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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.21  São Paulo  2024  Epub Nov 01, 2024

https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v21na4 

Pesquisa

Um estudo psicanalítico acerca do vínculo fraterno face à perda de um dos genitores por COVID-19

A psychoanalytical study about the fraternal bond and the loss of one of the parents due to COVID-19

Un estudio psicoanalítico del vínculo fraterno frente a la perdida de uno de los genitores por COVID-19

Isabel Cristina Gomes1 
http://orcid.org/0000-0001-9335-9706

Alyne Muniz Silva Melo2 
http://orcid.org/0000-0002-1779-4156

1Psicóloga, Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, IPUSP. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: isagomes@usp.br

2Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, IPUSP. Rua Bernardino de Campos, 70, ap.62 - Campo Belo, São Paulo - SP, 04620-000. E-mail: alyne.melo@usp.br; alynemelo984@gmail.com


Resumo:

O presente estudo tem como objetivo analisar e refletir sobre as características do vínculo fraterno face à perda de um dos genitores por COVID-19. Consideramos que o vínculo fraterno ocupa um papel relevante para a construção de um pertencimento na atualidade. Para essa análise, foi utilizado um estudo clínico-qualitativo e realizadas entrevistas semidirigidas para a coleta de dados. Em relação aos participantes, elegemos indivíduos ao acaso entre 18 e 25 anos, que possuíssem irmãos e que tivessem perdido um dos genitores por COVID-19. Buscamos, dessa forma, compreender os dados obtidos relacionados às principais discussões e reflexões teóricas apontadas pela Psicanálise clássica e a Psicanálise das Configurações Vinculares. Pudemos observar que o vínculo fraterno está intimamente associado às intervenções das relações parentais e, nesse sentido, após a perda de um dos genitores, exerce uma função relevante de ressignificação e proteção em relação à constituição da subjetividade e aos entrelaçamentos vinculares daí decorrentes.

Palavras-chave: vínculo; irmãos; família; COVID-19; psicanálise

Abstract:

The current research aims to analyze and reflect on the characteristics of the fraternal bond and the loss of one of the parents due to COVID-19. We consider that the fraternal relationship plays a relevant role in the construction of belonging today. For this analysis, a clinical-qualitative study was applied, and semi-structured interviews were carried out to collect data. Regarding participants, we randomly selected individuals between 18 and 25 years old who had siblings and who had lost one of their parents to COVID-19. Thus, we seek to understand the data obtained in relation to the main discussions and theoretical reflections highlighted by Classical Psychoanalysis and Linking Psychoanalysis. We were able to observe that the fraternal bond is closely associated with the interventions of parental relationships and, in this sense, after the loss of one of the parents, it exerts a relevant function of resignification and protection respecting the constitution of subjectivity and the resulting bonding entanglements.

Keywords: bond; brothers; family; COVID-19; psychoanalysis

Resumen:

El presente estudio tiene como objetivo analizar y reflexionar sobre las características del vínculo fraterno, frente a la perdida de uno de los genitores debido al COVID 19. Consideramos que el vínculo fraterno ocupa un lugar relevante para construir un sentimiento de pertenencia en la actualidad. Para este análisis, se utilizó un estudio clínico-cualitativo y se realizaron entrevistas semidirigidas para recopilar datos. En cuanto a los participantes, elegimos al azar a individuos de entre 18 y 25 años que tuvieran hermanos y que hubiesen perdido a uno de sus progenitores por COVID-19. De esta forma, buscamos comprender los datos obtenidos en relación con las principales discusiones y reflexiones teóricas señaladas por el psicoanálisis clásico y el Psicoanálisis de las Configuraciones Vinculares. Pudimos observar que el vínculo fraterno está estrechamente asociado a las intervenciones de las relaciones parentales y, en este sentido, tras la pérdida de uno de los progenitores, desempeña un papel importante en la resignificación y protección de la constitución de la subjetividad y el entrelazamiento de vínculos resultante.

Palabras clave: vínculo; hermanos; familia; COVID-19; psicoanálisis

Introdução

Partimos da concepção que a constituição da subjetividade de cada sujeito está atrelada aos contextos sociais, culturais, políticos e econômicos da nossa sociedade ao longo do tempo. Esses acontecimentos afetam a singularidade em um movimento constante e dialético de exterioridade e interioridade (Kaës, 1993). O autor compreende, nesse sentido, um espaço psíquico além do intra, o entre, concebendo o espaço da intersubjetividade como uma lógica de inclusões e exclusões na forma de se vincular de cada sujeito. Podemos pensar que, quando caminhamos por esse espaço, nos deparamos com um psiquismo dinâmico e em permanente intercâmbio e não mais estático em espaços separados; um psiquismo que se abre também para o acaso, o imprevisível e o acontecimento, devido aos seus inúmeros entrecruzamentos e interferências mútuas, em um contexto que não é delimitado.

É inevitável, ao falarmos de vínculo fraterno, nos endereçarmos à ideia de família e todas as implicações que essa concepção implica e implicou ao longo do tempo. Pensamos que alguns acontecimentos marcaram profundamente a forma de nos relacionarmos. Os efeitos da Revolução Francesa no início do século XVIII e a divisão de espaços públicos e privados; a Revolução Industrial na passagem do século XIX para o XX, que trouxe o capitalismo, a ocupação dos espaços urbanos e o início da reivindicação de direitos da mulher; e as duas grandes guerras mundiais : a Primeira (1914 a 1918) que instaurou um contexto repleto de mudanças e, posteriormente, de transição da família nuclear para a família extensa e a Segunda (1939 a 1945), marcando um período repleto de incertezas e crises (Ariés & Dulby, 1991).

Segundo Gomes (2011), após esse período, seguiu-se uma fase de muitas transformações, prosperidade econômica e um período significativo de busca de igualdade pelas mulheres nos anos 60 e 70. Posteriormente, novamente percebemos um momento de atribulações proveniente de acontecimentos históricos, como o advento do divórcio no Brasil em 1977, que impactou profundamente a forma de se relacionar dos casais, famílias e grupos sociais, dando origem a novos arranjos familiares (famílias monoparentais, famílias reconstituídas) juntamente com os modelos tradicionais. Ressaltamos que, no decorrer do processo histórico, os novos elementos se mesclam aos antigos e necessitamos de tempo para uma apropriação adequada de uma realidade desconhecida (Puget, 2015).

Na atualidade, constatamos uma complexidade de valores paradoxais, a luta por direitos sociais ainda muito presentes e a formação de um cenário de incertezas, o que provoca um certo sentimento de desamparo e desproteção (Puget, 2015). Há uma proliferação de diversas formas de constituição subjetiva e um embate entre aquilo que permanece e que é descartado, um consumismo exacerbado (Bauman, 2004), uma tendência à autossuficiência (Birman, 2000), uma redução de relações duradouras e uma dificuldade no estabelecimento de papéis e funções no seio familiar.

De acordo com Kaës (2011), verificamos um período de transição do modelo patriarcal para as famílias chamadas igualitárias e, consequentemente, mudanças estruturais significativas na compreensão da dinâmica familiar e nas novas configurações da família e do grupo de irmãos. Essas transformações conduziram a uma nova realidade e deslocaram a função paterna de uma posição de domínio para uma função secundária, um declínio, ideia já anunciada por Freud. Concluímos que outros desdobramentos surgem a partir daí e podemos pensar a função fraterna (o relacionamento entre iguais) como uma relevante construção inserida na ebulição de valores contemporâneos.

Para mencionarmos alguns acontecimentos do nosso século, façamos alusão ao ataque terrorista ao World Trade Center em Nova York, nos Estados Unidos em 2001 e ao surgimento do Estado Islâmico em 2013. O que dizer, então, da pandemia de COVID-19 e das consequências na esfera psíquica e sociocultural?

Em dezembro de 2019, as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais nas famílias e na sociedade foram sobrepostas pela ocorrência da pandemia de COVID -19, a qual apresentou uma abrangência mundial, atingindo todas as camadas sociais e propagando-se de uma forma rápida e devastadora. A pandemia foi declarada oficialmente em 11 de março de 2020 de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2020).

No Brasil, a pandemia teve início em março de 2020. Em 2021, o ano de um aumento significativo desse mesmo índice, totalizamos 424.133 mil óbitos pelo coronavírus, o maior indicador alcançado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021), desde 1974. Segundo especialistas, caracterizou-se como a maior tragédia sanitária brasileira e obteve uma repercussão como a crise mundial mais séria desde a Segunda Guerra.

Dessa forma, do ponto de vista psíquico, temos a desafiadora função de compreender o vínculo fraterno dentro de um contexto repleto de mudanças significativas oriundas do mundo contemporâneo, sobretudo atingido pelas alterações sobrepostas nas dinâmicas familiares advindas do cenário atingido pela Covid-19. Como vimos, toda e qualquer transformação impacta diretamente na construção da subjetividade e na compreensão no espaço da intersubjetividade (Kaës, 1993) e, consequentemente, nos vínculos que serão estabelecidos nas fratrias.

Conceituação

Segundo essa determinada conjuntura e de acordo com a psicanálise vincular, entendemos por acontecimento algo que se caracteriza pelo aspecto da novidade, inexistente previamente, inesperado, que não foi pensado ou vivido, que incita o aparecimento de mudanças nos vínculos e que só são reconhecidas psiquicamente depois do fato ter acontecido, um efeito aprés-coup, de acordo com a definição apresentada por Weissmann (2021) no Dicionário de Psicanálise de Casal e Família. "É parte de uma cena compartilhada com outros e oferece a possibilidade de se constituir no encontro do vivido entre dois ou mais sujeitos, no cruzamento do eu e do outro, em um acontecer conjunto" (Weissmann, 2021, p. 35). A autora alerta a necessidade de tolerância pelo psiquismo de um certo grau de incerteza e vazio que propicie o aparecimento de algo desconhecido.

A partir da concepção de Freud sobre a noção de après-coup, alguns autores como Pierre Benghozi também utilizaram essa expressão para designar um efeito posterior de algo que ocorreu no passado, estabelecendo uma conexão com o presente e com o futuro. Entendemos que se apresenta como uma noção de temporalidade que não segue uma ordem cronológica, mas que pode se modificar posteriormente, de acordo com a apropriação de cada repertório psíquico. Esclarecemos a ideia de um acontecimento traumático para Freud (1926/1976) e a inundação excessiva de estímulos ao psiquismo, que, naquele momento, não pôde ser digerido devido aos recursos existentes. Benghozi & Marques (2005) apontam a possibilidade de reorganização dos membros de uma família frente a um acontecimento traumático, e denomina de resiliência familiar a capacidade de reconstruir laços familiares, ocorrendo uma ressignificação dos vínculos.

Para darmos continuidade à questão do fraterno, utilizaremos a definição de família de acordo com o dicionário de psicanálise de casal e família:

1- um espaço vincular íntimo construído por sentimentos de compromissos afetivos recíprocos e de cumplicidade, de qualquer natureza; 2- vínculos estabelecidos a partir das relações de filiação e afiliação, 3- a transmissão das heranças que garantem a continuidade do espaço familiar; 4- Espaço de trocas afetivas onde ocorrem identificações, alianças conscientes e inconscientes, aquisição de comportamentos, valores culturais. (Blay Levisky & Levisky, 2021, pp. 201-202).

Puget (2015), igualmente, traz valiosas contribuições sobre a ideia de família. Para ela, o conceito, entre outros aspectos, exige o sentimento de solidariedade. Nesse sentido, a autora traz uma discussão muito interessante e explica que a palavra solidariedade implica dois eixos que não se harmonizam: solidez e fragilidade; analisa que são conceitos opostos, mas que são obrigados a conviver paradoxalmente. Prossegue referindo o termo ao vínculo fraterno, que não necessariamente diz respeito aos laços de sangue, e sim a uma relação de compromisso e ética, que deveria estar presente nas relações fraternas. A questão da busca pelo reconhecimento no irmão, no pequeno outro (Kehl, 2000) como primordial para garantir o sentimento de pertencimento em um contexto mais amplo, do social e da cultura.

A adoção da expressão vínculo fraterno é recente, e um dos primeiros autores psicanalíticos a desenvolver a especificidade desse vínculo foi Assoun (2000). Observamos que vínculo, relação ou laço fraternos podem ser usados como sinônimos e diz respeito a serem irmãos dentro de uma mesma família, independente de laços consanguíneos.

A teoria desenvolvida por Sigmund Freud acerca desse tema foi marcada por diferentes escritos e enfoques: na análise do pequeno Hans (1909/1976), na qual observou que o nascimento da irmã ocasionava sentimentos ambivalentes, na descrição do mito totêmico (1913/1976) e na formulação do conceito que denominamos de complexo fraterno. O termo complexo (Freud, 1923/1976) aparece relacionado a uma estrutura de funcionamento, a um conjunto de representações psíquicas e não ao vínculo propriamente dito. Seus seguidores também utilizaram a nomenclatura complexo fraterno, porém, compreenderam-no como independente do complexo de Édipo, diferente de Freud, que analisava como uma derivação.

Segundo Freud (1913/1976), a ligação entre os irmãos permite a passagem da horda primitiva para o mundo civilizatório, a entrada na cultura e das regras sociais; ele ressalta os ciúmes fraternos e a questão da rivalidade como principal sentimento observado na fratria. Nesse sentido, o vínculo fraterno estaria marcado originalmente pela culpa do parricídio, pela inveja da onipotência paterna e pela rivalidade.

Kancyper (2004) também reconhece a importância de destacar o trabalho estrutural do complexo fraterno, que define como um conjunto de conteúdos que envolve a dinâmica fraterna, que estaria também articulada a uma dinâmica narcísica e edípica das realidades intrassubjetiva, intersubjetiva e transubjetiva. De acordo com o autor, o complexo fraterno propicia a circulação das identificações, um reordenamento dos papéis em lugares anteriormente ocupados. Dentro dessa mesma perspectiva, Kehl (2000) nos lembra que somente conseguimos refazer o percurso da horda primitiva à coletividade com a participação do semelhante (que nos fornece um amparo), reforçando a relevância e a potência do compartilhamento de experiências do grupo de pares ocorridos na relação fraterna, e o destino do pacto civilizatório operado na fratria. Dessa forma, o grupo de irmãos permite uma circulação de identificações (Kancyper, 1999) e da palavra (Kehl, 2000).

Porém, a maioria dos teóricos optou por abandonar o termo complexo fraterno e se debruçarem sobre a questão do vínculo fraterno que teria, de qualquer forma, uma complementação no espaço da constituição subjetiva, já que falar sobre irmão é discorrer sobre um concorrente na mesma linha geracional, e, portanto, no plano da horizontalidade, e não mais da verticalidade, de pais para filhos. A fratria, nesse contexto, não exclui a relação parental, mas inaugura um espaço único.

Apesar da peculiaridade dessa nova proposta de configuração psíquica, Kaës, (2011) nos alerta que o vínculo fraterno é inseparável do vínculo parento-filial. Kehl (2000) também enfatiza a importância de pensarmos sobre a interdependência das identificações horizontais (irmãos) e a identificação vertical fundadora (pais ou substituto), e o exercício da possibilidade de separação das figuras de autoridade.

Kehl (2000) discute que a posição de irmão oferece uma oportunidade de libertação da palavra, propiciando uma circulação do saber e do pensar já estudado também por Freud (1909/1976) e Kaës (1993), e de transgressão, de contestação, de constituição de grupos, bastante característicos da adolescência. Kancyper (1999) também ressaltou essa fase de desenvolvimento e a importância da liberdade na construção de um espaço próprio da fratria, o desejo de experimentar. Kehl (2000) refere o poder que a cumplicidade assume entre os irmãos, a criação de uma linguagem e códigos que irão contrapor uma ordem estabelecida: os irmãos se unem e se articulam. O grupo de irmãos apresenta, nesse sentido, um significativo potencial de organização, da constituição de aliados no confronto com o casal parental. Kaës (1993) nos lembra da função de defensor do irmão, daquele que vai funcionar como âncora de novas formas de se relacionar perante o grupo familiar, constituindo-se a fratria um verdadeiro sindicato de reinvindicação de direitos, do restabelecimento da justiça frente à percepção de se reconhecerem como iguais e pertencentes ao mesmo grupo.

Como Kancyper (1999), Kehl (2000) traz a questão do duplo e do paradoxo presente no relacionamento de irmão, "da semelhança na diferença" (p.44). Kaës (1993) também aponta essa questão e que ter um irmão significa, ao mesmo tempo, ameaça e fonte de prazer, desejo de agredir e ao mesmo tempo compartilhar. É muito interessante o termo que o estudioso utiliza, solidão paradóxica (Kaës, 1993), para explicar como não poder pensar sozinho e não poder mais pensar separadamente, separados do conjunto, do grupo a que agora pertencem (pensar com).

Compreendemos, dessa forma, que a adolescência é o período que possibilita o reconhecimento dos traços identificatórios gerados pelo grupo de irmãos originalmente na fase infantil (relação horizontal), reativando os processos psíquicos e movimentando as identificações. A fratria, nesse sentido, possui um papel de permitir a exploração do mundo, de correr riscos juntamente com os irmãos, operando como um laboratório para o estabelecimento das relações sociais fraternas ou de amizade futuras.

A fratria é fundada com a chegada do segundo filho. Kaës (1993) nos lembra que a vinda de um irmão traz inúmeros questionamentos para a criança, e o primordial, segundo o autor, seria a manutenção ou não do amor de sua mãe. Esse acontecimento desloca o primogênito do lugar único e privilegiado que este, até então, possuía na relação com os pais. Assoun (2000) fala que o irmão desestabiliza a comodidade doméstica. Assim como Kaës (1993), Kancyper (1999) e Kehl (2000) discutem que a instauração da falta, da alteridade, da presença do outro faz surgir uma atitude heroica por parte dos irmãos, de querer se sobressair para reconquistar um lugar frente à mãe. Dentro desse contexto, o manejo das figuras parentais é essencial para propiciar e estimular um compartilhamento de espaços entre os irmãos, que são forçados a conviver dentro do mesmo ambiente.

Como mencionado, o grupo de irmãos está intrinsicamente implicado na relação parental. Kancyper (1999) teoriza sobre o sentimento de ressentimento presente na fratria, que estaria associado a uma renúncia à agressividade, que remete à ambivalência de sentimentos em situações em que, por exemplo, é levado a auxiliar um irmão doente e necessita revelar uma atitude generosa e benevolente, o que encobriria um outro sentimento.

Kaës (2011) chama a atenção para uma série de mudanças que acontecem desde o nascimento do filho mais velho até o mais novo, e as transformações que vão ocorrendo também com os pais na dinâmica familiar e na fratria, que estará sujeita à vários fatores: tamanho, diferenças de idade e gênero, posições ocupadas na fratria (caçula, mais velho, do meio), existência de privilégios ou não. Assoun (2000) traz a questão da possibilidade de reconciliação entre os irmãos, e que o tempo tem um papel bastante significativo devido ao processo de crescimento envolvido e a presença física de cada membro.

Kaës (2011) observa que "a ausência da mãe suprime a rivalidade fraterna: as relações entres as crianças são marcadas pela benevolência e amizade" (p.188); essa hipótese foi construída a partir de um estudo de Anna Freud e Sophie Dann de 1951 (como citado em Kaës, 2011), realizado em um orfanato, quando analisaram o comportamento de crianças pós-guerra e pertencentes ao grupo de irmãos. Kancyper (1999) nos alerta sobre a verticalidade implicada na compreensão da relação fraterna e que há uma quebra no sistema narcisista parento-filial com o nascimento de um filho, que privilegia determinado descendente e carrega grandes expectativas já imaginadas e, muitas vezes, lugares estabelecidos. Kancyper (1999) nos chama a atenção para os efeitos nocivos da presença excessiva das figuras parentais, que se tornam extremamente disponíveis, sufocantes e tentam encobrir qualquer sensação de falta.

Magalhães, Monteiro e Dantas (2019) observam que a presença da solidariedade pode ocorrer mesmo sob situações de tensão, e o grupo de irmãos é o elemento central da formação de intersubjetividade e, nesse sentido, tem um papel fundamental no estabelecimento da fraternidade, que teria como ponto de partida a fratria. Contudo, a intervenção parental é essencial para permitir uma intermediação entre os dois grupos, propiciando a criação de espaços para o diálogo e a compreensão entre os envolvidos. Apontam a oportunidade dos irmãos de funcionarem como grupo social e exercerem o manejo de questões como a liderança, o respeito mútuo e a identificação de diferenças.

Dentro desse panorama, pode-se dizer que a fratria se beneficia de estímulos que favoreçam o afastamento das figuras parentais ou substitutos, pois assim fornecem um espaço para as movimentações psíquicas próprias das relações horizontais, permitindo liberdade e o compartilhamento de momentos. Percebemos que esses estímulos podem propiciar a manifestação da capacidade de pensar, o desenvolvimento da criatividade, além da construção de sentimentos que edificariam a inserção no social como a responsabilidade e o comprometimento, já que se trata de um grupo que desenha o perfil identificatório do sujeito.

Concluímos que a qualidade da relação afetiva estabelecida entre a prole e os pais ou responsáveis e a intensidade desse afeto irão influenciar e interferir diretamente na construção das relações fraternas na distribuição de papéis e funções. E assim sucessivamente: a qualidade do vínculo fraterno estabelecido no âmbito intrafamiliar irá afetar os outros grupos a que irão se associar.

Identificou-se uma escassez de trabalhos relacionados no cruzamento dos tópicos irmãos, psicanálise e COVID-19 ou pandemia. Na dissertação de Syrio (2021), a autora menciona o apressamento do luto diante de algumas características da contemporaneidade, como um querer se desprender influenciando a elaboração de perdas. Há uma desvalorização de sentimentos de tristeza, de desânimo e inquietação que não encontram um lugar adequado de expressão, ocorrendo um "encurtamento" no tempo de elaboração do luto, que têm um efeito negativo no funcionamento psíquico das pessoas.

Amaral (2021) aponta a condição da adultez que deve ser enfrentada diante do luto, que se refere a assumir novos papéis (deixar de ser filho), a reconstituição da vida e um estado de orfandade adulta, provenientes das perdas. Na pesquisa, a autora chamou a atenção para a característica da sociedade contemporânea em criar uma expectativa de forçar uma rapidez na elaboração do luto e a falta de empatia na compreensão dessa experiência, que exige tempo.

Franco e Mazorra (2001) trazem a contribuição de Melanie Klein e a sua concepção sobre as fantasias inconscientes despertadas no processo de luto como as de aniquilamento, culpa, desamparo, onipotência, idealização, entre outras. Reforçam a importância da expressão dessas fantasias para a compreensão dos sentimentos e comportamentos manifestados nesse processo e o papel da dinâmica familiar, como um facilitador essencial. No estudo de Fávero e Anton (2011), é apresentada uma classificação em dois tipos de morte: a morte repentina, causada por um trauma, e a morte esperada, que permite um luto antecipatório, uma preparação psicológica gradual, favorecendo a despedida.

Ao falarmos de morte e luto, é imprescindível citarmos Freud (1915/1976), que define como luto um trabalho longo e doloroso, que exige um esforço psíquico de desligamento do objeto perdido e um reinvestimento pulsional. Nesse sentido, o luto poderia ser bem-sucedido, e propiciar o restabelecimento gradual do cotidiano e das relações afetivas (normal) ou não (patológico).

Método

Trata-se de uma pesquisa clínico-qualitativa que tem como referencial teórico a psicanálise clássica e a psicanálise vincular. Nesse sentido, buscou-se compreender o processo como um todo, explorando os conteúdos observados presentes nos relatos, os elementos inconscientes percebidos e a compreensão das significações e sentidos que cada pessoa forneceu aos fenômenos investigados. Utilizou-se uma compreensão ampliada da psicanálise; o sujeito compreendido não só do ponto de vista intrapsíquico, mas agora inserido em um espaço de intersubjetividade, dos grupos, do geracional e das relações sociais (Gomes, 2011).

Participantes

Devido à complexidade do tema (perda de um dos genitores por Covid-19), e por estar relacionado a um acontecimento ainda muito recente e desconhecido (pandemia), observou-se que falar sobre essa temática gera resistências na medida em que foi difícil obter voluntários; daí optou-se por considerar quatro indivíduos como um número suficiente para a análise qualitativa. Foram feitos vários tipos de divulgação e/ou comunicação para grupos específicos, por exemplo alunos de graduação e pós-graduação de outras instituições, mídias sociais e comunidades de WhatsApp, com poucas respostas efetivas. Assim, considerou-se unicamente os sujeitos que se dispuseram, após um determinado período de tempo, com idade entre 18 e 25 anos, que possuíssem irmãos e que tivessem sofrido a perda de um dos genitores por Covid-19.

Instrumentos e procedimentos

Para a coleta de dados, foi utilizada a entrevista semidirigida e elaborado um roteiro com questões norteadoras como descrever o relacionamento com o seu irmão (ã), contar sobre lembranças de situações que marcaram essa relação, falar do impacto da pandemia no vínculo fraterno, principalmente frente a perda de um dos genitores e comentar ou acrescentar algo. Devido à gravidade do tema, mantivemos uma atitude de acolhimento, sensibilidade e escuta. Dentro desse contexto, consideramos os aspectos transferenciais e contratransferenciais como parte da metodologia, e fundamentais para a compreensão das angústias despertadas. Fez-se necessário o compromisso com os aspectos éticos estabelecidos pelo Comitê de Ética em Pesquisa que está na resolução 510/2016 para aprovação do trabalho. Foi enviado um termo de consentimento pelo correio, que foi assinado por cada participante e devolvido ao pesquisador.

A organização do material se deu pela gravação do material coletado e análise de conteúdo, que se deu em três etapas diferentes: leituras repetidas e flutuantes (não focando em questões específicas, um conceito similar ao de atenção flutuante) das falas realizadas por meio da transcrição das entrevistas e escuta dos áudios; levantamento de indicadores e estabelecimento de eixos temáticos; inferências a partir dos resultados encontrados. Identificamos três eixos temáticos: 1- a fratria e a dinâmica familiar; 2- a ressignificação da relação fraterna e dos vínculos familiares após o falecimento de um dos genitores; 3- a especificidade da perda por COVID-19 e as circunstâncias da morte.

Resultados e Discussão

Eixos temáticos 1 e 2

O participante A (23 anos), mudava o tom de voz nas questões associadas às recordações de situações familiares (especialmente as relacionadas às irmãs e aos irmãos da figura materna), demonstrando apego e envolvimento aos membros referidos; o que revela a existência de memórias bastante vivas e presentes no seu psiquismo e facilidade para acessá-las. Diz ter um relacionamento muito próximo com as irmãs e diferencia a forma como se relaciona com a mais nova e a mais velha.

Descreve duas fases na relação com a irmã mais velha: a) quando morou com ela em uma capital em outro estado e havia muita discussão; b) após o nascimento do filho dela há quatro anos, conversam bastante e as brigas diminuíram. Com a irmã mais velha, negociava horas no computador, trocas de favores, configurando-se uma situação de disputa e tentativas de acordo. Percebe-se um certo ressentimento (Kancyper, 1999) e mágoa da parte dele, um desejo de que poderia ter sido diferente e uma cisão na fratria, a impossibilidade de ocuparem o mesmo nível: "Ela tinha isso, de ser a irmã mais velha…. Eu não vou brincar om você". A irmã mais velha parece mostrar resistência na aproximação com o irmão e uma atitude defensiva. Inferimos a necessidade de ela se manter em uma posição diferenciada, privilegiada, não querer fazer parte do mesmo grupo, ocupar o lugar do primogênito, um lugar de destaque, o que dificultava a capacidade de brincar com os irmãos.

Com a mais nova, devido à intensidade e proximidade física das brincadeiras, parece ter desenvolvido uma relação simbiótica em alguns momentos. Percebe-se um compartilhamento de emoções e um componente lúdico e criativo muito significativos: "Reuníamos com os mesmos amigos e sempre brincamos muito". Esse experienciar juntos, como apontado por Kehl (2000) e Kancyper (1999), propiciam um fortalecimento do vínculo fraterno. Demonstra uma certa maturidade e uma disponibilidade de estar com o outro, o que indica um trabalho de elaboração na condição narcísica original, apresentada por todos nós nas fases iniciais de desenvolvimento de nosso psiquismo. Ele se mostra mais acessível em aceitar as diferenças e vincular-se ao outro e estar mais aberto a desenvolver a capacidade de amar e cuidar. Nesse sentido, parece sentir-se confortável em transitar entre os espaços psíquicos intra e inter (Kaës, 1993), revelando flexibilidade e abertura para o novo, talvez em função do seu lugar na fratria – filho do meio.

Parece ocupar a posição de protetor às fragilidades de cada uma, provavelmente por ser o único irmão homem, reproduzindo o modelo parental. Compreendemos dessa forma, a ressignificação do vínculo fraterno com a primogênita em dois momentos bastante característicos do ciclo vital, o nascimento do sobrinho e a morte da mãe e do padrasto, o que gerou a redefinição dos papéis e funções a desempenhar no âmbito familiar e mais especificamente na fratria.

O participante B (24 anos), inicialmente, descreve o vínculo fraterno associado a uma influência muito grande que a irmã mais velha sempre exerceu na sua vida: "por muito tempo eu tentei fazer o que a minha irmã fazia". Quando questionado acerca da origem dessa formulação, atribui essas preconcepções às formas de pensar das figuras parentais, imposta por eles, principalmente as provenientes da mãe em relação a irmã. Podemos perceber uma idealização em relação a irmã e a manifestação de uma situação conflituosa e geradora de ansiedade: ao mesmo tempo que não queria abandonar a identificação com ela, sentia-se angustiado por não corresponder às expectativas da mãe. Simultaneamente à essa idealização, refere a falta de confiança entre ele e a irmã. O relacionamento entre os dois demonstrava ser muito marcado pela mediação especialmente com a figura materna, que parecia exercer um obstáculo, o que dificultava a convivência em vários momentos. Podemos inferir que a fratria não possuía um funcionamento independente, e havia um enfraquecimento na tentativa de constituição de um grupo que necessita do investimento afetivo e da criação de um espaço comum.

É notória a ambivalência de sentimentos (amor e ódio) em relação à irmã em vários momentos. Relatou que tomou a decisão de sair de casa aos 17 anos, devido à rigidez de valores da figura materna e após descobrirem a sua identidade sexual (homossexualidade), o que dificultou ainda mais a comunicação e o relacionamento entre eles; seguiu-se um tempo de muita angústia e dor. Pensamos que o participante B, nesse contexto, sofreu um ataque violento à sustentação afetiva necessária ao reordenamento identificatório (Kancyper, 1999), e que a mãe não ofereceu continência necessária às manifestações de ansiedade em fases de crise normais do desenvolvimento. Nessa época, ainda com 17 anos e, portanto, vivenciando a época da adolescência, teve que lidar com a falta de compreensão e apoio da genitora e da irmã ao mesmo tempo em relação à questão da homossexualidade.

A dificuldade de manejo dessa questão pelas figuras materna e paterna demonstra ter afetado profundamente o relacionamento dos irmãos, uma cisão de valores. A irmã parece emergir em um lugar de representação do narcisismo parental e de defesa da moral da família e ele de exclusão, da falta de respeito às tradições e costumes. É possível perceber a ocorrência não só de um acontecimento (Weissmann, 2021), mas de um acontecimento traumático, do estabelecimento de uma "marca" e que desencadeia rupturas e um sentimento de desamparo psíquico tanto no relacionamento na linha da verticalidade quanto no nível horizontal. Percebemos um predomínio da função paterna (Kehl, 2000) tanto da parte da genitora como do pai, de um autoritarismo que não podia ser questionado e, consequentemente, o estabelecimento de uma fratria conflituosa e ambivalente, o que revelava uma dificuldade no manejo parental. Conta que, a partir da morte da mãe, o vínculo dos dois mudou completamente, houve uma transformação e uma reorganização de papéis. Destacamos aqui a observação de Kaës (2011) sobre a ausência da mãe suprimir a rivalidade fraterna e instaurar sentimentos de amizade e cuidado. Nesse sentido, podemos confirmar a hipótese que a figura materna se constituía como figura central na rede de estabelecimento dos vínculos familiares, dificultando a proximidade fraterna.

Em relação a participante C (22 anos), esta revela uma grande proximidade com o irmão caçula (diferença de seis anos, ele tem 16) e um distanciamento em relação a irmã do meio. Fala sobre as semelhanças dela com o caçula e as similaridades dos dois com a figura paterna: "a paciência, a calma para resolver as coisas". Demonstra admiração em relação ao irmão mais novo e o lugar que ele ocupa na família: o primeiro neto homem dos dois lados. E discorre sobre as semelhanças entre a irmã do meio e a mãe, que associa a características negativas (falar alto, provocar discussão): "ela é mais estourada, tudo resolve gritando".

Pensamos em uma organização da fratria em função das relações parentais, onde a verticalidade incide de uma forma dominante e, há uma distribuição de papéis no meio familiar de uma forma hierárquica, de obediência à determinados valores e, consequentemente, uma dificuldade de se estabelecerem como um grupo de iguais (Kaës, 1993). Percebemos uma divisão na fratria: as características positivas (tranquilidade, tolerância) são atribuídas ao caçula, e as negativas (agitação, agressividade) à do meio (Kancyper, 1999). Nesse sentido, supomos que o fato de ser a primogênita a transporta para uma função de destaque no grupo fraterno e uma dificuldade de aceitar um relacionamento como semelhante, na mesma posição onde se encontra a irmã do meio. Nesse contexto, a irmã do meio surge como uma rival que agride a figura paterna (objeto de sua idealização) e passa a ocupar um lugar de competição no mesmo espaço, ocasionando tumultos. Vários aspectos podem ter interferido na parentalidade e ocasionado uma fratria fragmentada, provavelmente derivada de uma intervenção parental pouco atuante no sentido de auxiliar na resolução de conflitos (Kancyper, 1999; Kaës. 2011). Percebemos que, após a morte do pai, não houve modificações significativas no vínculo fraterno e, apenas uma diminuição de discussões com a irmã do meio, que se apresenta mais tranquila, segundo a entrevistada, após a mudança para um outro país (juntamente com o irmão e a genitora). Dessa forma, acreditamos que a ressignificação pode ainda estar em construção e sofrer alterações, e devemos levar em consideração o fato de serem bastante jovens (Assoun, 2000).

A participante D (25 anos) considera ter um bom relacionamento com o irmão, há muito respeito entre os dois; ele foi adotado, é quatorze anos mais velho e o descreve como uma pessoa bondosa, amável e compreensiva. Conta também sobre as diferenças na personalidade, o que a remete a comparações. Refere que as namoradas do irmão sempre tiveram muito ciúmes dela e assumiam que ela era a filha privilegiada, presumindo então uma superproteção da mãe em relação à descendente. Comenta: "As brigas que a gente sempre teve foi por causa das minhas ex-cunhadas ". Apesar da fratria se apresentar fragmentada entre o que é positivo e o que é negativo e ser marcada pela diversidade de opiniões e atitudes, a entrevistada demonstra bastante carinho e gratidão ao descrever a relação fraterna, mostrando o predomínio da solidariedade, parceria e iniciativa de cada um na tentativa de resolução de conflitos. Embora ocupasse uma posição de filha tão desejada e perfeita (ela nasceu após seis abortos da mãe) e, essa questão influenciar o vínculo fraterno, inferiu-se que a interferência da genitora ocorria de uma forma assertiva, e propiciava elementos para D poder refletir e rever algumas ações, contribuindo para uma oxigenação na relação fraterna, que mesmo com os conflitos, apresentava-se amigável e próxima. A percepção de um tratamento igualitário também era uma preocupação do genitor. Identificamos um cuidado no manejo do vínculo fraterno.

Apesar da diferença de idade, é possível perceber o caráter lúdico, o desejo de compartilhamento de espaços, uma linguagem própria, as invenções de brincadeiras, o que denota um aspecto bastante positivo da relação fraterna (Kehl, 2000). Podemos finalizar ressaltando o caráter dissimétrico do grupo de irmãos como diferença de idade, sexo, origem, personalidade (Kaës, 2011), o que dificultava, em algumas circunstâncias, a compreensão e a reciprocidade e, por outro lado, um papel assumido por ela, de defensora e protetora do irmão e de responsabilização pela condução do grupo fraterno (Kehl, 2000; Kaës, 2011). Percebemos uma reaproximação e ressignificação relevante do vínculo fraterno após a morte da genitora, indicando um crescente fortalecimento do relacionamento e uma reorganização dos papéis assumidos (Benghozi e Marques, 2005).

Eixo temático 3

Podemos mencionar a questão do desamparo frente a um cenário de morte repentina (Favero & Anton, 2011) em todos os relatos das circunstâncias da morte. A falta de rituais apropriados apressou o luto (Syrio, 2021), que foi improvisado (leitura de uma homenagem no caso da participante D no espaço de dez minutos), e acompanhada de uma despedida na instituição hospitalar com o corpo encoberto por um saco preto (terceira entrevistada). A evolução da doença se deu de uma forma muito rápida, ocasionando a perda em um intervalo de no máximo quinze dias, dificultando a simbolização necessária ao processo de luto. Percebemos um redimensionamento nos papéis assumidos no espaço intrafamiliar dos participantes A, B e D (Amaral, 2021). Concluímos, portanto, que esse processo ainda se apresenta em construção pois, como já mencionado, necessita de tempo e reinvestimento afetivo. (Freud, 1914).

Considerações Finais

Compreendemos e verificamos que a relação fraterna realmente ocupa um lugar de pertencimento dentro de um cenário atual repleto de incertezas, incertezas que se sobrepuseram frente à pandemia, configurando-se em um lugar seguro para retornar. Percebemos também que o tempo é um forte aliado do vínculo fraterno, pois o compartilhamento de espaços durante grande parte da infância e adolescência é fortalecido por uma temporalidade viva e presente de lembranças, e marcado por vivências que carregam um relaxamento pulsional e invenção de espaços e brincadeiras. Revela-se como um grupo que permite uma circulação de afetos bastante ativa, e que parece ocorrer de uma forma mais livre de amarras, provavelmente por ser protagonizado por um grupo de iguais e estar protegido por eles. Pensamos que a proteção emerge como uma das funções principais desse vínculo tão fundamental.

E, finalmente, após a perda de um ou mais genitores, pudemos notar a ressignificação do vínculo fraterno de uma forma surpreendente, que dentro dessa faixa etária específica de jovens adultos (18 a 25 anos) surgiu como um papel primordial de reconstrução de fortes laços afetivos, de restabelecimento do sentimento de segurança, da criação de um espaço onde pudessem pensar juntos, refletirem, trocarem.

Verificamos que as variações associadas ao tamanho da fratria (dois componentes ou três) podem ter interferido na intensidade e na distribuição dos afetos. Na segunda e quarta exposições, a cumplicidade manifesta-se mais acentuada (dois integrantes) e a dinâmica de um trio indica sofrer mais possibilidades de arranjos vinculares e diferentes cruzamentos, ocasionando a disputa. Outro fator que também parece ter provocado distanciamento e, como já destacado em alguns momentos, foi a posição de privilégio da irmã mais velha, que não abdica da sua soberania em todas as suas implicações.

Dentro desse contexto, concluímos que o estabelecimento de um espaço próprio, tanto físico como afetivo, e com um funcionamento que permita uma autonomia para a circulação da palavra e dos afetos, seja imprescindível para a manutenção de um grupo fraterno saudável. Esse feito, como demonstrado, somente pode ocorrer na intermediação de figuras parentais que sustentem uma abertura para o diálogo, a possibilidade de confrontação da onipotência e ferida narcísica dos envolvidos no processo.

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Recebido: 25 de Março de 2024; Aceito: 31 de Julho de 2024

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