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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.20 no.1 São Paulo  2023  Epub 20-Set-2024

https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v20n1a2 

Pesquisa

Idealização da maternidade e herança psíquica: reflexões no contemporáneo

Idealization of motherhood and psychic heritage: reflections in the contemporary

Idealización de la maternidad y herencia psíquica: reflexiones en lo contemporáneo

Thassia Souza Emidio1 
http://orcid.org/0000-0002-4353-0912

Mary Yoko Okamoto2 
http://orcid.org/0000-0001-8844-7138

Bruna Bortolozzi Maia3 
http://orcid.org/0000-0001-7792-0663

Raissa Pinto Rodrigues4 
http://orcid.org/0000-0003-4083-7895

1Professora Assistente Doutora. Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós Graduação em Psicologia. Faculdade de Ciências e Letras de Assis/SP, Brasil. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade - LAPSIVI-CNPQ. Email: thassia.emidio@unesp.br

2Professora Assistente Doutora. Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós Graduação em Psicologia. Faculdade de Ciências e Letras de Assis/SP, Brasil. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade - LAPSIVI-CNPQ. Email: mary.okamoto@unesp.br

3Psicóloga graduada pela Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. Assis/SP, Brasil. Mestranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. Participante do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade (LAPSIVI) e do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS). Atua como psicóloga voluntária no Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Hospital das Clínicas (HC-FMRP-USP). Email: b.bortolozzimaia@gmail.com

4Psicóloga graduada pela Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. Assis/SP, Brasil. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade na mesma universidade. Atua como psicóloga hospitalar em unidade de alta complexidade em nefrologia e realiza aperfeiçoamento em intervenções no luto. Participante do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade - LAPSIVI-CNPQ. Email: raissa.p.rodrigues@unesp.br


Resumo:

Considerando as transformações na maternidade ao longo da história e a atual crise identitária na relação da mulher com a maternidade, ou seja, o conflito entre os ideais de maternidade relacionados à figura da mulher/mãe e as demandas contemporâneas de realização individual no trabalho, realizou-se este estudo transversal, exploratório-descritivo de abordagem qualitativa, cujo objetivo consistia em descrever e analisar, a partir da psicanálise de casal e família, a experiência de mães que abandonaram da carreira profissional para a dedicação exclusiva à maternidade. Foram entrevistadas oito mulheres de classe média, entre 30 e 50 anos, que eram mães e abandonaram suas carreiras profissionais para se dedicarem à maternidade. As entrevistas que compuseram os resultados foram transcritas e as análises de conteúdo temática apontaram as múltiplas exigências, tanto sociais, quanto relacionadas à herança psíquica, que trazem implicações para a construção identitária dessas mulheres. Concluímos que um processo de elaboração dessa herança exige uma rede vincular de apoio e pressupõe a desidealização da maternidade, entendendo-a como plural, tanto no sentido de ser múltipla e diversa, quanto no sentido de ser uma construção vincular.

Palavras-chave: Relações Mãe-Filho; Papel de Gênero; Relações Familiares; Psicanálise; feminino; vínculo; parentalidade

Abstract:

Noticing the history transformations in motherhood, and the current identity crisis in the woman's relationship between femininity and maternity, that is, the conflict between the ideas of motherhood related to the figure of the woman/mother and the contemporary demands of individual realization at work, this exploratory-descriptive, cross-sectional, study of a qualitative approach was carried out, whose objective was to describe and analyze, from the perspective of psychoanalysis of the linking configurations, the experience of mothers who abandoned the professional career for the exclusive dedication to motherhood. Eight middle-class women, aged between 30 and 50, who were mothers and abandoned their professional careers to dedicate themselves to motherhood-retirar, were interviewed. The interviews that composed the results were transcribed, and thematic content analyses pointed out the multiple demands, both social and related to psychic heritage, which have implications for the identity construction of these women. We conclude that an elaboration of this heritage requires a link network of support and presupposes the non-idealization of motherhood, understanding it as plural, both in the sense of being multiple and diverse, and in the sense of being a bonding construction.

Keywords: Mother-Child Relations; Gender Role; Family Relations; Psychoanalysis; femininity; bonding; parenting

Resumen:

Considerando los cambios en la maternidad a lo largo de la historia y la actual crisis de identidad en la relación de la mujer con la maternidad, es decir, el conflicto entre los ideales de maternidad relacionados con la figura de la mujer/madre y las demandas contemporáneas de realización individual en el trabajo, se realizó este estudio transversal, exploratorio-descriptivo de abordaje cualitativo, cuyo objetivo consistía en describir y analizar, a partir del psicoanálisis de las configuraciones vincular, la experiencia de madres que abandonaron de la carrera profesional para la dedicación exclusiva a la maternidad. Fueron entrevistadas ocho mujeres de clase media, entre 30 y 50 años. que eran madres y abandonaron sus carreras profesionales para dedicarse a la maternidad-retirar. Las entrevistas que compusieron los resultados fueron transcritas y los análisis de contenido temático señalaron las múltiples exigencias, tanto sociales, como relacionadas a la herencia psíquica, que traen implicaciones para la construcción identitaria de esas mujeres. Concluimos que un proceso de elaboración de esa herencia exige una red vincular de apoyo y presupone la desidealización de la maternidad, entendiéndola como plural, tanto en el sentido de ser múltiple y diversa, como en el sentido de ser una construcción vincular.

Palavras-clave: Relaciones Madre-Hijo; Rol de Género; Relaciones Familiares; Psicoanálisis; faminilidad; vinculo; parentalidad

Introdução

O conceito de parentalidade tem sido cada vez mais utilizado na contemporaneidade ao se referir ao campo dos cuidados parentais e às interações entre pais e filhos. Campana e Gomes (2019) apontam que a construção da parentalidade é um processo ativo no qual pais e filhos, em conjunto, trabalham na tessitura de um vínculo que é da ordem do tornar-se: pai, mãe e filho. Por isso, do ponto de vista psíquico, a entrada na parentalidade é decorrência de um ato de pessoas adultas, que assumem os lugares de mãe e pai de uma criança (Dunker, 2020; Garrafa, 2020).

No que diz respeito à parentalidade, sob a luz da teoria psicanalítica, entendemos que compõem os vínculos primários de pertencimento, fornecendo os constructos para que o bebê atribua os significados às suas experiências psíquicas próprias, funcionando como uma rede de amparo psíquico e atuando como importante estruturador do psiquismo, como concorda Kaës et al (2001).

Ariès (1975) nos mostra que o status das crianças e dos bebês se transformaram ao longo da história e, à medida que essas mudanças se fizeram, o papel parental, especialmente no que diz respeito à mulher e à mãe, mudaram. Badinter (2010) coloca que ao longo da história, o papel da mãe foi vinculado ao cuidado e à dedicação para a educação e saúde dos filhos, ficando centralizado nessa figura a ideia de gestão do espaço familiar. As mães ocuparam por muito tempo um lugar intocável no grupo familiar que fez parte da construção social da identidade feminina e da família, como uma forma de controle e delimitação dos papéis a serem exercidos na manutenção da vida e na formação dos cidadãos e trabalhadores.

Iaconelli (2020) aponta para o ideal supervalorizado, desde o século XVIII, de que a parentalidade se resumiria à relação entre a mulher/mãe e seu bebê, o que colocou a mãe como a principal, quando não única responsável pelo cuidado dos filhos, condenando-lhe o lugar de fonte inesgotável de cuidado. Esses ideais se exprimem hoje no imaginário social como “mãe é tudo” ou “um bom pai é quase uma mãe” (Iaconelli, 2020, p. 78), colocando os papéis paternos/masculinos como não prioritários e menos relevantes.

Porém, as mudanças ocorridas na sociedade que tem como marcadores importantes: a entrada das mulheres no mercado de trabalho, o direito ao voto e ao divórcio, o surgimento da pílula anticoncepcional e a possibilidade do controle da fertilidade, tiveram ressonâncias na desconstrução da ideia da existência de um instinto materno e da naturalização do processo de ser mãe. Tais mudanças trouxeram à tona discussões sobre a idealização da maternidade e da construção de parâmetros para o exercício da mesma, sendo que os discursos sociais e as práticas científicas se colocam como importantes agentes para a criação das concepções de maternagem, enquanto a capacidade feminina de gestar e parir é colocada como prioritária para a definição de que os cuidados e a educação dos filhos sejam praticados pelas mães.

Tomando como alicerce o discorrido, podemos compreender que desde a sociedade moderna dá-se status especial ao vínculo materno-filial, destacando sua importância para o desenvolvimento subjetivo do bebê. Na psicanálise, isso não seria diferente. Já na primeira tópica, Freud (1914/2004) discorre sobre a importância do investimento narcísico parental para a formação do Eu. Para o autor, é a partir do investimento das figuras parentais no bebê, depositando seus ideais, expectativas, esperanças individuais e grupais, que se desenvolve o contorno da experiência corporal e psíquica da criança, inscrevendo-a como sujeito numa cadeia genealógica (Kaës, 2011).

Outros psicanalistas pós-freudianos, tais como Spitz (1998) e Winnicott, (2012b), também reforçam a ideia de que o vínculo materno-filial seria de suma importância para o desenvolvimento infantil. Esses discorrem, à sua maneira, sobre a importância da pessoa que exerce a função materna, que deve, para além de preocupar-se com os cuidados fisiológicos dos bebês, como higienizar, alimentar, entre outros, debruçar-se também em suprir suas necessidades psíquicas. Para isso seria necessário o auxílio no contato de seu mundo interno com a realidade, recebendo, nomeando e sobrevivendo às vivências de suas angústias primitivas, cuja dimensão extrapola as capacidades psíquicas do bebê.

A função paterna, sob a teoria psicanalítica, é importante para o desenvolvimento do psiquismo infantil. Entre suas funções, destacamos a de romper a simbiose da célula narcísica mãe-bebê, permitindo que a criança entre em contato com a alteridade, além de investir narcisicamente seu filho para que confirme sua própria identidade. No primeiro momento, a função paterna deve assegurar que o agente da maternagem tome o bebê como “objeto privilegiado de seu desejo, emprestando o próprio aparelho psíquico para falar em nome dele e reconhecê-lo como outro” (Garrafa, 2020, p. 62).

Dentre os teóricos que se preocuparam com o tema da parentalidade e o desenvolvimento infantil, destacamos as contribuições de D. W. Winnicott, responsável pelos conceitos de preocupação materna primária, que diz respeito a um estado de desinvestimento da mãe em seu próprio self, voltando-se totalmente para os cuidados ao seu bebê, com intensa dedicação e devoção (Winnicott, 1960/2012a). Além disso, o autor ressalta a importância do holding, ou seja, oferecer sustentação física e psíquica para atender às demandas do bebê, proporcionando contorno às suas experiências corporais e aquelas provenientes do mundo externo. Segundo o autor (Winnicott, 1950/2012b), esse tipo de atitude materna seria um conhecimento intuitivo, e, muitas vezes, o conhecimento científico poderia prejudicar a dupla mãe-bebê, fazendo com que as mães não se sintam aptas e confiantes no exercício da maternidade.

Apesar de Winnicott apontar para a capacidade natural da mãe em cuidar de seus bebês, Janin (2019), sublinha a crescente intervenção do terceiro especializado na relação mãe-bebê, que saberia a forma “correta” de educar uma criança. Atualmente, o excesso desses discursos, conforme argumentam estudos anteriores (Donath, 2017; Pereira & Tsallis, 2020), podem dificultar no exercício dessas funções e culminar em sofrimento psíquico para as mães na contemporaneidade.

Ademais, Kehdy (2020) aponta para a condição paradoxal que a mulher vive na contemporaneidade, que, por um lado, tem o corpo patologizado e incapaz de maternar sem o auxílio de especialistas e por outro, é lugar de expectativa quanto aos saberes naturais nos cuidados de seus bebês, no que concorda Iaconelli (2015, p. 69): “Quanto ao que ela sabe, costuma ser desautorizada; quanto ao que ela não sabe mais, é acusada de ter que saber”.

Kehdy (2020, p.69) questiona: “Que condições de laço social temos oferecido aos pais – mais especificamente às mulheres – para o exercício das funções parentais?”. As transformações sociais e os laços provisórios constituídos atualmente conduzem a situações de desamparo social, ao contrário do que ocorria no passado, quando era comum oferecer às mulheres forte apoio social e familiar, porém, “a distância das famílias de origem e a falta de referências faz com que a primeira vez de muitas mulheres como protagonistas do cuidado a um bebê se dê por ocasião do nascimento do próprio filho” (Kehdy, 2020, 70). Essas inúmeras mudanças fragilizam as bases identificatórias e intensificam a solidão no início da maternagem.

Considerando essa trajetória de constituição histórica e subjetiva acerca da maternidade, Reid (2020) aponta a existência de três modelos de subjetivação do gênero feminino: o modelo tradicional, o modelo transicional e o inovador, demonstrando que no modelo tradicional, a subjetividade apresenta contornos balizados na manutenção da divisão sexual do trabalho, ressaltando os valores da maternidade e da conjugalidade como áreas vitais para o desenvolvimento das mulheres. Caberia aos homens, o lugar de provedores financeiros e guardiões da matriz simbólica desses lugares. Os pactos estabelecidos não incluem o desempenho laboral feminino, estabelecendo uma relação assimétrica de poder e regras.

O modelo transicional é composto por mulheres que adentraram, gradual e massivamente, o mercado de trabalho e atingiram graus variados de educação. No entanto, seguem sustentando os pactos e acordos conjugais que mantêm os lugares reservados aos homens, citado anteriormente, sustentando, portanto, o modelo tradicional de mulher-mãe. Com relação ao modelo inovador, a autora aponta para a diversidade de possibilidades em concretizar os ideais de maternidade e conjugalidade, os quais ocupam o lugar de escolhas e não o de mandatos ou projetos vitais que conferem, exclusivamente, os ideais identitários femininos. A maternidade ocupa um lugar de escolha e caminha junto ao desejo de desenvolvimento pessoal e laboral.

Porém, ainda existem conflitos para que as mulheres ocupem tal lugar, considerando que as bases que sustentam o modelo tradicional patriarcal apenas mudaram suas vestimentas, mas ainda seguem sustentando-se nos velhos valores de gênero, classe e etnia, dentre outros, exigindo muitas negociações para atingir esse modelo inovador.

Iaconelli (2020) coloca que os cuidados com as crianças nunca foram tão solitários e individuais quanto agora, porquanto são tarefas de inteira responsabilidade das mães. Além disso, a mesma autora nota que “vivemos a paradoxal situação na qual a independência socioeconômica da mulher, decorrente das lutas feministas e das novas condições do mercado, desemboca em uma maternidade solitária e desassistida” (Iaconelli, 2020, p.79), corroborando com a grande parcela de famílias monoparentais femininas na atualidade. Nesse sentido, apesar das transformações aqui apresentadas, a manutenção do modelo tradicional ainda é sustentada, apontando para a subjetividade de uma maternidade enraizada socialmente e dificultando as negociações necessárias que possibilitem pluralidades que envolvam a experiência de ser mãe.

Garrafa (2020) defende ainda, que na atualidade, ocorre a transformação na forma como se concebe a ideia do amor materno, construindo uma vinculação vocacional com a maternidade, na qual as mulheres são convocadas a exercerem a maternagem e a gestão da vida doméstica como algo da sua vocação, e aquelas que não a exercem passam a ser condenadas pela comunidade, pressionadas a assumirem essa vocação, ou sentenciadas à culpa por não corresponderem aos ideais impostos.

Badinter (2010) nomeia de tirania materna esse processo no qual constrói-se uma vinculação obrigatória à dedicação integral à maternidade, uma vez que a maternagem deixa de ser olhada como algo instintual e passa a ocupar o campo da escolha da mulher. Em outras palavras, estas devem exercer esse cuidado porque são livres, mas escolheram ser mães e essa escolha deve ser exercida em busca de atingir os parâmetros vigentes.

Essas responsabilidades colocam as mulheres diante de impasses, uma vez que elas passaram a ocupar também o espaço do trabalho, se vinculando não só ao trabalho reprodutivo, mas também ao trabalho produtivo (Meyer, Oliveira, Coelho & Aquino, 2019). Ao se associar ao mundo do trabalho, a mulher passou também a incorporar a outros interesses e a outras demandas e satisfações.

Essas questões resultam na sobrecarga feminina e no conflito vivido na sua relação com a vida doméstica, com o trabalho e seus interesses pessoais. Badinter (2010) destaca que, deste modo, as mães são colocadas em uma condição de divisão, entre o cuidado e a satisfação de atender aos ideais relativos ao exercício da maternidade, e a culpa, a insegurança e a indecisão em focar na satisfação de seus desejos pessoais, acreditando não ser possível a conciliação de outras atividades com a maternidade, explicitando o olhar dirigido para a maternidade como uma experiência única, singular, anulando, como colocamos anteriormente, as pluralidades e ambivalências que compõem o processo de tornar-se mãe.

Esse movimento acaba levando algumas mulheres, como apontam Rocha-Coutinho (2011) e Emídio e Gigek (2019) a efetuarem uma “escolha” entre a maternidade, os interesses pessoais e profissionais, como se esta experiência só fosse possível no campo do ou, do um ou outro, trazendo à tona reflexões importantes sobre essa relação.

Considerando estas questões, realizamos este estudo cujo problema de pesquisa geral é: como se dá a relação da mulher com a maternidade na atualidade? Este artigo especifica a crise identitária que se apresenta nessa relação, a partir da psicanálise de casal e de família, bem como as implicações dessa questão na sociedade contemporânea, sob o recorte da experiência da maternidade “integral”. Essa diz respeito ao termo utilizado pelas entrevistadas ao se referirem ao seu movimento de abandono da carreira profissional para a dedicação exclusiva à maternidade.

Método

Trata-se de uma pesquisa transversal, exploratória descritiva, de abordagem qualitativa.

Participantes

Participaram deste estudo, oito mulheres de classe média, na faixa-etária dos 30 aos 50 anos, que eram mães e em determinado momento da vida optaram pelo exercício “integral” da maternidade, abandonando a carreira profissional. O número de oito entrevistadas foi considerado a partir da amostra por saturação do conteúdo das entrevistas. (Minayo, 2017).

A escolha pelo trabalho com mulheres nessa faixa etária se deu porque, tendo em vista dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), este é um intervalo que abrange mais de 70% dos casos de maternidade na vida das mulheres brasileiras. Já a escolha pelo trabalho com mulheres oriundas da classe média se relaciona às informações das pesquisas de Rocha-Coutinho (2011) que apontam que esse movimento de abandono da carreira profissional para dedicação integral à maternidade se torna mais frequente nessa faixa etária e na classe média brasileira, uma vez que a opção pelo abandono do trabalho se liga também a possibilidades de sustento do grupo familiar sem o salário recebido pela mulher/mãe.

Instrumento

Para a coleta de dados, foi elaborado um roteiro de entrevista semi-estruturada, composto por informações sociodemográficas, com o objetivo de caracterizar o grupo pesquisado, uma questão norteadora relacionada à experiência de ser mãe na atualidade e sua relação com o trabalho e seus projetos pessoais e algumas questões de aprofundamento. As questões foram elaboradas visando aprofundar os aspectos dos relatos e explorar percepções, escolhas, sentidos e significados atribuídos pelas mães no exercício da maternidade e na conciliação com seus diversos papéis sociais.

Procedimentos

O contato com as entrevistadas se deu por meio de “bola de neve”, a partir de uma primeira indicação de terceiros. Após o contato inicial com as mulheres, foi agendada uma entrevista no local escolhido por estas. As entrevistas tiveram a duração de em média uma hora e meia, foram gravadas e posteriormente transcritas.

Análise dos Dados

As entrevistas foram transcritas de forma integral e analisadas a partir da articulação com os estudos e produções científicas sobre a maternidade na atualidade, buscando tecer considerações e reflexões sobre a experiência de tornar-se mãe na atualidade e sobre a crise identitária que se apresenta na relação da mulher com a maternidade e com seu papel na sociedade contemporânea.

Para a organização dos dados, foram construídas categorias de análise organizadas em unidades de significado, segundo a Análise de Conteúdo Temática (Braun e Clarke, 2019). O material das entrevistas passou por uma pré-análise e exploração dos dados obtidos, para posteriormente ser organizado em eixos temáticos de acordo com as unidades de significado que permitiram a construção de uma interpretação dos resultados. Por meio da análise dos dados buscamos articular os relatos das entrevistadas com as discussões sobre a maternidade a partir de perspectivas psicológicas e sociológicas, como também pelas discussões no campo da Psicanálise e Vincularidade. Foram construídos dois eixos temáticos para este estudo: A experiência da maternidade integral no cenário contemporâneo; Identidade feminina, materna e herança psíquica na atualidade.

Considerações éticas

Foram seguidos todos os cuidados éticos necessários, garantindo-se o anonimato das entrevistadas, que aceitaram a participação através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa na faculdade sede do estudo (protocolo número -informação omitida para preservar o peer review).

Resultados e discussões

Nas entrevistas realizadas, os discursos revelaram conflitos relacionados ao exercício da maternidade e às incompatibilidades entre esta, seus interesses profissionais e pessoais, a dificuldade de atender aos ideais relativos à maternidade, além de sentimentos de angústia em relação à vida profissional e ao papel do feminino e do materno na sociedade. Organizamos o material das entrevistas em dois eixos temáticos que serão apresentados de forma integrada, articulando os resultados das entrevistas às discussões teóricas de forma a dar maior profundidade às análises realizadas.

A experiência da maternidade integral no cenário contemporâneo

Ao questionarmos as entrevistadas sobre o movimento de abandonarem suas carreiras profissionais para se dedicarem exclusivamente ao cuidado com os filhos, elas a nomearam de “maternidade integral” fazendo referência à ideia de que a experiência de ser mãe seria exercida de forma “Inteira, dedicada, vinculada ao filho” (Ana) e “Se liga a uma escolha da maternidade como uma prioridade de vida” e quando questionadas como vinha sendo essa experiência estas trouxeram prontamente a resposta: “Maravilhoso”, “Incrível”, “Uma experiência única”, apontando para os sentimentos positivos com relação a essa experiência e ao afeto que dirigem à relação com seus filhos.

Quanto aos aspectos negativos da maternidade, elas colocaram que poderiam discorrer sobre muitos, e ao falarem se corrigiam ou contrapunham as dificuldades com os aspectos positivos e o sentimento de gratificação que sentiam nessa experiência. As entrevistadas diziam sentir culpa ao falar dos aspectos negativos da maternidade e se sentiam mais confortáveis quando falavam sobre as experiências positivas. Além disso, as entrevistadas traziam a busca por sempre ser melhor e o sentimento de insuficiência diante dos parâmetros sociais construídos em torno da maternidade.

“Quando eu penso na experiência de ser mãe me vem: maravilhoso. Sim, é maravilhoso, gratificante, mas é penoso, massacrante, parece que você nada, nada e nunca chega na areia do mar, na borda da piscina, sempre vem mais água para cima de você. Eu me sinto assim, quanto mais eu faço, mais eu penso que poderia ser melhor. Aí leio um livro, vejo uma influencer no Instagram e fico tentando me inspirar nelas, mas minha vida é diferente, então me sinto desgovernada, em busca de ser uma boa mãe para o meu filho, para lá na frente eu olhar e sentir que cumpri o meu dever. Nossa, me sinto mal de falar isso, não é justo com a mãe que quero ser, mas me sinto assim!” (Giovana).

Essa dificuldade de apresentar os aspectos negativos nos levaram a refletir que a ideia da mãe santificada, completa e poderosa, como aponta Badinter (1985) ao falar da mulher burguesa, aquela que tem a chave da casa e o poder sobre a vida daquela família, leva muitas vezes as mulheres a sustentarem sua experiência de maternidade em um ideal de perfeição isenta de sentimentos negativos ou do desprazer nessa relação. A idealização da maternidade gera um bloqueio para que as mulheres possam olhar para as ambivalências existentes, sendo capturadas pelo ideal do amor materno. Deste modo, traçam seus percursos em busca de atender unicamente a esse ideal, abandonando outros projetos pois acreditam que esses só podem ser atingidos por meio de uma dedicação “integral” à maternidade.

Assim, nessa busca por atender a esse ideal e ocupar o papel da boa mãe, muitas mulheres não conseguem se vincular à experiência da maternagem em si, sendo seu vínculo com o bebê marcado por protocolos, regras e rituais construídos socialmente que visam padronizar a maternidade. As redes sociais na atualidade têm corroborado para essa idealização. Visintin e Aiello (2017) colocam, a partir de pesquisas em mommy blogs brasileiros, que há prevalência de um imaginário coletivo sobre a maternidade marcado por exigências ligadas à dedicação integral à maternidade e à renúncia a outras aspirações, sentindo-se plenamente feliz e realizada. A impossibilidade da vivência de sentimentos de insatisfação ou frustração, gera sofrimento emocional que atinge a mulher na experiência da maternidade. Este sofrimento emocional está ligado à idealização desta, ao enaltecimento social dessa figura vinculado aos modos de organização social, cultural e política e a produção de estereótipos relativos às mulheres que desenvolvem atividades profissionais e àquelas que se dedicam integralmente aos cuidados dos filhos e da família.

Além desses aspectos pudemos perceber no discurso das entrevistadas que estas trazem a maternidade como uma escolha, por isso, são protagonistas desse processo e devem arcar com as responsabilidades de ser mãe. Badinter (2010) coloca que a partir do momento que a maternidade se torna uma escolha, ela traz consigo responsabilidades ainda maiores, uma vez que se vincula ao campo do desejo e imputa às mulheres a necessidade de sustentar aquilo que escolheram e desejaram, mantendo-as no lugar de total responsabilidade e cuidado com a prole, já não mais devido à intervenção do Estado e pela submissão feminina, mas sim, envolvido na ideia de que as mulheres na atualidade são independentes e autônomas e devem então, arcar com suas escolhas, e quando esta é a maternidade, devem exercê-la com excelência.

A ideia do protagonismo e da independência aparecem no discurso das oito mulheres entrevistadas como uma forma de colocá-las em um campo de responsabilidade total, como se apresenta no discurso de Lúcia.

“Eu sempre sonhei em ser mãe, mas aquelas mães perfeitas, boas mesmo, sabe? Aí quando me deparei com um bebê que chora, faz coco, que tem dias que você não tem paciência e quer sumir, eu fiquei pensando em como iria dar conta de tudo aquilo, mas aí vinha a minha mente, ‘você quis, Lúcia, você aguenta’ e assim fui levando, eu não sou mais sozinha no mundo né? Por onde eu for eu tenho a responsabilidade pelo meu filho, por mais duro que isso seja”

A fala de Lúcia, bem como das demais entrevistadas, apresenta o quanto não olhamos, na atualidade, para a maternidade real, repleta de dificuldades e ambivalências e o quanto ainda buscamos na ideia vocacional da maternidade, ou da escolha, uma justificativa para a articulação direta que se construiu entre a identidade feminina e a maternidade.

Badinter (2010) aponta que a mudança de vida que a maternidade conduz pertence a uma esfera de risco, sendo possível inúmeras experiências diante dessa nova fase. Entre as possíveis experiências, a autora aponta que há mulheres que encontram na maternidade “uma felicidade e um benefício identitário insubstituíveis”. Outras, conseguem de alguma forma conciliar exigências contraditórias” (Badinter, 2011, p. 23). Desse modo, percebemos que o encontro com a maternidade muito se relaciona com questões pessoais, ainda que os acontecimentos sociais, econômicos e culturais sejam relevantes para se pensar no modo que a mulher se depara com a maternidade.

Embora Badinter (2010, p. 32) aponte que “é forçoso constatar que a maternidade é apreendida e valorizada de modos bem diferentes”, essa pluralidade e a possibilidade de olhar a maternidade sob diversos aspectos não se apresentam nos discursos das entrevistadas, uma vez que a designação “maternidade integral”, já denota a ideia de algo único que só pode ser vivido por uma via e que se confirma no relato de Adriana ao apontar os motivos que as levaram a buscar essa experiência de maternidade.

“Quando eu decidi pela maternidade integral, maternidade sem trabalho, né? (…) Bom eu decidi porque o meu menino ficava muito doente, então sempre tinha que sair do trabalho para ficar com ele, aí meu superior me cobrava, embora eu me desdobrasse para não deixar nada pendente no trabalho, tinha aquela cara dele toda vez que eu retornava e me sentia mal e em casa tinha o meu marido que me cobrava, que sempre sugeria, falava que ia ser melhor para nós, que eu poderia ser mãe do jeito que sonhamos e aí devido a essas pressões eu virei dona de casa, eu falo dona da casa porque eu conto com ajuda para limpar a casa, fazer comida, a minha dedicação é só ao João, fico com ele quando ele não está na escola e o ajudo nas atividades, brinco com ele, tudo isso em busca de ser a mãe que esperam de mim e que de certa forma eu espero de mim também” (Adriana)

As falas de Manuela e Adriana apresentam aspectos importantes a serem discutidos sobre a maternidade. As duas entrevistadas colocam sobre a cobrança de atenderem a um ideal de mãe, seja a elas mesmas e que se ligavam às incompatibilidades com o exercício do trabalho, seja devido às pressões da família e do parceiro. Ambas colocam que focaram seus investimentos no cuidado com os filhos em busca de responderem ao que esperam delas e ao que elas mesmas esperam sendo mães.

Nesses relatos é possível perceber que a ideia de maternidade integral se liga diretamente como resposta a um ideal construído socialmente e que partiu da figura da mãe burguesa, rainha do lar e que se manteve no imaginário social como algo a ser atingido, a despeito de tantas transformações e conquistas no percurso feminino na sociedade. O discurso das entrevistadas apresenta a incompatibilidade de conciliação entre o trabalho e os interesses pessoais com as demandas da maternidade e por isso, transitando no campo das escolhas, o fizeram para exercerem a maternidade com dedicação e respondendo a um padrão de excelência que pesa sobre elas.

À guisa de síntese, podemos notar, a partir dos resultados da pesquisa, que a escolha pela maternidade integral é uma vivência na qual as mulheres parecem ficar numa corda bamba entre as exigências colocadas para a maternidade e as realizações esperadas no trabalho. Num mundo que exige o máximo desempenho, tanto no trabalho produtivo quanto reprodutivo, essas mães optam pela renúncia do trabalho e de realizações pessoais para dedicarem-se exclusivamente à maternidade. Essa escolha individual entre “uma coisa ou outra” vem carregada de dificuldade de contato com as ambivalências nela implicadas. Essas interpelações abrem a reflexão para a forma como compreendemos a relação da maternidade com a identidade feminina, bem como as heranças psíquicas nela envolvidas.

Identidade feminina, materna e transmissão psíquica na atualidade

Ao analisarmos os relatos das entrevistadas, percebemos que a maternidade é concebida a partir do que ditam os ideais sociais, fortemente influenciados pelo que se denomina de patriarcado (Lerner, 2019), uma construção histórica datada do estado arcaico e que explica a apropriação da capacidade reprodutiva e sexual das mulheres pelos homens, e que ocorreu por meio da força, da dependência econômica e da divisão artificial entre mulheres “respeitáveis” e “não respeitáveis”. Nesse processo, o poder feminino associado à procriação foi idolatrado e através da internalização da ideia de sua inferioridade, as próprias mulheres colaboram e participam de sua subordinação ao papel e lugar a elas destinados, e isso inclui a maternidade e a necessidade de uma proteção paternalista representada pela figura masculina.

Considerando que a constituição do espaço vincular é um espaço psíquico construído a partir de uma matéria psíquica específica, aquela mobilizada nas relações entre seus membros, Käes (2017) aponta as alianças inconscientes como primordiais para a construção deste espaço, considerando que “não há um sem o outro, sem o vínculo que os une e sem o grupo que os contém e os estrutura” (Käes, 2017, p. 15). Assim, o vínculo é considerado uma formação intermediária, o espaço entre os sujeitos e as configurações vinculares: uma família, um grupo, uma instituição. Portanto, estamos diante do espaço intersubjetivo, no qual partilham os sujeitos formados e ligados entre si por suas ações recíprocas. Este é o espaço no qual os vínculos se instalam, seja no âmbito grupal como entre os seus membros.

Para a configuração deste espaço, os espaços plurissubjetivos colaboram através da relação do sujeito com o contexto social mais amplo no qual está inserido – instituições, nação, cultura, religião. Este espaço concede as marcas culturais necessárias para o estabelecimento do pertencimento a um lugar, um grupo, funções sociais, lugares identitários, dentre outros. E localizamos que os ideais relacionados à maternidade e ao papel feminino estão arraigados nesse espaço transubjetivo.

A partir de tal premissa, o sujeito do inconsciente é considerado o sujeito da herança, ou seja, um sujeito do grupo (Käes et al., 2001; Kaes, 2011), e em termos psicanalíticos, o conteúdo transmitido e herdado ao longo da vida psíquica familiar colabora para a formação do inconsciente, produzindo efeitos na intersubjetividade.

Para Käes et al (2001, p. 13), a subordinação do sujeito ao grupo constitui a “rocha” do espaço psíquico intersubjetivo, perfazendo a pré-história que insere o sujeito ao conjunto intersubjetivo de origem, tecido antes mesmo do seu nascimento. Essa é a matéria psíquica que funciona como sustentação e manutenção na matriz de cuidados e investimentos, estabelecendo lugares, oferecendo a rede de proteção bem como de ataque, instrumentos que permitem o estabelecimento de limites e dos interditos que fundamentam o grupo.

Nesse sentido, consideramos que o lugar ocupado pelas mulheres na sociedade refere-se a um conteúdo transmitido geracionalmente, os quais outorgam os lugares, as funções, bem como é sustentado através do estabelecimento de alianças, fundamental para a organização e a manutenção dos vínculos baseados nos interesses em comum, para a continuidade dos investimentos e dos benefícios responsáveis pela permanência dos ideais estabelecidos pelo grupo.

Badinter (2010) destaca que todas as transformações femininas ocorridas ao longo da história não possibilitaram a desconstrução desse ideal materno, acarretando numa somatória de demandas com relação ao feminino, e que a ideia de uma mulher livre acarretou numa culpa diante da impossibilidade de conseguir atender às diversas demandas. Esse conflito evidencia uma crise no olhar das mulheres para as suas próprias experiências, pois estas trazem em seus discursos a angústia, a culpa e a sensação de esgotamento diante de tantas demandas, as quais não conseguem atender, resultante dos conteúdos herdados e contraídos enquanto um contrato grupal.

A questão da herança apareceu no discurso das entrevistadas no campo das relações familiares. Estas colocavam que a busca por atender a esse ideal de maternidade se ligava ao vínculo que estabeleciam com suas mães e com a maternidade que lhes foi ofertada, o que se apresenta nos relatos de Giovana e Luíza:

“Olha, eu tive uma mãe de sonhos e parece que ela me persegue dizendo ‘olhe para mim, olhe sua avó’, as duas já morreram, mas parece que me cobram para ser como elas, eu acho que nunca vou conseguir isso, mas larguei o trabalho e estou focada nesse projeto” (Giovana)

“Eu sou filha de uma empresária dedicada, que fez carreira e sucesso. Minha mãe nunca fez um lanche para mim, nunca me levou na escola, as festas da escola ela não ia também, ou chegava muito atrasada, isso sempre foi uma ferida. Então, quando fui mãe, após nove anos tentando engravidar, já sabia que mãe eu queria ser, aquela dos sonhos, dos filmes da minha época e quando percebi incompatibilidades com o meu trabalho eu larguei prontamente porque acreditava que viver a maternidade me traria uma realização plena e mais importante que todas as outras” (Luíza)

A questão do legado familiar e social permitem refletir que assumir as transformações das conquistas femininas representa o rompimento com tal cadeia geracional e com os acordos contraídos no estabelecimento das alianças inconscientes, os quais sustentam os investimentos narcísicos e do grupo que recai sobre as mulheres e por isso, a culpa e a incompatibilidade de negociação identitária é tão premente nos discursos apresentados.

Estudos como os de Emidio e Gigek (2019) e Barbosa e Rocha-Coutinho (2007) colocam que, a despeito da oferta de outros percursos identitários apresentados para as mulheres, a idealização da maternidade e sua vinculação ao feminino, contraída e estabelecida ao longo de toda a história geracional tem feito com que as mulheres se sintam pressionadas a escolher entre a maternidade e o mundo do trabalho, como lugares díspares e por fim, as entrevistadas cederam às pressões sociais, abandonando a carreira profissional para cuidarem dos filhos, ocupando esse lugar idealizado e secular ocupado pela maternidade, mesmo diante de tanto sofrimento decorrente de tal escolha.

Apesar da diversidade de possibilidades ofertadas socialmente, a maternidade continua a ocupar um lugar convergente na vida das entrevistadas, embora a aceitação de que algumas mulheres não buscam a maternidade esteja em curso, ainda se traduz no ideal de muitas mulheres e, principalmente, dos grupos sociais, dificultando a negociação identitária feminina que não transita em torno da maternidade. As falas de Adriana e Ana ilustram essa discussão:

“Ser mulher é para mim a mais difícil das relações, ser mulher e ser mãe eu vejo como algo conectado, ligado. Para ser mãe você precisa ser mulher, embora hoje eu aceite que mulheres não queiram a maternidade. Acho que ela é uma escolha que fazemos para a vida e a partir do momento que fazemos temos que arcar com aquilo que ela exige de nós. Eu na verdade, depois que fui mãe sinto que meus interesses como mulher mudaram muito, os projetos, os sonhos são vinculados aos meus filhos, não consigo mais dimensionar os meus anseios mais individuais sabe? Não que não queira ter, mas parece que me sinto muito egoísta, menos mãe ao pensar em mim sabe? Então acabo vivendo tudo junto e aí ser mãe e mulher vira a mesma coisa.” (Adriana)

“Você fez uma pergunta que me faz lembrar de uma discussão com o meu marido, ele queria que as crianças fossem passar uns dias com a mãe dele para a gente ficar mais junto, eu também queria, sinto falta de ficar com ele, me arrumar mais, me sentir para além de mãe, mas eu não consegui, parecia que eu estava abandonando meus filhos, eu já larguei o trabalho para ficar com eles, aí agora vou largá-los, fico com a impressão que não sei o que quero, porque quero tudo, não queria ter largado o trabalho, quero ficar com o meu marido e ter meu tempo com meus filhos, mas parece que não combina tudo isso, aí me sinto culpada, preciso ser essa mãe sabe? Essa que dá conta, então minha dedicação é toda voltada para isso” (Ana)

Como entendemos que a maternidade se configura no eixo central e organizador da vida de muitas mulheres, a possibilidade de conexão com o lado mulher e do trabalho ainda é vivida como um conflito, e a narrativa de Bianca aponta para a necessidade de um processo de negociação e que, inevitavelmente envolve o lugar ocupado pelo parceiro, afinal, para que a mulher possa gravitar por outros espaços é necessário que alguém divida e compartilhe com ela, o lugar da maternidade.

“Hoje penso que o desafio de ser mulher é conseguir conciliar tudo, é achar possibilidades e acho que o caminho está em dois pontos que venho lendo bastante: dividir as tarefas com o parceiro ou uma rede de apoio e se cobrar menos. Acho que o caminho é esse, a rede de apoio eu já tenho, estou fortalecendo essa ligação, mas a cobrança? Essa eu não sei como me livrar, sou perseguida por ela e pela mãe que eu gostaria de ser”. (Bianca)

Considerações Finais

Como observado nas pontuações e falas das entrevistadas, ainda que o significado de ser mulher tenha se transformado nas últimas décadas, ainda existem concepções estereotipadas e enraizadas no que compete ao papel da mulher na relação parental. A forma de construção da maternagem está fortemente atrelada ao imaginário social baseado no modelo patriarcal, no qual as mulheres cuidam dos filhos e da casa, abrindo mão de sua vida profissional, dificultando o acesso a uma subjetivação inovadora e que possa romper com esses lugares estabelecidos.

Tal característica configura-se numa identidade construída e alicerçada durante muitos séculos de história, conservada e transmitida, seja pelas famílias como pelos grupos sociais, que sustentam firmemente a base dessas alianças inconscientes. Com isso, verificamos a presença da idealização da maternidade e da necessidade de busca pela perfeição na maternidade, que resultaram no abandono da vida profissional para a dedicação exclusiva à maternidade.

Além disso, tais ideais são transmitidos e sustentados, tanto pelas próprias mulheres como pelas famílias e grupos sociais, dificultando as negociações identitárias que permitam às mulheres ocuparem outros protagonismos além da maternidade. A presença da culpa nas entrevistas analisadas corrobora tal conflito, que não é apenas de ordem pessoal, mas ancorado nos ideais sociais. Assim, constatamos uma diversidade de experiências identitárias, mas que resultam no exercício da parentalidade como algo ainda exclusivo à mulher, que se sente solitária, sobrecarregada e culpada, diante dos conflitos decorrentes da diversidade de possibilidades e da exigência de perfeição no tocante à maternidade. Ressaltamos que as diversas possibilidades oferecidas às mulheres ainda necessitam de grande negociação interna e intersubjetiva, uma vez que ainda não foi devidamente incorporada pelo tecido social, refletindo os conflitos identitários verificados neste estudo.

Ressalta-se como limitação deste estudo, que optamos por discutir sob recorte da experiência da maternidade “integral” e sua relação com a construção do papel social da mulher vinculado à maternidade. As questões relativas às contingências do trabalho feminino, as desigualdades encontradas nesse cenário sob o recorte específico dos estudos no campo do trabalho foram desenvolvidas em outro manuscrito publicado. Deste modo, acreditamos que esta pesquisa se desdobra em novas questões em busca de abordar outras nuances da relação da mulher com a maternidade.

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Recebido: 25 de Outubro de 2022; Aceito: 17 de Abril de 2023

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