A temática do medo tem sido muito veiculada e discutida, despertando interesse de áreas de estudo do campo da saúde e da psicanálise por sua recorrência clínica (Pondé, 2011), principalmente no contexto da pandemia pela COVID-19, em que ainda se desconhece a extensão de seus danos e predomina na população o temor do que está por vir em termos econômicos, sociais, de saúde física e mental (Schmidt et al., 2020). Nesse sentido, o medo aparece em contextos clínicos como um sentimento comum que coloca as pessoas em contato com sua vulnerabilidade (Barros et al., 2020).
Quando se fala de crianças, então, é possível questionar se seus sentimentos estariam relacionados com o entendimento sobre a situação vivida, uma vez que contextos sociais, históricos e culturais que uma pessoa está inserida ajudam a nomear e a representar os medos. Em uma pesquisa feita por Folino et al. (2021) sobre a percepção de crianças sobre a pandemia, na categoria dos sentimentos que estas manifestaram, medo e preocupação foram os mais mencionados.
Na clínica infantil, Bittencourt (2007) notou como os medos infantis, tradicionalmente representados por figuras da fantasia, somavam-se a episódios da vida real e cotidiana. Outra preocupação para a autora fora como, em alguns casos, a vivência de uma realidade tão assustadora acaba paralisando essas crianças, que não conseguem representar seus medos por meio da linguagem. Tradicionalmente, as representações do medo ao longo da infância se modificam e, em cada faixa etária, é possível observar manifestações mais comuns. Os recém-nascidos manifestam medo de sons, luzes e movimentos inesperados; aos 6 meses, direciona-se a situações e pessoas novas; com 2 anos, manifesta-se em relação a animais, ficar sozinho e ao escuro; aos 5, surgem os medos de animais selvagens e criaturas imaginárias; aos 7 anos, há medo de acidentes, mortes e catástrofes, mesmo em situações com poucos riscos de que isso ocorra realmente; finalmente, na adolescência os medos se desenvolvem para o receio da avaliação dos pares e do fracasso (Dumas, 2011).
Dessa maneira, a partir de uma perspectiva desenvolvimentista, pode-se observar em crianças entre 5 e 7 anos algumas características específicas do medo. É nessa faixa etária - conhecida como segunda infância - que ocorre um avanço importante em relação aos próprios sentimentos das crianças. Elas passam a ter uma capacidade maior de entender suas emoções e controlar a forma de demonstrá-las e de entender como os outros se sentem. É nesse sentido que, quanto mais velhas são, mais os medos podem nascer de situações de perigo em que elas enfrentam ou tomam conhecimento em relação à experiência de outras pessoas. Crianças mais novas, no entanto, possuem medos mais ligados a fantasias e em certa tendência de confusão com a realidade, característica mais marcada na primeira infância (Papalia & Feldman, 2013).
O psicanalista inglês Donald Woods Winnicott debruçou-se no tema e propôs uma visão do medo como um afeto comum ao desenvolvimento humano, que compõe a forma de viver de cada um, suas experiências e seu repertório (Pondé, 2011). Winnicott (1963/1983) pontuou a influência do ambiente não só na representação dos sentimentos, mas também no desenvolvimento da criança como um todo, elaborando a teoria do amadurecimento emocional infantil, descrevendo três estágios: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. No primeiro, o recém-nascido ainda não se separa da figura mais importante nesse momento essencial, a mãe, e ambos configuram uma só unidade. Nessa vivência, a figura materna desempenha um papel de adaptação às necessidades do bebê, sendo capaz de perceber e atender o infante. Esse período inicial em que a mãe parece regredir a um estado capaz de compreender a comunicação primitiva do bebê, de forma a serem um só, foi chamado de preocupação materna primária (Winnicott, 1956/2000a). Nesse primórdio, Winnicott (1952/2000b) ressalta que a capacidade da mãe de se adaptar às necessidades do bebê permite que ele experiencie uma sensação de onipotência. Isso ocorre porque o pequeno ainda não se diferencia da sua cuidadora, de maneira que, nesse movimento de receber a satisfação no momento de sua necessidade, ele acredita que foi capaz de criar sozinho o que o satisfez (ilusão). Essa ilusão é essencial para o amadurecimento da criança e para o desenvolvimento da criatividade.
Com o desenvolvimento do bebê e caminhando para o segundo estágio, a mãe vai cometendo pequenas falhas, que podem ser toleradas pelo bebê. É um choque para a criança sentir a mãe como um objeto subjetivo e que era parte de seu self, que agora não faz mais parte de si mesmo e, portanto, que ela não tem poder onipotente sobre esse objeto. A mãe que foi capaz de se adaptar às necessidades da criança pode permitir que esse choque não seja tão grande nem sentido como tão invasivo (Winnicott, 1966/2021). Essa mãe que comete pequenas falhas seguidas de momentos de tranquilidade - o que colabora para a confiança do bebê, desenvolvimento do ego e tolerância de frustrações - é chamada de mãe suficientemente boa ou mãe devotada comum (Winnicott, 1951/2000).
Este é um momento adaptativo crucial do amadurecimento, as lacunas deixadas pela mãe podem ser preenchidas pelo bebê que está desenvolvendo seus recursos. Para auxiliá-lo com essas pequenas frustrações, ele pode fazer uso dos fenômenos e objetos transicionais. Passando para o terceiro estágio, a criança que introjetou os bons cuidados maternos consegue confiar no ambiente e em si mesma, podendo tomar consciência de sua psique e de seu corpo, condição que a permite sentir empatia e preocupação para com os objetos, conseguindo se diferenciar dos outros e se responsabilizar pelos próprios atos (Winnicott, 1963/1983).
Todo esse processo ressalta a relevância que o ambiente tem no amadurecimento do indivíduo desde o começo da sua vida. Winnicott, ao longo de sua teoria, pontua a importância dos cuidados maternos para o bebê, mas também salienta que, conforme a criança cresce, este lugar vai sendo ocupado pela família extensa, aos poucos a criança vai sentindo necessidade de ampliar sua rede de contatos e buscar relacionamentos fora da família, indo em direção ao círculo social. Isto não faz com que a criança abandone a família, mas com que ela possa fazer um movimento de circular entre diferentes meios (Winnicott, 1965/2011).
Pondé (2011) ressalta o papel simbólico que o medo desempenha dentro da psicanálise winnicottiana, reservando um olhar que o considere como um mecanismo protetivo das ameaças que partem tanto de dentro quanto de fora do indivíduo, surgindo como defesa contra vivências que a pessoa precisa elaborar. Desse modo, a teoria permite combinar o caráter histórico, social e cultural do medo, construindo um background importante para a compreensão de sua natureza na sociedade contemporânea. Por se tratar de um aspecto que pode facilitar o desenvolvimento humano, o medo precisa ser compreendido para, então, ser introjetado como um aspecto encorajador da vivência infantil. Sentir medo não é errado, mas estar sob domínio constante deste sentimento pode fazer com que a criança paralise seu desenvolvimento, inibindo a expressão de seu verdadeiro self e reagindo ao meio, retraindo-se.
No contexto da pandemia da COVID-19, o isolamento social tornou-se a medida preventiva mais eficaz, fazendo com que inúmeras famílias estivessem distantes do convívio com seus pares. Esta situação gera medo, pela insegurança sentida e pelo pouco suporte dado à saúde mental dos indivíduos (Qi et al., 2020). Importante conhecer como as crianças passaram pelas experiências neste período, em especial, com relação ao medo, para que se possa ter indícios de como está seu desenvolvimento emocional. Sabe-se que as famílias enfrentaram dificuldades em relação à pandemia, particularmente aquelas com crianças menores e em idade escolar, pois a sobrecarga de trabalho aumentou consideravelmente (Russell et al., 2020). Dessa forma, conhecer os medos infantis permite compreender aspectos importantes do desenvolvimento afetivo de crianças, tendo em vista a relevância destes para uma compreensão global do funcionamento de seu funcionamento e de suas famílias, especialmente quando isolamento social é regra para combater a disseminação do vírus da COVID-19.
Método
Participantes
Participaram do estudo seis crianças com idade entre 5 e 7 anos, três meninas e três meninos, estudantes de escola particular. Os critérios de inclusão foram a faixa etária estabelecida, que os participantes estivessem cursando série compatível com a idade cronológica e a possibilidade de estabelecer o contato remoto, seguindo as medidas de segurança. Os critérios de exclusão abrangeram participantes que estivessem em acompanhamento psiquiátrico ou ainda que tivessem recebido diagnóstico médico nos últimos seis meses, com o objetivo de prevenir angústias que pudessem ser potencializadas por esses transtornos. Não houve nenhum caso de exclusão na pesquisa.
Instrumentos
Entrevista aberta com as mães;
Questionário de saúde física e mental da criança, aplicado durante a entrevista com as mães. O questionário teve um formato breve para verificar se os participantes poderiam compor os critérios de inclusão e exclusão determinados;
Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, como mediador da comunicação.
Aiello-Vaisberg (2013) propôs o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema em que a introdução de um tema na unidade de produção (UP) possibilita a criação de um setting que encoraja o aparecimento de conteúdos relacionados ao objetivo da pesquisa. A escolha deste instrumento baseou-se no pressuposto dos métodos projetivos de que, diante de estímulos incompletos ou pouco estruturados, o indivíduo tende a organizá-los e preenchê-los, utilizando conteúdos inconscientes de sua personalidade, possibilitando a expressão de conteúdos emocionalmente significativos (Trinca, 2013).
O tema desta pesquisa para iniciar a UP foi: “do que uma criança tem medo hoje”, assim, essa pergunta disparadora funcionou para estabelecer um contato com a dinâmica psíquica da criança. Cada desenho foi seguido de uma história, um título e um inquérito exploratório, constituindo a unidade de produção (UP). Pelo contexto, ao realizar-se a coleta de dados on-line, a aplicação de desenho mostrou-se um instrumento possível e facilitador do encontro entre pesquisadora-participante, especialmente pelo fato das famílias terem os materiais necessários disponíveis em suas residências, que consistiu em folhas de papel A4, caixa de lápis de cor e lápis grafite.
Toda a coleta foi realizada pela plataforma de videochamada no WhatsApp. A inclusão deste instrumento ocorreu devido às medidas de segurança impostas pelo isolamento social e permitiu o contato seguro com os participantes e seus responsáveis de maneira remota, além de funcionar com as videochamadas sendo criptografadas, garantindo o sigilo necessário ao procedimento.
Cuidados éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Durante todas as etapas, seguiram-se as exigências das normas éticas de pesquisa com humanos, segundo a resolução CNS n° 499/12 e a n° 510/16. A pesquisadora se mostrou disponível para acolher a criança e sua família em qualquer etapa do procedimento, oferecendo apoio psicológico on-line caso houvesse algum incômodo ou desconforto. É importante ressaltar que todos os participantes concluíram o processo e não solicitaram ajuda posterior, nem apresentaram sinais de sofrimento psíquico que pudessem demandar atendimento psicológico.
Procedimento e Análise de Dados
Primeiro foi feito contato com a mãe da criança, com Questionário de saúde física e mental e a entrevista não estruturada, para conhecer questões a respeito da dinâmica familiar, da rotina da criança e das transformações decorrentes da pandemia, sendo oferecido um espaço para tirar possíveis dúvidas a respeito de todo o processo. Posteriormente, foi feita uma videochamada com a criança para a realização do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema; ao desenvolver as unidades de produção, a pesquisadora oferecia um espaço para a criança conversar a respeito de sua criação e de como se sentiu durante a coleta. Após este encontro, foi oferecido às famílias um momento de devolutiva, para relatar os principais aspectos observados no contato com a criança, priorizando-se o tema da pesquisa.
A pesquisa baseou-se no método qualitativo de investigação. As UPs foram interpretadas pelo método da livre inspeção do material (Trinca & Becker, 1984), em que todo conteúdo era analisado de acordo com a abordagem psicanalítica winnicottiana. Na busca pela compreensão de qualquer fenômeno relacionado ao ser humano, as informações ganham sentido quando consideradas como um todo, sem prevalecer uma determinada percepção (Barbieri, 2010). O método da livre inspeção do material possibilitou a compreensão da singularidade, bem como dos conflitos e experiências culturais e sociais vivenciados pelos participantes. A pesquisadora pode fazer uso de sua experiência clínica e teórica para realizar interpretações durante a análise dos casos, apoiando-se no método clínico para a construção de conhecimento (Trinca & Becker, 1984), com o auxílio do momento de supervisão. Nesse sentido, a teoria psicanalítica colaborou para a construção de uma análise em que se buscou compreender os sentidos apreendidos pelos indivíduos sobre o fenômeno estudado, considerando o seu contexto e sua individualidade. A todo momento, foram considerados os fenômenos transferenciais e contratransferenciais envolvidos nas relações pesquisadora/psicóloga-participante/paciente, e integrados os dados advindos das técnicas usadas por meio do pensamento clínico.
Resultados
As seis crianças participantes viviam com seus pais e mães; um dos meninos (Bruno) tinha uma irmã mais velha e uma das meninas (Ana), tinha também a avó morando em casa. Todos os cuidadores responsáveis pelas crianças foram convidados a participar, no entanto, apenas as mães estiveram presentes. É importante ressaltar que a coleta de dados foi realizada um ano após o início da pandemia no Brasil (fevereiro e março de 2021).
Os meninos foram Lucas, Bruno e Tiago; as meninas foram Camila, Ana e Julia. Os nomes dos participantes são fictícios para preservar suas identidades. Todos fizeram a UP solicitada.
Lucas, sete anos, expressou o medo do escuro representado por um quarto escuro fechado por uma porta. Em seu desenho, Lucas demonstrou uma relação com o ambiente permeada por inibição, ansiedade e até mesmo comportamentos emocionalmente dependentes (aspecto corroborado pelo relato da mãe). A história foi curta e concisa: “O menino tá com medo do escuro e tem uma porta de um quarto escuro”.
O conteúdo trazido por Lucas se relacionou com uma angústia do temor dos próprios impulsos; além disso, foi possível observar uma dificuldade de entrar em contato com seus conteúdos internos e com suas emoções – que ficam presas atrás da porta, no escuro. Lucas pareceu recorrer a repressão como defesa, que funcionou de forma parcialmente eficaz ao afastá-los dos temores, mas não possibilitou que fossem internalizados. Essa informação tem estreita relação com o ambiente descrito pela criança e a família, que era cuidador e prestativo, mas falho em compreender suas reais necessidades, de maneira que esse cuidado também não era internalizado pela criança e a insegurança permanecia.
Bruno, seis anos, fez um desenho de um tobogã com um menino que parecia flutuar, mas, quando este contou sua história, o personagem estava caindo, o que pareceu se referir ao potencial de impulsos agressivos dentro dele. Dessa forma, sua angústia poderia estar relacionada ao temor do potencial destrutivo dos objetos internos, que pareceram ter uma relação com o desenvolvimento da criança, o momento em que ele vivia e a tentativa de dar conta dos conflitos que estavam surgindo.
Um primeiro olhar no desenho poderia remeter a bagunça e desorganização, mas Bruno enxergou sua UP de outra forma, uma vez que sua história acabou com o menino enxergando uma saída: “Aí ele nadou muito pra enxergar a beira e conseguiu”. A UP pareceu representar um percurso necessário em relação ao seu desenvolvimento e um encontro com conteúdos dolorosos, mas que poderiam ter seus contornos e suas formas de enfrentamento. Assim, ao transformar uma atividade lúdica, como ir ao tobogã, em um medo infantil, ele utilizou do mecanismo de defesa de projeção e conseguiu dar sentido a algo que não era bem nomeado ainda, de forma a criar maneiras de enfrentar o que o assustava.
Camila, sete anos, trouxe como elemento principal em sua UP o coronavírus. Seu medo apareceu relacionado ao mundo externo, à percepção de uma realidade dolorosa. Em sua história, a menina inseriu uma personagem feminina como alguém com forças para lidar com este medo: “O Corona tentou entrar e não conseguiu. O Corona foi no braço dela, subiu pro rosto… mas ela chacoalhou a cabeça e ele saiu”.
A mãe de Camila, na entrevista, disse que via sua filha como uma criança muito sociável e, por isso, acreditava que o período de isolamento social tinha abalado a menina. Como estratégia para manter o que a mãe chamou de “infância saudável”, os pais fizeram concessões ao isolamento social, permitindo que Camila se encontrasse com colegas da escola uma vez por semana para brincar, desde que usassem máscaras. A máscara apareceu no desenho da participante, observado na Figura 1, como este recurso proveniente do mundo externo mais compatível com a realidade, uma vez que sua família se mostrou capaz de proporcionar recursos que se somaram aos seus: “A criança tava passeando e aí encontrou o Corona e levantou a máscara. É… quando ela viu ele, ela colocou a máscara”. Camila mostrou-se disposta a desenhar e contar uma história sobre algo que lhe assustava, demonstrando como o medo era encarado como parte da vida e não como algo a ser evitado, diferente das outras crianças ela estava mais motivada.
Tiago, seis anos, quarta criança a participar da pesquisa, desenhou o personagem King Kong. Quando disse que havia terminado o desenho e foi pedido que contasse uma história, retornou à folha e adicionou mais elementos ao desenho, o que se repetiu algumas vezes:
Ah, eu esqueci de fazer a mão, pera aí. Acabei. [E qual a história desse desenho?] O King Kong, ele tá derrubando um prédio. Acho que é isso que ele faz, né? Derruba um monte de prédio… Eu não sei por que eu nunca vi o filme, eu nem sei se é pra criança esse filme. É pra desenhar mais alguma coisa? [Só se você quiser.] Vou desenhar um prédio. Acabei. [Quer acrescentar mais alguma coisa na história?] O King Kong tem cabelo? [Não sei.] É só isso.
A escolha de uma figura que nunca viu, mas que imaginou o que poderia ser pareceu representar o medo de algo desconhecido e sua impotência diante desse medo.
A partir da entrevista com a mãe, foi possível perceber como a dupla mãe e filho vivia uma relação muito próxima, que contribuía para dificuldades que Tiago apresenta em relação a sua autonomia. O ambiente em que ele vivia preocupava-se muito em não permitir que ele se sentisse frustrado, como, por exemplo, quando a mãe afirmou que acabava fazendo por ele atividades da escola que inicialmente ele não conseguiria realizar, não deixando espaço para que ele pudesse se desenvolver e aprender com os erros. A intolerância à frustração da mãe era vivida na dificuldade de deixar o filho encarar as falhas e limites. Dessa maneira, o meio pareceu não se adequar às necessidades da criança, pois a mãe adotou uma postura de não frustrar o filho, de maneira que o afastava da realidade, além de não conter e nem limitar suas angústias, que terminavam por tomar conta e mobilizar afetivamente de maneira intensa. Ele não conseguia encontrar um representante simbólico do medo de uma criança no seu repertório, mas não deixou de tentar representar a sua angústia, trazendo figuras desconhecidas que existiam em algum lugar, como observado na Figura 2.
Ana, sete anos, ao ser instruída para contar uma história, falou de um episódio que aconteceu com ela:
Por exemplo, um dia eu tava com o papai e a mamãe de carro e passou uma pessoa que eu não conhecia pedindo dinheiro, e eu queria dar dinheiro pra ela porque parecia que ela tava precisando de ajuda. Só que o papai e a mamãe não queriam que eu desse, porque eles falaram que essas pessoas podem ser malvadas, elas podem querer enganar as inocentes.
A mãe de Ana, na entrevista, falou da filha como se ela fosse perfeita, destacando aspectos como a sensibilidade, amabilidade e força da menina. Em contrapartida, o comportamento de Ana durante a coleta e os levantamentos feitos pela análise de sua produção pareceram indicar uma criança que vivia em um meio que engessava suas possibilidades, o que mostrou reflexos em seu comportamento, ao mesmo tempo em que demonstrava um desejo de ser ela mesma. Ana mostrou, durante a atividade, o lado “filha perfeita” do qual a mãe falou. A criança pareceu identificar-se com a menina boa que o ambiente exigia que ela fosse, mas, quando fez o desenho, pôde mostrar outros aspectos de si, que parecia não poder entrar em contato devido ao ambiente que ditava uma determinada forma de existir. Notou-se, assim, como o tema foi gerador de angústia e a fez entrar em contato com conteúdos geradores de conflitos, como quando contou de um filme também muito assustador que havia visto, em que as pessoas que o personagem principal mais amava viravam monstros. Ela disse lembrar que, no dia em que assistiu ao filme, ficou com medo de sua mãe, pois achou que ela poderia virar um monstro assim como tinha acontecido na história.
Julia, cinco anos, última criança a participar da pesquisa, em seu desenho, representou seu quarto na hora de dormir, simbolizando a noite e o escuro, como visto na Figura 3. A menina e sua mãe, Eliana, aparentaram estar em uma relação em que as vontades e os limites entre as duas eram confundidos, a mãe apresentou dificuldade inclusive nos limites com a pesquisadora quando interferiu no procedimento e, por muitas vezes, pareceu tomar a voz de comando na coleta de dados. Mesmo assim, Julia pareceu fazer um bom uso da atividade para comunicar suas angústias. A menina aparentou estar tomada por uma raiva destrutiva, um ódio da mãe que a sufocava e, ao mesmo tempo, sentia-se assustada por estas emoções.

Nota. O nome da participante foi coberto para preservação de sua identidade, mas não prejudicou a visualização do desenho.
Figura 3 Produção da participante Ana
Na história criada, Julia falou de uma personagem feminina trancada por seu pai em um quarto em que não poderia sair:
Era uma vez, uma princesa, ela ama muito ficar no quarto e o pai dela não deixava ela sair do castelo, e aí ela dormia muito porque ela não podia sair do quarto dela. O nome dela era… Bela Adormecida. Quando ela dormia, ela sentiu… ela saiu do castelo. E aí o pai dela falou pros guardas irem procurar ela lá na floresta. E aí ela foi lá na floresta e quando ela chegou lá, ela tava dançando com si mesma. Com si mesma quer dizer sozinha com ela mesma.
A descrição pareceu representativa do momento em que vivia: ela gostava de estar perto da mãe, mas queria experimentar um pouco de liberdade, estar sozinha e ter autonomia para fazer o que quisesse. A repressão maciça de seus desejos pode estar representada na figura do pai da personagem, que a prende e faz com que ela fique dormindo, não existindo. No final da história, a menina falou de outros personagens:
O rei ficou apaixonado de alguém… com uma outra donzela e se casou. Mas o príncipe viu a donzela primeiro e ficou apaixonado. Só que o rei quis pegar a donzela primeiro, mas o príncipe pegou ela primeiro porque ele viu primeiro e se casou. [Então o príncipe que se casou com a donzela?] Isso, porque ele viu a donzela primeiro.
Esta transformação afetou a estrutura da história que perdeu sua coerência interna. Da mesma maneira, depois de dar o título, Julia manifestou que queria escrever “dado para Julia, dado para mamãe”, aspecto representativo da necessidade de diferenciação dessas figuras. Julia acabou colocando apenas o seu nome, aludindo ao fato de que para ela havia uma confusão entre crescer (sair do quarto) e realizar seus próprios desejos e ficar deitada dormindo em um quarto presa (ser criança).
Discussão
As crianças e suas famílias participantes da pesquisa foram afetadas pelas mudanças decorrentes da pandemia e do isolamento social, mas a maneira como cada uma vinha enfrentando este momento pareceu ter grande relação com o ambiente em que viviam e com os seus conflitos internos. Estes conteúdos ficaram evidentes especialmente nas produções de Lucas, Bruno e Camila.
Para os participantes Bruno e Lucas, por exemplo, os efeitos da pandemia pareceram ser maiores do que os recursos que eles tinham para enfrentá-los. Nas entrevistas, as mães descreveram comportamentos emocionalmente dependentes, de agitação e, no caso de Bruno, até mesmo de agressividade. Além disso, as angústias presentes nas UPs dessas crianças aparentavam ser de grande intensidade.
Lucas, em sua UP, trouxe a temática do escuro como algo bastante assustador e causador do medo. Segundo Dumas (2011), o escuro aparece mais frequentemente associado a um medo de crianças mais novas (menores de 5 anos). Neste caso específico, esse temor não pareceu relacionar-se à infantilização, uma vez que o menino utilizou-se do escuro para falar de algo que ele tinha dificuldade de acessar e de nomear. Alguns elementos em conjunto colaboraram para essa hipótese, como sua postura contida e tímida durante a coleta, que contrastou com a descrição que a mãe fez do filho de um comportamento mais agitado. Estas percepções pareceram relacionar-se com a dificuldade que o menino possuía de entrar em contato com conteúdos que o assustavam. Outro elemento de destaque foi que, no desenho, o escuro estava atrás de uma porta fechada, remetendo a algo de difícil acesso. Isso pareceu acontecer porque o escuro traduzia uma angústia de lidar com coisas que não sabia o que eram ainda. É importante dizer que o ambiente em que o menino estava inserido era amoroso, mas com dificuldades em ofertar todo o suporte emocional necessário, já que os pais também denotaram necessidades importantes a serem satisfeitas. Nesse sentido, destaca-se como este ambiente parecia impactar a criança.
Bruno é uma criança que vivia em um contexto semelhante: um ambiente amoroso, no entanto, diferentemente de Lucas, aqui a relação entre mãe e filho pareceu ser de uma dependência grande e, por vezes, excessiva. Ao observar algumas das queixas e apontamentos da mãe de Bruno, foi possível perceber como alguns de seus comportamentos estavam relacionados com certa dificuldade de perceber limites. Em sua UP, o menino fez um desenho que pareceu remeter a seus impulsos internos e a certa agressividade de uma forma um pouco bagunçada, sem limites. Porém, enquanto foi construindo a história, ele pareceu conseguir dar contornos às angústias. Bruno aparentou ter certa dificuldade com limites, tanto nos comportamentos dentro de casa quanto em relação à organização de seus conteúdos internos, mas a atividade conseguiu ter um efeito organizador para ele.
Os casos de Bruno e Lucas refletem uma tentativa das famílias - principalmente das mães - de oferecer aos filhos todos os cuidados que precisavam. Segundo Winnicott (1965/2011), há uma importância significativa de ambientes além do familiar para o desenvolvimento das crianças e, nesse momento de pandemia, esta necessidade se evidencia ainda mais com o cuidado das crianças ficando a cargo somente das famílias, em especial da figura materna (Catani & Lima, 2021).
Também no caso de Camila, desde a entrevista com sua mãe, ficaram evidentes os efeitos sentidos pela pandemia. O desenho dela trouxe explicitamente o medo da situação vivida em decorrência da pandemia pelo coronavírus. Nesse caso, mesmo falando de algo assustador, não pareceu existir uma angústia avassaladora, como no caso de Bruno e Lucas, em que houve a presença de uma angústia mais difusa e sem um representante claro dela. Mesmo que Camila tenha demonstrado sentir falta de outros ambientes, como escola, amigos e família extensa, sua família nuclear pareceu conseguir suprir mais suas necessidades. Esta, ao longo do tempo, conseguiu fornecer suporte para que ela desenvolvesse seus próprios recursos, cumprindo a função do que Winnicott chamou de mãe suficientemente boa (Winnicott, 1951/2000).
Outra questão relevante que surgiu ao longo dos contatos com as famílias foram as relações de dependência nas díades mãe-filho e mãe-filha, que ficaram especialmente evidentes nos casos de Tiago, Ana e Julia. As UPs destas crianças apresentaram conteúdos em que as angústias internas ficaram mais evidentes e que mostraram como essas relações impactam as crianças.
Nos casos das participantes Ana e Julia foi possível perceber que as crianças viviam um conflito com suas emoções, que ora apareceram como um ódio pelas mães, ora uma angústia porque as amavam e dependiam delas. Essa ambivalência pareceu gerar uma angústia e uma necessidade de projetar os sentimentos de raiva e ódio, como se não houvesse espaço para serem vividos na díade mãe-filha, pois o ódio da figura materna poderia sucumbir o amor por ela.
Tiago, em contrapartida, não aparentou experienciar o ódio. Na relação com sua mãe, esta buscou ao máximo não frustrar o filho, o que vinha causando dificuldades em seu dia-a-dia. Winnicott (1951/2000) assinala a importância de um ambiente que precisa falhar para que a criança consiga desenvolver tolerância à frustração, percepção de si mesma e criatividade. Quando a mãe buscava não frustrá-lo, Tiago não conseguia desenvolver esses recursos e continuava muito dependente da figura materna, o que já se apresentava como um problema para ele na escola, por exemplo. Além disso, ele não conseguia reconhecer suas próprias necessidades, como quando teve que falar sobre seus medos, ele sabia que algo o assustava, mas não sabia o que era, porque em tantos outros momentos alguém falava ou fazia por ele. O que ele conseguiu mostrar era que era algo avassalador, que tomava conta e poderia destruir tudo.
Uma diferença percebida nos casos das crianças deste estudo foi em relação ao vínculo vivido com o grupo familiar, em especial, com a figura materna. Nas crianças em que havia uma separação maior entre mãe e filho (Lucas, Bruno e Camila) foi possível perceber a capacidade destas em lidar com seus temores, inclusive mostrando o quanto a família era capaz de oferecer o suporte emocional ou não. Camila, por ser um pouco mais autônoma, apresentou a capacidade de localizar o seu medo em algo concreto, presente na realidade externa, e algo que aflige a sociedade como um todo. Lucas e Bruno trouxeram medos mais particulares, envolvidos ainda em sua busca pela individualidade, com pouco espaço para o coletivo dentro de seus mundos internos. Já nas outras três crianças (Tiago, Ana e Julia) ficou muito presente a relação de dependência para com a figura materna, a sobreposição das necessidades e desejos da mãe em detrimento dos filhos, como se não houvesse espaço para a individualidade, para o diferente, para o crescimento emocional das crianças. Assim, restou às crianças sinalizar o medo trazendo à tona a angústia de amar e odiar o mesmo objeto, a falta de limites internos, o desconhecimento e dificuldade em discriminar aquilo que era delas e o que era do outro. Mesmo Ana, que parecia uma criança mais adaptada, trouxe à tona a angústia em não poder ser ela mesma, não poder ser criativa e ter seu self verdadeiro em expansão (Gorin et al., 2021).
Em todos os casos ficou evidente que as mães eram as maiores responsáveis pelos cuidados das crianças. Levando em consideração a importância que outros ambientes possuem no desenvolvimento das crianças (Winnicott, 1965/2011), o contexto pode ter evidenciado o quanto as mães estavam sobrecarregadas com a responsabilidade incidindo majoritariamente sobre elas, especialmente enquanto se vivia um momento de pandemia, colocando todos em contato com sentimentos fragilizadores (Barros et al., 2020). Para além de ser um momento em que a disseminação de um vírus pandêmico está vigente, vê-se que os medos das crianças são únicos, reflexos das situações e tramas afetivas vividas em família.
Considerações Finais
Os resultados da pesquisa indicam informações valiosas sobre a compreensão subjetiva dos medos em crianças dentro do contexto histórico-cultural em que estão inseridas. Os medos infantis aparecem como uma forma de comunicação importante de angústias e ansiedades que relacionam conteúdos internos e a capacidade dos indivíduos de lidar com questões ambientais, além de trazer informações da qualidade da provisão oferecida para as crianças.
Os dados discutidos contribuem para a Psicologia clínica, trazendo elementos que possibilitam pensar estratégias de intervenção para crianças na faixa etária e no contexto social pesquisado. Além disso, ficou evidente a relevância do trabalho clínico, particularmente, de orientação psicanalítica, bem como do trabalho remoto. No contexto de pandemia, em que o suporte psicológico on-line se fez necessário, a pesquisa mostrou como foi possível estabelecer vínculo entre pesquisadora e participante. E como há possibilidades de interação com o grupo familiar, pois em atendimento infantil é sabido que a presença dos cuidadores é imprescindível, e na modalidade on-line esta interação se evidenciou e se fez presente ali, no momento de inserção do profissional.
Considerando todo o momento da coleta de dados, as crianças e, por consequência, suas famílias puderam receber o suporte afetivo necessário, visando sua saúde psíquica. Isso reforça a importância da escuta acolhedora e cuidadosa diante de qualquer contexto, seja paciente/psicóloga, seja participante/pesquisadora.