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Vínculo

versión impresa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.16 no.2 São Paulo jul./dic. 2019

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v16n2p68-87 

Artigos

 

 

O paradoxo da inclusão: a relevância da escuta do sujeito nos CAPS

 

The paradox of inclusion: the relevance of listening the subject in the CAPS

 

El parado de la inclusión: la relevancia de la escucha del sujeto en los CAPS

 

 

Denner Rodrigues G. Santos1; Júlia Katarina N. dos Reis2; Angela Bucciano do Rosário3; Fuad Kyrillos Neto4

1 Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais

2 Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais

3 Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais

4 Universidade Federal de São João del-Rei

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O artigo tem por objetivo problematizar o trabalho realizado nos serviços substitutivos de saúde mental, enfatizando os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que se baseiam nos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Por intermédio de fragmentos de um relato do caso de uma jovem acompanhada pelo serviço, tomaremos a psicanálise como eixo condutor de nossa discussão e, como método de interlocução com a realidade encontrada no serviço, a psicanálise aplicada. Procederemos a uma discussão acerca da escuta do sujeito psicótico, seus impactos no trabalho da equipe, bem como as consequências da proposta de inclusão social, na construção do laço social dos usuários do serviço. Conclui-se que os princípios norteadores da luta antimanicomial, em especial a antinomia exclusão/inclusão, desconsideram a noção de sujeito no contexto da prática nos serviços substitutivos. Propõe-se que o trabalho em equipe, no manejo da clínica da psicose, considere a escuta clínica e a construção singular que cada sujeito encontra para lidar com o sofrimento.

Palavras-chave: CAPS, reforma psiquiátrica, psicanálise, saúde mental.


Abstract

The article aims to problematize the work performed in the substitutive services of mental health, emphasizing the Psychosocial Care Centers (CAPS), which are based on the precepts of the Psychiatric Reform. Through fragments of an account of the case of a young woman accompanied by the service, we will take psychoanalysis as the guiding axis of our discussion and, as a method of interlocution with the reality found in the service, applied psychoanalysis. We will discuss the listening of the psychotic subject, their impact on the work of the team, as well as the consequences of the social inclusion proposal, in the construction of the social bond of the users of the service. It is concluded that the guiding principles of anti-asylum control, especially the exclusion / inclusion antinomy, disregard the notion of subject in the context of practice in substitutive services. It is proposed that the teamwork, in the management of the psychosis clinic, consider the clinical listening and the singular construction that each subject find to deal with the suffering.

Palavras-chave: CAPS, psychiatric reform, psychoanalysis. mental health.


Resumen

El artículo tiene por objetivo problematizar el trabajo realizado en los servicios sustitutivos de salud mental, enfatizando los Centros de Atención Psicosocial (CAPS), que se basan en los preceptos de la Reforma Psiquiátrica. Por intermedio de fragmentos de un relato del caso de una joven acompañada por el servicio, tomaremos el psicoanálisis como eje conductor de nuestra discusión y, como método de interlocución con la realidad encontrada en el servicio, el psicoanálisis aplicado. Procederemos a una discusión acerca de la escucha del sujeto psicótico, sus impactos en el trabajo del equipo, así como las consecuencias de la propuesta de inclusión social, en la construcción del lazo social de los usuarios del servicio. Se concluye que los principios orientadores de la lucha antimanicomial, en particular la antinomia exclusión / inclusión, desconsideran la noción de sujeto en el contexto de la práctica en los servicios sustitutivos. Se propone que el trabajo en equipo, en el manejo de la clínica de la psicosis, considere la escucha clínica y la construcción singular que cada sujeto encuentra para lidiar con el sufrimiento.

Palabras clave: CAPS, reforma psiquiátrica, psicoanálisis, salud mental.


 

 

Introdução

Uma jovem usuária, saída recentemente do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para crianças e adolescentes e recém-ingressa no serviço de saúde mental adulto, foi vista, pela motorista do transporte do equipamento, sendo abordada por seguranças de uma loja de uma grande rede de departamento feminino ao sair do estabelecimento. Segundo a motorista, após sair com roupas da loja “sem pagar”, o alarme do estabelecimento tocou e ela foi barrada pelos seguranças. Com essa informação repassada para a equipe, concluiu-se que a usuária estivera praticando um furto na loja. Em reunião de passagem de plantão, a equipe acordou que deveriam esperá-la chegar ao serviço, trazida pela Polícia Militar, e que a família deveria ser avisada.

Uma profissional da psicologia tomou uma decisão pessoal, contrária à decisão dos profissionais plantonistas, de fazer contato com a loja para obter informações sobre o ocorrido. Nesse contato, ela foi informada de que não se tratava de furto, pois o alarme disparou aleatoriamente, fato corriqueiro no estabelecimento.

Abordaremos esse fragmento cotidiano do CAPS admitindo a pertinência das contribuições da Reforma Psiquiátrica para o tratamento dos usuários dos serviços de saúde mental. Porém, a concepção de sujeito e o tipo de laço social criado pela Reforma são, em nossa concepção, passíveis de críticas. Para fundamentarmos esse posicionamento, tomaremos a psicanálise como eixo condutor de nossa discussão, e como método de interlocução com a realidade encontrada no serviço, a psicanálise aplicada. Esse método de pesquisa é profícuo para nossa investigação, uma vez que coloca o pesquisador no lugar de analisante. Dessa forma, o material estudado será analisado como um conjunto de enunciados que, posteriormente, receberão a enunciação do analisante a partir de algumas características propostas por Dunker (2013): recordação, um discurso que se possa guiar pela história e pelas filiações e contingências que ela implica; implicação, um discurso que possa se interrogar eticamente sobre as formações de estranhamento que encontra; e transferência, um discurso que se articule em relação a uma suposição de saber e que tenha, dessa maneira, uma intenção de diálogo.

A situação vivida pela usuária nos possibilita a análise por esse viés metodológico. Passado o espanto que tivemos com o relato desse acontecimento, refletimos o quanto ele é emblemático das dificuldades vividas pelos serviços norteados pelos princípios da Reforma. Interessa-nos, no escopo deste manuscrito, amparados no fragmento do fato ocorrido com a usuária do CAPS, proceder a uma discussão acerca da escuta do sujeito psicótico, seus impactos no trabalho da equipe do serviço, bem como as consequências para o laço social produzido pelos usuários do serviço da proposta de inclusão social praticada pelos serviços de inspiração basagliana.

A Reforma Psiquiátrica é um processo social amplo, que almeja promover mudanças culturais na própria sociedade e no nível das po­líticas públicas. Ela propõe a reorientação do modelo assistencial em saúde mental, substituindo um sistema centrado no hospital por um sistema apto para responder às reais e diversificadas necessidades de tratamento e suporte de vidas acarretadas pela doença mental grave. Para atingir essa finalidade, ela aposta num sistema baseado em dispositivos comunitários, abertos e regionalizados, compondo, em seu conjunto, o que chamamos de rede de atenção in­tegral.

Porém, os serviços abertos de saúde mental vivenciam o impasse de exercer uma função de saúde pública sem desconsiderar a clínica singular (Tenório, 2007; Dunker e Kyrillos Neto, 2015; Figueiredo, 2005; Quinet, 2006). A clínica diz respeito ao caso tomado em sua singularidade, enquanto a saúde mental preocupa-se com as ações políticas e eticamente orientadas para as peculiaridades de certo grupo. Podemos afirmar que a prática clínica está em conexão com o discurso do analista. Nossa posição é a de que clínica e saúde mental sejam indissociáveis na prática dos trabalhadores de saúde mental. Considerar sujeito do direito e sujeito do inconsciente é o desafio colocado para os trabalhadores desses serviços.

Sabemos que os princípios norteadores da luta antimanicomial, em especial a antinomia exclusão/inclusão, acabam por desconsiderar a noção de clínica no contexto da prática nos serviços substitutivos. Isso porque, segundo Tenório (2002), a Reforma Psiquiátrica tem em sua origem o questionamento da clínica, apontando uma vertente que considera que uma prática efetivamente transformadora deve visar à superação do paradigma da clínica. Nos moldes propostos pela Psiquiatria Democrática italiana, que embasou teoricamente a Reforma Psiquiátrica brasileira, a inclusão social do paciente seria obtida por meio da negação da lógica manicomial (transformação institucional), de uma política compensatória de concessão de benefícios, da participação em movimentos sociais e do retorno ao universo de trabalho. Esse raciocínio opera com a ideia de “doença mental como negativo da razão e como desvio em relação a um padrão normal de subjetividade; a clínica impõe necessariamente ao louco um lugar de negatividade” (Tenório, 2002, p. 28).

Procuramos, a partir desse fragmento paradigmático do cotidiano de um CAPS, problematizar o trabalho realizado nos serviços substitutivos de saúde mental. Nesta discussão, adotamos uma vertente de trabalho que se preocupa com as práticas de cuidados dirigidas aos usuários. Para tanto, abordaremos o trabalho em equipe, que, no manejo da clínica da psicose, deve considerar a escuta clínica e a construção singular que cada sujeito encontra para lidar com o sofrimento. Eleger a clínica como norteadora do trabalho das equipes de saúde mental é reconhecer a especificidade dos sujeitos envolvidos e, ao mesmo tempo, inviabilizar possíveis tendências institucionais à segregação.

 

O trabalho da equipe e a escuta do sujeito psicótico

O trabalho em equipe multidisciplinar é essencial na concepção dos novos serviços de saúde mental, em especial nos CAPS, pois tem como objetivo oferecer suporte nas ações clínicas inovadoras que pretendem ir além do modelo de consultas, cujo modelo é calcado na hierarquia médica. Na psicose, o trabalho envolve a escuta atenta daquilo que o sujeito diz, o que jamais é passível de interpretação.

Na última seção do texto O inconsciente(1915/2010, p. 140), Freud afirma que a análise das neuroses narcísicas (psicoses) é uma forma excepcional de acesso ao inconsciente, já que, nesses casos, “na relação entre os dois sistemas se exprime conscientemente muita coisa que nas neuroses de transferência só podemos demonstrar que existem no Ics mediante a psicanálise”. A partir desse pressuposto, Freud assevera que a abordagem da esquizofrenia deve partir da constatação de que ela é marcada por um modo peculiar de relação com a linguagem.

 Freud (1915/2010) exemplifica suas afirmações com o caso de uma paciente esquizofrênica, que se queixava de que seus olhos estariam virados, fenômeno que ela explicava repreendendo seu namorado e chamando-o de hipócrita, um “virador de olhos”, que, nessa condição, de fato, virou seus olhos. Freud (1915/2010, p. 142), então, nos diz que, se fosse o caso de uma paciente histérica, ela “teria virado os olhos convulsivamente” e, depois, não teria pensamento consciente algum sobre isso. Então, ele conclui que o caráter estranho ao sintoma esquizofrênico é “a predominância da referência à palavra sobre a referência à coisa” (Freud, 1915/2010, p. 145) de modo que, na psicose, “o que determina o substituto é a uniformidade da expressão linguística, não a semelhança das coisas designadas” (Freud, 1915/2010, p. 145).

Nos anos 1950, Lacan discerniria, na via apresentada por Freud, uma possibilidade de se operar com a psicose. Em seu primeiro seminário, ele nos diz: “Quando o psicótico reconstrói o seu mundo, o que é que é inicialmente investido? Vocês vão ver em que via, inesperada, para muitos de vocês, isso nos engaja – são as palavras. Vocês não podem deixar de reconhecer aí a categoria do simbólico” (Lacan, 1953-1954/1985, p. 138).

Lacan ressalta uma distinção feita por Freud entre neurose e psicose. Na neurose, a libido é retirada dos objetos, mas conservada na fantasia, o que significa que o sujeito recorre às suas identificações formadoras como registro imaginário. No que concerne à psicose, a libido se volta unicamente para o eu, o que acarreta a perda da relação com o exterior e a impossibilidade do reencontro de uma substituição imaginária.

No seminário intitulado As psicoses, Lacan (1955-1956/1988) persevera na necessidade de se levar em consideração o registro do simbólico e suas implicações estruturantes, principalmente no que diz respeito ao manejo com a questão das psicoses. Para ele, a Verwerfung, traduzida por foraclusão, concerne à falta (irreparável) de um significante primordial de forma que esse mecanismo, ao acometer um significante, acaba por incidir também sobre toda a articulação simbólica. Nas palavras de Lacan (1955-1956/1988, p. 237), “se soubermos escutar, o delírio das psicoses alucinatórias crônicas manifesta uma relação muito específica do sujeito em relação ao conjunto do sistema da linguagem em suas diferentes ordens”.

O Nome-do-Pai seria a intervenção de um terceiro na relação dual e imaginária entre mãe e filho; um terceiro que se mostra irredutível ao registro imaginário e que, como tal, inaugura o simbólico.

 Pela peculiaridade do simbólico, as palavras do psicótico ganham a consistência de coisa em si. De acordo com Barreto (2017, p. 100), “trata-se de uma escuta analítica, que procura apreender a fala do psicótico não para atribuir-lhe sentido ou compreensão, mas para ‘tomar ao pé da letra o que ele nos conta’”. Por meio dessa escuta, devemos ajudar o paciente a construir soluções que o auxiliem a se organizar e estabilizar.

Essa escuta pode se dar por intermédio de uma demanda para acompanhamento de usuários que ainda estão em regime de tratamento pelos CAPS, seja no regime de permanência dia ou noite. Diversas vezes, integrantes da equipe são solicitados a acompanhar usuários em centros de saúde, centros de convivência, padarias, costureiras e outras atividades. Acreditamos na potencialidade desse trabalho, uma vez que não apenas é um momento em que o usuário tem uma atenção única e escuta separada dos demais usuários, mas também é uma reinserção dele no convívio coletivo. Guerra (2010) nos lembra de que, muitas vezes, os psicóticos traçam caminhos e saídas prescindindo da presença de um analista ou de um dispositivo institucional envolvendo diferentes mecanismos psíquicos no processo. A análise disso, contudo, é valiosa para pensarmos na direção do tratamento do sujeito em particular.

O que se recolhe de cada caso deve ser partilhado para se tecer um saber que pode ser efetivo a cada intervenção. A psicanálise nos ensina que o que se recolhe são os elementos fornecidos pelo sujeito, como pistas para a direção do tratamento, que em saúde mental designamos como projeto terapêutico. Essa urdidura é que nos mostra o caminho a seguir a cada caso, pois, constantemente, há retificações a fazer, dependendo do rumo do caso, a partir de novas indicações do sujeito. “Acompanhar o ‘autotratamento’ do psicótico, seja para prolongá-lo, seja para desviá-lo, convocaria o saber psicanalítico e o reformularia” (Guerra, 2010, p. 70).

Fazemos referência à possibilidade de crivar os significantes do sujeito recolhidos no um a um, de encurtar as narrativas e as situações a um denominador comum a esses significantes que insistem, fazendo função de significantes que representam o sujeito para avançar na construção de algo que possa sensibilizá-lo e acarretar algum efeito de suplência ou estabilização.

Esse trabalho coletivo é responsável pela direção do tratamento no CAPS desde que a equipe não enrijeça sua prática. Por vezes, a condução de tratamento objetaliza o sujeito, ditando regras e normas em favor de um modelo de socialização previamente instituído que não considera a singularidade do paciente, em que a equipe exerce, assim, um discurso de mestria. Ora, se “desalojar o sujeito do lugar de subordinação ao Outro e buscar tomá-lo como sujeito capaz de resposta foi a aposta legada por Lacan” (Guerra, 2010, p. 20), o trabalhador em saúde mental deve seguir o caminho traçado pelo psicótico para auxiliá-lo a fazer suplência daquilo que escorrega em sua tentativa de apropriação de um discurso. “Seja pela via imaginária, seja pela via simbólica, seja pela via real, orientar-se pelo estilo de construção de respostas de cada sujeito é o vetor que orienta a clínica das psicoses” (Guerra, 2010, p. 21).

Tomando o caso em tela, interessa-nos essa questão, pois a tentativa de adequar o sujeito aos protocolos adotados pelo serviço pode funcionar como um impedimento à escuta da singularidade.

O automatismo dos protocolos de intervenção que ditam o que fazer a priori, como, por exemplo, encaminhar para o psiquiatra para medicar ou desenhar o projeto terapêutico com determinadas atividades e frequência, funciona como uma espécie de anteparo ao real da clínica e oferece suporte para as ações, mas não é suficiente para o enfrentamento das situações cotidianas e para uma abordagem continuada de cada caso (Figueiredo, 2005, p. 45).

Sob esse aspecto, podemos afirmar que, quando o psicótico não encontra alguma possibilidade de escuta que permita a constituição de uma metáfora delirante, seu trabalho psíquico torna-se empobrecido. “A pobreza da metáfora constituída nestes casos é um mal menor, comparada com os casos nos quais a única resposta terapêutica à crise é a inibição do delírio e o abandono. Pois aqui, o que se instaura é uma permanência do crepúsculo que se traveste de demência” (Calligaris, 1989, p. 70).

Os protocolos automáticos de atendimento, muitas vezes colocados em prática pelas equipes, incorrem no risco de buscar a conformidade do psicótico com os ideais fálicos elementares presentes na vida social. A tentativa de adequar o usuário aos ideais da instituição oblitera a escuta e tem consequências no encaminhamento do tratamento. Nas palavras de Calligaris (1989, p. 70-71): “Isso acontece quando o terapeuta explicita a sua paixão normalizante até o ponto que a conformidade com ela apareça ao sujeito como o preço necessário para negociar uma filiação ao terapeuta da qual espera uma significação”.

Ao tentar normalizar e adequar o usuário aos costumes institucionais e sociais, o trabalhador da saúde mental ignora a forma peculiar como o psicótico se relaciona com a linguagem. “Foi a partir da constatação da diferença na linguagem e na forma de os psicóticos se posicionarem na vida e no laço transferencial que Lacan pôde discernir, nomear e articular com a clínica os vários caminhos percorridos por eles em sua estabilização (Guerra, 2010, p. 9).

Ou seja, a direção de tratamento na psicose deve ser estabelecida pelo próprio psicótico em sua singularidade. Daí, a importância de o analista adotar a posição de aprendiz, de secretário do alienado, sendo imprescindível uma escuta atenta que não tenha por objetivo enquadrar o sujeito na norma fálica – visto que na psicose há a foraclusão do significante paterno –, mas de se dispor ao paciente como alvo de endereçamento da sua fala, possibilitando que, nesse vínculo, ainda que momentâneo, advenha um sujeito. “Lacan enfatiza que o analista não deve recuar diante das possibilidades de tratamento, apresentando ao analista a posição de secretário do alienado, responsável pelo acolhimento e destino da fala do sujeito psicótico em sua peculiar relação com a linguagem” (Monteiroet al., 2016, p. 191).

Retomando o caso citado anteriormente, a paciente em questão dava constantes sinais de organização e limites quanto a regras externas, em alguns momentos relatando seus objetivos a serem conquistados pós-alta. Entendemos que, para ela, mostrar-se capaz de se submeter a regras externas era uma forma de se afirmar em seu papel de cidadã comum, sem estereótipos. Portanto, a equivocada suposição de roubo, por parte da equipe, poderia levá-la a uma desestabilização da forma que ela havia construído para se ressignificar socialmente.

 

O saber do mestre e a escuta nas instituições

Ramminger (2001) fez uma crítica importante ao modo de operação assistencialista dos profissionais de psicologia, e demais outros que atuam nas políticas públicas, quando o olhar é voltado para comunidades carentes e indivíduos em situação de miséria e exclusão, crítica que consideramos bastante adequada ao contexto do trabalho em saúde mental. Remminger (2001) afirma que o lugar do psicólogo em ambientes institucionais é um lugar de escuta, que, por sinal, continua vago, à espera de ser ocupado. O “miserável” – ou, em nosso caso, o “louco” – é colocado por esses profissionais numa posição social em que precisa ser salvo, salvo da bebida, da desorganização, de seus delírios, da fome e da morte. Não só salvo, mas merecedor do perdão daqueles com mentalidade sã, que acabam se deliciando com toda a sua “bondade” e “solidariedade”.

Desqualificamos e impomos nossos valores, transformando-os de usuários em assistidos. Nos esquecemos que, com isso, despotencializamos esta mesma população que dizemos querer libertar. Impedimos que tomem seu próprio rumo. Talvez por não aceitar a diferença de suas escolhas, talvez para que continuem sob nossos olhares penalizados, sob nosso controle (Ramminger, 2001, p. 45).

Aqueles que trabalham numa rede assistencial lutam para não deixar ninguém desamparado e buscam suprir as necessidades alheias (e as próprias) tapando os buracos e as faltas, e tentando encobrir o real que permeia esses serviços. Dessa forma, o tratamento que a equipe de profissionais estipula para os usuários acaba sendo feito, na maioria das vezes, segundo seus próprios ideais.

No discurso do mestre (S1/$), o governo parece se instaurar a partir de leis, projetos e sociedades, programas etc. representados no matema (fórmula) por S1. Mas, na verdade, o que é escamoteado é que há sempre sujeitos ($) sustentando esse governar, essa dominação que é imposta ou aplicada aos outros sujeitos que devem cumprir as ordens; eles devem saber fazer, saber obedecer e saber produzir (Quinet, 2006, p. 33).

Lacan (1969-1970/1992, p. 21), ao explicar sobre como se produz o discurso do mestre, diz que “um verdadeiro senhor não deseja saber absolutamente nada”, mas que deseja apenas que as coisas andem.

Faz-se-lhe perguntas, perguntas de senhor, de mestre, obviamente, e o escravo responde com naturalidade às perguntas o que as perguntas já ditam como respostas. Acha-se aí uma forma de derrisão. [...] a finalidade é mostrar que o escravo sabe, mas, ao confessar isto apenas por esse viés de derrisão, o que se oculta é que trata-se exclusivamente de arrebatar do escravo a sua função no plano do saber (Lacan, 1969-1970/1992, p. 19-20).

O discurso do mestre empregado nas instituições que deveriam dar atenção psicossocial àqueles que frequentam esse espaço exclui a escuta clínica, sendo essa a principal forma de conhecer as necessidades e capacidades do usuário e de tentar criar, em conjunto com ele, algum laço social. Aos usuários, são dados alimentação, medicação e planos de intervenção, mas nunca se pergunta a eles do que precisam.

De acordo com Ramminger (2001, p. 44), “A imensa frustração e sensação de impotência que acometem os técnicos que trabalham com este tipo de população estão diretamente ligadas com esta inversão da demanda”. Ou seja, o profissional faz equivalência de seu desejo à necessidade dos outros. Então, não consegue entender por que o usuário não se aproveita dos serviços disponíveis como deveria, atribuindo a isso explicações que, novamente, partem apenas de seu ponto de vista.

Considerando a constituição psicanalítica de sujeito, compreendemos que o sujeito surge à medida que se encontra com o campo da linguagem que o insere no social. Haverá um Outro a quem ele endereçará a linguagem. Logo, para haver um sujeito, há de se haver um Outro. Elia (2010) assevera que o significado dado ao encontro com o Outro dependerá do significante e que, embora seja dele subsidiário, não é por ele totalmente determinado. Exige-se, dessa forma, o trabalho de significação, que é feito pelo sujeito. Assim, afirma o autor, “É no encontro mesmo que sujeito e Outro passam a existir como tais” (Elia, 2010, p. 42).

O CAPS, para muitos indivíduos, se torna não apenas a referência de tratamento para o sofrimento mental, mas o local para socializar e sentir-se pertencente a um grupo. Enquanto instituição, acaba por ocupar o lugar do Outro para aquele sujeito. Alguns ingressam no serviço ainda crianças ou jovens e seguem nele ao longo da vida, tornando o laço com a instituição ainda mais forte.

A saída do asilo e a inclusão do sujeito da psicose na sociedade não é simples – nem para os outros e nem para ele. Por um lado, deve-se respeitar a singularidade especial desses sujeitos, que por vezes inventam sintomas bem especiais para lidar com esse ‘de fora’. Por outro lado, solicitam-lhes tanto a saída de um lugar que os mantinha ao abrigo das amarguras do mundo quanto a convivência com esse Outro social muitas vezes hostil e ameaçador (Quinet, 2006, p. 48).

Pensando nisso, o lugar que o técnico ocupa nesse serviço deve servir como um facilitador da construção que o sujeito psicótico faz de si na relação com o social. Nesse contexto, é essencial uma escuta que possa proporcionar ao psicótico uma construção capaz de articular a lógica delirante e sua relação com o serviço, com o qual suas relações podem ser ambíguas. Tal ambiguidade refere-se à possibilidade de um atravessamento pela identificação total com o serviço ou de o serviço ser colocado na condição de perseguidor. Assim, torna-se imprescindível atentar-se para o lugar que o serviço ocupa para o sujeito naquele momento.

Percebemos, porém, que há uma prática de exclusão da clínica da escuta advinda da proposta de antimodelo manicomial, que se deu a partir da proposta basagliana de uma nova forma de intervenção na psicose. Devemos pensar na clínica não como mecanismo de exclusão da lógica social a que o sujeito pertence, mas numa concepção de espaço para que o sujeito crie seus significantes (Dunker; Kyrillos Neto, 2015).

Havemos de considerar que o sujeito precisa do espaço de fala independentemente de sua condição clínica. Todavia, tendo em vista o contexto de estranheza que permeia a psicose, torna-se mais necessário auxiliar esse sujeito no seu processo de organização. O dito que não é realmente escutado permanece sem sentido tanto para quem diz quanto para quem o ouve.

Como respeitar a singularidade do sujeito e ao mesmo tempo responsabilizá-lo e fazê-lo incluir-se na sociedade? [...] como propiciar a inclusão do psicótico no campo social sem tentar adaptá-lo a um sistema que impõe que todos marchem com o mesmo passo sob o apito do capital? [...] É toda a sociedade, a começar pela família, que é convocada a participar desse debate, pois não há ninguém que não esteja concernido pela loucura, não só a do outro, como também a sua própria (Quinet, 2006, p. 48).

Ao receber um relato de roubo cometido pela jovem e torná-lo a única verdade possível sobre o caso, há, por parte dos técnicos, uma prática pautada no discurso do mestre, que invalida a possibilidade de respostas diferentes das quais a instituição, a priori, considerou possíveis para aquele sujeito, como se daquela paciente não pudesse surgir uma resposta diferente senão a conduta social inadequada.

 

A segregação como efeito do imperativo da inclusão

O texto freudiano O estranho (1919/1996) pode nos auxiliar na compreensão da ambiguidade presente no termo Unheimlich (estranho). Segundo Freud (1919/1996, p. 238), “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Traz, portanto, a marca da ambiguidade, pois produz um efeito, o Heimlich,já que comporta em si algo de familiar. Freud (1919/1996) associa o conceito de estranho ao fenômeno do duplo. Afirma que o duplo, embora nos pareça algo de estranho a nós mesmos, sempre nos acompanhou desde os primórdios do funcionamento psíquico. Ele está sempre pronto a ressurgir e provocar a sensação de estranheza.

A aproximação entre o estranho e o recalque, assim como demonstrou Freud (1919/1996), diz respeito ao fato de que o estranho não é nada novo ou alheio, mas familiar e há muito estabelecido no psiquismo, e que somente se alienou pelo processo do recalcamento. Ou seja, algo que deveria ter permanecido oculto, secreto, veio à luz. Partindo desse conceito, podemos tomar a ideia de segregação, de um ponto de vista psicanalítico, como via de tratar o insuportável.

Ao entendermos, em consonância com Elia (2012, p. 63), a segregação como um “ato fundado no real do próximo que não permite que este se constitua, no plano do imaginário, como um semelhante”, é possível aproximar o fragmento trazido à ideia de que o resultado da segregação é o ato de estabelecer com o usuário do serviço de saúde mental uma visão reducionista, eliminando, assim, a condição de sujeito. Isso só se torna possível quando a escuta da singularidade é obnubilada pelos protocolos universais.

No fragmento em análise, o fato de a equipe aguardar a chegada da usuária pela polícia e o ato de comunicar a família sobre o ocorrido, sem ao menos escutar do sujeito o que aconteceu ou buscar outras informações, denotam as dificuldades vividas nos serviços norteados pelos princípios da Reforma. Viganò (1999), ao se remeter a um exemplo dado por Laing, em que, se em uma orquestra for introduzido um músico que, em vez de tocar, produz rumores estranhos, pergunta: quando esse músico será excluído da orquestra? Quando for expulso ou quando também a orquestra começar a fazer rumores? Apoiado nos ensinamentos de Lacan de que o psicótico é um sujeito estruturado, ainda que se encontre fora do discurso social, não discutir com ele, ou não falar com ele é uma forma de exclusão. Mas estar com ele sem o discurso é uma forma de exclusão e de segregação. Nesse aspecto, Viganò (1999, p. 51), adverte que “[...] a segregação que se pode criar com a abertura dos manicômios é criar outros lugares onde se faz barulho sem falar. A abertura dos manicômios não exclui a segregação”.

Conforme nos lembram Figueiredo e Tenório (2002, p. 31), ao deslocar a loucura do registro do erro, Freud propõe uma forma particular de o sujeito dizer a verdade: “[...] Freud cria, assim, as condições para que se venha a reconhecer no louco o estatuto de um sujeito cuja fala tem positividade”.

Lerner (2006) discute, em artigo sobre uma pesquisa realizada em um CAPS da cidade de São Paulo, a forma contratransferencial de relacionamento com os usuários, que, por vezes, permeia o lugar que é ocupado pelos técnicos, qual seja, aqueles que sabem mais do que o usuário, que acaba sendo colocado no lugar do incapaz:

O dispositivo discursivo institucional levava agentes a destacar incapacidades, e atribuir aos pacientes o lugar de insuficientes. Entretanto, ao tentar compensar tal insuficiência, os agentes faziam algo pelo paciente¸ mantendo intocado o dispositivo discursivo institucional por não terem condições de se dar conta do mesmo (Lerner, 2006, p. 23, grifo do autor).

Assim, a clínica das psicoses preconiza a importância do manejo transferencial diante do sujeito, bem como o lugar do analista como secretário do alienado. Operar a clínica no lugar de secretariado só é possível se o analista se destitui de sua posição de sujeito e passa a ocupar a posição de testemunha daquilo que é trazido pelo sujeito. Isso porque, segundo Soler (2007), o sujeito psicótico elabora saídas para os fenômenos dos quais padecem; ou seja, constrói soluções para tratar os “retornos no real”.

Na teorização lacaniana elaborada a partir do caso paradigmático de Schreber (Lacan, 1957-1958/1998), a metáfora delirante se constrói como tentativa de substituir a metáfora do Nome-do-Pai inoperante no psicótico. A solução encontrada seria a construção de uma metáfora de suplência; isto é, a elaboração de uma ficção edipiana, que levaria o sujeito à estabilização.

Assim, o secretariado implica em não contrariar o sujeito em seu deciframento, oferecendo o apoio, na condição de secretário, na condução da cura, seja esta viabilizada pela construção da metáfora delirante, tentativa de cura.

Enquanto na neurose espera-se um investimento do sujeito nos objetos externos, na psicose o manejo deve seguir a via do apaziguamento do real. Isso porque o psicótico efetua um superinvestimento nas representações das palavras como forma de suprir a precariedade simbólica, fazendo com que as palavras sejam tomadas como coisas, tornando-as reais. “Na psicose, de forma geral, toda tentativa de cura é uma tentativa de inserção no laço social, inclusão em algum discurso” (Quinet, 2006, p. 42). Dessa maneira, é a partir da escuta que podemos assessorar o sujeito psicótico na construção de soluções que o auxiliem a se organizar e se estabilizar: “[...] devemos seguir os caminhos que o próprio sujeito encontra para tratar daquilo que escapa em sua condição de ser falante” (Guerra, 2010, p. 25).

 

Considerações finais

Após este percurso, concluímos que não basta a imersão em um sistema simbólico do qual a retórica da exclusão seria uma das estratégias e a oferta de significantes-mestres um efeito. É preciso considerar ainda o ato contingente de apropriação singular realizado pelo sujeito (Dunker; Kyrillos Neto, 2015). É nessa operação que a escuta clínica parece ser fundamental, pois ela permite que o sujeito se situe no laço social com suas peculiaridades.

O caso discutido nos mostra a necessidade de pensarmos a importância da inclusão de uma proposta clínica no cotidiano de funcionamento dos CAPS. Essa proposta deveria considerar a inclusão do sintoma, o acolhimento e a escuta da singularidade do sujeito e a consideração da foraclusão como marca indelével da diferença do psicótico (Quinet, 2006). Ou seja, os profissionais de saúde mental devem respeitar os fenômenos elementares apresentados pelos sujeitos psicóticos não como um transtorno à norma, mas como o retorno do que foi foracluído.

Assim, podemos afirmar que fazer clínica nas instituições de saúde mental é responder às exigências da saúde pública, mantendo o reconhecimento de que existe uma especificidade na condição dos usuários encaminhados para os serviços substitutivos. Operar dessa maneira, diz-nos Tenório (2007), é situar a ética da inclusão; isto é, comprometer-se com um trabalho que almeje uma reabilitação realmente inclusiva e se funda na aposta da emergência das singularidades.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência

Denner Rodrigues G. Santos
E-mail: denner.grs@gmail.com

Júlia Katarina N. dos Reis
E-mail: juliakneves@outlook.com

Angela Bucciano do Rosário
E-mail: angelabucciano@gmail.com

Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br

 

 

1 Denner Rodrigues G. Santos. Estudante de graduação do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais (PUC-Minas).

2 Júlia Katarina N. dos Reis. Estudante de graduação do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais (PUC-Minas).

3 Angela Bucciano do Rosário. Doutora em Psicologia pela PUC-Minas. Docente do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais (PUC-Minas).

4 Fuad Kyrillos Neto. Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

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