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Vínculo
versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.11 no.1 São Paulo jun. 2014
ARTIGOS
A imposição de um pai
The imposition of a father
La imposición de un padre
Juan Adolfo Brandt1
Centro Universitário IESB
RESUMO
Neste artigo são debatidas as possíveis implicações deletérias de programas promovidos por instituições públicas judiciárias em cumprimento do ditame legal que exige o preenchimento do nome do pai na certidão de nascimento da criança ou jovem que não tem a sua filiação paterna reconhecida. Trata-se de reflexão teórica, fundada na leitura psicanalítica e em informações obtidas junto a pessoas do público atingido, ou "escuta" dessas pessoas, bem como leitura de notícias que circulam, particularmente na mídia Internet, com estatísticas oficiais sobre os resultados do programa coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça. O propósito é promover a reflexão sobre as razões da incapacidade materna para nomear o nome do pai de seu filho e sobre as consequências para a qualidade do vínculo filho-mãe nas diversas possibilidades de resolução dessa questão. O tema adquire envergadura de drama humano abafado e o autor propõe que a sociedade se envolva para questionar as letras da Lei e/ou a ação das instituições judiciárias elas se tornam persecutórias, pois surgem evidências de possíveis efeitos adversos da aplicação do programa de reconhecimento da paternidade.
Palavras-chave: Estupro; Incesto; Paternidade; Coerção; Vínculo.
ABSTRACT
In this article are discussed the possible harmful implications of the programs promoted by judiciary public institutions in observance of the legal dictates that require completing the father’s name on the birth certificate of the child or adolescent's certificate of birth that don't have his or her's recognized father's name. It's a theoretical reflection grounded in psychoanalytic reading and in informations obtained from people of the target public, or "hearing" from those persons, as well as reading of the news that are around particularly on the Internet media, with official statistics about the programs' results coordenated by CNJ - The National Board of Justice. The purpose is to promote the reflection about the reasons of the maternal incapacity to name her son with his father's name and about the consequences for the quality of the relationship son-mother on the various possibilities of this questions' resolutions. The theme acquire the stature of the muted human drama and the author propose that the society be engaged to argue the letter of the Law/or the action of the judicial institutions that become persecutory because from it emerge evidences of possible adverse effects of the application of the paternity recognition public programs.
Keywords: Rape; Incest; Paternity; Coercion; Bound.
RESUMEN
En este artículo se debate las implicaciones deletéreas posibles en los programas promovidos por instituciones públicas judiciales encargadas de cumplir la Ley que exige rellenar con el nombre del padre la certificación de nacimiento de chicos o jóvenes que no tienen el nombre del padre reconocido. La reflexión se hace teórica soportada en la lectura psicoanalítica y en informaciones obtenidas junto al público afectado o, todavía, desde la "escucha" de esas personas, y además la lectura del noticiero que circula particularmente por la herramienta Internet con estadísticas oficiales del programa coordinado por CNJ - Consejo Nacional de Justicia. El propósito es promover reflexiones sobre las razones de ser de la incapacidad materna para nombrar el padre de su hijo y las consecuencias para la calidad del vínculo hijo-madre en las diversas posibilidades de resolución de la cuestión. El tema adquiere envergadura de drama humano tapado y el autor propone que la sociedad dedique su atención para cuestionar las letras de la Ley o más, de las acciones de las instituciones judiciales cuando ellas se hacen persecutorias, es que surgen evidencias de posibles efectos negativos con la aplicación del programa de reconocimiento de paternidad.
Palabras-clave: Estupro; Incesto; Paternidad; Coacción; Vínculo.
Introdução
De acordo com a Lei n. 8.560 (BRASIL, 1992), ter o nome do pai no registro de nascimento é um direito da criança, mesmo que nascida fora do casamento. Os Provimentos 12 e 16 do Conselho Nacional de Justiça - Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ, 2010; 2012) instituíram e regulamentaram o programa Pai Presente visando providências necessárias ao reconhecimento da paternidade nos casos de pessoas cujo nome do pai não consta na certidão de nascimento. Para assegurar o cumprimento da determinação legal e visando uma atuação coerente com os provimentos citados, o Sistema Judiciário Brasileiro através de ações da magistratura e do Ministério Público, com apoio da Defensoria Pública, vem desenvolvendo diversos projetos nas unidades da Federação com vistas ao preenchimento do nome do pai em certidões de nascimento quando falta tal registro.
A motivação para a propositura deste debate decorre de estarem sendo criadas situações angustiantes no Brasil, ao serem fomentados programas a cargo de operadores de direito, que realizam campanhas em que crianças e jovens que não têm o nome do pai reconhecido têm suas mães intimadas a serem ouvidas em oitivas realizadas nas escolas, juntamente ou em paralelo com esses filhos. Em seqüência, essas mães e jovens são intimados a nomearem o nome do pai faltante. Certos operadores de direito sustentam-se no ditame legal que afirma o direito ao reconhecimento da paternidade, sem levarem em consideração que podem existir razões que tornam esse reconhecimento difícil ou impossível.
A pesquisa está sustentada na verificação de programas e campanhas institucionais de preenchimento do nome do pai nas certidões de nascimento de jovens que não têm o pai reconhecido. Conta-se também com relatos de mulheres que entregam seus filhos para adoção, relatos sobre a incidência de incesto que foram divulgados nos grupos de discussão realizados durante o XI Encontro Luso-Brasileiro de Grupanálise e Psicoterapia Psicanalítica de Grupo realizado em Belém do Pará em novembro de 2012, a partir do trabalho apresentado nesse evento por Gomes e Neves (2012), informações essas fundadas na experiência de profissionais da psicologia que militam no Estado do Pará, bem como informações coletadas cotidianamente na mídia sobre a violência sexual, o que inclui organismos do Governo Federal que repetidamente lançam campanhas nacionais de combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes.
A pergunta que fundamenta o debate é: Cabe promover o sofrimento de uma parte da população para atender a um ditame legal que não considera as nuances psicossociais de todas as demais pessoas partícipes da questão envolvida?
O objetivo desta reflexão é colocar em pauta junto à sociedade a necessidade de repensar a aplicação da Lei ou revisar a própria Lei.
Violência tratada com violência em nome do "bem"
Lei "fria" lei ou "frios" os seus operadores?
Na literatura disponível sobre parentalidade não é discutido o tema da imposição do nome do pai e nos documentos legais que instituem esse direito não é feita menção às motivações de uma mãe para não indicar o nome do pai de seu filho. Em outro sentido, também não se encontra menção aos possíveis impedimentos que surgem à nomeação do pai. Ao ser omissa nesse aspecto, a Lei e os Provimentos do Conselho Nacional de Justiça - Corregedoria Nacional de Justiça tratam a questão como se estivesse presente a mera negativa à nomeação. Como se fosse mero capricho da mulher inconsequente e em conflito com o mundo masculino.
Devem existir – e de fato existem – motivos para a impossibilidade de nomear-se um pai, por total desconhecimento – por parte da mulher - do homem que foi agente da fecundação ou, justamente porque esse conhecimento implica na necessidade de omitir.
Em muitas situações há um homem que foi responsável por um ato sexual não consentido pela mulher, tendo-lhe sido impossível evitar o ato de barbárie e, ao surgir a gravidez, está pode ser considerada abominável. Nesse caso a impossibilidade para nomear decorre da presença - e lembrança - de abuso com graus variados de violência. Em diversos casos está presente o radical desconhecimento do nome do pai devido à situação traumática e fortuita do encontro com o outro que nas sombras do anonimato perpetra o ato de violência sexual. Também está presente o terrível medo da repetição da agressão ou violência maior que poderia ser praticada por alguém próximo que é temido porque ameaça com retaliação se for nomeado.
Outra possibilidade é a do incesto, sempre negado e tão presente em nossa sociedade. Os encontros e debates sobre a experiência em clínica psicanalítica colocam, com certa frequência, a questão do incesto. Como falar do pai, avô, padrasto, tio incestuosos dentro da família que se precisa preservar? Durante o Encontro Luso-brasileiro de Grupanálise e Psicoterapia de Grupo realizado em Belém do Pará em novembro de 2012, houve oportunidades para relatos de equipes técnicas da psicologia atuante no Estado do Pará, relativos à elevada incidência de incesto na região norte do País.
A experiência no atendimento de mulheres que querem entregar para adoção seus filhos recém-nascidos ou por nascer, justamente por não poderem lidar com a realidade do trauma que também "fala" de vergonha, é mais um aspecto a referendar a presente discussão. Acresce que muitas dessas mães foram abusadas desde quando eram crianças e foram muitas as que engravidaram durante a adolescência. Como tratar como sendo de adulto o ato que foi iniciado antes da maioridade? Esses relatos foram obtidos pelo autor do presente artigo durante o período em que militava no campo da adoção no sistema judiciário do DF.
Ao reconhecer-se ou manifestar-se desconhecedora do nome do homem com quem teve o encontro sexual, a mulher é invadida por profunda vergonha, vê ameaçada a sua auto-imagem e consequentemente o vínculo que a liga a seu filho. Também há que levar em conta a culpa imputada à mulher ao ser responsabilizada pelo estupro; isso ocorre na medida em que é vista como estar a se colocar como objeto que deseja ser desejado. Não é reconhecido que lhe foi impossível evitar o ato sexual violento. Em outros casos não foi possível à adolescente resistir ao encontro incestuoso que a vitima desde a sua infância dentro de casa.
Na qualidade de pesquisador sobre violência, o autor do presente artigo obteve, a partir de entrevistas realizadas por estudantes da graduação em psicologia de Brasília, evidências quantitativamente importantes, sobre a violência sexual – incestuosa ou não – sofrida por meninas residentes no Distrito Federal, oriundas dessa ou de outras unidades da Federação.
Kaës (2005) e Fernandes (2005) esclarecem sobre a importância da negatividade, um campo discutido no âmbito da psicanálise vincular, que coloca em pauta a impossibilidade de falar sobre algo que não pode ser reconhecido, uma vez que o seu reconhecimento compromete a possibilidade de se ser sujeito em toda completude quando se está no encontro intersubjetivo. Algo precisa ser negado pelo sujeito para que ele possa ser aceito pelos outros do grupo. Como reconhecer que não se é quem se é na visão dos outros e mesmo assim manter os lugares que se ocupa no encontro intersubjetivo? Como não ameaçar o outro relativamente aos lugares sociais que ocupa, se a verdade se torna manifesta? É preciso que certas coisas sejam deixadas de lado para participar do grupo. O campo do negativo tem importante função como organizador psíquico.
Tanto esforço para dar um nome de pai, mas esse nome pode representar o mal
Encontra-se no sítio eletrônico do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – MPDFT a seguinte notícia criada em 26 de Maio de 2014, às 17:33:
Mais 600 mães são notificadas para o programa 'Pai Legal'.
Na próxima quarta-feira, dia 28, a Promotoria de Justiça de Defesa da Filiação (Profide) realiza a segunda audiência de 2014 do programa "Pai Legal/Cartórios". O encontro será a partir das 14 horas na Sede do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), onde as 600 mães notificadas poderão dar inicio ao procedimento de reconhecimento de paternidade de seus filhos. Também serão realizados reconhecimentos voluntários (grifo nosso).
O programa tem o objetivo de regularizar a situação de crianças e adolescentes cuja paternidade não se encontra declarada no registro de nascimento. A intenção é que o reconhecimento seja realizado ainda nos primeiros meses de vida da criança, por isso, o MPDFT conta com as informações fornecidas pelos Cartórios do DF, que encaminham os registros de recém-nascidos que não constam o nome do pai. Serão atendidos menores nascidos entre os meses de janeiro e abril de 2014. De acordo com a Profide [Promotoria de Justiça de Defesa da Filiação], estão previstas, ainda este ano, mais cinco audiências do "Pai Legal". (Acesso em 27-05-2014).
No mesmo sítio eletrônico do MPDFT são encontrados indicativos sobre o modo de realizar-se a busca de pais para o preenchimento de certidões de nascimento. Veja-se o recorte:
Criado em 2002 pela Promotoria de Justiça de Defesa da Filiação, o Programa Pai Legal nas Escolas atende os alunos menores matriculados na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal. O Programa percorre as regiões administrativas do DF, em atendimentos coletivos que ocorrem cinco a seis vezes por ano, sendo realizadas nas escolas próximas ao local de residência das crianças ou em centros comunitários com capacidade para receber um grande número de pessoas. Nestas audiências são realizados, gratuitamente, reconhecimentos voluntários de paternidade, firmados pelos pais biológicos e também são abertos os procedimentos preliminares de paternidade quando o suposto pai se nega ou se encontra impossibilitado de comparecer. É possível a abertura de procedimentos desta natureza também em caso de supostos pais já falecidos, presos, residentes em outro Estado, e ainda quando a mãe disponha de dados, ainda que poucos, que possam auxiliar na localização de supostos pais cujo paradeiro seja desconhecido. (Acesso em 14-04-2015).
Analisando-se os procedimentos desse programa do MPDFT verifica-se que têm o poder de criar situações constrangedoras, pois as pessoas são intimadas a comparecerem a audiências, algumas dentro das escolas, para a identificação do pai. Não há como desconhecer que fica caracterizada a coação quando é feita a exposição forçada que não respeita o direito à privacidade. Veja-se que as instituições públicas que pugnam pela imposição do nome do pai desrespeitam a vida privada da mulher adulta; também tratam como ato de adulto o evento em que essa mulher – ainda menina - foi violentada, abusada, vítima de relação incestuosa, seduzida pelo adulto que não reconheceu nela a ingenuidade infantil ou o direito de recusa.
Não é sem razão que os resultados da campanha nacional pelo preenchimento do nome do pai em certidões de nascimento se apresentam aquém de seu potencial estatístico. O próprio Conselho Nacional de Justiça informa em seu sítio eletrônico os resultados acumulados e consolidados do programa até o ano de 2012: 12,4 mil exames de DNA providenciados, tendo sido abertas cerca de 26 mil ações de investigação de paternidade, para mais de 219 mil mães intimadas. (CNJ, Acesso em 07/06/2014).
Constata-se que o Conselho Nacional de Justiça realizou a revisão de sua estatística, pois informa posteriormente no mesmo sítio eletrônico que ocorreram até o ano de 2012 pelo menos 151.900 notificações em todo o Brasil, com os seguintes resultados: realização de 18.678 audiências com a presumível presença de mães e/ou filhos, [não é informado se os supostos pais estavam presentes]; realização de 14.603 reconhecimentos espontâneos da paternidade [mesmo que exclusivamente pela mãe]; encaminhamento de 11.892 exames de DNA; e propositura de investigação de paternidade em 22.913 casos [não é informado se as proposituras de investigação de paternidade contemplam os mesmos casos de encaminhamentos de exames de DNA e de reconhecimentos espontâneos]. (CNJ, Acesso em 14/04/2015).
Pela análise da estatística obtida no acesso realizado ao sítio do CNJ em 07/06/2014 fica evidenciado que essas ações foram efetivas em um máximo de 28% das intimações. Se a análise leva em conta a estatística obtida no acesso ao mesmo sítio em 14/04/2015 chega-se a um máximo de 33% de efetividade, isto somente se é considerado que reconhecimentos espontâneos, exames de DNA e propositura de ações de paternidade não se confundem num mesmo processo, o que não parece corresponder à ordem lógica das informações obtidas. De qualquer modo, ao aceitar-se como fidedignas as taxas de sucesso do programa do CNJ, chega-se à conclusão de que pelo menos 70% das notificações não obtiveram o resultado pretendido pelos operadores do direito.
Essa estatística coloca em questão, além da baixa efetividade do resultado quantitativo, outra consideração: não corresponde obrigatoriamente, em função da discussão precedente, a um resultado que possa ser considerado de caráter humanista, o que constituiria seu sentido qualitativo.
Isso porque podem ter sido provocadas situações de importante conflito intra e intersubjetivo nos casos em que a paternidade foi indicada e em decorrência foi levantado, da mulher atingida, o véu que cobre a vergonha, nega o trauma, esconde a culpa e abafa o medo, bem como que nos casos em que essa pressão sobre mulheres, meninas e jovens, não tendo chegado ao resultado pretendido, gerou angústia onde antes a vida talvez estivesse seguindo seu curso com um mínimo de "normalidade". Coloca-se em audiência judicial uma questão psicossocial sem que seja levado em consideração que está presente importante sofrimento psíquico da mulher que não é reconhecida como primeira vítima de uma história de violência.
A partir desses recortes relativos à atuação do MPDFT propõe-se o debate sobre os resultados da atuação dos agentes do sistema judiciário, na medida em que sua ação pode estar a confrontar o bem-estar psíquico ou mesmo a saúde mental de muitas dessas mães ao não ser levado em conta que pode estar presente uma impossibilidade: a de nomear o pai da criança gerada.
Ao tratar dessa forma a questão da ausência do nome do pai, a instituição pública trata como mãe má (KLEIN, 2006) aquela mulher que, por amor à vida, não perpetrou o aborto, diferentemente de tantas outras mulheres que, em desespero, abortam pelos mesmos ou outros motivos. A culpa por ter sido violentada é recoberta pela vergonha de não poder dizer ou de ter que dizer o que não se pode dizer sem reconhecer a vergonha da própria incapacidade em evitar o ato sexual danoso. A mulher sofre devido a consequências sociais que decorrem de não haver matado seu feto.
É notória a facilidade com que a mulher pode recorrer ao aborto, mesmo sendo ilegal. A esse respeito cabe a referência à obra de Balint (1994), que em seu texto The mother love and love for the mother, discute sobre o direito primitivo e atávico ao aborto, bem como coloca em pauta o ato de amor que está presente na recusa desse aborto. Ao mesmo tempo essa autora faz alusão à dívida de gratidão do filho [talvez quase todos os filhos] em relação àquela mulher que, apesar de tantas ocorrências deletérias, não abortou. Afirma Balint que nas culturas primitivas a mulher podia abortar quando havia fome e não existia alimento para o restante da prole ou para ela mesma, indicando, a partir da antropologia, que nas culturas primitivas a mulher que matava seu feto não era questionada, pois era reconhecido que precisava cometer tal ato.
Percebe-se que os programas de imposição do nome do pai induzem a atualização de traumas para os quais o único remédio acessado por muitas das vítimas [as mães] foi o de deixar o tempo passar, para esquecer. Contudo, ao provocarem a busca do nome do pai, esses programas dão novo sentido, ou melhor, estabelecem a falta de sentido da questão que teve que ficar "adormecida". Além disso, a mulher carente em termos econômico-sociais, dificilmente terá tido acesso a apoio psicoterápico. As possibilidades de sofrimento se ampliam ainda, na medida em que tais situações potencializam o conflito intrafamiliar. Sim, pois acossada pela instituição pública a mulher deve dizer algo, e se não diz, é vista como negligente e também passa a ser vista pelo filho como não-confiável. No extremo absurdo o filho tem a instituição pública como aliada contra a sua própria mãe. Essa conexão nefasta atualiza a atuação dos regimes totalitários que instam filhos contra seus pais.
Além disso, quando se chega, nessas condições, à nomeação do nome de pai que falta, qual será a qualidade que esse nome estará representando? Aquele que é nomeado vai representar a paternidade em qual sentido ou esse ato constituirá maior falta de sentido? Como pode ser argumentado que o preenchimento do espaço vazio do nome do pai com um pai que não cabe nesse espaço porque tal espaço psíquico foi preenchido pelo imaginário, por histórias que protegem, constituirá a solução de um problema no âmbito psíquico? Não são levadas em conta as questões relativas ao amor e à culpa ao estabelecer-se de modo tão impróprio que toda criança tem o direito de ter o nome de seu pai sem levar em consideração que o direito de ter não pode tornar-se imposição? Terá o Estado através de seus agentes avaliado o sofrimento que impede a nomeação e as consequências da não nomeação quando é cumprido o programa de imposição do nome do pai ou ainda, as consequências da nomeação ou informação desabonadora e que enseja culpa?
Por outro lado, buscar o preenchimento da lacuna do nome do pai num mundo em que é possível ser filho sem pai, devido a novas lógicas de parentalidade, seja por produção independente, seja por adoção ou ainda por uso de tecnologia - procedimentos esses que estabelecem novas realidades para a "inexistência" de paternidade - coloca "dois pesos e duas medidas" para um fato que contém grande semelhança nas consequências. Como fará a instituição pública quando deparar com o jovem que não tem o nome do pai justamente porque sua fecundação, gestação ou afiliação decorreu de procedimentos que fogem do que seria do âmbito da naturalidade?
Lembra-se, a partir de Freud (1994) e depois Enriquez (1991), que o nome do pai somente surgiu com a entrada da humanidade na cultura, depois que os tempos primitivos da horda foram, pelo menos em parte, superados, pois é com a formação do grupo que planeja e executa o assassinato do pai primevo, que ocorre o reconhecimento da existência de um pai da horda, no momento em que a horda evolui para grupo. Portanto, o pai da horda é reconhecido somente a posteriori. Contudo, o reconhecimento da mãe é fato já na horda, antes do grupo, e é no invólucro possível da mãe que se faz a passagem do plasma germinativo. Ela pode consentir em cumprir a função de dar andamento a essa passagem ou pode interromper o processo provocado pelo homem recorrendo ao aborto. No imaginário é a mulher que contém os bebês e o homem surge somente como o agente que faz surgirem, da mulher, os bebês.
Conclusão
Concluindo, coloca-se em pauta a necessidade de serem revisados os programas de preenchimento do nome do pai em certidões de nascimento na medida em que tais programas aplicam modelos que se aproximam da coação. Mais, propõe-se que sejam procuradas formas não-invasivas de cumprir a Lei, de modo a proteger as famílias vitimadas pela violência e abuso.
Simultaneamente, se faz o alerta de que é necessário legitimar as novas formas familiares que, sem dúvida, implicam no estabelecimento de novos estatutos para as questões da parentalidade, que por sua vez perturbam a aplicabilidade da lei que pretende assegurar um nome de pai para todo cidadão. No extremo pode-se supor que poder-se-á chegar a impasses por falta ou desconhecimento radical, por motivos tecnológicos e razões legais, das questões relativas à parentalidade e suas nuances, que colocam sob suspeita a própria qualidade da lei.
Finalmente, cabe a reflexão por parte dos Legisladores, no sentido da propositura de políticas públicas mais adequadas, no sentido qualitativo, para a proteção às crianças e às mulheres vitimadas sexualmente.
Referências
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1 Psicanalista, Mestre e Doutor em Psicologia Social [IP-USP], Membro-associado da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle – SPID; Membro individual da International Federation of Psychoanalytic Societies - IFPS, Membro Fundador do Instituto Psicanálise Brasília - IPB; Professor do IESB.
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