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Ciências & Cognição
versión On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro nov. 2005
Artigo Científico
Linguagem e pensamento: visão (supra) comunicativa acerca da linguagem
Language and thought: (supra) communicative vision concerning the language
Ronie Alexsandro Teles da Silveira, Giovani Kuckartz Pergher e Rodrigo Grassi-Oliveira
Grupo de Pesquisa em Processos Cognitivos Básicos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil
Endereços para Correspondência
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo discutir as diferentes perspectivas adotadas na literatura acerca das relações entre pensamento e linguagem. Esta discussão possui como pano de fundo a noção de primazia: o pensamento é anterior à linguagem ou a linguagem é anterior ao pensamento? Duas abordagens alternativas são propostas para responder a esta pergunta. A primeira delas, denominada "visão comunicativa acerca da linguagem" (VCAL) propõem a primazia do pensamento em relação à linguagem. A segunda chamada "visão supracomunicativa acerca da linguagem" (VSAL), postula que o desenvolvimento do pensamento é posterior à linguagem. As evidências empíricas disponíveis até o momento não permitem que qualquer uma das hipóteses seja refutada em definitivo. Adicionalmente, a resposta para a questão da primazia parece depender da dimensão sob análise, impossibilitando a sustentação absoluta de uma hipótese em detrimento da outra. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 73-83.
Palavras-chaves: linguagem; pensamento; comunicação; literatura de revisão; psicologia.
ABSTRACT
This article has as goal argues the different perspectives adopted in literature concerning the relations between thought and language. This discussion has as background the priority notion: the thought is previous to the language or the language is previous to the thought? Two points of view are proposals to answer this question. One of them, called "communicative vision concerning language" (VCAL) considers the priority of the thought in relation to the language. The other one call "supra-communicative vision concerning language" (VSAL), claims that development of thought is posterior to language. The available empirical evidences do not allow that such hypotheses are refuted in definitive. Additionally, the answer to the priority question seems to depend on the dimension under analysis, being disabled absolute sustentation of a hypothesis in detriment of the other. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 73-83.
Keywords: language; thinking; communication; review literature; psychology.
1. Introdução
O objetivo desse texto é o de verificar e avaliar a maneira como as relações entre pensamento e linguagem têm sido postuladas em algumas das principais discussões sobre esse tema. Como se verá adiante, há pelo menos duas grandes formas de indicar como essa relação está estruturada: ou por meio da primazia do pensamento sobre a linguagem ou por meio da primazia da linguagem sobre o pensamento. No primeiro caso, se afirma que o pensamento é anterior à linguagem - o que denominamos de "visão comunicativa acerca da linguagem" (VCAL). No segundo caso, se postula que a linguagem é anterior ao pensamento - o que denominamos de "visão supracomunicativa acerca da linguagem" (VSAL). Como se observará, em ambos os casos, a questão da primazia é determinante para definir a maneira como se entende a relação entre o pensamento e a linguagem e, portanto, como um princípio norteador para a realização de programas de pesquisas empíricas. Entretanto, como discutiremos no texto, a oposição entre a VCAL e a VSAL é somente aparente e se resume a uma decisão anterior sobre a dimensão que cada programa de pesquisa adota. Portanto, indicaremos aqui as limitações de perspectiva tanto por parte da VCAL quanto por parte da VSAL.
2. A visão comunicativa acerca da linguagem (VCAL)
Uma das posições mais facilmente detectáveis nos estudos sobre as relações entre linguagem e pensamento é a VCAL. Ela possui suas raízes históricas na análise feita por Locke (1690) sobre a relação entre as palavras e as idéias. Esse autor afirmava que o uso desejável das palavras ocorreria quando se apresentassem na mente do ouvinte as mesmas idéias que se apresentavam na mente do interlocutor.
Isso permite supor que existe na VCAL a noção de que a função da linguagem é a de servir como meio físico de comunicação entre duas mentes que se encontram isoladas. A função da linguagem seria servir como um canal através do qual essas mentes pudessem se comunicar. Esse processo de comunicação seria composto por duas instâncias fundamentais. A primeira seria um estágio de codificação do pensamento que passaria da mente do falante para as palavras faladas ou escritas. Ele pode ser considerado como uma forma de materialização do pensamento ou como um processo de lexicalização (Eysenck, 2001). A segunda instância seria o processo inverso ou a decodificação das palavras em pensamento que se operaria na mente do ouvinte. No sentido inverso, tratar-se-ia do processo de "mentalização" ou de compreensão das palavras.
Em um processo de lexicalização ideal o que se apresenta no plano da linguagem deveria ser uma manifestação do conteúdo do pensamento. Mas cada um de nós tem, por experiência própria, a sensação ocasional de que não parece haver como expressar em palavras tudo o que é pensado. Então, parece lícito supor que aquilo que se manifesta exteriormente como linguagem pode ser apenas uma parte muito pequena de tudo o que ocorre na mente - e que a lexicalização não é um processo sem perdas. Mas também sabemos intuitivamente que, ainda que incompletamente, a linguagem é o que nos faz conhecer o pensamento das outras pessoas. Imaginamos que temos acesso a uma parte muito restrita da vida mental de qualquer outra pessoa e isso parece ser tudo o que podemos obter delas, devido à necessidade de que a comunicação se opere indiretamente através do processo mente/linguagem/mente. Enfim, nossa experiência cotidiana no uso da linguagem parece sugerir que nem tudo é "lexicalizável", ou seja, parece haver uma parte do pensamento cujo conteúdo não é completamente expresso.
A VCAL termina por afirmar, então, que o pensamento seria ontologicamente mais denso e mais substantivo do que aquilo que, de fato, se mostra na linguagem. Essa seria somente um modo de exposição exterior de uma parte limitada do conteúdo do pensamento - já que ele não parece poder adquirir uma existência lingüística que lhe faça justiça integral. Enfim, essa perspectiva é conduzida a asseverar que a linguagem é, em alguma medida, apenas a aparência dos processos que ocorrem em nossas mentes. Note que grande parte da evidência usada pela VCAL diz respeito à maneira como nós, em geral, experimentamos intuitivamente a linguagem: pensamos e, depois, falamos ou escrevemos.
Se o pensamento corresponde à verdade dos processos mentais interiores, a linguagem é somente um reflexo distorcido - na proporção de suas capacidades especulares, sempre um tanto quanto precárias. Além dessa interferência natural e própria do modo como o pensamento adquire objetividade quando é transposto para a linguagem, nota-se também a presença de obstáculos subjetivos. De fato, cada um possui uma capacidade diferente para encontrar as palavras certas e manejá-las adequadamente de maneira a se aproximarem daquilo que é o conteúdo do seu pensamento.
Isso amplia aquele efeito de interferência natural e destaca a tese de que todo processo de exteriorização do pensamento em linguagem é a passagem de uma instância superior para uma inferior, na medida em que envolve algum grau de perda de conteúdo e a criação de ruídos. Então, para a VCAL, aquilo que se exterioriza é um modo inadequado de manifestação da vida mental: a linguagem é somente a aparência do pensamento. Ela diz algo sobre o pensamento, mas não a tal ponto que se possam ter garantias de que ela apresente o conteúdo integral do próprio pensamento. Sinteticamente, esse princípio postula a primazia ou anterioridade do pensamento em relação à linguagem.
3. Visão supracomunicativas acerca da linguagem (VSAL)
Uma posição antagônica à VCAL - que denominamos de visão supracomunicativa - afirma, por exemplo, que "o homem só é sapiens porque é loquens" (Chauchard, 1957, p.13). Isto é, o pensamento está na dependência da linguagem ou então que a linguagem altera, de alguma forma, a estrutura original da mente (Sutton, 2002). Tais posturas são supracomunicativas, no sentido de postularem que a função determinante da linguagem não é comunicativa no sentido estipulado pela VCAL. Assim, elas afirmam que a função comunicativa exercida pela linguagem não é decisiva para caracterizar a primazia do pensamento em relação à linguagem. É preciso destacar que para a VSAL não se trata de negar que exista uma função comunicativa da linguagem e sim de enfatizar a relação inversa: a da influência da linguagem sobre o pensamento.
Um exemplo de tais funções supracomunicativas pode ser encontrado quando a linguagem auxilia a expandir as possibilidades daquilo que pode ser pensado. Isso ocorre, por exemplo, quando a expressão lingüística torna possível que determinados conteúdos sejam focados e aumenta a capacidade de análise acerca deles. A linguagem desempenha essa função ao tornar o pensamento explícito. Nesse caso, pode-se perceber como a linguagem expande o reino do que pode ser pensado para além dos limites usuais (Clark, 1996) e, dessa forma, atua no sentido de extrapolar as possibilidades do próprio pensamento.
Alguns estudos envolvendo a nomeação de cores corroboram a hipótese da primazia da linguagem em relação ao pensamento. Por exemplo, Lennenberg e Robberts (1956) submeteram falantes Zuni a um teste em que deveriam reconhecer diferentes tons de amarelos e laranjas. Os resultados indicaram que os falantes Zuni, quando comparados a falantes do Inglês, cometeram mais erros de reconhecimento. Tal diferença possivelmente estaria relacionada à linguagem nativa dos participantes, uma vez que a língua Zuni possui apenas uma palavra para designar conjuntamente o amarelo e o laranja. Ou seja, parece ocorrer uma interferência lingüística na maneira como o pensamento é estruturado - nesse caso a interferência se daria sobre o desempenho em tarefas de reconhecimento de memória.
Da mesma forma, estudos com esquimós indicam que eles são capazes de distinguir vários tipos de qualidade de neve na medida em que sua linguagem possui uma enorme variedade de palavras usadas para esse fim. Esse tipo de evidência empírica parece indicar a existência de uma influência da linguagem sobre o pensamento (Kellogg, 2003).
O que importa para a VSAL é a tese de que o pensamento é estruturado pela linguagem e de que ele não possui nenhuma primazia com relação a ela. Mesmo que se acredite que o pensamento exista antes da linguagem, como no caso da visão comunicativa, o ponto central é que o pensamento verbal ou estruturado já é o resultado de uma forte interferência da linguagem sobre os processos mentais.
Há, entretanto, fortes divergências dentro da VSAL acerca do papel desempenhado pela linguagem na estruturação do pensamento. O determinismo lingüístico de Lee Whorf, pelo menos em sua versão forte, afirma que o pensamento é inteiramente modelado pela linguagem (apud Boroditsky, 2001). Isso significa que tudo o que alguém é capaz de pensar, é determinado pela estrutura da linguagem existente - o pensável seria somente uma função derivada do uso da linguagem usada em uma cultura. Assim, a gramática e o vocabulário da língua que se fala estabelece formalmente todas as possibilidades do que pode vir a ser pensado pelo falante.
Nesse sentido, a estrutura da linguagem poderia, inclusive, estabelecer limites para o modo de perceber o mundo que nos cerca. Isso significa que a tese do determinismo lingüístico se amplia também para a esfera da percepção. Boroditsky (2001) comparou falantes do Mandarim e do Inglês em relação a como concebiam o tempo. Em uma série de três experimentos, Boroditsky (2001) verificou que os falantes do Mandarim tendiam a estruturar o tempo verticalmente, ao passo que os falantes do Inglês estruturavam-no horizontalmente. Tais dados sugerem que a linguagem pode influenciar o pensamento inclusive em um domínio cognitivo muito básico como o da percepção do tempo. Nesse mesmo sentido, há evidências indicando que a percepção espacial parece ser moldada pelo sistema de referência espacial adotados por uma língua (Majid et al., 2004) - uma tese que fortaleceria uma versão mais forte do whorfian effect: o determinismo lingüístico.
Adotar a versão forte do determinismo lingüístico é algo muito diferente de postular que a linguagem possa, em determinadas condições, influenciar o pensamento. Assim, alguns estudos experimentais (Boroditsky, 2001) têm demonstrado que é mais fácil que a linguagem estruture o pensamento abstrato do que interfira no modo como representamos informações sensoriais. Isso parece significar que há uma diferença de impacto da gramática e do vocabulário da linguagem natural sobre as várias formas de pensamento - uma versão fraca do whorfian effect.
Entretanto, o estado atual da discussão não nos permite definir uma posição característica da VSAL sobre a intensidade da interferência da linguagem sobre o pensamento. De qualquer forma, a VSAL está de acordo de que a estrutura formal do pensamento ou as regras lógicas que guiam seu uso podem ser definidas, com maior ou menor força, em função da língua adotada por cada falante. Nesse sentido, qualquer pessoa que apreende uma língua - e justamente por apreendê-la - está adquirindo uma gramática ou uma estrutura formal que será, posteriormente, adotada pelo pensamento como definindo ou influenciando as condições de seu uso futuro.
A obtenção dessa gramática por um sujeito parece dever ser operada por meio de um processo de inferência: à medida que ele trava conhecimento empírico com a sua língua natural, vai-se construindo a estrutura formal do pensamento que estipula as possibilidades de usos futuros. Então, parece que a obtenção da estrutura do pensamento por um sujeito parte do uso atual da linguagem para elaborar um conjunto de regras prescritivas que estipulam o modo como o pensamento poderá operar no futuro.
4. O nativismo
Chomsky (1968) acredita que os processos inferenciais a partir do contato com a língua natural constituem um aspecto inaceitável das explicações sobre o modo como um sujeito adquire o pensamento estruturado. Ele afirma que nenhum processo de inferência pode explicar a criatividade humana no uso da linguagem. Trata-se, então, de negar que possamos chegar a nos apropriar de uma gramática mental a partir do nosso contato limitado com uma língua natural. Esse argumento é conhecido como "argumento da pobreza do estímulo" (Wilson e Keil, 1999, p. 408).
Para Chomsky, um dos erros do Behaviorismo na compreensão da linguagem humana é justamente a tentativa de explicar a recursividade (recursion) por meio da analogia. A recursividade é a capacidade de fazer potencialmente infinitas combinações a partir de um número limitado de componentes e caracterizaria aquilo que é próprio da linguagem humana - o que foi denominado de "faculdade da linguagem no sentido estrito" (Hauser et al., 2002), para diferenciá-la da linguagem animal.
A analogia seria, para o Behaviorismo, a estratégia utilizada por um sujeito para adquirir uma gramática. Como Chomsky não crê que o contato com a língua usada por uma cultura possa explicar os usos criativos da linguagem, ele é levado a postular a existência de algum outro processo, por meio do qual o usuário de uma língua poderia obter uma gramática. A alternativa seguida por Chomsky é afirmar a existência de uma gramática universal e inata.
A tese da existência e do caráter inato de uma gramática universal significa que a estrutura formal da linguagem humana está codificada no nosso genoma. Isso explicaria como um falante poderia adquirir a gramática mesmo a partir de um contato empírico extremamente reduzido com uma língua natural. Chomsky (1968) crê poder contornar a dificuldade da limitação do contato empírico com a língua ao defender que essa situação de exposição é somente a ocasião em que ele se tornaria capaz de fazer uso de uma disposição natural ou de uma competência pré-existente - e não a oportunidade para adquirir a própria gramática.
Note que a questão central que conduziu ao inatismo é a constatação de que o contato empírico com a língua natural não constitui a base a partir da qual a inferência da gramática se torna possível. Esse contato seria, para o inatismo, o catalizador da realização de uma disposição genética para a gramática. Ele funciona antes como um gatilho da memória biológica para a linguagem e para o pensamento estruturado (Chomsky, 1968).
A tese do caráter inato da gramática postula, portanto, que há uma instância anterior à linguagem e ao pensamento humano. Com efeito, as informações contidas no genoma têm absoluta primazia quanto ao estabelecimento das condições formais para a linguagem e para o pensamento verbal. Entretanto, o conhecimento da gramática universal é também o conhecimento da estrutura mental e psicológica dos seres humanos. Como afirma Chomsky (1968, p. 43), "o estudo da gramática universal (...) é o estudo da natureza das faculdades intelectuais humanas". Há um esquematismo inato e universal que é determinante não somente do modo como usamos a linguagem, mas também do modo como pensamos - e ele é um componente da natureza humana.
É preciso destacar que o nativismo não consiste em uma volta à VCAL. Com efeito, para Chomsky, a linguagem não desempenha apenas o papel de exprimir (mais ou menos bem) o conteúdo de nossos conceitos dentro de uma função comunicativa. A relação de primazia do esquematismo mental é diferente daquela contida na VCAL. Deve-se considerar que o esquematismo mental da gramática gerativa é universal, isto é, trata-se de uma característica biológica da natureza humana. Assim, o modo como a gramática universal se relaciona com uma língua é muito distinto do modo como os pensamentos particulares de um sujeito se relacionam com a linguagem que ele usa.
No primeiro caso, a relação que se estabelece é entre as condições formais universais de toda gramática humana com um sistema de linguagem particular - uma língua natural. Já no caso da língua usada por um sujeito particular, trata-se da relação entre os seus pensamentos e a sua linguagem. Obviamente qualquer língua expressa o esquematismo universal inscrito na natureza biológica dos homens. Porém, com isso não se quer dizer que essa "expressão" seja uma função comunicativa. Não há sentido em dizer que uma língua natural "comunica" a gramática inata. Mas se pode dizer que nossas palavras comunicam nossos pensamentos. Nesse sentido julga-se que o nativismo não equivale a uma posição típica da VCAL.
Chomsky insiste em que a tese do nativismo está estreitamente vinculada à gramática filosófica do século XVII, citando especialmente Descartes e von Humboldt. Mas Chomsky (1968) também faz referência ao elemento platônico contido na defesa de que uma primeira língua não é, de fato, ensinada, mas se desenvolve "de dentro" de uma maneira pré-determinada.
Esse elemento platônico consiste em afirmar que a situação empírica de aprendizagem não é senão uma oportunidade para fazer emergir um conhecimento que já estava latente no sujeito. Trata-se, portanto, de um paralelismo com a identificação platônica entre o conhecimento e a recordação postulada no Ménon por Platão (1992; Cervi et al., 2000).
A aproximação entre o Platonismo e a teoria do nativismo lingüístico de Chomsky é importante na medida em que nos fornece uma perspectiva de quais podem vir a ser os desafios mais sérios dessa última. Assim, parece ser extremamente árduo distinguir entre os princípios do esquematismo universal, isto é, os universais verdadeiros e os "universais aparentes" (Wilson e Keil, 1999, p. 477). Os universais aparentes são aqueles que expressam somente identidades surgidas de um uso limitado, ainda que eventualmente muito difundido, que se faz de uma língua e não as condições de qualquer uso dela. Os universais verdadeiros seriam os princípios gerais que determinam como operam todas as línguas particulares. Essa dificuldade se resolveria se pudéssemos estipular as condições que nos permitem distinguir com segurança um universal verdadeiro de um universal aparente.
Mas quais seriam esses critérios? Sabemos que nenhuma base empírica pode ser considerada definitivamente esclarecedora, a tal ponto de permitir a construção de proposições de caráter universal com absoluta segurança (Popper, 1959). Isso seria predicar à base empírica uma função que ela não pode exercer de maneira decisiva. Então nenhuma análise empírica, por mais exaustiva que pareça ser, poderá garantir o caráter de universalidade verdadeira para uma gramática.
Uma solução alternativa seria deduzir a gramática universal a partir da própria natureza humana, isto é, encontrar aquela estrutura psicológica do homem a que Chomsky se refere por meio de uma investigação não empírica. Mas um projeto racionalista dessas dimensões não parece constar como uma alternativa razoável, na medida em que se afasta dos requisitos científicos utilizados por Chomsky para estipular as condições de aceitabilidade de uma teoria. Talvez uma investigação racionalista nesses termos possa constituir como uma possibilidade filosófica viável. Porém, esse é um trabalho já realizado pela "gramática filosófica" - a que Chomsky faz referência. Como ele pretende dar um passo adiante e demonstrar a cientificidade empírica do caráter universal e inato da gramática gerativa, não parece razoável dar um passo atrás até von Humboldt e Descartes.
Assim, parece não existir condições empíricas para diferenciar os verdadeiros dos falsos universais. Isso significa também que o inatismo não poderá ser empiricamente refutado: sua fragilidade é, simultaneamente, sua força. Um nativista sempre poderá alegar que se uma situação de privação cultural extrema não permite que alguém desenvolva a capacidade do uso da linguagem, é somente uma função da privação da ocasião para acionar o gatilho biológico. Para ele, a privação cultural jamais significará a ausência da aptidão inata. Assim, o inatismo não pode ser refutado por meio de nenhuma evidência empírica já que está sempre de acordo com os fatos.
Nota-se que a perspectiva do inatismo postula, em termos da relação entre linguagem e pensamento, uma primazia da estrutura mental inata e universal (ou do "pensamento") em relação a toda e qualquer de suas realizações empíricas enquanto línguas naturais. Com efeito, em que pese haver alterado substancialmente o conceito, a gramática gerativa visa, em primeiro lugar, entender a influência do "pensamento" sobre a linguagem. Visa essa estrutura em função de ser ela o princípio de toda e qualquer linguagem humana e, por conseguinte, o princípio de todo e qualquer pensamento que um sujeito particular possa vir a ter. Assim, consideramos que a posição de Chomsky e dos gramáticos gerativos contém a afirmação da primazia da estrutura mental sobre as realizações empíricas da linguagem e do pensamento - logo a consideramos uma modalidade da VSAL.
Note que tanto a VCAL quanto a VSAL compartilham de um princípio que lida com as relações entre pensamento e linguagem a partir da noção de primazia. Sob esse aspecto, elas não são diferentes. Há certamente uma diferença entre elas. Porém ela diz respeito à ordem em que a primazia é exercida (pelo pensamento ou pela linguagem) e não à própria noção de primazia.
5. O princípio da primazia
De quem é a primazia afinal, da linguagem ou do pensamento? Quem está com a razão: a VCAL ou a VSAL? Não parece promissor tentar responder a uma pergunta assim formulada. Com efeito, não parece possível encontrar uma resposta para essa pergunta devido a sua formulação excessivamente genérica. Nos parece que uma pergunta sobre o pensamento e a linguagem requer uma especificidade ou a definição explícita de um domínio mais particular que circunscreva essa relação. Em outras palavras, se o que está em questão é a primazia da linguagem ou do pensamento em geral, então simplesmente a pergunta está mal formulada. E se ela está mal formulada, então será necessariamente uma fonte permanente de asseverações que se altercam sem que possamos chegar a qualquer acordo.
Vejamos como a falta dessa circunscrição pode nos deixar à deriva. Eysenck (2001) começa a tratar das relações entre pensamento e linguagem apresentando o determinismo lingüístico de Lee Whorf. Ele descarta a tese forte e propriamente determinística do whorfian effect para se concentrar na tese fraca de que a linguagem influencia o pensamento. Em seguida, termina por postular a relação contrária afirmando que uma explicação mais plausível é que as diferenças nas condições ambientais afetam o pensamento e esse, por sua vez, afeta a linguagem. Isso conduz, então, a constatar que na verdade é o pensamento que afeta a linguagem.
O que ocorreu para possibilitar uma tal reviravolta nas relações entre linguagem e pensamento? Simplesmente retrocedeu-se a uma dimensão que não estava ainda postulada na tese forte e fraca do whorfian effect: é porque ocorrem alterações no ambiente que as pessoas pensam de maneira determinada e, só então, a linguagem é influenciada pelo pensamento. Introduzir as questões ambientais, como fatores a serem considerados, significa fazer a discussão regredir para uma dimensão que estava ausente do modo como a pergunta havia sido feita na perspectiva do whorfian effect. Logo, uma resposta diferente se tornou possível simplesmente porque a perspectiva da pergunta se alterou.
Na seqüência, o mesmo Eysenck (2001) afirma que o uso de uma linguagem parece tornar fácil pensar de algumas maneiras e difícil pensar de outras. Isso ocorre porque o pensamento é influenciado pela linguagem. O que significa afirmar exatamente o contrário do que se afirmou acima! O que aconteceu? Mudou-se de perspectiva: abandonou-se o ambiente como uma dimensão a ser considerada. Ou seja, a partir de uma perspectiva focada pontualmente em um indivíduo, passou-se a defender a tese de que a linguagem influencia o pensamento.
Isso tudo deixa claro que as respostas variam em função da variação das perspectivas de análise que estipulam diferentes dimensões em que a pergunta está sendo formulada. Obviamente, essa dimensão diz muito sobre o modo como se entende o conteúdo da pergunta. Assim, se a perspectiva é imediata, elimina-se a história de como o indivíduo se tornou apto a utilizar uma língua e concentra-se em como esse indivíduo a utiliza.
Para tornar claro como essa diferença de referência com relação à dimensão envolvida nas relações entre pensamento e linguagem inviabiliza o diálogo, vamos utilizar um exemplo. No uso de uma linguagem pode-se identificar a ocorrência de algumas situações: a) a introdução de uma nova maneira de pensar conduz à necessidade de forjar conceitos novos para descrever inovações. A introdução de um novo conceito científico é uma boa ilustração dessa situação; b) o uso de novos termos lingüísticos conduz à necessidade de alterar o modo como os usuários dessa língua pensam. Trata-se de que uma nova maneira de falar sobre algo tenha conduzido à readequação das maneiras de pensar a seu respeito. Um exemplo disso pode ser também a difusão de uma descoberta científica inovadora em um sistema de linguagem.
Note que foi utilizado o mesmo exemplo para as duas situações. Com efeito, quando se introduz um conceito científico novo, está-se alterando a maneira de pensar de uma cultura. Porém, o modo de convencer os outros membros dessa cultura a adotar esse novo conceito se dá através da introdução de uma nova maneira de falar. Na prática, quando essa maneira de falar se difunde, ela influencia o modo como as pessoas em geral pensam.
Portanto, se no início - item a - ocorre uma influência do pensamento sobre a linguagem, também é verdade que, ao longo do processo - item b - essa relação se inverte. Assim, pode-se entender a pergunta sobre as relações de primazia entre o pensamento e a linguagem nas duas dimensões: a e b. Em a, a dimensão envolvida é mais ampla que em b na medida em que se retrocede até o momento em que uma nova maneira de pensar é introduzida por um indivíduo que faz uma descoberta científica. Em b, analisa-se uma dimensão menor no sentido de que a primazia que se estabelece já pressupõe a ocorrência dessa descoberta individual e tudo se concentra em como alterar o uso social da linguagem.
Para se obter uma explicação empírica detalhada de como o processo completo ocorre, dever-se-ia ser capaz de especificar para cada falante de uma língua específica, que passa pelo processo de readequação em função da introdução de um novo conceito científico, o estágio em que ele se encontra. Se ele pensa, ainda da maneira antiga e a maneira como os demais falam o leva a alterar seus hábitos mentais, então se tem um caso típico de influência da linguagem sobre o pensamento. Mas se foi ele quem introduziu o novo conceito, então se tem um caso típico de influência do pensamento sobre a linguagem. O problema das relações entre linguagem e pensamento exige, portanto, incluir situações empíricas particulares para que as relações possam ser objetos de investigação. Em outras palavras, não há uma relação entre linguagem e pensamento.
De volta à nossa questão das relações entre a linguagem e o pensamento postulada em termos de primazia: muda-se a maneira de falar e somente depois se muda a maneira de pensar ou muda-se a maneira de pensar e, por causa disso, muda-se a maneira de falar? Nos termos genéricos em que essa pergunta tem sido colocada, uma boa resposta será impossível simplesmente porque a pergunta não é suficientemente clara: as duas alternativas acima são verdadeiras, cada uma a seu modo. Na verdade, estamos diante de um problema mal formulado.
Uma resposta pode parecer ainda mais improvável se forem analisadas outras situações. Quando se aprende uma segunda língua, apropria-se exatamente de quê? De uma nova maneira de pensar? (talvez uma maneira não muito diferente da língua materna, mas, ainda assim, diversa em algum grau) ou de uma nova maneira de falar? Ou de ambas simultaneamente?
De qualquer forma, as teorias ao estilo da VCAL e da VSAL não devem gerar explicações satisfatórias em função de sua falta de especificidade, a menos que estipulem as circunstâncias sobre as quais suas perguntas dizem respeito. Sem isso, contra elas sempre será possível argumentar que se fez um corte aleatório qualquer e se reduziu o problema a termos que reforçam seu próprio modo de dar as respostas.
Em outras palavras, essa dificuldade não está ligada ao princípio da primazia propriamente dito, mas somente à maneira aleatória com que as perguntas baseadas nele estão sendo formuladas. O ponto principal é que não há qualquer motivo que nos leve a adotar uma dimensão ou um caso particular como protótipo para toda e qualquer circunstância das relações entre pensamento e linguagem.
6. A primazia da linguagem
Não se trata de postular a falsidade do princípio de primazia, mas apenas identificar uma imprecisão no modo como as perguntas ligadas a ele estão formuladas. Se, por exemplo, for assumido explicitamente que a dimensão que se está elegendo como domínio da pergunta é aquela que um indivíduo encontra desde o nascimento, parece que as coisas podem se tornar mais claras. Com efeito, se esse é o ponto de partida, há apenas duas possibilidades: a) ou o indivíduo nasce com uma estrutura mental que é anterior ao uso da linguagem; b) ou ele adquire essa estrutura justamente através do uso que faz da linguagem.
Note-se que se for escolhido esse ponto de vista e se compreender que a pergunta diz respeito a essa dimensão e a esse caso, então se poderá optar por uma das respostas sem que isso signifique afirmar que ela vale para todas as instâncias do tempo e todos os casos exemplares em que se pode pensar.
Se a pergunta é essa e se ela é feita nessa perspectiva, não temos qualquer dúvida de que a primazia cabe à linguagem. Com efeito, quando nascemos deparamo-nos com um uso da linguagem que possui sentido e existência concreta. A estruturação do modo de pensar parece depender inteiramente do modo como a língua natural que se adota (ou que nos adota) é utilizada.
Assim, acreditamos que nesse caso o pensamento humano é estruturado em função da linguagem, mesmo para aquelas instâncias cognitivas muito básicas como o sistema de referência espacial que é utilizado (Majid et al., 2004). Isso não significa que não se pode alterar ou inovar no modo como se utiliza a linguagem (Davidson, 1997).
Pode ocorrer que o uso de uma linguagem conduza à sua própria modificação - o exercício criativo da linguagem poética trabalha sempre nessa perspectiva de expansão das fronteiras. Logo, podemos ampliar os domínios da linguagem para dimensões que ainda não foram exploradas (Clark, 1996). Mas também pode ocorrer um uso dentro dos limites convencionais. Ambas as situações empíricas são igualmente possíveis e não faz sentido travar uma discussão baseada somente na possibilidade de uma delas ocorrer.
Outra situação empírica importante diz respeito ao processo de subjetivação da linguagem defendido por Vygotsky (1934). Segundo ele, o processo pelo qual a linguagem é subjetivada impõe profundas alterações em sua sintaxe. Se a fala social possui determinados requisitos próprios de um uso comunicativo, essa função tende a diminuir no momento em que ela se torna fala egocêntrica - a fala da criança consigo mesma. Assim, parece razoável afirmar que ocorra uma simplificação da linguagem a medida em que esse processo avança para a fala interior - uma fala que ocorre somente no âmbito mental.
Outro tipo de situação concreta relevante que precisa ser integrado à discussão sobre as relações entre linguagem e pensamento é a compreensão do que ocorre quando a linguagem estrutura um modo de pensar. Para Dennett (1991), trata-se de que o substrato natural computacional da mente seja substituído pelo sistema computacional introduzido pela linguagem. Isto é, haveria algo como um parasitismo da linguagem sobre o cérebro: "o vocabulário e a gramática do inglês, do chinês ou do espanhol, por exemplo - condicionam o cérebro à maneira de uma linguagem de programação superior" (Dennett, 1991, p. 377).
Para Clark (1996) o sistema computacional introduzido pela linguagem - aquilo que se denomina de pensamento verbal ou estruturado - é apenas um complemento do sistema de computação natural da mente. Uma discussão subseqüente deveria se ocupar em saber o que é o substrato computacional natural da mente e qual é o impacto da introdução da linguagem nele ao longo do desenvolvimento.
Essa é uma questão importante na medida em que tenta esclarecer qual é exatamente o impacto da aquisição da linguagem sobre eventuais capacidades cognitivas biológicas inatas. Com efeito, se há um sistema biológico nativo, ele é substituído inteiramente pela lógica contida na linguagem ou eles se combinam de tal maneira que se tornam colaboradores na execução das habilidades cognitivas? Isso está ligado a determinar o quanto a linguagem é prioritária com relação ao pensamento, para esse tipo de situação específico em que partimos de um corte centrado no sujeito e no processo de aquisição do pensamento estruturado. Temos, aqui, uma das questões válidas dentro do que denominamos de uso ampliado do princípio da primazia.
7. Conclusão
Verificamos a existência de duas grandes modalidades de se entender as relações entre o pensamento e a linguagem: a VCAL e a VSAL. A análise dessas duas maneiras divergentes de pensar conduziu-nos à conclusão de que elas estão de acordo acerca do princípio da primazia. Isso significa que ambas postulam questões ligadas à anterioridade - seja do pensamento, seja da linguagem. As evidências indicaram que ambas as formas de primazia parecem igualmente defensáveis. Entretanto, observamos que se não for especificada a dimensão a partir da qual a relação entre pensamento e linguagem for considerada, o debate tenderá a prosseguir sem que se possa chegar a nenhum acordo. Não há uma relação entre linguagem e pensamento, mas sim várias. E essa variedade exige que sejamos claros com relação a que situação empírica específica está sendo discutida.
Grande parte das discussões entre a VCAL e a VSAL resumem-se à adoção de pontos de vista diferentes e pontualmente identificáveis. Parece promissor pensar também que no futuro possamos obter uma moldura teórica mais ampla que permita integrar a VCAL e a VSAL, como suas instâncias particulares. A última seção desse artigo faz referência a problemas oriundos dessas duas perspectivas pontuais que necessitam ser integrados nessa moldura teórica mais ampla - o que denominamos de ampliação do princípio da primazia.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer a Professora Lilian Milnitsky Stein (Ph.D), pelas valiosas sugestões e contribuições. O presente trabalho recebeu apoio das agências CNPq e CAPES.
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Endereços para Correspondência
Grupo de Pesquisa em Processos Cognitivos (GPPC). Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Psicologia, PUCRS. Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, sala 933. CEP 90619-900, Porto Alegre, RS. Fone/Fax: (51) 3320-3633, Ramal 225.
R.A.T. da Silveira é Filósofo e doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atua como Docente do Departamento de Filosofia da Universidade de Santa Cruz do Sul - RS (UNISC). Endereço para contato: ronie@unisc.br.
G.K. Pergher é Psicólogo e Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS). Atua como Terapeuta Cognitivo-Comportamental e como Professor nas áreas de Psicologia da Personalidade, Terapia Cognitivo-Comportamental e Processos Psicológicos Básicos da Faculdades de Taquara (FACCAT) e do WP - Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental. Endereço para contato: gio@portoweb.com.br.
R. Grassi-Oliveira é Médico Psiquiatra, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS), Especialista em Psicoterapias Cognitivas, membro da International Association for Cognitive Psychotherapy (IACP), Especialista na área de Violência Doméstica Infantil (USP) e atualmente é Doutorando em Psicologia (PUCRS). Endereço para contato: rodrigo_grassi@terra.com.br.