Introdução
O estrangeiro terá necessariamente de sofrer uma metamorfose na qual será forçado a separar-se de um “já esteve longe” a fim de poder viver “agora, neste outro lugar” (Koltai, 2012, p.174)
Este artigo visa discutir os desafios clínicos que enfrentamos durante a pandemia da COVID-19, a fim de manter os cuidados psicológicos/psicanalíticos à população migrante na cidade de São Paulo, Brasil. Tendo em conta que a clínica psicológica do Instituto Sedes Sapientiae onde o Projeto Ponte opera deixou de funcionar presencialmente durante a pandemia, o desejo de oferecer uma escuta atenta neste momento dramático levou à criação de um serviço alternativo não presencial. Foi assim que surgiram os cuidados psicológicos de grupo, num formato online.
O Projeto Ponte funciona há 12 anos na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, uma instituição filantrópica na cidade de São Paulo, Brasil. Somos uma equipe de 8 psicólogos e psicanalistas e um supervisor externo, oferecendo cuidados psicanalíticos a migrantes, refugiados, indocumentados, migrantes internos, apátridas e retornados. Como clínica social, os cuidados podem ser gratuitos e prestados de preferência em grupo a todos aqueles que sofreram os efeitos da migração: ao deixar a sua cultura, a sua língua, os seus laços familiares e de amizade, e que, ao mesmo tempo, estejam construindo um lugar de pertencimento no país que os acolhe.
Para além dos cuidados clínicos, realizamos um trabalho institucional que chamamos “Cuidar de quem cuida”, um espaço de escuta e de sensibilização com algumas instituições da Rede de Cuidados e Atenção à População Migrante da cidade de São Paulo. Em 2019, iniciamos o Ponte Curumim, um projeto psicológico/psicanalítico de atendimento grupal aos filhos e filhas de migrantes. Ademais, oferecemos rodas de conversa para pais migrantes e instituições educativas que recebem a segunda geração.
Consideramos o trabalho psicanalítico com migrantes — muitos em condições de grande vulnerabilidade — dentro da esfera dos cuidados oferecidos ao outro, que inclui acolhimento, hospitalidade, escuta e a possibilidade de circulação da palavra. O nosso trabalho centra-se na elaboração dos efeitos subjetivos da migração.
Sabemos que o deslocamento humano sempre acompanhou o processo de civilização. No entanto, em certos momentos da história da humanidade, estes deslocamentos tiveram ou têm um caráter particular, ao serem forçados por guerras, fome, violência, racismo, sexismo, perseguição, desemprego, catástrofes ambientais, etc.
Entendemos que os migrantes têm múltiplas exigências, para além da sobrevivência. Precisam encontrar moradia, emprego, aprender uma nova língua, construir laços no novo país. Como sujeitos, precisam poder falar e ser escutados sobre a dor e as dificuldades que advêm de estar longe dos seus entes queridos, de viver com pessoas de outras culturas e religiões, da discriminação sofrida e das memórias difíceis que subitamente aparecem e que desejam esquecer.
Referencial teórico
O Projeto Ponte segue as orientações clínico-políticas da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, que propõe um projeto de intervenção singular para cada paciente. Não é uma clínica escola, mas um serviço social de assistência psicológica que tem diferentes profissionais na área psi, incluindo psiquiatras, e assistentes sociais.
Como psicanalistas, seguimos alguns referenciais teóricos da psicanálise de grupo como René Kaës, psicanalista francês, que propõe um cuidado de grupo baseado na ideia de um sujeito singular e plural ao mesmo tempo. O autor considera que o sujeito psíquico é um ser social, pois existe uma articulação irreversível entre a vida singular e social: o sujeito não existe fora da sociedade, precisa de outro para se constituir, não pode viver fora dos grupos.
Na obra “Elementos de análise de grupo” (Pisani, 2005), é revisitada a obra de S. H. Foulkes, psiquiatra e psicanalista germano-britânico, onde descreve seu trabalho de grupo, nomeado de grupanálise. A técnica consiste em um formato de trabalho com grupos pequenos de até 10 participantes, dispostos em um círculo, propiciando uma relação horizontal entre os participantes e o terapeuta. Este grupo é semi-aberto (slow-open), possibilitando que os participantes entrem ou saiam do grupo quando tiverem a necessidade de interromper sua análise.
O Projeto Ponte, tendo como referência estes autores, adota este manejo clínico que melhor se adapta ao nosso público migrante. Nossos pacientes são atravessados constantemente por questões de deslocamento e, por vezes, são impedidos de uma permanência em suas residências, trabalhos, vínculos, instituições de acolhimento, etc., o que os impossibilita de se manterem presentes ao longo do seu tratamento. Na transição para os atendimentos online na época da pandemia da COVID-19, devido ao isolamento social, conseguimos nos aproximar dessa horizontalidade proposta na técnica de Foulkes, ao introduzir o atendimento online e sustentar que todos os pacientes tivessem acesso a internet e que também conseguissem se ver nas telas. Vale ressaltar que instruímos os participantes a manterem suas câmeras ligadas bem como estarem em lugares onde poderiam ter garantido a privacidade, preservando o sigilo dos atendimentos acordado por todos.
Associado ao referencial teórico, outro aspecto de destaque é o perfil do público atendido pelo Projeto Ponte. No caso dos nossos pacientes migrantes, existe a característica de múltiplos pertencimentos em diferentes grupos nos países de origem e de destino, o que coloca desafios complexos quando se lida com línguas e culturas diferentes. A partir dessa constatação, uma das nossas escolhas clínicas foi adotar a língua portuguesa como forma de comunicação no grupo. Muitas vezes, os pacientes não conhecem palavras ou expressões em português, por isso, acabam por se expressar em sua língua materna, o que é esperado, uma vez que os participantes vivem uma experiência interlinguística. Isso possibilita uma interação entre os membros do grupo, já que circulam no grupo muitas línguas e referências desconhecidas, o que implica a necessidade de realizar perguntas e tentar compreender o que está sendo dito. Em muitas ocasiões, os participantes se surpreendem quando constatam que o repertório linguístico de alguns migrantes pode ser muito vasto e algumas línguas desconhecidas1. A escolha do português como língua comum nos grupos não é imposta de forma normativa, como se se aplicasse uma força de adaptação colonialista ao paciente, mas como uma possibilidade de criação de um espaço de pertencimento e vínculos no país de acolhida, uma língua comum. Dessa forma, existe a promoção de uma certa horizontalidade nos grupos, já que não existe tradutor, onde todos colaboram para que exista uma comunicação que respeite as diferenças.
Betts (2000) fala do processo de aquisição de uma nova linguagem e de como isto provoca uma modificação subjetiva através da aquisição de novos significantes que tornam possíveis novos circuitos desejáveis. Diz ele:
Conhecer uma língua é comunicar-se. Conhecer uma língua é ser falado por ela, ou seja, ser atravessado pelos seus significantes, fundando uma subjetividade desejante. Ser falado por outra língua implica deixar-se atravessar pelos significantes dessa língua, dando origem a um desejo “diferente”. Implica deixar-se levar pela sua musicalidade, pela melodia da língua e também pelos seus aspectos fonéticos, que frequentemente trazem a dificuldade de articular novos sons, inexistentes na língua de origem. (p.152)
Consideramos, portanto, que o sujeito migrante é um sujeito dividido entre culturas e línguas, o que também implica uma condição de estrangeiro em ambas. Essa característica do ser migrante se faz presente, também, nos grupos terapêuticos, especialmente nos momentos de confusões entre línguas e de referenciamento cultural, devido à emergência de conteúdos inconscientes. Nesses momentos, o paciente precisa explicitar sua relação com o país de origem e as dificuldades de apropriação da vivência no Brasil: angústia, saudade, dificuldade de pertencimento, etc.
No sujeito migrante há uma manifestação latente do conflito entre as condições de vida no país de origem e as possibilidades de vínculo no país de acolhimento. Conflitos estes que provocam estranhamento frente a alteridade do outro, e ao horror que sua singularidade provoca. O outro é sempre um enigma, aquele outro em mim, o unheimlich freudiano onde o familiar e o estrangeiro coexistem. Freud (1919/1980) no seu texto “O estranho” nos diz:
A palavra alemã “unheimlich” é obviamente o oposto de “heimlich” [‘doméstico]’, “heimisch”, [‘nativo’] – o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a relação não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem que ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho. (p. 275)
Pensando nesse entrelaçamento entre o estranho e o familiar é importante sublinhar que nos apoiamos no conceito de interculturalidade, através do qual o grupo estrutura uma trama que se inscreve na passagem pela diversidade cultural, onde uma cultura se modifica e é modificada pela outra. Neste sentido, acreditamos que cada pessoa pode apropriar-se da sua própria experiência migratória como uma escolha que envolve tanto ganhos quanto perdas. Vemos o poder deste encontro como um catalisador para o trabalho analítico.
No nosso trabalho, partilhamos o conceito de interculturalidade proposto por Lisette Weissmann (2019), que o descreve como
As culturas em conflito e em diálogo simultâneo, não tentando obstruir as diferenças e sim fazer com que elas conversem e se entrelacem. Esta ideia do sujeito intercultural, contemporâneo em conflito, é compartilhada pela psicanálise, porque Freud parte do pressuposto de que o ser humano é um ser em conflito, sendo o conflito inerente à vida. A interculturalidade também permite ampliar horizontes, dando lugar às diferenças e apontando ao enriquecimento e mudança contínua. (p. 64)
A psicanálise acolhe, escuta e sustenta o conflito. Como psicanalistas, consideramos o conflito e o entrelaçamento entre culturas como constituintes do sujeito; neste sentido, não há como excluí-los, mas, ao contrário, tentar fazer deles uma oportunidade para quebrar o status quo, na medida em que ideias diversas, mesmo contraditórias, podem surgir e dialogar.
Resultados e Discussão
A pandemia da Covid-19 pode ser pensada como um evento que inaugura um antes e um depois, e um presente que causa muitos desconfortos subjetivos nos laços sociais. O isolamento e a distância social necessários para enfrentá-la colocou a população migrante num estado de maior vulnerabilidade, uma vez que são grupos populacionais cuja rede de contatos é frágil, onde a falta de apoio social é uma das maiores dificuldades que enfrentam. Os pacientes atendidos neste período relataram angústias frente à estranheza de estar fora de casa e longe da família em situação tão precária, sem ter notícias da real situação de saúde dos seus e mesmo sem saber quando poderiam se reencontrar com os familiares e amigos. Estariam eles vivos, sobreviveriam ao vírus? Obviamente estar frente a morte longe do familiar incrementa a angústia sobremaneira.
As fronteiras foram fechadas, o medo do estrangeiro tornou-se mais agudo, assim como os preconceitos e as situações de violência. A forma como cada país enfrentou a pandemia está relacionada a fatores complexos que incluem aspectos econômicos e políticos, infraestrutura de saúde e educação, crenças, características culturais, negação, etc. No Brasil, as desigualdades estruturais, o racismo e a xenofobia, a crise econômica e o autoritarismo político aumentaram as tensões e o desamparo.
Por outro lado, a crise de saúde global e o número crescente de pessoas mortas tornaram todos conscientes da natureza transitória de nossas vidas e das vidas das pessoas à nossa volta. No texto “Sobre a transitoriedade”, um ensaio escrito em 1916, na altura da Primeira Guerra Mundial, Freud (1916 [1915]/1980) afirma que, perante a perda de um objeto, os seres humanos reagem de forma melancólica e, revoltando-se contra essa perda, desvalorizam a vida e a beleza da mesma. Contrasta isso com a sua opinião de que a limitação do tempo daria mais valor aos produtos culturais e à satisfação de viver. Diz ele:
Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes. (p.348)
Trazemos esta ideia freudiana porque é interessante discutir as duas posições face à perda: uma de não consentimento, conservadora, de dor sem abertura, e a outra, criativa, de invenção, de poder fazer algo com o que se perde.
Face a catástrofe sanitária que vivemos e que introduziu uma ruptura no tempo e nos laços sociais, os modos de resposta podem tomar essas direções, numa gama que vai desde a negação à invenção. A pandemia obrigou-nos, como equipe, a reinventar nosso trabalho para atendimento online. Após um momento inicial de perplexidade, de suspensão do conhecimento, pudemos começar a fazer circular palavras e pensamentos. Começamos um processo de estudo e investigação para basear a prática de cuidados online, especialmente de cuidados de grupo, e para criar o “Ponte na Escuta”, uma resposta singular da equipe à nova contingência. Este trabalho está consolidado numa modalidade de assistência de grupo online que permitiu a continuidade de grupos já formados e, ao mesmo tempo, abriu possibilidades de assistência a migrantes fora do Brasil e fora da cidade de São Paulo. Assim, foi formado o primeiro grupo online para migrantes que nunca se encontrará pessoalmente, e que continuará mesmo quando o trabalho presencial for retomado na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae. Também atendemos casos de forma individual, quando avaliamos que o paciente precisa.
A mudança do setting presencial para o online continuou promovendo efeitos aos sujeitos em deslocamento que estavam em sofrimento, pois fizeram deste espaço um suporte para pensar a sua dor. Percebeu-se que a necessidade demonstrada por eles de continuarem esse processo, revelava que podiam simbolizar esse sofrimento e que a presença do analista, embora fosse virtual, legitimava isso. Assim, constatou-se que a distância física nesse espaço online se deslocava para um encontro legítimo promotor de um trabalho psicoterapêutico. O caráter virtual desse processo possui um duplo significado: ao mesmo tempo em que possibilita que o encontro aconteça, também reforça o momento de deslocamento de cada um, independente do lugar em que estão.
Algumas dificuldades com os cuidados online foram apresentadas pelos pacientes dos grupos. Surgiram problemas com o acesso à tecnologia e a possibilidade de ter espaços privados para as sessões, conteúdos estes que foram trabalhados nos grupos. Foi necessária uma certa plasticidade para lidar com as resistências e ausências dos pacientes, devido aos efeitos da pandemia - ausências estas que mostram a vulnerabilidade da condição migrante que precisava aceitar trabalhos informais para manter a sobrevivência, muitas vezes, abrindo mão dos atendimentos grupais ainda que estes representassem um lugar de amparo e sustentação diante de tantas adversidades. Sabemos que a resistência faz parte do processo terapêutico, porém a modalidade online, para muitos pacientes, os coloca em um lugar de exposição com câmeras. Coube aos terapeutas pensar no manejo de uma escuta mais ativa, observando as sutilezas das expressões e entonações da linguagem, de modo a manter um clima de confiança e garantir o trabalho terapêutico nesta modalidade
Weinberg (2020) chama a esta ação de gestão dinâmica do analista de grupo, que precisa estar atento aos diferentes movimentos no grupo, desde a expressão facial de cada pessoa, a entoação da voz, até à forma como se apresenta na tela e como estabelece um código de comportamento de grupo online. Para este autor, a transparência do analista sobre as suas próprias observações é fundamental para estabelecer um clima de segurança e confiança, tornando possível que os sujeitos se envolvam no trabalho terapêutico.
Em relação ao perfil dos pacientes, gostaríamos de destacar que no período de pandemia da COVID-19, algumas pessoas perderam seus empregos, outras sofreram muito com o isolamento social, vivendo em ambientes pequenos e precários, com fome, medo, doenças, nascimento de crianças sem apoio afetivo e social, aumento dos conflitos familiares, violência doméstica e da hostilidade e preconceito.
Tendo em vista o incremento da vulnerabilidade durante este período, sublinhamos a importância e relevância do trabalho em rede como um dos pilares fundamentais dos cuidados prestados aos migrantes; como dissemos anteriormente, fazemos parte de uma Rede de Cuidados em Saúde do Migrante. Trabalhamos em diálogo com instituições que cuidam de outros aspectos desta população, bem como com uma clínica ampliada, por exemplo, com psiquiatria e assistência social da clínica do Instituto Sedes Sapientiae, onde o Projeto Ponte funciona.
As perdas e sofrimentos decorrentes do cenário de pandemia não atingiram somente os indivíduos. Muitas instituições também sofreram com as perdas, incertezas, inseguranças e tiveram que se deparar com as suas próprias vulnerabilidades neste período - muitas equipes de trabalho relataram grandes angústias sobre a própria sobrevivência institucional e de condições de trabalho diante de instabilidades econômicas e sociais, sem qualquer previsibilidade de quando a pandemia terminaria. Ainda assim, foi possível constatar uma efetiva mobilização da Rede de Cuidados para dar conta de tamanho desamparo cultural e social - uma resposta e aposta na resistência de aparatos coletivos diante de uma realidade mortífera. Um exemplo da potência da Rede, é que mais de 60% das recepções realizadas pelo Projeto Ponte entre 2020 e 2021 foram encaminhadas por parceiros institucionais (Figura 1), alcançando inclusive outros estados além de São Paulo. Foram ao todo realizadas 75 recepções neste período (Figura 2).

Figura 2 Pacientes recebidos pelo Projeto Ponte entre 2020 e 2021 categorizados por cidade de moradia atual
Partilhamos a experiência de um migrante latino-americano de língua espanhola, que contatou a equipe no início da pandemia num estado de grande vulnerabilidade psicológica e física, com uma doença infectocontagiosa grave diagnosticada em 2019 e tratada no âmbito da rede de saúde pública. Estava na iminência de ficar sem moradia, tinha perdido o seu emprego no restaurante onde trabalhava, uma vez que este fechou quando começou o isolamento social. Apresentava pensamentos persecutórios, depressão com ideações suicidas e profunda desesperança. Um psicanalista da equipe iniciou uma série de entrevistas com ele duas vezes por semana e na reunião da equipe discutimos a direção clínica do caso. Uma primeira atitude foi pedir a intervenção da assistente social do Instituto Sedes, e mobilizar as redes institucionais de assistência aos migrantes a fim de encontrar um lugar num abrigo para migrantes. Foi também necessário estabelecer contatos com o departamento de psiquiatria do Instituto Sedes e com o centro de saúde que o tratou. A rede tecida virtualmente, o apoio e a escuta empenhada do terapeuta do Projeto Ponte, abriram uma ponte para que ele pudesse passar por esta fase dramática da sua vida no Brasil e começar a elaborar uma história sobre as suas experiências de vida e, num momento futuro, poder ser integrado nos cuidados do grupo terapêutico. Assim, a entrada posterior deste migrante no grupo, ainda em tempos de pandemia, foi positiva. Ele estava disponível para trocar experiências com os outros membros do grupo. Construiu laços tanto com o coordenador quanto com os demais participantes. Os seus pensamentos persecutórios diminuíram muito. A participação num grupo terapêutico foi importante para o seu crescimento e socialização. A equipe pôde ver a potência do grupo, e sua eficácia também na forma virtual.
Relatamos aqui uma pequena vinheta clínica deste grupo. Na cena a seguir há um recorte de fala entre dois membros do grupo que no momento era constituído por 5 pessoas.
Pedro2: -Estou muito contente com a minha mudança para o interior. São Paulo me deixava nervoso. Estar perto da natureza me faz sentir em casa.
Veronica: -Consigo perceber o quanto você parece feliz. Está muito animado.
Pedro: -Aqui tem mais qualidade de vida (vira a câmera e mostra um pouco sua nova casa para o grupo.)
Na sequência todos concordam com que o espaço parece muito agradável e que ele parece estar bem.
Cabe destacar que tínhamos uma preocupação com a entrada de Pedro ao grupo, que acontecia na modalidade on-line, e de como seria sua transição do atendimento individual para o grupal, já que se mostrava sempre desconfiado e se sentindo perseguido por outras pessoas. Apostávamos que estar em grupo poderia ser um lugar potente e que daria justamente pela vivência grupal mais espaço para que pudesse refletir sobre suas questões no relacionamento com outras pessoas, assim como escutar relatos de outros pacientes do grupo. Sua entrada foi surpreendente, em pouco tempo já estava entrosado com o grupo e conseguindo falar de si.
René Kaës (2007/2011) dá-nos uma orientação sobre o trabalho de grupo, dizendo que:
O aparelho psíquico do grupo mobiliza, liga e reúne as formações e processos da psique de cada membro do grupo no trabalho psíquico que lhes é imposto para construir o grupo. Deste ponto de vista, a formação da realidade psíquica do grupo é baseada na psique dos seus membros, é construída com a sua matéria, com os seus organizadores e de acordo com os seus processos. Portanto, o grupo recebe, agarra, utiliza, gera e transforma-os de acordo com a sua própria lógica e os seus próprios processos (p.120).
Acreditamos que o dispositivo de grupo tem o poder de dar voz às histórias de migrantes, muitas histórias de perdas, lutas e traumas que são difíceis de contar e de escutar. Foi neste exercício de encontro com o outro que o nosso trabalho foi sustentado e obteve maior alcance na modalidade online. O espaço do grupo, em território virtual, continua como um lugar onde as questões migratórias podem ser colocadas e elaboradas, permitindo a construção de novos laços.
Conclusões e Recomendações
O trabalho clínico com migrantes consiste numa narrativa, construção e elaboração das razões e efeitos da migração, para a apropriação desta experiência e deste duplo lugar do estrangeiro na transferência. O envolvimento e a reserva do analista, conceitos que Figueiredo (2007) desenvolve na “Metapsicologia dos cuidados”, apontam para a experiência do cuidado como fator primordial para a continuidade psíquica do sujeito. A partir da contextualização de Figueiredo, Emparan (2020) acrescenta que a continuidade psíquica, no caso dos sujeitos migrantes, se ancora numa narrativa que inclua uma subjetividade construída em dois tempos (antes e depois da migração) e dois espaços (país de origem e de destino). A escuta atenta e cuidadosa por parte do analista contribui para o processo de elaboração da história do sujeito migrante.
Finalmente, sublinhamos que o nosso trabalho como analistas é um testemunho do que se passa no mundo contemporâneo e sustenta o lugar de escuta dessa diferença que o migrante encarna, um lugar (des)colonizado de representação sociopolítica que dá voz ao que a sociedade insiste em afastar, tornando visível a construção de muros, denunciando a arbitrariedade das fronteiras, o caos dos campos de refugiados e as fraturas sociais que tentam esconder. Ouvir a singularidade velada do migrante pode nos deixar desconfortáveis, provocar angústia e mobilizar aquilo que é mais arcaico nos seres humanos: hostilidade, intolerância, racismo, xenofobia, etc. E, em tempos de crise social, isso se incrementa. Por isso, tamanha a importância do trabalho terapêutico com essa população.