção em parte do grupo familiar e trabalhar pela criança através do casal parental. Em que circunstâncias, então, o clínico deveria optar por uma terapia de casal, adiando a possibilidade de chamar ou não os demais membros da família? Dependendo da demanda por ajuda solicitada pelo casal, observamos uma mistura entre as esferas da parentalidade e da conjugalidade, colocando o terapeuta diante de uma difícil decisão acerca do melhor encaminhamento a ser feito.
Quando a queixa trazida ao terapeuta diz respeito a questões referentes à parentalidade, a indicação mais comum é pela realização de uma terapia familiar. Entretanto, em alguns casos observa-se que a parentalidade oculta dificuldades em relação à conjugalidade, que deveriam ser prioritariamente trabalhadas. São situações nas quais os cônjuges não conseguem manter os lugares de homem e mulher, de marido e esposa, mas perdem-se nos lugares de pai e mãe.Frente a essa dinâmica, justifica-se que o encaminhamento feito seja o de uma terapia de casal.
Nos primórdios da terapia familiar, alguns autores como Ackerman (1969) já enfatizavam a estreita ligação do conjugal com a constituição de uma família, confirmando nossos achados atuais de que, muitas vezes, a verdadeira natureza do conflito marital é negada, deslocada ou projetada em outros laços familiares, como a relação pai(s)-filho(s).
Eiguer (1998) pontua que a consciência sobre a existência de conflitos conjugais, pelos parceiros, é condição indispensável para a indicação de terapia para o casal. Cita como problemáticas mais comuns nos casais, os conflitos relacionais e de comunicação e os desentendimentos sexuais. Contudo, o autor denomina de terapia de pais3 uma outra abordagem com o casal, na interface com a parentalidade, quando a terapia familiar não é possível de ser realizada por limitações na criança.
Zimerman (2000) afirma ser cada vez maior a procura por terapia de casal. Menciona como principais motivos manifestos, a deterioração gradativa do relacionamento com problemas na comunicação, na sexualidade, e com os filhos. Nota-se que para o autor a degradação da relação conjugal acaba afetando o exercício da parentalidade, num processo de interligação recíproca e que, ambas as facetas – a conjugalidade e a parentalidade - poderiam ser trabalhadas no espaço terapêutico com o casal.
Também é uma unanimidade entre os profissionais da área que, conflitos conjugais não devem ser tratados em atendimentos envolvendo todo o grupo familiar. Entretanto, o inverso não somente é possível – tratar alguns sintomas familiares no espaço destinado ao casal - como é reiterado por experiências clínicas que demonstram como o(s) filho(s) necessita(m) de um ambiente razoavelmente harmônico na família, que deve ser propiciado pelos pais.
Gostaríamos de destacar aqui a construção de uma clínica do conjugal na interface com o parental cuja finalidade é auxiliar na promoção de uma melhor delimitação dos lugares e funções na família (Gomes, 2008, 2009). Para atingir tal fim, retomamos uma publicação anterior (Gomes, 2007) na qual traçamos as bases teóricas e técnicas para a construção de uma “clínica específica” com casais, destinada àqueles que chegam com uma demanda apoiada na parentalidade como uma forma intermediária ou defensiva para, justamente, se distanciarem da máxima pretendida: O casal como paciente! (p.73).
Usaremos o relato e a análise de um caso clínico para ilustrarmos os aspectos que foram considerados na opção por uma terapia de casal em detrimento de uma terapia familiar ou de um encaminhamento para terapias individuais.
Relato clinico
Pedro e Joana procuram atendimento em função dos problemas que estão tendo com a filha do meio de 12 anos, Camila. Camila e Ana (sua irmã mais velha) são filhas do primeiro casamento de Pedro e da união de Pedro e Joana, nasceu Gabriel, agora com 3 anos.
Na primeira sessão com o casal, ambos relatam com muita preocupação os problemas de Camila: ela é bagunceira, não ajuda nos afazeres domésticos e não estuda. Entretanto, o que mais os incomoda é sua insistência em querer ir morar com a mãe, desconsiderando tudo o que o pai e Joana fizeram e fazem por ela. Definem sua atitude como “ingratidão”. Já haviam passado por isso com a mais velha e foi muito “educativo” ela ter ido viver com a mãe por dois anos, pois sentiu “na carne” a rejeição e voltou bastante mudada e agradecida ao pai.
Pedro conta sobre seu casamento com a mãe das meninas e sobre sua separação, com muita mágoa. Casaram-se muito jovens, ela com 15 e ele com 18 anos, em função da esposa ter engravidado da filha mais velha. Pedro sempre foi muito trabalhador provendo a família como podia. Enfatiza, contudo, que a ex-esposa não cuidava das meninas e que passou a trabalhar fora, quando do nascimento da filha caçula, para ajudar nas despesas. Camila tinha dois anos quando seu pai resolveu separar-se, pois acreditava que a esposa o estivesse traindo com um colega do emprego. Camila foi viver com a avó paterna e Pedro ficou com Ana que na época contava com 6 anos. Após um ano trabalhando e cuidando
Os nomes de todos os membros da família são fictícios.
Pedro conhece Joana que fica comovida com o fato dele não ter ninguém para ajudá-lo com a filha. Ainda na fase de namoro ela se propõe a ficar com Ana enquanto ele trabalha no período noturno e ajudá-la nos afazeres escolares, enfim, gradualmente vai tomando para si a maternagem adotiva. Quando o casal resolve morar junto, Camila vem juntar-se a eles. E, nos últimos anos a chegada de Gabriel trouxe mais uma complexidade às relações familiares assim instituídas.
Desde a separação, as meninas tiveram muito pouco contato com a mãe e este ocorria basicamente por telefone. Quando adolescente Ana procura a mãe e diz querer morar com ela. O pai, sentindo-se atacado pelo desejo da filha, reage dando a entender que a opção de querer viver com a mãe implicaria em traição e abandono. Após dois anos vivendo na casa da mãe, Ana retorna para a casa do pai “mais madura e agradecida” por tudo que ele e Joana ofereceram a elas.
Quando Camila esboça o mesmo desejo, Ana expressa seu arrependimento e lhe conta como era sua vida no lar materno: liberdade sem cuidados. Pedro e Joana se sentem exaustos e impotentes frente à mesma exigência por parte de Camila, agravada ao fato de que ambos percebem não ser ela tão forte quanto a irmã e, portanto, não agüentar passar pelo mesmo sofrimento e desilusão.
Sobre o processo psicoterapêutico
Comentaremos a seguir a intervenção realizada com o casal ao longo de quase um ano de terapia, com freqüência semanal.
Inicialmente não há menção do conjugal em função da queixa concentrar-se em um dos filhos e trazer a tona questões parentais atuais e passadas. O casal não agüenta reviver uma situação dolorida que já havia passado com a filha mais velha, ou seja, o desejo das meninas de morarem com a mãe. Mostram-se despreparados para lidar com essa revivescência e, ao mesmo tempo, desejosos que o terapeuta ajude a filha no reconhecimento da família que possui hoje, enterrando seu passado com a mãe (sic).
Observando a intensidade do sofrimento estampado neles, principalmente no pai, e pela fantasia instituída por ele de “sermos uma família unida e feliz”, negando todo o passado vivido, acreditamos ser de melhor eficácia terapêutica para todo o grupo, naquele momento, a escolha pela terapia do casal. Com essa proposta esperávamos fortalecê-los para que fossem capazes de dar conta da complexidade de sentimentos e funções inerentes a esse contexto familiar, com a inclusão e respeito pela história individual de cada um.
Pedro imbuído da idealização de uma família perfeita delega à Joana o lugar de principal cuidadora do grupo, impondo às filhas uma mãe. Observa-se que, conjugalidade e parentalidade se misturam em seu relato. Numa das sessões afirma que escolheu se casar com Joana para poder dar uma mãe para as meninas. Não consegue aceitar o fato da ex-esposa não ter desejado manter as filhas em sua companhia. Relembra a situação vivenciada por sua própria mãe que, abandonada pelo marido, criou os filhos sozinha como uma brava guerreira (sic).
Joana, por sua vez, foi marcada pelo abandono do pai quando ainda bebê, tendo sido criada pela mãe e pelo padrasto. Isso foi determinante no estabelecimento do investimento amoroso em Pedro e em sua mobilização pela situação de desamparo das meninas. Assim, temos uma conjugalidade que se estabelece a partir de pactos inconscientes, advindos do legado geracional de cada um dos sujeitos. Especificamente, há a presença de um pacto denegativo (KaËs, 2001) constituinte desse vínculo conjugal. Ambos se juntam para encobrir o abandono vivenciado em etapas da história de cada um.
Pedro se caracteriza como trabalhador e provedor identificado com sua mãe batalhadora. Dedica-se ao bem estar da família e sente-se injustiçado, traído e não reconhecido em seus esforços. Joana, maternal e generosa, é cúmplice de Pedro na tarefa de gerar bem estar a todos. Temos aqui um casal que prioriza a parentalidade em detrimento da conjugalidade.
Como profissional da área da saúde, que até então trabalhava em plantões noturnos alternados, Pedro, após alguns meses da terapia, passa a trabalhar todas as noites ininterruptamente. A família então se divide em dois subgrupos, segundo fala de Joana: eu sozinha com elas todas as noites e Pedro com os filhos durante o dia. Com essa frase, Joana que até então se percebia no lugar de mãe, se revela no lugar de madrasta.
Numa sessão carregada de emoções, Joana expõe seu cansaço, desânimo e culpa frente ao fato de Pedro ter que trabalhar tanto e, por isso, ficar tão distante dela. Agora nos falamos só por telefone. Pela manhã quando saio para trabalhar ele ainda não chegou. Quando chego em casa no final da tarde, ele já se foi. Nos finais de semana quero ficar na companhia dele (que só quer ficar em casa descansando), mas também me sinto mal por não fazer nenhum passeio com as crianças... Após esse relato, Joana continua a fala, entremeada de choro, dizendo que não há espaço para ela, o marido e o filho. Reclama da dupla jornada de trabalho, da falta de ajuda das meninas nos afazeres domésticos, e do pouco tempo que sobra para estar com o menino, que ainda é muito pequeno. Relata sentir-se devedora perante o filho, pois acaba se envolvendo muito com as questões criadas por Camila.
Pedro escuta-a quieto, olhos baixos e só se coloca mediante estímulo do terapeuta. Finalmente reconhece que o lugar da esposa nessa família é difícil, principalmente no trato com as filhas dele, em sua ausência, desmistificando seu lugar de “mãe de todos”. Concorda com a percepção dela de que sobra muito pouco tempo para o casal, mas se diz alguém resignado com a vida, e que já sabia que seria assim...
Após essa sessão, o conjugal ganha um espaço central nos encontros seguintes. O que sustentava até então os parceiros unidos mostra-se insuficiente, pois se ancorava em mecanismos primitivos de repetição e idealização. Camila deixa de ser o problema, e ambos os cônjuges percebem a complexidade inerente ao funcionamento familiar e conjugal.
O casal precisou de um período razoável de dedicação ao complexo exercício parental, prevalente nas famílias reconstituídas, para então, pôr em evidência os conflitos conjugais. A conjugalidade é estabelecida numa teia geracional, carregada de memórias transgeracionais. Pedro se mantém preso às experiências dolorosas da separação anterior, o que se torna um impeditivo de uma nova construção conjugal e familiar. Joana, por um mecanismo de identificação projetiva, alia-se às meninas abandonadas pela mãe e com isso preenche vazios primitivos seus, reproduzindo a idealização da família unida. Só mais tarde pôde dar vazão a sentimentos de ambivalência, quando se permitiu assumir a identidade de esposa.
Para dar conta de viver a idealização de uma família feliz, construída defensivamente, se voltam para escolhas sempre excludentes e indicativas do dever sobrepujando o prazer. Nesse contexto, o papel da terapia foi o de promover o questionamento do pacto que os uniu, envolvendo a interpretação do(s) abandono(s), e propiciar uma outra maneira de se pensar o parental, não mais como excludente do conjugal.
Considerações Finais
Enfatizamos situações nas quais os conflitos conjugais ficam encobertos por dificuldades no exercício da parentalidade e por uma organização caótica do grupo familiar. Os sintomas apresentados pelos filhos podem ser vistos como intermediários ou encobridores dos verdadeiros conflitos conjugais, de uma conjugalidade que nem chegou a ser estabelecida ou que se estabeleceu em bases fusionais bastante primitivas, com a finalidade de preencher os vazios oriundos dos primeiros modelos de identificação.
O caso clínico relatado mostrou a necessidade de um trabalho inicial de separação das duas instâncias funcionais: conjugal e parental. Inicialmente, seguimos a tendência natural, assumida espontaneamente pelo casal, de adentrar as vicissitudes do parental para, em seguida a uma compreensão geral do grupo familiar, abrir caminho para a emersão dos conflitos conjugais, até então, latentes. Sabemos, entretanto, que as histórias pessoais de Pedro e Joana facilitaram a construção de um pacto, onde a “família ideal” deveria sobrepor-se a quaisquer anseios individuais. A proposta de uma terapia de casal, neste caso, teve por objetivo não apenas desvincular o conjugal do parental, mas também rever o contrato inconscientemente estabelecido de modo a que cada um pudesse reconhecer-se em sua individualidade.
Referências Bibliográficas
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ZIMERMAN, D. E. Fundamentos básicos das grupoterapias. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. [ Links ]
Endereço para correspondência
Isabel Cristina Gomes
E-mail: isagomes@usp.br
Lidia Levy
E-mail: llevy@puc-rio.br
Recebido em: 28.01.10
Aceito em: 27.04.10
1 Livre-Docente, Professora Associada do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Doutora, Professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, Psicanalista, Membro da SPCRJ e da SPID.
3 Grifo nosso.