Introdução
O dispositivo grupal é um instrumento de trabalho amplamente utilizado no contexto institucional e que vem ganhando cada vez mais espaço no Brasil, sobretudo no exercício envolvendo políticas públicas, sejam elas de saúde, assistência social ou educação. O expressivo crescimento do campo de atuação para o profissional de Psicologia nessas áreas, nas últimas décadas, vem criando a demanda por mudanças no âmbito da formação, da pesquisa e da prática a respeito da priorização pelo setting terapêutico clássico, individual e privativo, uma vez que se distancia das necessidades e dos fundamentos do serviço público brasileiro.
Dessa forma, modalidades de atuação coletivas tornam-se cada vez mais importantes na área profissional e são protagonistas em um projeto de extensão oferecido por um laboratório de Psicologia de uma universidade pública brasileira, que realiza um trabalho reflexivo com pessoas que estão iniciando o processo de adoção, bem como rodas de conversa com indivíduos que adotaram recentemente. Ambas as atividades acontecem em grupo e são co-coordenadas por uma equipe de psicólogos e estudantes de psicologia, configurando um campo que se dá pelo encontro entre essas duas formações grupais distintas: de um lado, os coordenadores e, de outro, os adotantes ou pretendentes a pais pela via da adoção.
Segundo Pablo Castanho (2015),
Trabalhar com grupos é também, muito frequentemente, trabalhar em grupo. "Coterapia", "equipe interpretante", "analista e observador participante" etc., são variadas as expressões que designam essa situação na qual colegas trabalham em conjunto com um grupo, família, casal ou instituição. (Castanho, 2015, p.111)
Tal setting grupal carrega especificidades e implicações muito importantes, sobretudo no que diz respeito ao complexo campo transferencial que ele comporta, o qual, neste artigo compreendemos a partir do conceito de intertransferência. Embora seja cada vez mais comum nas práticas institucionais, tal forma de atuação vem sendo pouco estudada em suas particularidades (Castanho, 2015). Em pesquisa no portal CAPES e no Google Acadêmico, usando o descritor "intertransferência", de 2015 até 2023, dentre os resultados, encontramos apenas dois relatos de experiências que tratavam de estudo realizado com equipes interpretantes, ambos de 2023. Dentre eles, um se utilizou do conceito de intertransferência como uma ferramenta de escuta privilegiada diante de obstáculos no processo terapêutico grupal (Dos Santos, Da Silva & Castanho, 2023) e o outro tratou da intervisão, compreendendo-a como uma estratégia de reflexão conjunta (Ávila et al, 2023).
Assim, através deste relato de experiência, buscamos contribuir para a compreensão a respeito da atividade psicanalítica realizada em equipe interpretante, por meio da discussão de como se dá o processo de vinculação e formação grupal a partir do encontro entre os participantes (incluindo aqui os pretendentes/adotantes e os coordenadores). Pretendemos explorar a emergência dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais na confluência do trabalho realizado com grupos e em grupo, enfatizando o enquadre on-line, com a finalidade de pontuar desafios e potencialidades que esse tipo de intervenção impõe.
Um trabalho realizado com grupos
A partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei no 8.069, 1990), o processo de adoção assume o caráter de medida excepcional na busca por se assegurar o convívio familiar e um ambiente que garanta o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes que, por variados motivos, tenham perdido o vínculo com sua família biológica. Dessa forma, o objetivo da adoção é legalmente estabelecido como a proteção da criança e do adolescente, e não a realização do projeto de parentalidade de adultos que, por diversas razões, não possam ou não queiram realizá-lo pela via biológica. Em decorrência dessa mudança de paradigma e como uma forma de se garantir este direito constitucional, diversos espaços e mecanismos foram desenvolvidos para a preparação daqueles que demonstram interesse em iniciar um processo de adoção.
É nesse sentido que, no ano de 2013, grupos reflexivos com pretendentes à adoção foram criados como projeto de extensão universitária do curso de Psicologia, sob a coordenação de uma professora titular da instituição de Ensino Superior ao qual o projeto se vincula. À época, foram estabelecidas algumas parcerias com Varas da Infância e Juventude do Estado de São Paulo e os encontros eram realizados de forma presencial, conduzidos por um grupo de alunos da graduação e pós-graduação. Desde então, alguns convênios encerraram-se, outros se iniciaram, mas em todos os casos, a participação no grupo manteve-se como etapa obrigatória para a entrada dos pretendentes no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), nas Varas parceiras. Embora a presença seja compulsória, a atividade não tem caráter avaliativo, o que significa que nada do que é compartilhado pelos participantes influenciará no restante do processo de habilitação dos mesmos.
A metodologia elaborada pela equipe do laboratório e replicada ao longo dos últimos anos prevê a realização de três encontros com duas horas de duração cada e a estruturação de atividades divididas entre os três dias, envolvendo dinâmicas, exibição de vídeos e uso de objetos mediadores. Todas as tarefas têm o intuito de fomentar e facilitar a troca entre os participantes, assim como a reflexão a respeito de temas importantes sobre o processo de filiação por meio da adoção.
Em 2020, com o início da pandemia ocasionada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela necessidade de dar-se continuidade ao projeto em meio ao isolamento social, a equipe organizadora dos grupos reflexivos passou a realizá-los de forma on-line. Nesse mesmo contexto, as medidas de distanciamento social afetaram fortemente as adoções em andamento, principalmente as que se encontravam em estágio de aproximação e de convivência, acarretando demandas de acompanhamento advindas dos pretendentes a pais, bem como dos profissionais das Varas.
A partir de tais demandas foram criadas rodas de conversa pós-adoção, que passaram a ser realizadas também de forma on-line, com pessoas indicadas pelas comarcas. O formato virtual, posteriormente, possibilitou o início de novas parcerias com o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (TJMS). Embora tenha começado como um espaço de acolhimento e facilitação de trocas entre pessoas que adotaram durante a pandemia e cujos estágios de aproximação e convivência foram prejudicados pela situação sanitária do país, mesmo após o afrouxamento das medidas de distanciamento social, a prática permanece ativa.
A participação nas rodas de conversa não tem caráter obrigatório ou avaliativo. A proposta acontece em três encontros de duas horas de duração cada. Diferentemente dos grupos de pré-adoção, a metodologia das rodas de conversa não prevê atividades de mediação pré-estabelecidas: os encontros se iniciam com a apresentação dos participantes a partir de uma pergunta disparadora sobre o processo de aproximação deles com as crianças/adolescentes e, depois disso, a palavra é livre. Isso permite que o trabalho grupal seja estabelecido a partir dos conteúdos emergentes particulares de cada caso. Vislumbra-se como possibilidade, ao final dos grupos, a oferta de psicoterapia breve gratuitamente aos participantes que demonstrem maior necessidade de preparação e de suporte psicológico, visando uma construção filiativa efetiva.
No período compreendido entre os anos de 2020 e 2023, ao todo, 266 pessoas foram indicadas pelas comarcas parceiras supracitadas para as atividades do projeto. Dessas, foram atendidas 188 pessoas, das quais 139 participaram dos grupos reflexivos pré-adoção, e 49 das rodas de conversa pós-adoção, compreendendo uma adesão equivalente a 71,28% nos grupos pré-adoção e 69,01% nas rodas de pós-adoção. Em ambas as atuações, o trabalho acontece com um número variável de participantes, entre 2020 e 2023, a média de integrantes por grupo na atuação em pré-adoção foi de 20 pessoas, enquanto no trabalho pós-adoção, a média foi de 10 por grupo.
Os grupos de pré-adoção têm o intuito de oferecer uma oportunidade para que os pretendentes possam refletir sobre a decisão pela adoção, sobre as escolhas presentes no processo, bem como visa provocar uma desconstrução das idealizações e fantasias que rondam o imaginário das pessoas que iniciam esse percurso. As rodas de pós-adoção, por sua vez, embora tenham essa nomenclatura, ocorrem durante o estágio de convivência, período de até 90 dias que antecede a efetivação legal da adoção, no qual a(s) criança(s) e/ou adolescente(s) já está(ão) vivendo com os pretendentes a pais. A atuação tem por objetivo tratar diretamente das questões de vinculação em suas várias facetas, em especial o luto pelo(a) filho(a) imaginado(a) e recepção do(a) filho(a) real, bem como a tolerância aos testes de vínculo frequentemente impostos pelas crianças e adolescentes neste período. Em suas semelhanças e diferenças, em ambas as intervenções grupais, visa-se atingir uma adoção consciente e bem-sucedida, ao favorecer um ambiente para a expressão dos desafios e dos processos singulares que tal forma de parentalidade prevê, atuando, assim, de forma preventiva às situações que poderiam encerrar-se com devoluções.
Esse propósito, no entanto, encontra-se entrelaçado aos objetivos acadêmicos e de formação pedagógica propiciados pela formatação do projeto enquanto extensão universitária, o que acrescenta ao já delicado trabalho com a temática da adoção e da parentalidade, mais um intricamento. Vê-se, então, que em ambos os projetos ocorre um trabalho com grupos, realizado em grupo, uma vez que neles correm em paralelo duas configurações grupais formadas a partir de vínculos de natureza distinta: de um lado, um conjunto de pretendentes/adotantes vinculados pelo desejo de filiação por meio da adoção e, de outro, uma equipe de coordenadores vinculados pela formação em Psicologia.
Um trabalho realizado em grupo
Os grupos de pré e de pós adoção, por tratar-se de projetos de extensão universitária, têm possibilidade de participação aberta a todo o corpo discente do curso de Psicologia da instituição à qual estão vinculados. Dessa forma, a equipe que atua como coordenadora dos encontros é formada por alunos e ex-alunos de graduação e pós-graduação, que se juntaram ao projeto motivados pelo interesse em comum em temas ligados à adoção, parentalidade e família.
Os estudantes que desejam participar do projeto se matriculam na disciplina oferecida e podem seguir como membros de ambas as atividades pelo período de um semestre, o que pode ou não ser estendido, de acordo com o interesse do aluno. Embora exista a expectativa de que a participação dure, no mínimo, um semestre, não há limite de tempo para a permanência no projeto, coexistindo na equipe veteranos que coordenam os grupos há anos, assim como recém-chegados. Conforme vão ganhando experiência, os discentes mais antigos passam a assumir o papel de recepção e orientação dos novos que entram no projeto, podendo realizar com eles grupos de estudo – nos quais são discutidos textos acadêmicos que fundamentam as estratégias da intervenção desenvolvidas, bem como informações atualizadas das leis referentes à adoção, além de reuniões para o esclarecimento de dúvidas e simulações da dinâmica dos grupos.
Entre a saída de alguns membros e a entrada de outros, a cada semestre, uma nova configuração grupal se forma, aportando à equipe de coordenadores uma dupla e ambígua característica de sazonalidade na perenidade do projeto, que já existe há mais de 10 anos. Nesse ínterim, a supervisão com a docente e coordenadora dos projetos constitui-se como o elemento organizador e símbolo maior de continuidade destas intervenções.
Os grupos reflexivos e as rodas de conversa têm frequência semestral e todos os alunos vinculados podem participar da condução de ambas as atividades. Não existe a figura de um coordenador principal, permitindo que, durante os encontros, todos sejam bem-vindos a realizar interpretações, se assim desejarem. As tarefas organizativas já pré-estabelecidas — como a apresentação do projeto, a proposição de atividades, o cuidado com o tempo, a realização de anotações, entre outros — são divididas entre os alunos coordenadores de forma voluntária, em reunião de equipe realizada antes de cada encontro. Assim, espera-se que, conforme o estudante vai ganhando experiência, ele se sinta mais confortável para intervir e realizar as tarefas organizativas.
Um encontro entre grupos
1. Os desafios do grupo on-line
Em meio às mudanças de estrutura que a pandemia impôs ao projeto, no período compreendido entre 2020 e 2023, podemos dizer que as mais importantes delas se deram a partir das reflexões e debates relativos à condução dos grupos na modalidade on-line. Este formato, que era aceito apenas em determinados contextos pelas entidades que regulam a atuação do psicólogo, teve que ser rapidamente revisto e flexibilizado, em função da pandemia de COVID-19, como pode ser observado pela publicação da resolução 004/2020 pelo Conselho Federal de Psicologia (Resolução n° 004, 2020).
Como as reuniões passaram a depender de um recurso tecnológico, que determinava e era essencial para a participação nas atividades, tornou-se necessário um processo de aprendizagem da tecnologia de conexão remota. A conexão de dados, a velocidade da internet, bem como o tipo de aparelho pelo qual a conexão se dava foram importantes para a efetiva participação de todos os envolvidos. Foi notável a desigualdade entre os participantes com relação à qualidade do acesso à internet, assim como à familiaridade com as tecnologias de informação e comunicação. Dessa forma, o grupo de co-coordenadores designava alguns estagiários, dentre os participantes, para prestar o suporte necessário para assegurar a melhor participação dos pretendentes.
Inicialmente, as reuniões no formato virtual causaram um estranhamento, tanto para os que participavam quanto para aqueles que desempenhavam a função de coordenadores. A proposta perdeu em termos da espontaneidade de sua realização, quando comparada à experiência presencial, e apresentou uma tendência à informalidade, em parte porque algumas das pessoas estavam sendo expostas a este tipo de atividade pela primeira vez naquele momento. Além dos desafios relacionados ao acesso, o distanciamento físico gerou dificuldades no que diz respeito à qualidade da presença – ainda que virtual – dos participantes na situação grupal, sendo perceptível, em algumas situações, dispersões de atenção e do nível de implicação e comprometimento com as discussões propostas.
Por conectarem-se de seus espaços pessoais – a partir de diferentes tipos de ambientes domésticos mais ou menos informais, de seus locais de trabalho ou mesmo, em função de imprevistos enfrentados naquele momento, do interior de um automóvel –, os pretendentes estavam expostos a múltiplos estímulos do cotidiano. Os mesmos adotavam posturas mais flexíveis do que em situações presenciais quanto à forma de se vestir e ao comportamento, permitindo, às vezes, a presença imprevista de pessoas que não deveriam estar ouvindo a reunião, como familiares, colegas ou mesmo os filhos, adotivos ou não. Quando as reuniões eram presenciais, estas ocorriam em salas de aula da instituição de Ensino Superior à qual o projeto está vinculado ou em locais cedidos para realização dos encontros, nas respectivas comarcas. Assim, o caráter institucional da atividade ficava mais evidente, evitando a interferência de fatores externos ao setting estabelecido e permitindo, ainda, uma relação transferencial com a instituição, mesmo que os encontros não fossem de cunho avaliativo.
Levando-se em consideração a conceituação de grupo descrita por René Kaës como um espaço psíquico comum e partilhado, formado por meio de configurações vinculares (Kaës 2011), notou-se que o cenário facilitador de distanciamento e dispersão, como o descrito acima, dificultou o estabelecimento de vínculos entre os participantes e, com isso, fragilizou a possibilidade de formação grupal no encontro virtual entre coordenadores e pretendentes. Além disso, compreendemos aqui que a transformação de um agrupamento de pessoas em um grupo, ou seja, em "uma nova entidade, com leis e mecanismos próprios e específicos" (Zimerman, 2000, p. 83), prevê o estabelecimento de uma tarefa e de um objetivo comum, a instituição de um enquadre e a noção de uma totalidade, ao mesmo tempo em que se preserva as identidades de cada indivíduo componente.
Nessa perspectiva, com os desafios impostos pelo distanciamento, sobretudo no que se refere à instituição de um enquadre virtual, os coordenadores do projeto passaram a expressar a vivência dessas dificuldades nos espaços de supervisão, encontrando momentos para falar do seu próprio desconforto na condução dos grupos, que se manifestou de formas diversas para cada membro da equipe. Foram relatados sentimentos de angústia, raiva, ausência de palavras capazes de nomear os estranhamentos – ou mesmo dificuldade e receio de expressá-los pela pouca intimidade entre os coordenadores –, assim como questionamentos sobre a efetividade da intervenção. Além disso, em ressonância com o cenário descrito, falas como "tenho medo de atrapalhar a condução dos grupos" ou "sinto que não tenho feito boas contribuições" revelaram um nível de insegurança frente ao desafio do estabelecimento e reconhecimento dos próprios coordenadores como um grupo coeso. Conforme tais desconfortos apareciam, os olhares, que até então estavam direcionados unicamente para o que ocorria nos encontros com os pretendentes e adotantes, começaram a se voltar para dentro da equipe coordenadora, permitindo-os avaliarem a sua própria formação grupal.
Assim, as discussões e reflexões acerca dos desafios no trabalho com os grupos de pretendentes e adotantes levaram à percepção de que tais questões tinham como pano de fundo não apenas o estabelecimento de um setting na modalidade on-line, mas também dificuldades no estabelecimento de uma vinculação grupal entre os próprios coordenadores do projeto. Devido à situação pandêmica, uma parcela significativa dos integrantes do projeto não se conhecia pessoalmente e encontravam-se exclusivamente para a realização das intervenções, não tendo, dessa forma, momentos de discussão e troca de experiências fora do espaço de supervisão, o qual era restrito às discussões dos casos. Ainda, pela entrada e saída de estagiários a cada novo semestre, a comunicação da equipe tornava-se mais difícil à medida que a configuração grupal se apresentava em constante mudança, manifestando-se, assim, na coesão do grupo.
A esse respeito, René Kaës explica que:
… o efeito dinamizador da satisfação com o trabalho psicanalítico de equipe só pode se produzir se os membros da equipe puderem ter instaurado entre eles certa estabilidade em suas relações afetivas, uma confiança mútua no caráter benéfico de sua atividade, uma confiança relativa em suas referências intelectuais e uma tolerância ao pensamento divergente ou crítico. (Kaës, 1982, p. 148 apud Castanho, 2012, p. 185, tradução do autor)
Sob esta perspectiva, pudemos relacionar muitas das inseguranças e dificuldades descritas anteriormente à fragilidade no estabelecimento de uma vinculação segura o suficiente entre os coordenadores. Assim, migramos o nosso olhar para as peculiaridades do trabalho grupal executado em co-coordenação.
2. A transferência no campo grupal em co-coordenação
A partir das indagações vivenciadas pela equipe coordenadora, como abordado acima, surgiu a necessidade de um aprofundamento teórico que respondesse às mesmas. A primeira pista foi encontrada em Castanho (2018), que enfatiza a necessidade de se lançar luz sobre as relações transferenciais e contratransferenciais emergentes do trabalho psicanalítico com grupos. Embora a compreensão da transferência em situação grupal seja particularmente plural na literatura psicanalítica, o autor explica que os fenômenos transferenciais advindos desse tipo de enquadre não apenas alicerçam, mas possibilitam o trabalho analítico. Assim, por meio de perspectivas europeias e latino-americanas sobre o assunto, descobrimos um caminho profícuo que nos possibilitou compreender, repensar e, além disso, traçar estratégias de intervenção em nossa própria atuação.
De acordo com Ângelo Béjarano (1978), a angústia em situação de grupo pode levar à clivagem do eu e dos objetos como uma forma de defesa intersubjetiva. Isso faz com que, nesse setting, a transferência se estabeleça como uma pluralidade, ou seja, como "transferências de grupo, concebidas como mais do que a soma das transferências individuais" (Castanho, 2018, p. 205, grifos do autor). Assim, a partir dessa proposta, deve-se atentar à emergência de, pelo menos, quatro tipos de relações transferenciais para cada membro do grupo, a saber: 1) com o coordenador (central); 2) com os membros do grupo (laterais ou fraternas); 3) com o grupo como totalidade; e 4) com o fora do grupo. Assim, a transferência compreendida como central é aquela estabelecida com a figura do coordenador do grupo, o qual, por sua vez, também forma com o grupo, uma relação contratransferencial (Béjarano, 1978).
Considerando que o trabalho proposto com os pretendentes e adotantes é realizado em co-coordenação, o objeto entendido como central se multiplica, complexificando as relações transferenciais e contratransferenciais decorrentes de tal campo grupal. Castanho (2012) indica que essa multiplicidade de relações transferenciais no trabalho grupal é uma característica benéfica do exercício em equipe, uma vez que cada coordenador poderá experienciar vivências contratransferenciais muito distintas, porém complementares, tanto com os membros do grupo, quanto com o grupo como um todo. Isto faz com que a diversidade de experiências atue como uma ferramenta de resistência aos fenômenos contratransferenciais pessoais de cada um. Além disso, em situação de co-coordenação, a própria equipe atua como um grupo, o que significa que os coordenadores também estabelecem, entre si, vínculos transferenciais e contratransferenciais, sobretudo de natureza fraterna. Esse cenário foi explicado pela concepção de intertransferência, desenvolvida por René Kaës ao longo de sua obra e descrita por Castanho como "conceito do campo da teoria da técnica quando dois ou mais analistas intervêm conjuntamente" (Castanho, 2015, p.112).
Durante as supervisões, não raro, a equipe de coordenadores percebia uma discordância nas compreensões e interpretações das situações vivenciadas com os pretendentes e adotantes. Em alguns casos, tais vivências heterogêneas acabavam por gerar um mal-estar entre a equipe, assumindo a forma de uma competição velada sobre qual das visões refletia melhor a realidade do caso. De acordo com Kaës (2011), "o complexo fraterno é um organizador importante do processo do aparelho psíquico grupal" (p. 263), sendo caracterizado por sentimentos de cooperação, como também de inveja e competição. Como o grupo não estava atento à emergência desses fenômenos, a falta de cuidado para com eles, por vezes, fez com que tal dissonância gerasse uma interferência na própria condução do processo.
Neste sentido, Castanho indica que "a reação às transferências dos participantes do grupo pode ser vista também no que se passa no vínculo entre os membros da equipe interpretante" (2015, p.113), e que, portanto, caso permaneçam inconscientes, estes fenômenos podem interferir negativamente na co-coordenação, prejudicando a confiança necessária para que o trabalho se desenvolva de maneira satisfatória, como pôde ser experienciado em situações como a descrita acima. Para isso, "raiva, ódio, rivalidade, amor, ou qualquer outro sentimento que os membros de uma equipe interpretante possam experimentar uns em relação aos outros, devem ser interrogados naquilo que porta marca do grupo atendido" (Castanho, 2015, p. 116), a fim de que tais vivências não sejam atuadas na prática.
A partir desta abordagem acerca dos fenômenos intertransferenciais, os coordenadores iniciaram um empenho de elaboração de estratégias para que o trabalho reflexivo e as trocas entre os pretendentes fossem possíveis e potencializadas na situação grupal on-line, seguindo, para isso, dois caminhos a serem descritos a seguir: a introdução de espaços de intervisão entre os coordenadores e modificações relativas ao enquadre nos encontros com os pretendentes e adotantes.
3. A intervisão e o enquadre nos grupos on-line
A fim de superar as dificuldades advindas da co-coordenação, para que esse mecanismo pudesse atingir a sua maior potência na defesa contra as vivências contratransferenciais individuais, a equipe de coordenadores sentiu a necessidade de mobilizar, depois de cada encontro com os pretendentes e adotantes, uma reunião para partilhar suas impressões e sentimentos pessoais com relação ao que se passava nos grupos. Essas reuniões se constituíram como espaços de intervisão, o que permitiu com que as percepções de cada membro fossem analisadas e validadas e aportou mais segurança e consciência do papel de cada integrante da equipe.
A necessidade da realização desses encontros entre os membros da equipe ficou evidente, sobretudo, a partir da percepção de que um "grupo paralelo" se formava no WhatsApp, concomitantemente à ocorrência das atividades com os pretendentes ou adotantes. Assim, durante as duas horas em que os grupos reflexivos ou as rodas de conversa aconteciam, frequentemente notava-se uma necessidade de comunicação entre os coordenadores, evidenciada pelo excesso de mensagens enviadas, que continham relatos sobre percepções, apontamentos e inseguranças. Tal movimento não apenas distanciava os coordenadores do encontro com os pretendentes e adotantes como também se anunciava enquanto expressão de uma ansiedade entre os membros da equipe.
Além disso, surgia entre os coordenadores, a preocupação pela não sobreposição de falas ao se ligar o microfone. À princípio passou-se a utilizar o recurso do Google Meet de "levantar as mãos", para evitar esse tipo de interrupção. Essa estratégia, no entanto, fez com que uma fila de inscrições se formasse, frequentemente, com muitos coordenadores inscritos em sequência. Percebemos que isso gerava uma sensação de disputa pelo espaço de fala e que provocava uma inibição dos próprios pretendentes e adotantes a se colocarem durante os encontros. Em reunião de intervisão, observamos que esse movimento revelava um duplo movimento da equipe, de competição e insegurança. Optamos, portanto, pela não utilização dessa ferramenta pela equipe coordenadora, pactuando-se a confiança na contribuição de cada membro, sem que houvesse necessidade de que tal contribuição fosse previamente acordada e validada pelos demais coordenadores através do WhatsApp.
Assim, notou-se que a utilização da intervisão, como um espaço de acolhimento e trocas depois da realização dos encontros, possibilitou à equipe trabalhar as defesas intertransferenciais, o que permitiu a continuidade da disponibilidade, por parte dos co-coordenadores, para a condução dos grupos. Nesses momentos de intervisão tem-se como proposta abarcar o concreto e o subjetivo em cada encontro, recorrendo a uma técnica ativa revisitada durante e após a realização de cada grupo, permitindo, assim, uma melhor utilização da supervisão pelos coordenadores.
A esse respeito, Santos, Silva e Castanho (2023), concluíram que o encontro entre a supervisão e um espaço de análise da intertransferência proporcionou um manejo no qual os participantes adquiriram confiança e passaram a usufruir do potencial do grupo concomitantemente ao processo de autopercepção dos coordenadores-estagiários como psicoterapeutas capazes. Isto possibilitou à equipe interpretante falar de frustrações, dificuldades, assim como de reconhecer limites, conquistas e pertencimento. Para Gomes e Zuanazzi (2018),
a transformação visível de alunos para terapeutas em aperfeiçoamento é confirmada a partir do aprendizado relativo ao manejo de situações recorrentes nos atendimentos que envolve distanciar-se de uma visão concreta e pedagógica (como responder perguntas objetivas e pontuais feitas pelos pacientes) e adentrar a escuta psicanalítica, que permite lidar com situações mais complexas e que exijam a imposição de limites no setting (p.65).
Neste sentido, o setting ou enquadre foi um outro aspecto da condução amplamente discutido no decorrer dos encontros dada sua centralidade para a condução destes, como já observado por Bleger (1967):
Proponho … que adotemos o termo situação psicanalítica para indicar esse complexo de fenômenos que fazem parte da relação terapêutica entre analista e paciente. Essa situação inclui fenômenos que constituem um processo, que estudamos, analisamos, interpretamos, mas inclui também um enquadramento, ou seja, um "não processo", no sentido de que são as variáveis que formam a moldura dentro da qual se dá o processo.
(…) O enquadre corresponderia às invariáveis de um fenômeno, um método ou uma técnica, e o processo ao conjunto de variáveis. (1967/2002, p. 103).
A exemplo da terapia psicanalítica individual, a técnica grupal também se sustenta pelo estabelecimento e preservação de um enquadre, o qual consiste em todas as combinações estabelecidas entre coordenadores e participantes, a fim de organizar, normatizar e facilitar a condução do processo, proporcionando limites e estrutura para o mesmo. Por meio do estabelecimento de um setting busca-se equilibrar e estimular a participação de todos e fazer com que elementos inconscientes de transferência fraterna possam ser trabalhados à medida em que aparecem no manejo dos grupos.
O enquadramento, assim como a intervisão, possibilitaram o desenvolvimento de um ambiente mais seguro, capaz de acolher as questões relacionadas à adoção – como o perfil da(s) criança(s) a ser(em) adotada(s), a postura dos agentes envolvidos, aspectos burocráticos e institucionais do processo, motivações, comparações, ciúmes, invejas, aspectos religiosos etc. –, as quais, sem estes, apresentavam-se como fatores desestabilizadores da dinâmica do grupo. Desse modo, mesmo que o trabalho grupal proposto aos pretendentes e adotantes não se configure como psicoterapia, foi observado a exigência de um manejo técnico adequado na condução das atividades reflexivas que possibilitasse equalizar a participação, evitando que questões e aspectos pessoais de cada participante fossem objeto de análise do grupo, com o intuito de gerar um ambiente acolhedor e terapêutico.
Além das questões de horário, comparecimento e pontualidade, outros aspectos compõem o enquadre estabelecido para os grupos on-line, como a abertura da câmera de vídeo para contato visual entre todos os membros, a participação na totalidade dos encontros e a presença de ambos os membros do casal parental. Complementando, a conexão a partir de um ambiente reservado sem a presença de crianças ou outras pessoas nos arredores mostrou-se necessária não apenas para que a privacidade de todos os presentes fosse garantida, mas também para preservação da espontaneidade e livre circulação da palavra na cena que ali se configurava.
A postura que adotamos para lidar com as situações descritas foi a de possibilitar que os partícipes inscritos estivessem presentes desde que as diretrizes do projeto pudessem ser respeitadas. Ainda assim, nossas regras foram sendo reavaliadas frente a novas situações.
Considerações finais
O trabalho realizado em grupo e com grupos, apresenta-se como uma ferramenta potente de atuação e requer uma atitude de revisão e atualização constantes, posto seu caráter social e dinâmico. Social, pois constrói-se pela reunião de pessoas de diferentes classes, raças, etnias, gêneros que se apresentam em suas individualidades, mas que em grupo são mais que a soma das partes, uma vez que aspectos conscientes e inconscientes emergem e traduzem-se em uma voz grupal. E dinâmico, pois a cada novo encontro a configuração deste grupo irá mudar pela presença de novos integrantes, apesar da perenidade do projeto.
Assim, frente a esta necessidade constante, torna-se imperativo que haja uma postura reflexiva e crítica por parte dos alunos de psicologia e psicólogos formados, co-coordenadores dos grupos, sobre suas próprias práticas, inseridas nos determinados contextos. Foi essa postura que levou aos questionamentos aqui presentes, assim como à adoção das estratégias também citadas.
De acordo com os desafios impostos pelo isolamento social, os aspectos do campo transferencial evidenciaram-se fazendo com que um aprofundamento teórico diante desses fenômenos se tornasse imprescindível para a elaboração de técnicas adequadas para o manejo, em equipe, da situação grupal virtual. Ainda que se trate de um trabalho reflexivo pontual com os pretendentes e adotantes, a própria atuação dos coordenadores como um grupo acrescenta uma camada de complexidade ao campo transferencial que, na atuação on-line, não pôde ser ignorada.
Com a compreensão de que a prática psicanalítica realizada em equipe possibilita a coexistência de vivências contratransferenciais significativamente distintas entre os coordenadores, foi possível criar estratégias para que essa diversidade atuasse como resistência aos fenômenos contratransferenciais individuais e, dessa forma, como ferramenta em favor do trabalho reflexivo. Nesse sentido, a criação dos espaços de intervisão demonstrou ser um importante dispositivo para a elaboração das discordâncias nas compreensões e interpretações das situações vivenciadas pelos coordenadores com os pretendentes e adotantes, antes manifestadas no ambiente de supervisão, o que tirava o foco e reduzia o tempo da discussão dos casos. Consequentemente, o espaço de supervisão se tornou mais produtivo tendo em vista a objetividade das discussões, após o grupo de estudantes já ter refletido e ponderado sobre suas percepções.
Em decorrência de tal movimento, pode-se concluir que a conjunção dos espaços de intervisão e supervisão produziu resultados positivos também na formação dos psicólogos e estudantes de psicologia, coordenadores do projeto, uma vez que fortaleceu a formação de vínculos horizontais e permitiu que as relações de transferência fraterna entre eles fossem trabalhadas, possibilitando um desempenho mais satisfatório na condução dos grupos. Assim, a inclusão desta ferramenta favoreceu um movimento de cuidado e acolhimento dos e aos próprios coordenadores.
Dessa forma, mesmo com todos os desafios impostos pela transição para a modalidade on-line do trabalho com grupos realizado em grupo, as estratégias utilizadas pela equipe permitiram a continuidade do duplo objetivo do projeto de extensão, ou seja, a formação de estudantes de Psicologia e o fomento da reflexão e troca entre pretendentes à adoção e adotantes. Pode-se concluir que as discussões realizadas virtualmente no período de 2020 a 2023 ocorreram no sentido de contribuir para que as adoções se dessem de forma menos idealizada a partir da incitação de reflexões sobre tempo de espera, mudança de perfil, vida pregressa da criança e/ou adolescente, desmistificação de imagens parentais e filiativas, testes de continência da família adotante, etc.
Ademais, pode-se concluir que o uso da modalidade on-line ampliou o alcance do projeto de pós-adoção para outras regiões da cidade e, inclusive, para outros estados do país. Vale ressaltar que, na atuação com os pretendentes, as próprias equipes do Judiciário entenderam que as reuniões virtuais se impuseram pela praticidade e desburocratização, e optaram pela manutenção desta modalidade mesmo após o fim das medidas de isolamento social. Portanto, a realização das atividades com pretendentes em diferentes etapas do processo de adoção continuará a ser feita à distância, tornando-se imperativo nos estudos sobre grupos o aprofundamento das implicações da virtualidade, assim como das diversas interações compreendidas dentro deste campo de atuação.