Introdução
O presente artigo parte de uma pesquisa realizada com profissionais que atuam na saúde mental, a partir dos referenciais da psicanálise de grupos e do grupo operativo, tendo este como um método de pesquisa.
Tratou-se de uma pesquisa-ação, realizada ao longo de 2021, denominada Proposta de intervenção grupal para promoção da saúde mental dos trabalhadores dos CAPS e seus reflexos sobre a população atendida no contexto da pandemia de COVID-19. Como resultante, um primeiro artigo foi produzido a partir dos resultados obtidos com o processo de intervenção, utilizando-se do Grupo Operativo. Como metodologia de trabalho que sustentou tanto o processo de intervenção, quanto a análise de dados, utilizou-se o recurso da Intervisão e esse foi parte integrante da pesquisa como suporte aos pesquisadores em todas as suas etapas.
Este texto apresenta o recorte do estudo da experiência de Intervisão da equipe de pesquisadores, resultante da análise do cotidiano e da interação de seus membros, que levou ao desenvolvimento de um processo participativo, adaptado às necessidades e possibilidades da situação.
Para tanto, primeiramente apresentamos os fundamentos que sustentam a metodologia da Intervisão, para na sequência abordar resumidamente no que constou a pesquisa ora mencionada e, por fim, analisar a experiência da Intervisão em relação à pesquisa-ação, tendo como fundamento a psicanálise, com vistas à investigação muito minuciosa da realidade que visava transformar.
Intervisão: origem e fundamentos
A Intervisão tem origem em diversas propostas, como por exemplo, na metodologia desenvolvida e aplicada no campo médico, denominada Grupo Balint (GB), cujo foco é possibilitar um maior entendimento, capacitação e atitude do profissional de saúde sobre a sua forma de interagir, o que poderia gerar mudanças significativas a favor do paciente. Nesta proposta, a cada apresentação clínica de um caso no grupo, discute-se os impactos desse, sempre preservando a singularidade do profissional na sua forma em estar com seu paciente. O grupo é como um espaço para o treinamento de uma escuta mais sensível e compreensiva. O coordenador do grupo tem a função de cuidar para que ocorra o exercício, de tal forma que possa ser desenvolvida essa mesma escuta, proposta e esperada, para que possibilite aos médicos apreenderem e depois praticar quando no contato com os doentes, remetendo assim ao significado da metáfora sempre utilizado por Balint: o médico como medicamento (Balint, 2007).
Identificamos estudos que apresentam o conceito de Intervisão a partir do que é a supervisão, atividade conhecida dos profissionais e que a abordam como recurso no processo de formação profissional, onde todos os papéis são alternados entre os participantes do grupo. O termo Intervisão expressa o caráter liderado por pares e aparece interligado à supervisão, mas distinto dela. (Saraiva et al., 2020).
Saraiva et al. (2020) apresentam um estudo sobre os processos de supervisão e Intervisão, práticas amplamente utilizadas e reconhecidas no desempenho profissional, sobretudo, na sua utilização em contexto da Psicologia Escolar e da Clínica. Para tanto, os autores iniciam por extensa pesquisa sobre ambos os conceitos, rastreando a origem, definições e fundamentos teóricos que sustentam tais práticas.
Iniciam com a definição desses conceitos mencionando a Associação Americana de Psicologia – APA (2014), sendo apresentados como suporte no processo formal de colaboração entre profissionais, com componentes facilitadores e avaliativos. Estes funcionam como forma de desenvolver a competência profissional e a prática informada, por meio de alguém que já possui mais experiência e está credenciado para tal - o supervisor - e pode acontecer individualmente ou em grupo.
Neste aspecto a supervisão enquanto função definida, num papel profissional circunscrito à relação com o supervisionado, está enquadrada em modelos teóricos e formativos, recorrendo a técnicas e metodologias de apresentação de casos. Os autores afirmam que a designação “Intervisão” já traduz em si uma “visão entre pares”, ressaltando a troca entre elementos que se veem como iguais.
No artigo de Finkler et al. (2020) a experiência da Intervisão é apresentada como uma estratégia de formação profissional, em um curso de especialização em Trabalho Social com Famílias e Comunidades, sendo esta entendida como um dispositivo que possibilita explorar o potencial do olhar, da capacidade reflexiva, do pensar e do expressar. Os autores citam o estudo de Moreno e Orvalho de 2018, sobre uma experiência de Intervisão entre pares multidisciplinares de professores e formadores dos cursos profissionais. Na proposta a metodologia utilizou, além da escuta e conversação, a escrita através de um diário de campo, apresentando que a função do professor/coordenador do grupo é circular a palavra e buscar as visões que cada um tem sobre o mesmo relato/experiência, criando perspectivas distintas sobre o mesmo ponto.
Do conjunto pesquisado, a Intervisão elimina a assimetria fundadora da chamada supervisão didática, na medida em que inscreve o trabalho da intersubjetividade como a pedra fundamental das trocas entre dois ou mais terapeutas que analisam o material clínico. Dessa forma, ficam para trás tanto a dualidade ativo-passiva quanto a entronização do sujeito de suposto saber, como versões ilusórias ou desejantes das respectivas posições subjetivas.
Dito isto, para o presente trabalho é importante apresentar, da perspectiva psicanalítica, como a Intervisão é compreendida e utilizada como estratégia que constituiu a base desse trabalho.
A Intervisão e a Psicanálise
Desde que Freud estabeleceu o célebre tripé da formação psicanalítica, composto necessária e solidariamente pelos estudos teóricos, a vivência de um processo psicanalítico pessoal e as supervisões, inúmeros trabalhos teóricos e atividades práticas formativas vêm se desenvolvendo.
As supervisões têm sido investigadas desde variados pontos de vista, a depender do referencial teórico de quem escreve, ou dos contextos institucionais onde elas são praticadas. Sendo a supervisão um critério essencial do tornar-se psicanalista, desde o início de uma formação psicanalítica, naquelas Sociedades regidas pelos referenciais da International Psychoanalytical Association - IPA, mas também nas associações psicanalíticas de orientação lacaniana, ou de outras concepções e tendências, mas que mantém o rigor e a qualificação adequada de seus proponentes, sempre se sustenta essa exigência.
Existe assim a prática da supervisão como sustentação e critério formativo em qualquer Sociedade ou Associação Psicanalítica séria e comprometida. Essas formações são longas, as análises pessoais demandam anos e sessões frequentes, assim como as supervisões, dirigidas por psicanalistas com muita experiência e conhecimento. Durante a formação o modelo da supervisão é mais vertical, costuma-se incentivar muita participação dos membros do grupo e a produção de múltiplos vértices de discussão.
Já as supervisões que ocorrem posteriormente na vida dos psicanalistas, quanto maior é a experiência de cada participante de um grupo, e mesmo que esteja sendo dirigida por um psicanalista de reconhecido renome e competência, essas vão adquirindo um caráter mais horizontal.
Assim, uma prática supervisionada bastante comum em muitas Sociedades e Associações é a denominada Seminário Clínico, onde os psicanalistas do grupo interagem com bastante intensidade e o coordenador pode participar em grau maior ou menor, assumindo um papel mais diretivo para as discussões grupais, ou colocando-se quase que no mesmo nível dos demais, privilegiando-se a produção grupal.
Pensando sobre esse tema, podemos nos remeter a Marion Minerbo (2012), em “Lugar e função do seminário clínico na formação psicanalítica”, que após afirmar não ter encontrado na literatura artigos sobre essa questão, menciona, “do meu ponto de vista, o seminário clínico é o lugar em que se pode elaborar coletivamente, em ‘em tempo real’, um pensamento clínico sobre o caso, integrando o universal/abstrato da teoria ao singular/concreto de uma análise.” (p. 51).
A autora nos apresenta quatro pontos que norteiam esse trabalho: a construção de uma pequena teoria psicopatológica sob medida para aquele caso que está em discussão; a identificação dos principais aspectos transferenciais e contratransferenciais envolvidos; a formulação de uma interpretação sobre o funcionamento da dupla analista-analisando e a discussão das questões técnicas pertinentes ao caso.
Passemos agora a umas poucas referências das discussões teóricas sobre Supervisão em Psicanálise.
Eizrick (2015) afirma que o tripé proposto por Freud configura “um processo dinâmico, interminável e sempre incompleto de um analista em construção.” (p. 58). A supervisão psicanalítica “pode ser um foco de estímulo e de trabalho conjunto e mutuamente enriquecedor, ou um espaço para uma transmissão de uma forma de pensar ou analisar centrada na figura e na autoridade do supervisor” (p. 61). Eizrik defende a necessidade da formação poder gerar psicanalistas com estilo próprio, criativos e independentes.
Psicanalistas importantes, como W. R. Bion, deixaram sua marca original nas supervisões coletivas para psicanalistas de grande prática profissional (Mello, 1998). Com seu profundo conhecimento sobre os grupos, Bion costumava deixar seus supervisionandos em estado de grande perplexidade, obrigando o grupo a refletir não só sobre o caso, mas também sobre a psicanálise, sobre o processo de pensar, e sobre o inefável e o inesperado da situação psicanalítica. Assim, cada participante podia colocar-se em situação de co-supervisor do caso, revendo ao mesmo tempo sua própria atuação profissional.
Também de Pierre Fédida se diz que ele supervisionava estimulando a ativa participação de todos, mantendo uma postura aberta e não-dogmática (Meyer, 2004).
Dos poucos trabalhos que abordam o recorte da Intervisão e a psicanálise, encontramos no artigo de Wender (2010) a afirmação de que esta abrange um intercâmbio analítico intersubjetivo, com a tarefa de integrar as psicodinâmicas individuais, articulando desta forma o inter, o intra e o transubjetivo, propiciando maior liberdade a quem apresenta o caso a ser discutido.
Para o autor, a Intervisão consiste em estimular a contratransferência de todos os participantes e intercambiar a livre associação, principalmente, de quem está apresentando o caso, como também contempla tanto a Intervisão bipessoal quanto a Intervisão grupal. No caso desta última, seus participantes vão expressar pública e livremente, suas subjetividades, teorias e técnicas clínicas, dado que este exercício reforça o intercâmbio e respalda o conceito dinâmico da experiência de Intervisão.
De todas essas colocações, o que se depreende é que é muito raro que a Intervisão, tal como sustentamos no presente artigo, seja comum na prática psicanalítica. Mesmo quando um psicanalista consegue participar de várias supervisões e seminários clínicos, em geral ele não tem um acompanhamento integral de seu trabalho, desde o início até o final do mesmo, em supervisões semanais com um grupo de pares, supervisores com igual formação e semelhante percurso profissional que acompanham todo o desenrolar do trabalho. Essa Intervisão de todas as etapas, desde a preparação até o desfecho do trabalho clínico, com reflexões teóricas e metodológicas ao longo e ao final do processo, parece ser a originalidade de nossa proposta.
A Pesquisa
A pesquisa teve como objetivo proporcionar aos profissionais de saúde mental que trabalham em Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, no estado de São Paulo, Brasil, condições para promoverem sua própria saúde mental, bem como a do público com o qual atuam profissionalmente. A pesquisa de natureza qualitativa, do tipo pesquisa-ação, utilizou como instrumento de intervenção Grupos Operativos (GO) on-line de discussão temática. Ocorreram 24 sessões para dois grupos participantes, nos seis meses determinados para a intervenção, os quais permaneceram coesos, produtivos e capazes de alcançar importantes elaborações, realizando todas as tarefas a que se dispuseram.
O período de mais de seis meses de duração da pesquisa-ação coincidiu com um dos picos de agravamento da pandemia, com todo seu cortejo de sofrimentos pessoais e coletivos, o que demonstrou tanto a oportunidade como a efetividade de se empregar essa metodologia para o fortalecimento dos vínculos grupais, da identidade profissional, o aumento da resiliência, juntos promovendo maior capacitação profissional diante dos agravos da pandemia sobre uma população já bastante afetada por suas condições socioeconômicas.
Para tanto, na sequência apresentamos a análise da experiência da equipe de pesquisadores no processo de sustentação para a intervenção do GO, tendo a Intervisão como instrumento de pesquisa clínica.
Análise e Discussão
Atendemos dois grupos com profissionais de CAPS do Estado de São Paulo. Foram 24 sessões semanais cada grupo, no horário de trabalho dos profissionais, com duração de 1 hora e 30 minutos, em ambiente on-line, sob sigilo do nome dos participantes e do conteúdo discutido em cada encontro. Simultaneamente ao trabalho com os grupos ocorriam as sessões semanais de Intervisão. Na verdade, esse trabalho iniciou-se desde o primeiro momento da concepção da pesquisa-ação, acompanhou as 24 semanas da intervenção, e se prolongou nos meses seguintes para a elaboração da análise da intervenção que resultou no artigo já mencionado, e posteriormente para a redação do presente artigo.
O recurso da Intervisão foi parte essencial de todo o processo e, pode-se dizer que a equipe de pesquisadores lidou simultaneamente com dois temas, sendo um primeiro as funções das coordenadoras dos grupos e de seus membros, e um segundo, em que traziam à tona os elementos que dificultavam e facilitavam o trabalho, e as ressonâncias provocadas nos seus pares.
Constituímos uma equipe de Intervisão, composto por sete pesquisadores, membros do NESME, com o objetivo de realizar a pesquisa e de investigar o processo dos GO, caracterizado pela horizontalidade e pela reflexão conjunta. Mantivemos encontros semanais para a discussão de cada sessão.
Ao longo das 24 sessões de cada grupo, muitos foram os momentos e, principalmente nas 8 sessões iniciais, que a densidade e desesperança dos participantes do grupo eram sentidos como enorme carga para os coordenadores, uma vez que estavam ali ao mesmo tempo lidando com seus próprios medos e angústias de morte. Nesse sentido os encontros semanais da equipe, não só acolheram e contiveram como também possibilitaram que cada etapa ganhasse oxigênio, para se transformar em um sonhar e pensar grupal. Podemos exemplificar o momento em que uma das coordenadoras referiu “se sentir no mesmo lugar que as participantes, com angústias semelhantes e temer ter se misturado com as participantes por alguns momentos”, no momento em que os trabalhadores da saúde traziam a morte de dezenas de pessoas, como a falta de oxigênio, atravessava não só a coordenadora como também toda a equipe de pesquisadores,
Ao nos referirmos que a Intervisão oferecia uma contenção emocional aos coordenadores dos GOs, pudemos constatar que a contratransferência é um analisador importante do clima e do desenvolvimento grupal, algo a ser considerado e pensado para compreensão do cumprimento ou não da tarefa, fundamental para pensar resistências, medos e angústias. Neste ponto em consonância com Castanho (2015) a partir da leitura de Kaës, nos diz:
“a contratransferência quando trabalhamos em equipe é abordada levando-se em conta as transferências estabelecidas entre os membros da equipe interpretante. Trata-se de transferências internas à equipe e que se organizam sob o impacto do que se passa no grupo atendido (…) em situação de equipe interpretante a reação às transferências dos participantes do grupo pode ser vista também no que se passa no vínculo entre os membros da equipe interpretante”. (Castanho, 2015, p.113)
Envolvidos por esse pensar, mesmo que a proposta inicial era termos sete grupos e por várias razões ficamos apenas com dois, desenvolveu-se um senso de responsabilidade com a equipe de pesquisadores, com a pesquisa e com o NESME. Entendemos que isso só foi possível acontecer pela característica do funcionamento da equipe de Intervisão, no qual a perspectiva dos pesquisadores que estiveram na posição de coordenação dos grupos forneceu o conteúdo para que o processo fosse viabilizado.
O processo de Intervisão funcionou como um espaço de troca, de reflexão, de aprendizagem e de acolhimento e transformação das questões relativas à coordenação do GO. A experiência a partir dos primeiros contatos com os inscritos em um dos GO começou antes do início do grupo com preocupações em relação ao sigilo do material e aos objetivos do grupo e da pesquisa. O coordenador remeteu as indagações para o primeiro encontro. Essa situação inicial, provocadora de tensão, foi amenizada com o compartilhamento e a discussão com os pesquisadores da equipe, propiciando reflexão e preparo para o início do grupo.
Em outro grupo o clima das sessões iniciais era de angústia de morte, as questões e tensões que acompanharam de forma intensa os primeiros encontros, que rondavam o imaginário grupal, incluindo o da coordenadora, como se constata nesses registros: “esse grupo vai resistir? teremos grupo? será que elas voltam? seremos apenas nós?”.
Tais experiências eram compartilhadas com a equipe de Intervisão, a partir do diário de campo de cada sessão do qual constava relato, análise, encerramento e observações gerais do coordenador. O diário de campo, concebido como instrumento de trabalho, baseou-se nos princípios gerais da metodologia dos grupos operativos, ou seja, propunha categorias de observação para os aspectos técnicos da tarefa, da comunicação, das ansiedades básicas, da rede de papéis e dos emergentes grupais. A utilização do Diário favorecia uma uniformidade de critérios de intervenção, e como material norteador para o relato da sessão para os demais participantes da equipe. Sem dúvida, esse processo de alguma forma sofria o impacto da transferência do pesquisador com a tarefa e com os demais pesquisadores, bem como da contratransferência com o GO. Um exemplo é o relato sucinto de um encontro cujo tema foi a fragilidade e os cuidados necessários com a saúde da mulher.
Um dos temas mais fortes que surgiram foi que as sessões de Intervisão forneceram uma experiência poderosa e profunda de apoio e retrata a conexão entre a intervenção com o grupo e o suporte recebido pela equipe. Destacamos os momentos em que uma das coordenadoras ao referir aos conteúdos e momentos tensos da intervenção como “falta de uma boa coordenação e de planejamento, onde os limites e necessidades individuais não foram respeitados, a coordenadora disse enfaticamente que elas precisam ser cuidadas e se cuidarem além de cuidar do coletivo”, ou “os ataques em relação à coordenação ou as idealizações em relação à coordenação”, puderam ser acolhidos pelos pesquisadores.
A equipe de pesquisadores criou uma grande intimidade e sempre manteve um compromisso com a tarefa; em termos pichonianos foi construindo um Esquema Conceitual Referencial e Operativo ECRO -, próprio a este grupo, onde cabe teoria, técnica, afeto, expressões inventadas “atenção naufragante”, expressões culturais (música, literatura) e trabalho criativo (Pichon-Rivière, 2005). Em linhas gerais, o ECRO abrange aqueles aspectos cognitivos e emocionais que são tanto particulares a cada membro do grupo, quanto devidos à interação grupal, que vão se tornando patrimônio comum ao grupo. Abarca ainda a cultura grupal, sua rede de papéis, sua ideologia e seus projetos. Quanto mais o ECRO se desenvolve, mais flexível e adequado ele se torna para a resolução de conflitos e a superação de obstáculos às tarefas manifesta e latente do grupo.
A equipe de pesquisadores manteve-se no trabalho remoto enquanto os participantes dos GO, definidos como trabalhadores essenciais, estavam na linha de frente da COVID-19. Essa diferença gerou sentimentos de culpa, pois por um lado todos os profissionais de saúde tiveram acesso à vacinação antes de muitas pessoas da população, mas por outro os pesquisadores estavam protegidos no atendimento on-line num lugar de conforto, que os colocava num compromisso de cuidar da saúde mental daqueles que enfrentavam diariamente os dilemas que a pandemia da COVID-19 impunha.
Uma das pesquisadoras traduziu bem o que as conectava com o grupo de profissionais e o que as distinguia, ao lembrar uma imagem e frase divulgada nas mídias, em que uma figura de um homem negro, com uma máscara utilizada para proteção do vírus, adaptada de um saco plástico de lixo, dizia: “Não, não estamos no mesmo barco, estamos no mesmo mar, uns em iate, outros de barco, outros em salva-vidas e outros nadando com todas as forças”.
Ao final de cada Intervisão, os participantes encontravam maneiras novas e úteis de abordar um problema no contexto ou espaço de trabalho. Neste caso a Intervisão permitiu que a equipe desenhasse o próprio contorno, num processo em que os papeis de cada membro fosse se revezando e caminhasse para um enfoque na prática profissional.
Podemos identificar que os efeitos proporcionados pelo recurso da Intervisão atendem ao que Zimerman (1999) sublinha acerca da extrema necessidade de o psicólogo funcionar como continente destes sentimentos, que muitas vezes não podem ser nomeados, objetivando a comunicação no grupo.
Desta forma, para ser eficaz em sua tarefa no grupo, o psicólogo precisa entregar-se à experiência e, simultaneamente, observá-la. Isso significa dizer que, no grupo, o coordenador é produtor do processo e coordenador do mesmo e, nesse papel, precisa colocar-se na condição de analista do grupo do qual faz parte, levando em conta as singularidades de cada membro, inclusive as suas, o que já constitui uma tarefa complexa. Acrescente-se a isso o fato de que o grupo, é um dispositivo multiplicador e amplificador dos processos individuais, especialmente devido às associações de ideias e afetos, inerente à vida coletiva em pequenos grupos.
Nesse sentido a Intervisão ofereceu contenção emocional dos pares, ampliou as perspectivas e aprimorou as habilidades, que permitiam aos coordenadores encontrar novas maneiras de abordar os conteúdos no contexto ou espaço da intervenção. Com a ajuda dos pares, os pesquisadores recebiam suporte adequado às necessidades e podiam implementá-las na compreensão e condução dos GOs.
Podemos inferir que o funcionamento da Intervisão, além de propiciar continência emocional, os conteúdos e perspectivas diversas compartilhadas, impactavam na prática profissional. Entendemos que as múltiplas perspectivas geradas ajudavam a superar o pensamento unidimensional e a promover a compreensão interprofissional. Tais constatações podem ser exemplificadas pela afirmação de uma das coordenadoras no momento de avaliação dos trabalhos “espaço de poder compartilhar a angústia e impotência e ser acolhida pela equipe da Intervisão”.
A experiência da Intervisão para a equipe de pesquisadores aponta para a conexão com a instituição a qual pertencemos, uma vez que consolida a cultura da nossa equipe. Também ao longo da experiência a intimidade criada entre os componentes da equipe assemelha-se ao que é constituída na relação de coterapia, sendo esta fortalecida e servindo de ponto de apoio entre os pares. Neste aspecto podemos pensar no fenômeno da “intertransferencia” denominado por Kaës (2004) ao referir sobre a relação da dupla de terapeutas, da relação entre eles e o grupo.
Kaës (2004) nos alerta sobre a importância de considerar os efeitos das transferências que surgem em cada participante e no que isso representa para o grupo, ao considerar o conceito de transferências mútuas, apresentado na definição:
Chamei de intertransferência o movimento das formações psíquicas induzido nos psicanalistas na situação de grupo por seus vínculos transferenciais mútuos e, correlativamente, pelos efeitos que as transferências dos participantes induzem em suas contratransferências. (Kaës, 2004, p.138)
Ele ainda menciona em seu texto sobre “As condições metodológicas de pesquisa psicanalíticas sobre grupos” que:
Não se pode considerar e tratar a intertransferência independentemente das diferentes modalidades de transferência que os psicanalistas recebem em situação de grupo, e das contratransferências que vivenciam. A análise intertransferencial é a prática original e específica de elaboração, por uma dupla ou uma equipe de psicanalistas, da resistência à função psicanalítica em um dispositivo de grupo. Tem como objeto a análise dos efeitos transferenciais induzidos entre eles pela transferência dos participantes e por sua própria contratransferência. Ela incide principalmente na análise de alianças inconscientes e das formações narcísicas e ideais comuns. (Käes, 2017, p.321)
Identificamos como diante dos desafios enfrentados pelos pesquisadores, mesmo antes da execução da pesquisa em si, a experiência da virtualidade justo no momento da formação da equipe, o que antes não parecia ser possível, conduziu os participantes a entrarem rapidamente no estado de “tarefa” no sentido que Pichon-Rivière (2005) dá a esse termo, exemplificado na afirmação:
A tarefa, sentido do grupo, e a mútua representação interna feita em relação com a tarefa constituem o grupo como grupo. A tarefa é o caminho do grupo para seu objetivo, é um fazer-se e um fazer dialético para uma finalidade é uma práxis e uma trajetória. (Pichon-Rivière, 2005, p.218)
Entendemos que a experiência da Intervisão fez aumentar a resiliência grupal, pois as frustações iniciais e os momentos de crise facilmente poderiam fragmentar a equipe. Esse fortalecimento, baseado no compromisso dos pesquisadores com a proposta e com a equipe, numa caminhada muito compartilhada, de cuidado mútuo possibilitava um ambiente menos solitário nas reflexões necessárias.
Através da proposta da Intervisão, o vínculo de confiança, o compromisso, e a responsabilização conduzia aos seus participantes o desnudar-se, especialmente quando o cansaço e a desesperança vivenciadas pelas coordenadoras ameaçavam a evolução do trabalho.
Agravando-se a pandemia, acentuava-se a ansiedade dos GOs, das coordenadoras e da equipe de Intervisão, A cada encontro aumentava a ideia de fortalecer a condição das coordenadoras para metabolizar essa ansiedade e a equipe mantinha-se como continente das relações conflitivas de trabalho e das experiências críticas enfrentadas pelas profissionais participantes nos grupos. Podemos entender a potência da equipe de pesquisadores como um receptor que possibilitou a desintoxicação e como enfrentar as relações perversas, o que nos remete a Dejours (2018) ao mencionar que tais situações conduzem ao enlouquecimento no trabalho. A ansiedade na pandemia trazendo sintomas psicossomáticos, reforçava a importância de um espaço de intimidade que suportasse tais conflitos, tanto no macro como no micro contexto. Todos envolvidos nessa pesquisa eram afetados pelo clima dessa conjuntura, assim, a equipe de pesquisadores era um espaço de continência e desintoxicação.
A intervisão, além de um espaço de continência, fazia o trabalho de metabolização dessas ansiedades e capacitação das coordenadoras. O resultado desse trabalho chegava aos participantes finais, ou seja, havia um processo de difração em que as ações ocorridas no GO atingiam os participantes da Intervisão, que elaboravam essas vivências e, de maneira indireta, entregavam para os participantes daqueles GOs suas reflexões. Sobre esse processo, Kaës afirma:
A divisão ou difração das transferências sobre o conjunto dos membros do grupo, sobre o grupo e sobre o analista não é, por conseguinte, uma diluição da transferência. Dir-se-á, antes, que no dispositivo de grupo as transferências plurais, multilaterais e conectadas entre si são difratadas sobre os objetos predispostos a recebê-las na cena sincrônica do grupo” (Kaës, 2011, p.74).
Permitia o fortalecimento onda da ansiedade do grupo no grupo de intervenção e por difração chegava até o grupo via as coordenadoras
Esta sombra da impotência permeava a todos nós, reforçada por ações governamentais no sentido contrário da saúde, muitas vezes a sensação era de que navegámos num mar revolto que exigia de todos muito esforço. Nesses momentos, que fomos nos dando conta de que o recurso da Intervisão promovia muito mais do que análise, suporte e habilidades para lidar com o grupo. Nós, pertencentes à equipe de pesquisadores, saíamos fortalecidos, pois conseguíamos o oxigênio que faltava a muitos. Podíamos escutar as angústias das coordenadoras, para que estas dessem conta do que era depositado a cada encontro. Compartilhamos dores, lágrimas, risadas e, não podemos deixar de reconhecer o quão impactante foi poder ouvir as histórias de resistência ao COVID-19, e nos fortalecer para continuar apoiar as pessoas quando elas mais precisavam.
Considerações Finais
A pandemia de COVID-19 atingia um dos seus picos nesse ano de 2021, quando ocorreu a nossa intervenção ao longo de seis meses com os profissionais dos CAPS, que estavam na linha de frente do combate aos inúmeros agravos e sofrimentos associados à doença. A Intervisão, adotada para dar suporte às coordenadoras dos Grupos Operativos, demonstrou-se como potente recurso para pensar na saúde mental dos profissionais da saúde, mas também para cuidar de todos os profissionais envolvidos, e assim dar conta dos dilemas e atravessamentos que impactavam no dia a dia desse angustiante período.
Pode-se pensar que a estrutura de pesquisa proposta, que manteve uma reunião semanal para a discussão do processo da equipe de pesquisadores e dos Grupos Operativos, funcionou envolvida pela intertransferência. Promoveu não só um ambiente de trocas e aprendizagem por meio da reflexão grupal e individual, como possibilitou um constante encontro dos pesquisadores, que se faziam presentes com suas transferências e contratransferências.
Ainda que tudo isso ocorresse no modo on-line pela plataforma zoom, esses se faziam presentes através de sua imagem com a mente e um corpo expressivo, um olhar cuidadoso, uma escuta que acolhia tudo o que ali era depositado e podiam expressar o que sentiam por sua voz. Foi possível assim ocorrer uma análise cuidadosa da interação grupal, da evolução grupal e da elaboração emocional dos conteúdos discutidos e do progresso do grupo em sua tarefa de promoção da saúde mental dos participantes dos GO.
A Intervisão ofereceu contenção emocional, ampliou as perspectivas e aprimorou as habilidades que deram confiança às coordenadoras e aos membros da equipe. A assiduidade e o compromisso entre os participantes somados à busca de manter as condições de horizontalidade, características da Intervisão, foram fatores que influenciaram a experiência positiva dessa proposta.
Ressaltamos a potência do espaço da Intervisão no compartilhamento dos sentimentos, dos pensamentos, das indagações e das rememorações ativas de cada um da equipe, forneceu um espaço em que foi possível falar do traumático e dos cuidados recebidos a cada encontro, para que nós, profissionais de saúde, também pudéssemos cuidar da saúde mental daqueles que estavam na linha de frente.
Com base nessas reflexões, entendemos que esse recurso, além de possibilitar o cuidado da saúde mental de todos os envolvidos, oferece uma abordagem que ajuda a incorporar a prática reflexiva como proposta para a metodologia de estudo utilizada. O ineditismo está na utilização da Intervisão como recurso metodológico vigoroso para responder aos desafios de uma pesquisa qualitativa, ao garantir a análise cuidadosa do processo de intervenção, como também de uma produção de conhecimentos gerada a partir do saber e do fazer grupal, integrando teoria e prática.