Introdução
O ano de 2023 teve recorde de ataques em escolas no Brasil, registrando 9 ocorrências; os autores geralmente são do sexo masculino e são alunos ou ex-alunos da escola (Cable News Network Brasil [CNN Brasil], 2023). Uma situação que parecia distante de nós quando víamos esse tipo de violência nos Estados Unidos, com casos emblemáticos como de Columbine em 1999, chegou às nossas portas.
Dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (Agência Gov., 2023) indicam que a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, através do Disque 100, registrou 9.530 denúncias sobre violência em instituições de ensino entre janeiro e setembro de 2023 – o que aponta um aumento de cerca de 50% em comparação ao período anterior. As denúncias versam principalmente sobre violências de ordem emocional, envolvendo constrangimento, tortura psíquica, ameaça, bullying e injúria. Desse total, mais de 1,2 mil se referem a casos em que professores foram vítimas.
A escalada da violência é percebida pelos docentes e somada a outros fatores – tais como o desprestígio, a falta de reconhecimento e a precarização do trabalho - impactam diretamente sua saúde mental. Os afastamentos de saúde dessa ordem são os que mais prevalecem entre esses profissionais. e as causas mais comuns são burnout, estresse e depressão (Lima, 2023).
Um relevante período de nossas vidas se passa nas escolas públicas. Segundo informação consolidada do ano de 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2023), as pessoas passam um tempo médio de 9,9 anos na escola e a rede pública é responsável por atender a maioria desses estudantes: 77,2% dos alunos na creche e pré-escola, 82,5% dos estudantes do ensino fundamental regular e 87,1% do ensino médio regular.
A influência da escola mostra-se ainda mais basilar quando se verifica o quanto crianças e adolescentes estão inseridos nessas instituições: estima-se que 36% das crianças de 0 a 3 anos - equivalente a 4,1 milhões de estudantes – frequentam creches ou escolas. Esse percentual sobe para 91,5% entre crianças de 4 a 5 anos e atinge 99,4% entre a faixa etária de 6 a 14 anos (IBGE, 2023).
Essa conjuntura retrata um cenário deveras preocupante sobre os impasses que educadores e alunos vêm enfrentando. Objetiva-se com o presente trabalho refletir sobre como as escolas impactam na estruturação subjetiva e sobre como grupos de inspiração psicanalítica podem figurar como espaços onde a lógica pedagógica cede espaço à lógica do inconsciente.
É um tema atual e relevante que está presente no cotidiano da sociedade. Acredita-se que a comunidade psicanalítica pode contribuir efetivamente ao lançar um olhar analítico sobre o cenário educacional, propondo mais grupos, como o que será apresentado.
1. O papel das escolas na formação do sujei
Freud (1921/2020) consigna que a psicologia individual é no começo uma psicologia social porquanto estamos inseridos em uma sociedade e somos influenciados por ela. Ele propõe que "O indivíduo tem de fato uma dupla existência, como fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra — ou, de todo modo, sem — a sua vontade" (Freud, 1914/2010, p. 20). A partir disso, vislumbramos o começo de uma compreensão sobre a essencialidade do meio no qual vivemos para nossa constituição. Zimerman (2000) elucida que para Freud há sempre uma equação causal na constante interação entre os fatores biológicos e os fatores oriundos do mundo exterior.
Em relação ao nosso psiquismo, temos que o Eu é a parte do Id (o Id é a instância que comporta as pulsões) modificada pela influência direta do mundo externo. O Eu é a ponte que liga o mundo externo ao nosso mundo interno e que se enriquece com as todas as vivências vindas de fora (Freud, 1923/2011). Retomando a informação de que a escola é um local que se frequenta por muitos anos e desde a tenra idade, presume-se o enorme impacto e estímulos que o Eu recebe através das ligações objetais que possam se estabelecer e se perder durante esse intervalo escolar.
Na teoria freudiana há uma ideia de representação do objeto externo como objeto interno: no espaço intrapsíquico, a partir das identificações com objetos externos, são deixadas marcas internas, isto é, registros psíquicos.
Adentrando o campo da psicanálise vincular, temos uma inovação sobre esse elemento. Encontramos que o vínculo se constitui como um efeito de presença que indica o cotejo entre representação do objeto e sua apresentação real. É a alteridade, o encontro com o outro que apresenta ao sujeito uma diferença incontornável e irrepresentável. A ideia de ajeno na perspectiva vincular traz o que excede a representação (Kopittke, 2021). Portanto, o vínculo é uma produção que sempre se estabelecerá na presença de outro externo, ele é bidirecional, pois liga dois seres desejantes. Tem dimensões intrassubjetiva, intersubjetiva e transubjetiva (Puget & Berenstein, 1993; Puget, 1987).
O espaço transubjetivo é o conjunto de formações e experiências externas no âmbito sociocultural e coletivo – como, por exemplo, leis, cultura, expressões de linguagem, códigos comuns, valores, crenças e hábitos – que estabelece relações diretas com o sujeito. Assim, apreende-se que as múltiplas vivências que experienciamos na escola (um espaço social e físico compartilhado) nos apresentam constantemente a alteridade produzindo vínculos e subjetividades, alçando esses espaços como locais formativos do sujeito.
Winnicott (1964/2022) propõe que entre os dois, cinco ou sete anos de idade a criança está aprendendo a perceber a realidade externa. O autor enfatiza que a escola é um apoio para a família enquanto dá oportunidade à criança de experimentar uma profunda relação pessoal com outras pessoas que não os pais e estabelecer uma tolerante e sólida estrutura onde experiências podem ser vividas. As atividades que a escola organiza e viabiliza contribuem para o desenvolvimento de diversas potencialidades da criança: emocionais, sociais, intelectuais e físicas. Essas experiências proporcionadas pelo ambiente vão se integrando e são essenciais ao processo de maturação.
O desenvolvimento psicossexual infantil freudiano – dividido nas fases oral, sádico-anal, fálica e genital – figura como estruturante do nosso psiquismo. Importante sempre pontuar que essa teorização de sexualidade infantil tem um sentido amplo que vai além da conceituação genital e engloba um caráter relacional, uma troca com o mundo externo que, inicialmente, aparece a partir da figura materna na atenção nos cuidados básicos. Freud (1905/2016) preconiza que a sexualidade já se faz presente no recém-nascido quando esse traz "germens de impulsos sexuais", exemplificando com as sensações sexuais durante o aleitamento; e, posteriormente, a vida sexual das crianças é melhor observável por volta dos 3 ou 4 anos e atinge seu primeiro florescimento dos 3 aos 5 anos. Verifica-se por oportuno que há uma presença maciça da escola durante todo o processo de desenvolvimento psicossexual de um indivíduo.
A partir do mito da horda primeva, instaurou-se o totem e o tabu como condições para vivermos em sociedade, essa concepção consiste basicamente em uma lei simbólica que lembra aos homens as interdições impostas para seguir vivendo em civilização. Por necessitar renunciar a algumas coisas que trariam satisfação, uma felicidade plena nunca seria alcançável ao homem, daí vem o mal-estar que se instala (Freud, 1930/2020).
A educação é tida como um produto do processo civilizatório, uma ferramenta que objetiva adaptar as crianças e jovens à sociedade esperada. Vemos essa característica da educação quando temos que é o Poder Público quem regulamenta as diretrizes e a estrutura educacional. No Brasil, a educação é regida pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. O Ministério da Educação – MEC é o órgão que elabora e executa a Política Nacional de Educação, regulamentando e fiscalizando o ensino (Vieira, 2015).
A institucionalização tem como objetivo automatizar processos de formação de hábitos e rotinas, transmitindo um conhecimento generalizado que economiza tempo através dessa estruturação e transmissão simplificadas a outras gerações. Em termos gerais, podemos dizer que as instituições a) surgem para atender uma demanda da sociedade e da cultura, b) têm como características a continuidade e estabilidade, c) estruturam-se a partir da lei e dos costumes, d) impõem regras e e) são anteriores a nós (Castanho, 2018). Quando visto sob esse prisma, as escolas se encaixam perfeitamente na definição de instituição e se apresentam como recursos civilizatórios que submetem as pessoas aos seus ditames e a pedagogia tem função limitadora e condicionadora.
Alguns traços da educação como uma condição civilizatória e, portanto, limitadora são: a) o ensino constar como um dever dos pais ou responsáveis que têm a obrigatoriedade de matricular na educação básica as crianças a partir dos 4 anos – havendo inclusive um crime tipificado no Código Penal que penaliza o "abandono intelectual" quando deixam de prover ao filho em idade escolar a instrução primária (Decreto/Lei nº 2.848/40, artigo 246) – e b) a proibição no país do ensino domiciliar, também conhecido como homeschooling (Supremo Tribunal Federal, 2023). Vê-se que o alto índice indicado na introdução - chegando quase a um patamar absoluto - de crianças frequentando a escola não é aleatório ou resultado somente do desejo dos pais de exercerem o direito que seus filhos possuem à educação.
Freud (1905/2016) aponta que a educação contribui significativamente para a inibição sexual (que já ocorreria naturalmente, segundo ele, por um condicionamento orgânico e hereditário) ao construir entraves no caminho do livre curso dos instintos sexuais. O autor cita um cenário no qual um educador ao se deparar com o mínimo de irrompimento de manifestação sexual da criança, vê esse fato como um vício que deve ser imediatamente reprimido moralmente por ser um óbice ao processo de educar. Ao se sublimar os instintos, isto é, ao se desviar as metas sexuais para outras metas, cria-se um contexto propício para as realizações culturais, incluído aqui o processo educacional formal. Logo, aventa-se que a educação como fruto da cultura traz em seu cerne a repressão pulsional. O que pode ocorrer é que na supressão irrestrita e exagerada das pulsões parciais pela escola surgem as neuroses como mecanismos de defesa do psiquismo.
Poder-se-ia dizer que a prática clínica psicanalítica não seria compatível com a educação, pois o ensino tem em sua base o recalque e a psicanálise, ao contrário, trabalha justamente com o material recalcado que vem à tona. Entretanto, coaduna-se com Kupfer (1989) de que ao relacionar psicanálise e educação não se trata de transformar professores em analistas: com a transmissão da psicanálise ao educador, objetiva-se produzir efeitos na sua prática que leve em consideração o sujeito do inconsciente e o sujeito como agente produtor da sua própria história.
2. Os potenciais de grupos psicanalíticos em escolas públicas
Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento.
Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia de 1996
No ano de 2023 passei a integrar a equipe de analistas voluntários da ONG Núcleo de Psicanálise e Ação Social – NUPAS que realiza atendimentos a grupos em escolas públicas da cidade de São Paulo/SP.
Minha experiência consistiu em atender um grupo de professores de uma escola estadual. Por meio dessa participação foi possível perscrutar os potenciais de um imbricamento entre psicanálise e educação através de grupos psicanalíticos.
Os grupos do NUPAS têm como pressupostos básicos a teoria psicanalítica. Nas supervisões semanais, evidenciou-se que a teoria como um todo – indo de Freud a Lacan, passando por Bion, Winnicott e Klein – contribui para a prática grupal.
Os grupos contam com dois analistas, um na função de coordenador e o outro na função de observador (participei do grupo relatado como observadora). Os encontros aconteceram quinzenalmente às segundas-feiras, tinham duração de 45 minutos e ocorreram durante todo o ano letivo de 2023.
Em termos gerais, no grupo trabalhou-se a espiral dialética com o objetivo de trazer à tona os conteúdos implícitos que poderiam estar gerando sofrimento aos integrantes. Esse movimento pode ser representado como um cone invertido onde ocorre a seguinte operação: na base temos os conteúdos explícitos, manifestos ou emergentes e no vértice encontramos os conteúdos implícitos ou latentes. A espiral dialética indica o movimento de indagação, esclarecimento e interpretação que vai da base em direção ao vértice (Pichon-Rivière, 2005).
Em todas as sessões fizeram-se presente essa ideia dialética que tinha como meta principal abrir espaço para novas formulações. Nesse sentido, Pichon-Rivière (2005) é didático ao propor que
nossa tarefa é resolver situações de estancamento, seja estancamento na doença, na aprendizagem, em qualquer aspecto da vida, e tornar essa situação dialética. Tese, antítese e síntese podem levar justamente à situação de movimento no interior do grupo, com a possibilidade de aprender sem o temor de perder. Assim, o perder fica deslocado diante da possibilidade de um aprender operativo. O grupo caminha em cada caso, com essa técnica do explícito ao implícito, para, através desse processo, o aparecimento de um novo explícito, ou para a explicitação do que estava latente e que se mostrava perturbador e gerador de conflitos (Pichon-Rivière, 2005, p. 278).
Quando se fala em educação, a personagem-chave que logo vem à mente é a do professor. Esse profissional reproduz e segue as diretrizes impostas pelo Estado. Por ser a linha de frente do sistema de ensino, são os professores que estão à mercê das falhas e violências oriundas dessa ordenação.
Vale lembrar que o docente é um sujeito que também foi impactado pela educação, pela cultura e pelo desenvolvimento psicossexual freudiano. É um adulto que traz consigo as marcas singulares de suas experiências e de suas fantasias infantis.
Para Kupfer (1989) é necessário que o educador entre em contato com sua própria infância, que haja a assunção da criança que o habita, assim ele seria mais hábil em lidar e reconhecer a partir da sua própria sexualidade infantil a de seus alunos. Esse seria um caminho que possibilitaria ao professor acompanhar as crianças em suas trajetórias de angústias e anseios, transitando à margem da repressão cultural.
Na teoria winnicottiana encontramos uma teoria do amadurecimento que passa pelos estágios de dependência absoluta, dependência relativa e independência.
Um ambiente no qual a criança encontre cuidados e receba provisões suficientemente boas abre caminho para que ela vivencie dinâmicas mais saudáveis e adaptativas ao longo de sua vida. Esse ambiente sustentador possibilita à criança ter a experiência de "continuidade do ser", fundamental no processo de maturação. O contrário dessa continuidade seria o aniquilamento do ser, uma ausência de esperança (Winnicott, 1960/1983). Faz-se necessário ressaltar que falar de um ambiente satisfatório não corresponde a uma adaptação irrestrita por parte da mãe/cuidadores, pelo contrário, é falar de uma mãe que em determinado momento comece a falhar para que o bebê encontre novas saídas para suas necessidades e siga amadurecendo.
No curso do desenvolvimento infantil há dois componentes que são importantes: a agressividade e o brincar.
A agressividade constitui um nível do amadurecimento que pressupõe uma trajetória até a integração do eu. A agressividade é inerente ao ser humano, mas somente se torna parte do indivíduo quando esse encontra condições de experimentá-la e isso ocorre na forma como o ambiente responde à agressividade. Aborda-se aqui a agressividade relacionada ao estágio de dependência relativa no qual o bebê usa da destrutividade para criar a externalidade e a capacidade de usar objetos (Dias, 2000).
Quando há uma assistência maternal suficientemente boa, a criança passará a salvo por essa etapa essencial que é a assimilação da existência de um mundo exterior situado fora do seu controle primário, que é onipotente e mágico. Salienta-se que tal fase ocorre em gradações sutis.
Se for concedido tempo suficiente para os processos de maturação, a criança capacita-se, então, a ser destrutiva, odiar, agredir e gritar, em vez de aniquilar magicamente o mundo. Dessa maneira é possível encarar a agressão concreta como uma realização positiva. Comparados com a destruição mágica, as ideias e o comportamento agressivos adquirem um valor positivo, e o ódio converte-se em um sinal de civilização, sempre que tivermos presente todo o processo de evolução emocional do indivíduo, especialmente em suas primeiras fases (Winnicott, 1964/2022, p. 225).
Quando a assistência materna é defeituosa e as mudanças ocorrem de forma abrupta, a criança não consegue prevê-las e não tem êxito em integrá-las. Nesse sentido, Dias (2000) discorre de maneira elucidativa o que pode ocorrer nesses casos:
Se o ambiente fornece cuidados satisfatórios e se mostra capaz de reconhecer, aceitar e integrar essa manifestação do humano, a fonte de agressividade - que, no início, é motilidade e parte do apetite - torna-se integrada à personalidade total do indivíduo e será elemento central em sua capacidade de relacionar-se com outros, de defender seu território, de brincar e de trabalhar. Se não for integrada, a agressividade terá que ser escondida (timidez, autocontrole) ou cindida, ou ainda poderá redundar em comportamento anti-social, violência ou compulsão à destruição (Dias, 2000, p. 12).
Já o brincar facilita o crescimento e conduz a relacionamentos em grupo, é condição própria da saúde. Brincar é fazer coisas, está para além de pensar e desejar. Não se constitui nem dentro nem fora da criança, mas possui um tempo e um lugar (Winnicott, 1971/1975).
O espaço potencial seria o espaço que dá lugar ao brincar. É uma área intermediária na qual o sujeito vivencia um jogo entre realidades internas e externas, relacionando-as. Esse brincar inicialmente demarca a existência da criança e como ela habita o mundo. Nessa toada, teremos que tal local é onde
a criança viverá experiências de todos os tipos: com os objetos, brincando e utilizando-os para "com eles e neles ser criativa"; com as pessoas, permitindo relacionamentos sociais sem a perda da subjetividade; e com a cultura, vivendo experiências que lhe permitirão contribuir para o fundo comum da humanidade (Serralha, 2019, p.159).
Um componente essencial para a criação desse espaço potencial é a confiança. A criança precisa confiar que não haverá retaliação à sua agressividade por parte dos objetos. O objeto precisa estar ali para ser usado. Ele será amado, mas também mutilado. O objeto precisa permanecer, sem mudar essencialmente. Entretanto tem que se mostrar vivo e com realidade própria. Esse caminho segue até que desemboque em uma descatexia gradativa ou,
de maneira que, com o curso dos anos, se torne não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. Com isso quero dizer que, na saúde, o objeto transicional não ‘vai para dentro; tampouco o sentimento a seu respeito necessariamente sofre repressão. Não é esquecido e não é pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao fato de que os fenômenos transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o território intermediário entre a ‘realidade psíquica interna’ e ‘o mundo externo’, tal como percebido por duas pessoas em comum, isto é, por todo o campo cultural (Winnicott, 1971/1975, p. 17).
Sob esse aspecto, a escola (detidamente o jardim de infância) se coloca como o corolário da definição de espaço potencial:
Na educação da escola maternal, criam-se condições propícias para o que é intermediário entre o sonho e o real; principalmente, as brincadeiras são respeitadas de um modo positivo e empregam-se estórias, desenhos e música. É especialmente neste setor que a escola maternal pode fomentar o enriquecimento e ajudar a criança a encontrar uma relação operante entre as ideias que são livres e o comportamento que precisa tornar-se relacionado com o grupo (Winnicott, 1964/2022, p. 178).
Para Winnicott (1971/1975) essa área continua existindo na vida adulta em espaços que serão ocupados pela arte, religião ou trabalho e o seu estágio final seriam as experiências culturais que só a humanidade pode alcançar. É no brincar que a criança e o adulto dão curso à liberdade de criação. O autor sugere inclusive que a psicanálise foi desenvolvida como uma forma especializada do brincar e está a serviço da comunicação consigo e com os outros.
Outra característica do espaço potencial que dialoga com a prática analítica é sua propriedade de ser neutro, a realidade que nele se apresenta não é colocada em dúvida. Há que se tomar o que dali é trazido com confiança e fidedignidade (Winnicott, 1971/1975).
Paulo Freire é considerado patrono da educação brasileira, para ele existe uma capacidade humana que nos permite transpor condicionamentos e alguns traços dessa força criadora são a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde e a curiosidade não facilmente satisfeita (Freire, 1996/2023). Um dos atributos para uma prática educativa autônoma seria a liberdade, focar em experiências que estimulem o senso de responsabilidade e decisório. Para ele "a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada" (Freire, 1996/2023, p. 105).
Para Freire, a educação precisa sair do nível de um ato de depositar, um conceito de educação acumulativa: o professor é o narrador que enuncia conteúdos sem vida e os alunos são objetos pacientes que somente escutam. Tem-se que transpor para uma educação crítica mediante um processo de mão dupla no qual o professor ensina e é ensinado e o aluno é ensinado e ensina. Isso seria possível através do diálogo que "é encontro entre os homens, intermediado pelo mundo, para nomear esse mundo" (Freire, 1979/2023, p. 135). Ora, todas as características elencadas pelo autor para uma pedagogia da autonomia vão ao encontro do proposto por Winnicott ao preconizar o espaço potencial.
Após todo o exposto, o presente trabalho propõe que articular grupos psicanalíticos dentro de escolas públicas é uma possibilidade de ter um espaço intermediário onde vigora a autonomia e o não-saber dentro de um espaço institucional pedagógico.
Com a finalidade de articular teoria e prática, a seguir narram-se cinco vinhetas clínicas a partir de relato de experiência nas quais restou clara a capacidade do grupo em funcionar como um espaço potencial que suporta as investidas agressivas dos sujeitos, que se mostra confiável e aberto às experiências. Por se tratar de pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional e não tendo sido revelados dados que possam identificar o sujeito - nos moldes do artigo 1, VII da Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510/16 - é dispensada sua aprovação em comitê de ética.
Os ataques em escolas no ano de 2023 mobilizaram afetos e conteúdos em todos os grupos atendidos pela ONG. As impressões do transbordamento da violência foram sentidas, ouvidas e sustentadas pelas analistas e pelo grupo. Em sessão que ocorreu no dia 03/04/2023 - uma semana após o ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, na zona oeste da cidade de São Paulo/SP e que vitimou fatalmente uma professora - os professores do grupo mostram-se visivelmente cansados, indicam uma sensação de esgotamento como se fosse o final do ano. Em determinado ponto, o encontro versou sobre o episódio do ataque à outra escola, comentam sobre a violência que veem diariamente ali na própria escola, compartilham sentimentos e pensamentos de revolta, tristeza, angústia, impotência, desvalorização e falta de reconhecimento por parte do Estado, da direção e dos pais. Uma professora durante o discurso, em tom de revolta, emociona-se e chora;
Em sessão que ocorreu no final do primeiro semestre, novamente a emergência dos afetos foi palpável: um professor diz que vai contar o episódio em que lesionou a mão (ele chega à sessão segurando uma bolsa de gelo em cima da mão). Conta que foi bater com o livro na mesa e sem querer atingiu sua mão e se machucou. Diz que está cansado e que não vai mais propor que suas aulas sejam fora da sala porque aconteceu um fato em que um aluno se machucou e a direção e pais o culparam. Conta ainda que em uma outra escola ele foi chutar uma porta com raiva e quebrou o dedo do pé. Seus relatos são contados de forma e em tom divertido e os outros riem. No fim da sessão, uma professora diz que queria contar um episódio que aconteceu naquela manhã: ao entrar na sala de computadores vê que um deles tem fezes de pombo e então imagina que um pombo entrou na sala e morreu ali. Ela procura e não encontra. Outros professores e alunos entram. Ao final do intervalo ela se assusta ao ver que o pombo esteve morto do seu lado todo o tempo e ninguém viu, ela conta que se assustou e gritou. A sessão termina;
-
Em uma sessão no segundo semestre, uma das professoras irrompe com uma fala de extrema frustração voltando sua agressividade para o grupo, questionando a eficácia daquele espaço, expondo sua indignação generalizada com o Estado e as instituições até compartilhar uma situação pessoal pela qual passava que mostrava sua impotência e desemparo; essa professora recebeu apoio de todos os outros participantes e a analista-coordenadora reforça que aquele horário e aquele espaço são deles e, por isso, utilizam-no como quiserem, mas salienta que estará ali independente de qualquer situação alheia ou mesmo que eles não queiram participar.
Em seguida, alguns professores comentam sobre como a atuação da ONG tem sido importante desde que o projeto se iniciou ali há 5 anos. Esse movimento gerou uma interessante repercussão e foi um ponto de virada, pois até então o grupo apresentava muita resistência ao processo, pouco se implicava e muitas sessões transcorriam como um bate-papo;
Em uma das sessões já no final do ano, os professores comentam sobre estarem preocupados com alguns alunos do 9º ano que deixarão a escola no ano seguinte e estão receosos sobre como eles enfrentarão as novas escolas. A palavra circula e em determinado ponto os professores começam a se implicar na situação associando e refletindo sobre como eles mesmos têm seus anseios frente a términos e incertezas. Uma professora comenta que falando de finais, o horário da sessão havia terminado. Todos riem, despedem-se e enquanto saem uma das professoras comenta que o NUPAS estará lá novamente dentro de 2 semanas;
A última sessão foi marcada pelo compartilhamento entre os professores sobre suas apreensões do ano que se findava. Foi uma sessão na qual, diferente das anteriores, todos se sentiram instados a falar. Em meio a agradecimentos finais, também divergindo das demais sessões, alguns professores abraçaram as analistas.
A seguir passamos a tecer breves considerações sobre as vinhetas:
Vinheta 1 - Ataques em escolas e o transbordamento da violência: a teoria winnicottiana sobre o ambiente suficientemente bom é fundamental para entender a importância do espaço do grupo como um ambiente seguro para o processamento de emoções intensas como medo, raiva e impotência. O grupo, como um espaço potencial, oferece a oportunidade de compartilhar e elaborar esses sentimentos, promovendo a saúde mental dos professores.
Vinheta 2 - A agressividade expressa no grupo: quando um professor relata ter se machucado e expressa frustração, exemplifica a importância da agressividade na teoria winnicottiana. No grupo, a agressividade pode ser expressa de forma segura e controlada, permitindo sua integração na personalidade e evitando comportamentos destrutivos.
Vinheta 3 - A importância do setting e a função do analista: a resistência inicial do grupo e o posterior reconhecimento da importância do espaço terapêutico ilustram a importância da confiança e da continuidade na criação de um espaço potencial. A analista, ao manter o setting e oferecer um ambiente seguro, possibilita que os professores ocupem o espaço e o utilizem para elaborar suas angústias.
Vinheta 4 - O grupo como espaço de elaboração de ansiedades: a preocupação dos professores com o futuro dos alunos e a associação com suas próprias ansiedades demonstram a capacidade do grupo de funcionar como um espaço transicional, onde as realidades interna e externa se encontram. No grupo, os professores podem elaborar suas ansiedades e medos, encontrando novas formas de lidar com as incertezas da vida.
Vinheta 5 - O término do grupo e a elaboração da separação: a última sessão é marcada por agradecimentos e abraços, demonstra como no grupo é facilitada a elaboração da separação e a consolidação das experiências vividas no espaço potencial. O reconhecimento da importância do grupo pelos professores demonstra o impacto positivo do trabalho realizado.
Através desses fragmentos, espera-se ter sido possível demonstrar que o grupo facilitou aos professores a capacidade de viver experiências e integrá-las. No decorrer do ano, eles foram se apropriando do espaço e trabalhando a percepção de que ali poderiam sair do papel de mestre.
Circulou no grupo a agressividade quando foram trazidas falas de desmotivação, revolta, frustração e tristeza. Já o brincar aparece na possibilidade do compartilhamento livre de ideias e sentimentos, dando vazão à singularidade e promovendo a elaboração criativa das situações que emergiam. Características do espaço potencial como a confiança, a liberdade, o não-julgamento, a neutralidade, a continuidade e a permanência pautaram a instalação e manutenção do setting.
Considerações Finais
A escola possui funções basilares na vida infantil ao oferecer um espaço físico e emocional com vivências enriquecedoras e desafiadoras, fomentando o aprendizado e as relações interpessoais. Inegavelmente os professores são centrais na configuração educacional, são eles que lidam diária e diretamente com os alunos. Na rotina de uma sala de aula emergem afetos de toda ordem, assim claramente a função de um professor vai muito além da transmissão de um conhecimento teórico. Eles atuam no acolhimento, escuta e direcionamento dos seus pupilos.
Ouve-se repetidamente nos meios de comunicação sobre as debilidades do sistema educacional brasileiro. Cada um de nós tem sua própria experiência sobre a estrutura escolar a partir dos anos vividos dentro das escolas, podemos ainda transitar por esses espaços como pais de alunos e até como professores. Logo, os entraves da educação são conhecidos empiricamente pela sociedade no geral.
Afora a necessidade óbvia que se impõe de cobrar políticas e verbas públicas voltadas às escolas públicas, cabe propor à comunidade psicanalítica uma atenção especial na nossa atuação. Por vezes pais, alunos e professores chegam às nossas clínicas e entramos em contato com as mais variadas queixas e demandas relativas ao ambiente escolar, outras muitas vezes não. Talvez tenhamos agora uma oportunidade de aproximar a sociedade e a psicanálise, levando a escuta analítica para fora das quatro paredes do consultório.
Ressalta-se que o debate pode ser ainda mais amplo se considerarmos o cenário pandêmico que afetou todas as áreas da vida social, inclusive o ensino já que alterou fundamentalmente uma dinâmica que sempre teve como modelo o formato presencial. Não podemos rejeitar que mesmo após seu fim, a pandemia ainda produz muitos impactos psíquicos na população. Por isso, deixa-se tal fato como mais um ponto de reflexão e discussão para trabalhos futuros.
O vivenciado nesses meses no NUPAS destacou a relevância dos grupos psicanalíticos como um espaço potencial. O grupo propiciou um momento no qual a lógica do saber e a institucionalização da educação cederam lugar ao inconsciente de cada participante. Pôde-se constatar que as peculiaridades do espaço potencial como um local transicional capaz de suportar as investidas agressivas dos participantes, com confiabilidade, neutralidade e um livre curso aos pensamentos e sentimentos através da associação livre foram reconhecidas no trabalho grupal. Em última instância, o grupo foi um espaço no tempo que deu voz à singularidade de cada professor.
Considerando o grande período que passamos em escolas, a escalada da violência como via para dar vazão à agressividade e o lugar que o ambiente ocupa para nossa formação psíquica, acredita-se que uma saída possível para a crise na educação em tempos de afetos em emergência seja propiciar mais espaços como os grupos psicanalíticos do NUPAS.
Interessante ressaltar que há uma atenção especial do NUPAS em viabilizar o atendimento aos vários atores sociais que compõem a escola – incluindo alunos, diretoria, funcionários da administração, limpeza e segurança -, aqui foi trazido o recorte apenas do grupo do qual participei. Acredita-se que todos os sujeitos de uma escola participam e se influenciam mutuamente no processo de educar. Em suma, todos são educadores quando estão inseridos nesse espaço. Os grupos de uma mesma escola se ligam não somente por pertencerem a uma instituição em comum, mas também muitas vezes pelos mesmos sintomas, desejos e angústias.