Introdução
O termo pandemia é utilizado quando há grande proliferação de casos de uma doença que afeta diversos países e mais de um continente, como a “gripe espanhola” que ocorreu nos anos de 1918-1919 (De Rezende, 1998). Atualmente, a pandemia da COVID-19 causada pelo vírus SARS-CoV-2, alterou a rotina da população mundial, trazendo consequências mentais e sociais.
Os danos sociais causados pela mesma dizem respeito a alterações na rotina, distanciamento social, fechamentos de escolas e estabelecimentos e danos à economia, além de afetar os comportamentos como crescimento da violência e danificando a saúde mental da população, com o aumento do estresse, sentimento de solidão, depressão, irritabilidade, desesperança, sensação de abandono e medo ocasionado pela perda ou separação (Da Mata et al., 2021; Aydogdu, 2020; Da Silva et al., 2021), influenciando na elaboração do luto.
O luto pode relacionar-se a diversas perdas tanto de pessoas, quanto associadas às frustrações do dia a dia, separações ou adoecimentos (De Mello et al., 2021). Há várias formas de lidar com a perda, sendo, o indivíduo, obrigado a se reestruturar e se organizar nos âmbitos cognitivo e emocional, pois estes momentos em questão trazem consigo sentimentos relativos ao desamparo, aflição e ansiedade de separação (Franco & Mazorra, 2007; Carvalho & Carvalho, 2019).
Freud (1917 apud Leandro & De Freitas, 2015) conceitua como perda de objeto amado quando a libido não poderá mais ser investida no mesmo objeto. A libido que era investida no objeto perdido aos poucos começa a ser investida em outros objetos, ressaltando que não há uma desvinculação total com o objeto perdido. Nesse processo ocorre uma ressignificação (De Mello et al., 2021). O processo de elaboração do luto é vivenciado de maneira singular, entretanto, de acordo com Elisabeth Kubler-Ross, há 5 fases do processo de elaboração do luto. Sendo a primeira fase a negação, seguida pela raiva, barganha, depressão e por último a aceitação (Netto, 2015).
Nessa perspectiva, o luto infantil pode configurar-se como um grande desafio diante de tantos aspectos (De Mello et al., 2021). Para a elaboração do luto, é necessário levar em consideração a faixa-etária e o estágio do desenvolvimento infantil em que se encontram os indivíduos, já que é um processo subjetivo (Silva et al., 2020).
A pandemia pela COVID-19 tem causado perdas significativas, sendo o luto um processo de elaboração de perdas vividas que é experienciado de forma singular e pode ser muito difícil e doloroso para quem o experimenta. As crianças pequenas podem vivenciar a experiência da morte, porém não entendem sua irreversibilidade e o que pode ocorrer com pessoas queridas, enquanto os adolescentes e adultos conseguem compreender cognitivamente o significado da morte, mesmo apresentando poucos recursos psicológicos para lidar com a situação (Aydogdu, 2020).
Com o aumento acelerado das mortes e as restrições causadas pela pandemia, o presente trabalho teve como objetivo identificar, na literatura, os impactos da pandemia covid-19 para a elaboração do luto infantil.
Método
Trata-se de um estudo de revisão integrativa de literatura objetivando quais os impactos da pandemia em relação à elaboração do luto infantil. Ela foi realizada a partir 5 passos: (1) formulação de uma pergunta norteadora; (2) busca dos materiais nas bases de dados; (3) critérios de inclusão/exclusão dos conteúdos; (4) análise e classificação dos materiais achados; (5) apresentação dos resultados encontrados (Silva et al., 2020 apud Da Silva et al., 2021).
A busca nas bases de dados foi norteada pela pergunta “Quais são os impactos da pandemia para a elaboração do luto infantil?” e ela foi elaborada utilizando-se a estratégia PICO (Patient or Problem/Paciente ou Problema, Intervention/Intervenção, Control or Comparasion/Controle ou Comparação, Outcomes/Resultados) (Akobeng, 2005). Sendo P (crianças), I (impactos), C (pandemia) e O (elaboração do luto infantil). As bases de dados consultadas foram Pepsic, Scielo e Google Acadêmico e não foram encontrados artigos nas bases internacionais. Usaram-se as seguintes palavras-chave: “Luto infantil” AND “Pandemia” e “Luto infantil” AND “Covid-19”. Foram incluídos materiais em diferentes formatos, como artigos, livros e cartilhas na íntegra, publicados em português, inglês e espanhol e publicados nos últimos anos (2019-2021).
Em maio foi realizada a definição do tema do estudo, a partir dos interesses dos editores, delineando também a pergunta norteadora, os critérios de inclusão e exclusão, e também a forma de pesquisa. Nos meses de junho e julho de 2021 ocorreu o processo de busca e seleção de artigos. Foram selecionados aqueles que atendiam aos critérios de inclusão e exclusão. Esse procedimento foi realizado por 4 revisores, sendo três discentes e a orientadora. As divergências identificadas entre as buscas eram discutidas até a obtenção de consensos.
Resultados
Foram encontrados no total 14 artigos. Após a leitura dos títulos e dos resumos foram excluídos 7 por não corresponderem ao tema da pesquisa. Os 7 artigos restantes foram analisados e apenas 3 deles foram selecionados. Quatro foram excluídos, pois não traziam informações específicas sobre a temática. Todos os textos analisados foram realizados durante a pandemia da COVID-19, entre 2020 e 2021. As etapas desse processo são apresentadas na Figura 1 e na Tabela 1:
Tabela 1 Características das publicações utilizadas para a revisão integrativa
Autoria (ano) | Título | Objetivo | Tipo de Estudo |
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AYDOGDU (2020) | Saúde mental das crianças durante a pandemia causada pelo novo coronavírus: revisão integrativa | Investigar na literatura o impacto da pandemia causada pelo novo coronavírus na saúde mental das crianças | Revisão integrativa da literatura |
DA MATA et al. (2021) | Impacto da pandemia de COVID-19 na saúde mental de crianças e adolescentes: uma revisão integrativa | Objetivou a disseminação de conhecimento dos fatores agravantes do sofrimento psíquico com o intuito de identificar estratégias intervencionistas durante a pandemia de COVID-19 e na fase de retorno e adaptação ao “novo normal”. |
Revisão integrativa da literatura |
DA SILVA et al. 2021 | Efeitos da pandemia da COVID - 19 e suas repercussões no desenvolvimento infantil: Uma revisão integrativa |
Objetiva compreender como as crianças estão vivenciando os impactos da pandemia e as suas repercussões no desenvolvimento infantil. |
Revisão integrativa da literatura |
Conforme a Tabela 1, percebe-se que o tema ainda é pouco investigado devido à pequena quantidade de estudos identificados. Dois dos estudos focaram na investigação do impacto da pandemia na saúde mental das crianças, enquanto o outro trabalho procurou identificar estratégias de enfrentamento e agravantes do sofrimento psíquico. Todos os estudos são revisões integrativas de literatura e abaixo serão apresentadas as sínteses de cada artigo:
O artigo de Da Silva (2021) traz o uso da tecnologia, que já estava em ascensão e que ganhou destaque durante a pandemia, afetando desde adultos, devido à modalidade de home office, até as crianças, homeschooling. Com isso as crianças passam mais tempo conectadas a celulares e computadores, e isso pode trazer consequências negativas em um curto espaço de tempo, como prejuízo do sono, irritabilidade, piora da imunidade, medos, além de prejuízos a longo prazo, com maior destaque no atraso no desenvolvimento, transtornos de ansiedade, depressão, queda no rendimento escolar e hábitos de vida pouco saudáveis durante a fase da vida adulta (Da Silva, 2021). Foi evidenciado que as crianças podem vivenciar aspectos como medo, estresse e tristeza durante períodos de perdas, adoecimentos e hospitalização, além do aumento da violência infantil.
Já o estudo de Da Mata (2021) destaca a importância da realização de estudos pós pandêmicos, a fim de identificar consequências do período de pandemia, além de propor a relevância de estratégias para diminuir efeitos negativos à saúde mental na atualidade, como o enfrentamento do luto infantil.
Por fim, o artigo de Aydogdu (2020) ressalta as influências da pandemia nas crianças, como isolamento social, adoecimento e perdas de entes queridos devido à doença, além do preparo emocional das crianças em relação ao enfrentamento das perdas.
Portanto, os estudos analisados sugerem novas pesquisas a fim de descrever as repercussões no enfrentamento do luto infantil, podendo construir estratégias em um período pós pandêmico.
Discussão
A morte é sustentada de valores sociais, culturais e morais e os rituais são formas de homenagear a pessoa que faleceu, além de contribuir com o enlutado com a superação da morte e dar continuidade a vida (Fiocruz, 2020 apud Danzmann, Silva, & Guazina, 2021). Para Oswaldo (2020, apud Danzmann, Silva, & Guazina, 2021) o luto é um processo único e subjetivo e pode ser considerado como a quebra de vínculo com alguém. Contudo, em razão da pandemia, os rituais de despedidas tiveram que ser ressignificados devido ao risco de contaminação do vírus da COVID-19 e os familiares foram impedidos de vivenciar o último contato com a pessoa que faleceu, influenciando no processo de elaboração do luto (Danzmann, Silva, & Guazina, 2021).
A pandemia trouxe consequências à saúde mental das crianças relacionadas a altos níveis de estresse, medo, ansiedade, desânimo, tristeza, preocupação, raiva, inquietude, insônia, sentimentos de desamparo, sofrimento, comportamentos agressivos, problemas como o Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), irritabilidade, depressão, além de sentimento de culpa, frustração, angústia mental e pode elevar as taxas de suicídio e abuso de substâncias dependentes pelos responsáveis (Da Mata et al., 2021; Aydogdu, 2020; Da Silva et al., 2021). O estudo de Liu et al. (2020) relata que crianças com pais infectados ou mortos pela COVID-19 têm maior chance de desenvolver problemas mentais, pois a criança que é impedida de viver o luto pode se sentir enganada e com raiva, podendo desencadear fobias, sintomas de depressão e outros transtornos mentais.
Os adultos apresentam grande influência na elaboração do luto infantil, visto que eles são os responsáveis por explicar sobre a temática e proporcionar um ambiente a fim de facilitar a expressão dos sentimentos das crianças (Portella, 2020). Entretanto, o fato das temáticas sobre morte, luto e finitude da vida serem pouco mencionadas entre os adultos, fazem com que esses assuntos sejam considerados tabus e são transferidos para as crianças de forma modificada, não condizente com a realidade, dificultando na elaboração do luto (Silva et al., 2020; Da Mata et al., 2021; Aydogdu, 2020).
Diante disso, Da Silva (2021) traz a questão que os adultos subentendem que as crianças não são maduras emocionalmente para a compreensão da temática, entretanto, as crianças passam pelo mesmo processo de luto que os adultos e precisam de esclarecimentos e acolhimento frente ao adoecimento ou morte. Na tentativa de poupar a criança da tristeza, os adultos podem contribuir para que a criança desenvolva dificuldades na formação de habilidades emocionais, podendo refletir na sua vida adulta, acarretando a quebra da confiança. No processo de luto infantil a criança precisa ser escutada e, neste momento, buscar apoio é muito importante (Da Silva, 2021).
Para a elaboração do luto infantil é necessário levar em consideração a faixa etária e o desenvolvimento da criança, visto que o luto é um processo subjetivo (Silva et al., 2020). A pesquisa de Anton e Favero (2011) evidencia que alguns estudos mostram que crianças com menos de cinco anos veem a morte como algo transitório e reversível, como se fosse um sono profundo ou uma separação; nesse caso, é muito importante deixar claro que a pessoa em questão morreu. Entre os cinco e sete anos a morte pode ser relatada com mais detalhes, visto que a capacidade de julgamento está mais desenvolvida; a partir dos oito anos a maioria vê a morte como algo irreversível, mas não como algo da natureza, entendendo a morte como punição e, a partir dos nove anos, a morte passa a ser entendida como natural e não induzida por algo ou alguém, dessa forma, a criança é capaz de compreender os adultos (Anton, & Favero, 2011).
Dessa forma, para prevenir e intervir na má elaboração do luto infantil, faz-se necessário que os pais ou responsáveis auxiliem com escuta ativa e respeitosa, linguagem acessível, honestidade e se mostrarem abertos a esclarecimentos. Conforme Da Mata (2021) mostram-se necessárias, também, as intervenções do governo através da implantação de políticas públicas com o objetivo de minimizar os efeitos colaterais da pandemia da COVID-19 na elaboração do luto infantil e suas consequências na qualidade de vida das crianças. Ainda conforme o mesmo autor, pode-se utilizar grupos terapêuticos em instituições de assistência social e de cuidado à saúde mental e, também, proporcionar atendimentos em psiquiatria e psicologia para essas crianças, sendo que a literatura já constatou seus benefícios e eficácia (Fegert et al., 2020; Dubey et al., 2020 apud Da Mata, 2021). O profissional de psicologia é de suma importância pois contribui para que a criança manifeste seus medos e desejos frente a perda e a morte. A ludoterapia, brincadeiras e desenhos podem ser utilizados como uma técnica para acessar esses sentimentos e emoções (Da Silva, 2021).
Considerações Finais
Conclui-se, através da literatura encontrada, que o luto pode se manifestar de diferentes formas nas crianças durante a pandemia de Covid-19: podem ser observadas alterações no comportamento, além de sintomas de desamparo, depressão e irritabilidade frente ao luto. Devido à falta de trabalhos encontrados, apenas 3 estudos foram analisados, impossibilitando reflexões mais contextualizadas acerca da elaboração do luto infantil na pandemia. Apesar disso, os estudos analisados ofereceram valiosas contribuições acerca de intervenções que podem ser realizadas neste processo, como o apoio dos pais e/ou responsáveis através da escuta e acolhimento e o acompanhamento com profissionais de saúde mental. Sendo assim, espera-se que esse estudo incentive novas pesquisas com o intuito de se ter um maior conhecimento e avaliar os impactos da pandemia na elaboração do luto infantil, apontando para medidas de preservação da saúde mental das crianças.