Introdução
A partir de 1990 mudanças significativas aconteceram nas políticas de saúde mental, caracterizadas pela reestruturação da assistência psiquiátrica (Kinker, 2017). É perante esse contexto que surgiram os chamados Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), onde são oferecidos serviços de atenção diária em saúde mental. Presentes dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), esses espaços têm por objetivo atender pessoas com algum diagnóstico psiquiátrico, geralmente grave e persistente, trabalhado sob a lógica da territorialidade (Mielke et al., 2007).
Esse resgate histórico é importante para destacar as mudanças que ocorreram ao longo do tempo dentro do âmbito da saúde mental, principalmente com relação às circunstâncias da pandemia de Covid-19. Medidas de distanciamento social foram implementadas com o objetivo de evitar propagação e contaminação do vírus (Faro et al, 2020). Como os impactos se tornaram severos na saúde da população, os profissionais de saúde mental viram a necessidade de dar continuidade ao auxílio e acolhimento à comunidade (Faro et al., 2020; Serafim et al, 2021). Contudo, de que maneira esse trabalho seria viável com as restrições dificultando o contato presencial?
Em março de 2020, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou a Resolução nº 4, de 26 de março de 2020, flexibilizando sua Regulamentação e permitindo a realização de serviços psicológicos por meio das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) durante a pandemia da Covid-19. Como uma maneira de dar continuidade aos tratamentos de forma remota, o psicólogo teve autorização para realizar os serviços online por meio de seu cadastrado na plataforma E-psi com seu respectivo Conselho Regional de Psicologia (CRP) (CFP, 2020).
Por meio disso, a RAPS se reorganizou, utilizando a tecnologia como uma aliada para a manutenção dos acompanhamentos psicológicos (Viana, 2020). A realização de telefonemas e criação de grupos no aplicativo WhatsApp, se tornaram indispensáveis para os profissionais do CAPS, possibilitando um novo meio de comunicação com os usuários do serviço. Essa via foi uma forma de verificar o estado do usuário, assegurando a continuidade do tratamento (Lopes et al., 2021).
O CAPS também se ajustou às plataformas de videoconferências, trazendo uma nova realidade ao lidar com sofrimento psíquico. Além de realizar os atendimentos psicológicos remotos, as atividades das oficinas e dos grupos terapêuticos também se mostraram promissoras dentro desse novo formato, possibilitando aos participantes aprimoramento de suas relações sociais e capacidade de lidar com o sofrimento, atendendo tal necessidade como já preconizado por Benevides, Pinto, Cavalcante e Jorge (2010).
Grupos operativos em serviços de saúde mental
A partir de um breve resgate da teoria, os Grupos Operativos estruturados pelo psiquiatra Enrique Pichon-Rivière, são grupos centrados na tarefa. Esses procuram alcançar uma comunicação ativa e criadora, possibilitando uma aprendizagem aos integrantes (Pichon-Rivière, 2005a). O Grupo Operativo busca se centralizar em tarefas para a mobilização de ansiedades básicas e estereotipias, procurando por meio delas melhorar a condição psíquica dos participantes envolvidos (Castanho, 2017). As atividades são concentradas no “aqui e agora”, com a coordenação favorecendo um vínculo transferencial entre o grupo e a tarefa (Pichon-Rivière, 2005b).
Dentro dessa dinâmica, o processo grupal possui diferentes momentos. Primeiramente ocorre a pré-tarefa, na qual ocorre conflitos e resistência por parte dos integrantes, percorrendo por períodos habituais de estereótipos. Em seguida ocorre a tarefa que, conforme a finalidade do grupo, envolve trocas entre os participantes, produzindo mudanças na forma de pensar, sentir e agir (Pichon-Rivière, 2005a). Os participantes possuem diferentes funções ao estarem vivenciando o grupo, como o de porta-voz, que é quem enuncia ao grupo palavras ou ações, sentidas como próprias, conforme sua história pessoal, indicando certa verticalidade da experiência. De modo horizontal, diz também sobre o compartilhamento de um denominador comum. Todo este processo encontra-se de forma implícita, precisando ser assinalado e interpretado pelo próprio grupo, de modo que as tais fantasias possam ser reconhecidas e elaboradas (Pichon-Rivière, 2005a).
Dentro do grupo há a finalidade de realizar uma tarefa explícita, que é combinada de forma consciente com todo o grupo, bem como a tarefa implícita, implicando elaboração psíquica (Bastos, 2010; Castanho, 2017). Como o grupo possui suas próprias fantasias inconscientes, as projeções se tornam presentes nesse momento (Pichon-Rivière, 2005a). As projeções são trazidas a partir do seu esquema referencial e conceitual (ECRO), internalizado e carregado ao grupo, consciente ou inconscientemente (Bleger, 1993). Em complemento, como postulado por Pichon-Rivière, “o grupo deve configurar um esquema conceitual, referencial e operativo de caráter dialético, no qual as principais contradições que se referem ao campo de trabalho devem ser resolvidas durante a própria tarefa do grupo” (Pichon-Rivière, 2005a, p. 130).
Assim, o Grupo Operativo busca o protagonismo de seus integrantes por meio de um pensamento criativo provedor de mudanças, atingidos por meio das trocas entre os participantes no grupo. O vínculo destes com os profissionais de saúde mental é importante para a livre expressão dos sujeitos, facilitando a promoção de mudanças. Os relacionamentos interpessoais são facilitados pela conduta ética das coordenadoras, apresentando uma postura de acolhimento, aceitação e confiança, dando abertura aos usuários para a comunicação (Amorim & Abreu, 2020). Além disso, tendo um papel de Co-pensador, realiza a assinalação sobre o que está explícito no grupo, e interpreta o que está implícito. Ele facilita e articula os diálogos entre os integrantes, direcionando-os para a realização da tarefa.
Dito isto, ao observarmos a técnica de Grupo Operativo produzida durante o século XX, notamos que a contemporaneidade trouxe novos desafios para os profissionais de saúde mental. Com a realidade do século XXI se divergindo da época em que Pichon-Rivière formulou a teoria, os profissionais do CAPS notaram a necessidade de ajustar o Grupo Operativo ao formato online para dar continuidade aos cuidados, não deixando de lado os conceitos postos pelo psicanalista. Assim, devido às poucas pesquisas e investigações empíricas no âmbito dos grupos terapêuticos online, o seguinte relato de experiência tem o intuito de compartilhar e discutir as vivências com os usuários do CAPS no Grupo Operativo remoto durante a pandemia de COVID-19. Como uma forma de contribuição de estudos ao redor da temática, o artigo proporciona enriquecimento de reflexões acerca da modalidade online sobre o cuidado em saúde mental em um contexto histórico até então nunca visto.
Embora toda a gama de conhecimentos que este estudo possa acrescentar, deve-se considerar a limitação de tal relato de experiência ter sido realizado em apenas um CAPS, porém ele não desqualifica a possibilidade de maior aprofundamento qualitativo em torno das experiências vivenciadas em grupo.
Metodologia
O presente relato de experiência possui caráter descritivo, com os registros dos encontros realizados em diários de campo escritos individualmente por três graduandas de Psicologia, de uma Universidade do interior de Minas Gerais. Buscou-se observar e descrever as práticas realizadas no Grupo Operativo na modalidade online, com a equipe multiprofissional do CAPS administrando os encontros. Quanto à equipe, contou-se com a presença de duas coordenadoras, sendo uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional. Contou-se ainda com a presença de uma segunda psicóloga, responsável pelo registro dos encontros, com o papel de observadora. As estagiárias presentes tiveram o intuito de observar e coordenar alguns encontros nos dias combinados com a equipe técnica, com as profissionais direcionando as discentes dentro desse papel.
Com o objetivo de estimular e desenvolver habilidades, as profissionais realizaram atividades para suprir as necessidades e demandas dos sujeitos, facilitando sua integração. Por meio de temáticas aplicadas a cada encontro, buscou-se contextualizar os usuários para a realidade, visando inclusão no processo. Os encontros foram realizados através da plataforma Google Meet durante o período de maio a julho de 2021, às quartas-feiras, com duração de sessenta a noventa minutos. As profissionais e demais estagiárias realizaram supervisões semanais subsequentes aos encontros, com o objetivo de discutir o processo grupal, elaborar hipóteses e construir novas atividades e temáticas. Os convites para a participação foram enviados por meio do aplicativo WhatsApp, sendo aberta a qualquer usuário do CAPS, com livre permanência. Assim, a quantidade de participantes variou entre três a onze pessoas, com dez encontros no total.
Os três primeiros encontros foram feitos ao redor da discussão da temática da luta antimanicomial, o quarto e o quinto trataram sobre emoções, o sexto sobre relacionamentos afetivos e o sétimo retomou os temas anteriores por meio do recurso de produções audiovisuais, com o contexto geral do “Dia do Cinema Brasileiro”. Os encontros subsequentes focaram na festa junina, os patrimônios culturais da cidade; e o décimo e último, como fechamento, retornou à trajetória feita ao longo dos encontros, tentando questionar os participantes sobre suas opiniões quanto à realização dos grupos na modalidade online.
Num primeiro momento, os usuários eram acolhidos pelas coordenadoras para posteriormente as estagiárias e os usuários se apresentarem, com o intuito de fortalecer o vínculo. Por meio da realização de atividades definidas previamente, o Grupo Operativo possibilitou um lugar de reflexão aos sujeitos, com as coordenadoras buscando proporcionar a comunicação dos usuários perante os temas e tarefas propostas. Sendo um momento de fala e escuta, os usuários realizaram trocas afetivas e sociais, cada um com seu momento de se expressar e ter autonomia na realização da atividade, tal como destacado por Nascimento & Galindo (2017). O referencial teórico deste trabalho foi baseado na Psicanálise e na teoria de Grupos Operativos de Pichon-Rivière.
Resultados e Discussão
Para melhor compreensão e discussão, dois eixos foram apresentados para o aprofundamento da temática do grupo operativo, buscando: 1) refletir sobre as peculiaridades da modalidade online; e 2) dialogar sobre o grupo operativo remoto dentro do CAPS.
Peculiaridades da modalidade online
Os encontros na modalidade online foram realizados por meio de contrato, ou seja, a apresentação das regras básicas do grupo, onde as coordenadoras explicavam o funcionamento dos encontros, esclarecendo sobre a necessidade de desativarem o áudio enquanto não estivessem falando, para melhorar a compreensão e interação entre os usuários e demais participantes. Isso possibilita limites e senso de realidades a cada participante, como é mostrado por Sousa et al. (2021). Os participantes começaram a respeitar o momento de comunicação, tornando as propostas do grupo mais fluidas.
As atividades virtuais se mostraram bastante desafiadoras, especialmente em relação ao manejo da tecnologia. Ruídos ao fundo, conexões instáveis na rede e falas simultâneas também foram outros fatores observados. Por isso, nos primeiros encontros, foi necessário o auxílio das coordenadoras na introdução dos usuários à plataforma Google Meet, ajudando-os na adaptação à nova modalidade de atendimento, já que a plataforma era novidade para muitos.
Durante a apresentação do contrato, também foi dialogado sobre questões de confidencialidade de comunicação, como uma forma de cuidado essencial ao tratar de questões singulares e privativas dos participantes. Em um ambiente virtual não há um espaço externo e, assim, o controle em relação ao ambiente físico deixa de existir, sem poder garantir a privacidade do ambiente de todos os participantes (Weinberg, 2020). Quanto ao setting, destacou-se que nas atividades do Grupo Operativo online alguns usuários mantiveram as câmeras desligadas durante os encontros, sem mostrar seus espaços individuais. Por acessarem os grupos em suas próprias casas, ou ainda em espaços públicos, uma brecha para a quebra do sigilo sempre se abria, com novas pessoas se envolvendo na dinâmica grupal, interferindo no processo.
Durante os primeiros encontros, um caso chamou atenção. Um usuário que se mantinha perto de seus familiares, realizando conversas paralelas, sem se manter atento às atividades do grupo. Mesmo com o microfone desativado, pela câmera foi possível notar seus movimentos pela casa, com o participante mostrando a tela do computador para os familiares, quebrando o sigilo ao ter a privacidade exposta dos outros participantes. Longe de ser um caso isolado, os familiares tiveram grande presença durante o grupo, com muitos realizando o papel de auxiliar e/ou supervisor do sujeito, tendo esse espaço de cuidador contínuo. Rocha, Paula & Castro (2021) abordam como o vínculo familiar se torna importante durante o tratamento, com o sofrimento psíquico deixando de ser individual para se tornar coletivo. Em outra ocasião, destacou-se a relação de grande dependência que uma participante psicótica direcionava à figura materna. Diante de qualquer necessidade, como acessar o Google Meet para participar do encontro ou pegar os materiais necessários para executar as atividades, ela sempre solicitava o amparo da mãe. Mantinha-se quieta, com dificuldade em se expressar subjetivamente, sendo a mãe mediadora de suas expressões, deixando parecer certo aspecto de pouca autonomia e infantilização na relação da usuária com o outro, deslocando-a de sua autonomia. Neves e Omena (2016) e Rocha e Silva (2013) destacam sobre a interferência que o meio familiar realiza na vida do psicótico, influenciando na estrutura desse sujeito, fazendo com que a pessoa se torne uma criação a partir das impressões do outro, sendo depositária de todas ansiedades e tensões daquele núcleo.
Ainda, a participante, a partir desse cenário, manteve uma posição subjugada à mãe, que falava e demandava pela mesma. As profissionais tentaram convidá-la para um papel mais ativo dentro do grupo, estimulando a se comunicar sem a dependência do outro, tendo sido possível em alguns momentos, mesmo com sua comunicação estando direcionada à psicóloga coordenadora do grupo, a única que ela mantinha confiança e um vínculo fortalecido para se expressar. Nesse sentido, a participação constante da família durante os encontros se caracteriza como uma particularidade da modalidade remota.
Outra particularidade observada foi a limitação dos recursos utilizados. As coordenadoras tiveram que se ajustar, realizando atividades que fossem possíveis de serem feitas à distância. Assim, foi proposto o uso de materiais de fácil acesso aos usuários, como papéis e revistas para a confecção de desenhos, elaboração de colagens e atividades de escrita. Houve também a elaboração de jogos de perguntas e respostas, e a apresentação de vídeos e filmes. As atividades foram realizadas de modo individual, o que promoveu reflexão, mas que não contribuiu para a cooperação e construção conjunta, principalmente com a modalidade online restringindo a interação contínua entre os participantes e profissionais. A perda do contato humano, principalmente a falta de comunicação visual, afeta o trabalho das psicólogas (Weinberg, 2020). No modo presencial, o grupo era feito com corpos inteiros, em um único espaço físico. Virtualmente não foi possível ver o corpo dos participantes, o que fazia obstáculo à observação da linguagem não-verbal, fato que poderia auxiliar na transferência grupal e nas interações vinculares por meio da comunicação não verbal. Desse modo, as habilidades utilizadas pelas psicólogas no manejo dos encontros foram fundamentais para mediar o funcionamento das relações, sendo o tom de voz uma das maiores ferramentas de uso no modo remoto.
É por meio da transferência que os sujeitos realizam projeções de questões reprimidas, tornando-as parte do consciente, com a psicóloga reconhecendo as emoções, ansiedades, fantasias inconscientes e defesas presentes nesses sujeitos por meio das relações vinculares (Barbeiro, 2020; Fernandes, 2021). Alguns pesquisadores (Simpson & Reid, 2014) sugerem que a tecnologia é um dificultador nas interações vinculares e relações terapêuticas. Entretanto, em outro caso, Barbeiro (2020) pontua que um vínculo estabelecido presencialmente pode ser mediado pelas tecnologias, com os vínculos se constituindo remotamente. Fato que se confirmou pelos encontros realizados, sendo possível perceber que o vínculo tal qual descrito, se manteve presente.
Além dos participantes se sentirem acolhidos, os grupos possibilitaram aos usuários uma estabilidade na rotina, considerando o compromisso que tiveram com os encontros. Muitos afirmaram que esses momentos se mostraram como uma forma reconfortante, sendo o grupo uma maneira de fazer companhia para eles no momento pandêmico. Mesmo em distanciamento social, o grupo possibilitou aos usuários a manutenção de um contato remoto, o que se mostrou como uma forma de consolidar a ligação entre eles. Ao longo dos encontros eles começaram a se comunicar de forma mais frequente, demonstrando certa empatia pelos outros participantes. Quando um usuário não comparecia a um dos encontros, os participantes se mostravam preocupados, questionando os motivos de sua ausência. Havia um sentimento de identificação e pertença, sendo possível notar a formação de vínculo no grupo.
Esse vínculo começou a aproximar os participantes, criando alguns subgrupos durante os encontros. Os usuários começaram a realizar conversas paralelas, dialogando entre si, enquanto aguardavam os demais entrarem, o que fortaleceu o vínculo grupal, possibilitando maior implicação dos usuários do serviço na realização das tarefas propostas. Assim, cabe especial destaque de tal movimento grupal ao acolhimento de um participante que apresentava distúrbio de fala. No início dos encontros apresentava menor capacidade de se comunicar com os demais, apenas respondendo quando solicitado pelas coordenadoras. Com o decorrer das atividades ele passou a se mostrar mais aberto, dialogando com os participantes de maneira espontânea e contínua. Tal efeito sobre seu processo de interação foi claramente atribuído ao estabelecimento do vínculo com o Grupo Operativo, se tornando um facilitador nas trocas afetivas.
Apesar dos desafios e limitações, o formato remoto demonstrou ser viável em questões de real necessidade. Tal forma de intervenção provém possibilidades de tratamento ao usuário, embora encontre certa limitação quanto à linguagem não verbal como meio de interação e expressão, restando privilegiada a expressão pela linguagem verbal. Ademais, os familiares podem intervir na performance do usuário, o que interfere no uso do Grupo Operativo como um dispositivo de aprendizagem para a promoção da saúde dos sujeitos (Castanho, 2012).
O Grupo Operativo com usuários do CAPS
Durante a vivência, as profissionais relataram que anteriormente à transição para o modo online, havia a necessidade de acrescentar temáticas para objetivar o grupo e conter as dificuldades dos usuários. Todavia, como observado na teoria de Pichon-Rivière, dentro do Grupo Operativo, os objetivos almejados na tarefa são específicos, porém não especificáveis. Existem tarefas prescritas e objetivos específicos que são endereçados aos sujeitos. Contudo, à medida que os participantes se envolvem, descobrem sentidos imprevisíveis e às vezes imperceptíveis (Fabris, 2014). Nesse sentido, entende-se que um tema não se configura como um elemento obrigatório na dinâmica do grupo, mas existe sempre uma tarefa. A tarefa explícita do grupo em questão, se referiu às discussões e reflexões dos assuntos estabelecidos previamente pelas coordenadoras.
Também cabe ressaltar que, mesmo diante de eventuais dificuldades e limitações na realização dos grupos, a equipe sempre se atentou às necessidades dos usuários, tratando suas fantasias e ressignificando seu lugar diante do outro. Nesse sentido, o Grupo Operativo se configurou como uma ferramenta benéfica, pois auxiliou a compreensão das angústias dos usuários e promoveu um ambiente de fala e expressão. Tal observação vai ao encontro do que se deve estabelecer como função da coordenação do grupo que precisa assumir aspectos relacionados às experiências de cada profissional, atribuir seus valores pessoais, permitir a flexibilidade na execução das atividades, e possibilitar aos usuários o desenvolvimento de sua autonomia (Castanho, 2012). No encontro com o tema dos patrimônios culturais, foi proposto uma atividade para a elaboração de desenhos dos patrimônios da cidade. Uma das participantes, que não queria desenhar, optou por escrever sobre o assunto, realizando sua autonomia de executar a atividade da maneira que desejasse.
Durante outro encontro, cujo tema foi a festa junina, as coordenadoras propuseram uma atividade relacionada ao correio elegante, uma brincadeira típica da data festiva. Cada usuário precisava escrever uma carta endereçada a um participante do grupo, descrevendo o que gostava naquela pessoa, e o que desejava de bom para ela. As coordenadoras estimularam todos a participarem, criando a possibilidade de ressignificarem suas vivências e relações. Tal como sustentado pela reforma psiquiátrica, deve-se aceitar e buscar compreender formas de subjetivação diferentes dos neurotípicos, expressando de modo distinto à linguagem verbal (Nascimento & Galindo, 2017).
É importante também destacar alguns elementos que perpassaram os grupos. Tal como já observado na dinâmica de grupos operativos, o formato online também permitiu a manifestação das angústias e ansiedades vivenciadas pelos sujeitos na pré-tarefa. Como citado anteriormente, este é um momento que geralmente são registradas resistências e ansiedades ao lidar com questões que confrontam as convicções que cada um tem sobre si mesmo e sobre o mundo, o que pode impedir a execução da tarefa.
No terceiro encontro, uma intervenção precisou ser feita quando uma das participantes entrou na conversa de forma agitada, com o momento do encontro sendo preenchido pelos seus questionamentos e delírios persecutórios, acusando um dos participantes do grupo de estar planejando o seu sequestro. Como efeito, o grupo pareceu dispersar, por certo momento, sem que ainda conseguissem superar o tempo da pré-tarefa. Para tentar manejar o ocorrido, uma das coordenadoras assegurou que suas questões seriam trabalhadas no momento posterior ao grupo, causando ainda mais angústia pela indefinição sobre o que seria feito. O temor do grupo neste momento foi registrado por questionamentos a respeito do tempo, se seria ou não suficiente para que conseguissem realizar a tarefa proposta. Outro registro se deu em torno do questionamento a respeito de conseguirem cumprir o que foi proposto, haja visto que a agitação da participante despertou certa ansiedade em todo o grupo. A participante optou por sair da reunião, deixando o grupo em completo silêncio. A falta da discussão e reelaboração do que esse novo emergente provocou ao grupo, dificultou o seguimento do encontro do dia, prejudicando o trabalho do grupo que não conseguiu avançar além da pré-tarefa.
Em contrapartida a esse momento, no último encontro, os participantes foram informados que o grupo iria ser suspenso por um determinado tempo, fazendo com que um integrante expressasse um sentimento de saudade. Esse integrante funcionou como porta-voz, pois tal fala provocou ao grupo uma postura diferente, com muitos questionamentos sobre se de fato haveria ou não o retorno do mesmo. O movimento do porta-voz modifica a dinâmica do grupo e cria possibilidades de expressão de angústias que, a partir da interpretação do próprio grupo, desvela as fantasias subjacentes ao mesmo, permitindo serem elaboradas. Também apareceram sentimentos ambivalentes em relação ao que seria vivido, sofrimento referente à posição depressiva, tal como atesta Bernstein (1989). Somente após a ressignificação das fantasias, cujas coordenadoras buscaram manejar - contrapondo o que ocorreu no terceiro encontro - é que eles puderam integrar tais sentimentos, pensamentos e ações, produzindo mudanças internas (Castanho, 2012).
No quarto encontro, ao ser apresentado o tema “emoções e sentimentos”, alguns usuários mostraram confusão ao identificar emoções. Ao ser exposto um trecho do filme americano Inside Out (Docter, 2015) ou, como é conhecido no Brasil, Divertida Mente, os participantes não conseguiram nomear todas as emoções apresentadas, demonstrando dificuldade em diferenciar os personagens. Alguns relataram que identificar emoções é um trabalho árduo, contudo, associá-las a suas próprias experiências tornava o processo mais fácil, favorecendo o desenvolvimento pessoal e autoconhecimento dos participantes, tal como proposto por Pereira (2013).
Na ocasião desta atividade, as coordenadoras se dispuseram a ajudá-los no processo de distinção, dialogando sobre as emoções e diferenciando-as entre os sentimentos. Elas possibilitaram uma abertura para o diálogo sobre sentimentos e quais meios eram utilizados para lidar com eles. Diversos usuários conseguiram identificar uma das personagens, a Alegria. Também souberam reconhecer formas saudáveis de controlar seus impulsos inaceitáveis socialmente. Um exemplo disso foi quando os usuários mencionaram algumas estratégias que serviam como meios de relaxamento, tais como a música, a meditação e o hábito de assistir televisão. Por outro lado, uma das participantes relatou sobre seus impulsos de automutilação serem um meio de alívio da dor, dando destaque para a impossibilidade de elaboração dos afetos.
Ainda em tempo, é importante destacar que entre os papéis expressos durante os encontros no Grupo Operativo, o papel realizado pelo boicotador, que busca se omitir da tarefa em grupo (Oliveira, 2021; Pichon-Rivière, 2005a), foi o que mais esteve presente. Isso acontecia quando os usuários saíam durante os encontros, no momento que era solicitado para realizarem a atividade proposta, sendo uma forma de resistência à mudança e a continuação da manutenção de estereotipias, que os deixam numa posição menos crítica e reflexiva, não se abrindo a uma possibilidade de mudança.
Considerações Finais
A experiência possibilitou entrar em contato com a realidade dos grupos operativos no CAPS durante o contexto pandêmico, sendo possível perceber os limites e alcances dessas atividades dentro desse formato remoto. Houve percalços para identificar papéis e as reações dos usuários durante os encontros devido à falta de contato visual, que dificultou a interpretação da transferência em nível grupal não-verbal.
Assim, foi visto que o modelo produziu mudanças na forma de se portar dos participantes, a partir da disposição destes estarem presentes no grupo. O manejo das coordenadoras ora possibilitou momentos de elaboração, ora se limitou a fazer a tarefa explicitamente colocada. Isso mostra a importância de se aprofundar na teoria, tendo a clareza quanto à teoria pichoniana, sendo essencial para não abordar que qualquer “fazer” significa que o grupo trabalhou de modo operativo.
Porém, todo esse contexto ressalta a importância da adesão do formato remoto para a realização dos grupos no CAPS durante a pandemia da COVID-19, uma vez que diversos outros serviços de atendimento psicológico foram interrompidos. Como é um novo formato para o contexto brasileiro, ainda há poucos estudos voltados à temática, o que salienta a necessidade de se investigar as práticas online, principalmente sobre grupos. Sendo uma área promissora para pesquisas, a modalidade viabiliza ampliação ao acesso à saúde mental.