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Ciências & Cognição

versión On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.17 no.1 Rio de Janeiro abr. 2012

 

Artigo Científico

 

Dos paradigmas acerca do ensinar e do pesquisar

 

On the paradigms surrounding teaching and researching

 

 

Ricardo Strack; José Cláudio Del Pino

Instituto de Química, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

 

 


Resumo

Os conhecimentos articulados mediante as atividades de formação universitária constituem uma parte do espectro de itens que necessitam ser levados em consideração quando se discute a formação do cientista. Não deve ser deixado de lado o papel que desempenham as concepções, sejam explícitas ou implícitas, acerca tanto da atividade do cientista quanto da própria apreciação da função desempenhada pelo conhecimento científico sociedade afora. A partir da ênfase dada por Thomas S. Kuhn, buscou-se entender o papel da dinâmica do conhecimento não ao nível individual, mas ao nível do que ocorre em grupos, donde surgiu a expectativa de uma observação das variações de consenso ao longo do processo formativo. No presente reflete-se sobre o significado sócio-epistêmico da existência de diferenciações nas percepções entre ensinar e pesquisar. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (1): 130-151.

Palavras-chave: consenso; concepções; formação dos químicos.


Abstract

Knowledge that is articulated through university graduation activities constitutes a part of the spectrum of items that should be taken into consideration when discussing the formation of scientists. It should not be left out the role conceptions, whether explicit or implicit, perform both about the scientists' activities and the appreciation itself of the function performed by scientific knowledge throughout society. From the emphasis given by Thomas S. Kuhn, it was sought to understand the role of knowledge dynamics not at the individual level, but at the level of what occurs in groups, from where the expectation of an observation of the consensus variations during the formation process arose. Currently, the social epistemic significance of the existence of differentiations in the perceptions between teaching and researching is being thought over. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (1): 130-151.

Keywords: consensus; conceptions; formation of chemists.


 

 

Introdução

Os processos educativos que influenciam a formação dos futuros profissionais da ciência merecem um tratamento que traga os aportes e reflexões da História e Filosofia da Ciência (HFC). Em especial faz-se necessária a inclusão de uma forma de pensar a Educação em Ciências de Nível Superior (ECNS) que leve em conta as dinâmicas sociais que moldam as condutas dos futuros profissionais.

Os conhecimentos articulados mediante as atividades de formação universitária constituem uma parte do espectro de itens que necessitam ser levados em consideração quando discute-se a formação do cientista. Não deve ser deixado de lado o papel que desempenham as concepções, sejam explícitas ou implícitas, acerca tanto da atividade do cientista quanto da própria apreciação da função desempenhada pelo conhecimento científico sociedade afora. Tendo isso em vista, uma articulação entre ECNS e a Epistemologia da Ciência, pautada pelas reflexões da HFC, parecem ser um caminho promissor ao se buscar entender o que ocorre durante a formação acadêmico-profissional dos futuros praticantes da Ciência.

Em linhas gerais, se tanto a HFC quanto a Epistemologia da Ciência versam sobre a Ciência, sua dinâmica e seu peculiar processo de construção de conhecimento talvez a ECNS, que busca justamente formar quadros profissionais para a participação na Ciência, na sua dinâmica e no seu processo de construção de conhecimento, seja uma peça chave para se entender as 'dinâmicas epistêmicas' que dão origem ao que hoje conhecemos como um eixo fundamental da sociedade contemporânea: o conhecimento científico.

Imagens implícitas sobre ciência são comunicadas continuamente através do curso de graduação - discussões, atividades laboratoriais, leituras e projetos de trabalho (Ryder, Leach & Driver, 1999). Mas, como Queiroz & Almeida (2004) questionam, qual a relação entre fazer e compreender ciência? Rebouças, Pinto & Andrade (2005) enfatizam que "a atuação profissional de Química na indústria nem sempre condiz com a imagem concebida pela comunidade acadêmica ou projetada pelo estudante a partir da formação em seu curso de graduação". Os apontamentos aqui apresentados são um passo na elucidação de quais são, objetivamente, essas 'imagens projetadas' e que papel estas podem desempenhar na constituição do profissional químico de amanhã, afinal com a emergência de propostas democráticas deliberativas como as conferências de consenso1, o papel dos futuros profissionais da química nas controvérsias em torno das novas tecnologias num mundo quimiofóbico (Evans, 2006) surge não só como uma nova demanda, mas também como um questionamento quanto à auto-percepção dos profissionais da química no seu papel de ajudar a coletividade na compreensão justa dos assuntos técnicos de interesse público2. Neste sentido, como argumenta Latour (2001, p. 117), "talvez possamos esboçar as diferentes preocupações que todos os pesquisadores terão de alimentar ao mesmo tempo caso queiram ser bons cientistas".

Ao longo da trajetória acadêmica dos graduandos são desenvolvidas atividades majoritariamente de ensino e, supondo a prevalência de um modelo tradicional de educação, com um viés fortemente de transmissão-recepção de conhecimento, o senso comum instituído anteriormente aos bancos universitários tende a permanecer, principalmente se não tocam diretamente o corpus teórico-prático apreciado nos cursos de graduação em Química.

Um número considerável de pesquisas já realizadas visando levantar as visões de estudantes dos diversos níveis de escolaridade enfatizam o que se convencionou chamar de visões sobre a natureza da ciência (VNC) com enfoques eminentemente epistemológicos internalistas (Lederman, Abd-El-Khalick, Bell & Schwartz, 2002; Rubba & Andersen, 1978; Millwood, 2006; Stein & McRobbie, 1997).

Na mesma linha, pesquisas como a de Vazquez e Manassero (2004), utilizando-se dos instrumentos do Projeto ROSE3, passam a discutir com mais profundidade as visões associadas às relações CTSA. Um passo significativo na construção de instrumentos de coleta de dados a respeito das visões sobre ciência foi o desenvolvimento do VOSTS (Views on Science-Technology-Society) através do qual, como explicitam seus autores, intenciona-se monitorar as razões as quais os estudantes usam para justificar uma opinião (Botton & Brown, 1998; Aikenhead, Fleming & Ryan, 1987; Fleming, 1987; Rubba & Harkness, 1993).

As pesquisas e os respectivos instrumentos de coleta de dados passam a enfatizar o que se pode denominar aspectos sociológicos da ciência, sempre visando uma vinculação estreita com a própria forma peculiar de construção deste conhecimento, em suma, com a epistemologia da ciência.

"As discussões tradicionais sobre o método científico procuraram um conjunto de regras que permitiriam a qualquer indivíduo que as seguisse, produzir conhecimento correcto. Em vez disso, tentei insistir que, embora a ciência seja praticada por indivíduos, o conhecimento científico é intrinsecamente um produto de grupo e que nem a sua peculiar eficácia nem a maneira como se desenvolve se compreenderão sem referência à natureza especial dos grupos que a produzem. Neste sentido, o meu trabalho foi profundamente sociológico, mas não de modo a permitir que o tema seja separado da epistemologia." (Kuhn, 1989, p. 24)

A partir das preocupações relacionadas tanto à formação quanto à escolha profissional na carreira ligada à química surgiu a necessidade de pensar um instrumento visando evidenciar, na forma de um questionário, as visões sobre os aspectos sócio epistêmicos da pesquisa por parte dos alunos de cursos de química.

Um instrumento de coleta de dados a respeito das visões sobre vascularizações da pesquisa (VVP) deve buscar evidenciar as noções sobre os processos que integram esta ao coletivo, metaforicamente denominadas por Latour (2001) de "fluxo sanguíneo da ciência". Tal instrumento (Strack & Del Pino, 2008) foi constituído por conjuntos de questões visando mapear alguns aspectos e imagens que fazem parte das visões dos futuros profissionais da química sobre as vascularizações da pesquisa no coletivo.

 

Estratégia metodológica

A pesquisa na área educacional, como nota Gatti (2004), atualmente, apresenta poucos estudos com metodologias quantitativas, com predominância das qualitativas. No entanto, quando lidamos com levantamentos de grande escala a segunda abordagem, importante em outros contextos, torna-se imprópria por envolver um consumo de tempo que comprometeria prazos estabelecidos. A metodologia quantitativa envolve considerar, como ponto de partida, dois aspectos:

"[...] primeiro, que os números, freqüências, medidas, têm algumas propriedades que delimitam as operações que se podem fazer com eles, e que deixam claro seu alcance; segundo, que as boas análises dependem de boas perguntas que o pesquisador venha a fazer, ou seja, da qualidade teórica e da perspectiva epistêmica na abordagem do problema, as quais guiam as análises e as interpretações." (Gatti, 2004, 13 p.)

No presente instrumento, preocupados com a qualidade das questões do instrumento de coleta de dados, previu-se um processo de validação do questionário: uma versão preliminar deste, construído a partir das contribuições de instrumentos como VNOS (Views of Nature of Science), SUSSI (Student Understanding of Science and Scientific Inquiry), VOSTS e do projeto internacional ROSE, foram enviados para revisão a pesquisadores reconhecidos pela produção científica na área de conhecimento deste projeto. A intenção foi, além de acrescentar sugestões ao já referido instrumento, sanar eventuais problemas de ordem epistemológica, interpretativa e histórica.

A aplicação do questionário envolveu o consentimento dos professores das disciplinas dos cursos de Química das respectivas instituições, os quais cederam cerca de meia-hora das suas aulas para que os alunos respondessem as questões. Não era permitido que os questionários fossem levados para posterior entrega, tendo em vista que gostaríamos de levantar suas noções mobilizadas in loco.

Para cada item das quatorze questões existiam cinco graus de importância (0, 1, 2, 3, 4) a serem atribuídos, com 0 representando a menor e 4 a maior. Após tabulação, os dados foram renormalizados a partir do escalonamento das pontuações, onde 0 receberia pontuação -2; 1, -1; 2, 0; 3, 1 e o grau 4 receberia pontuação 2 (Tabela 1). A média aritmética da soma4 das pontuações em cada item possibilitou um perfil sintético para cada questão.

Peso atribuído pelo respondente

Valor associado para quantificação

0

-2

1

-1

2

0

3

1

4

2

Tabela 1 - Escalonamento das pontuações.

A discussão sobre como as medições de escalas do tipo Likert devem ser adequadamente utilizadas e analisadas tem persistido por mais de 50 anos, muitas vezes para grande confusão tanto de estudantes quanto de pesquisadores (Carifio & Perla, 2008).

O uso de uma média não diminui as dificuldades com relação à convergência das respostas e nem o desvio padrão parece ser uma forma satisfatória de análise de dispersão de dados quando se trata de escalas do tipo Likert (Wierman & Tastle, 2005; Tastle, William & Wierman, 2007). Embora a construção de consenso seja um método típico usado em processos tomadas de decisão, poucas medidas existem que habilitem uma fácil determinação do quanto um grupo está próximo do ponto de concordância (Wierman & Tastle, 2005).

Um consenso é uma opinião ou posição alcançada por um grupo de indivíduos agindo como um todo. Definido desta forma, emergem dois significados comuns: um deles é um acordo geral entre os membros de um determinado grupo ou comunidade, a outra é como uma teoria e prática de obter tais acordos (Wierman & Tastle, 2005). Em certo sentido, consenso refere-se simplesmente como qualquer grupo de pessoas que valorizam a liberdade podem trabalhar em conjunto.

Em termos matemáticos, podemos imaginar a distribuição de opiniões em uma população como uma distribuição gaussiana. O passo inicial para um processo de consenso representaria o intervalo de opiniões dentro de, talvez, três desvios-padrão da opinião média ou dois desvios-padrão, ou possivelmente apenas um. Infelizmente usar desvio-padrão parece não ser uma forma conveniente de determinar a proximidade a um consenso. Afinal, como se interpretaria uma média ou um desvio padrão quando o grupo de participantes está expressando visões diametralmente opostas? (Wierman & Tastle, 2005).

Uma ferramenta matemática desenvolvida por Tastle et al. (2007) utilizando-se de adaptações na expressão de Shannon (2001), originou uma "equação de consenso" que busca indicar, numa escala contínua, a convergência das opiniões nas escalas tipo Likert, dentro dos princípios esboçados pelos autores (Wierman & Tastle, 2005; Tastle et al., 2007). Em outras palavras, a equação foi estruturada tendo como objetivo a medida do grau de consenso nas respostas e a qual será utilizada aqui objetivando medir as dispersões das respostas. O resultado é expresso no intervalo [0,1] (de zero à um) com zero (0%) representando ausência de consenso e 1 representando consenso total (100%) e assume-se como convergência forte um valor maior que 0,8 (80%).

Uma forma de sintetizar as contribuições da dispersão obtida pela equação de consenso e a média aritmética da soma das respostas de cada aluno para cada item Likert é realizar o produto entre estes dois valores, originando o que denomina-se aqui como Força Epistêmica (Fε):

Fε(x) = |Cns(x). M(x)|

onde:

Fε: força epistêmica
Cns(x): consenso de x no intervalo [0,1]
M(x): média associada ao item Likert no intervalo [-2,2]

A força epistêmica é uma combinação de fatores que busca indicar uma espécie de "fator de polarização", um tipo de vetor que apontaria na direção de uma tendência comum, de uma "vontade geral" definida a partir dos extremos. Quando comparada com a medida de outro grupo, surge o que se denomina aqui de diferença de força epistêmica que nada mais é que a manifestação de uma tendência geral de alteração nas concepções quando transita-se de um grupo para outro. Quanto mais próximo do valor médio (0) ou quanto mais distante do consenso forte, assume-se que a força epistêmica tende à zero: uma vez que, ao nos afastarmos do consenso perdemos "força", ou quanto mais próximo do valor médio, mais maleáveis e menos extremistas, "polarizadas" estão as concepções.

Se, na escala Likert [-2,2] o zero (0) representa importância/concordância mediana e, no consenso, o zero (0) representa ausência de consenso, o valor de Fε(x) = 0 (força epistêmica igual à zero) implica ou em consenso total (100%) na importância/concordância mediana (item likert com peso 0) ou dissenso total (0% de consenso) sobre o item, ou seja, incapacidade de fixação da opinião no grupo, afinal uma concordância/importância mediana denota, por si só, uma dubiedade do papel que este item desempenha (Tabela 2).

Intervalo

Força epistêmica

1,5 < |Fε| < 2

Alta

1 < |Fε| < 1,5

Normal

0,5 < |Fε| < 1

Baixa

|Fε| < 0,5

Dúbia

Tabela 2 - Força Epistêmica.

O instrumento foi respondido por 121 alunos ingressantes dos cursos de graduação em Química da Região Metropolitana de Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - 26 alunos; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS - 37 alunos; Universidade Luterana do Brasil - ULBRA - 41 alunos; Centro Universitário La Salle - Unilasalle - 17 alunos) e por 62 alunos concluintes (UFRGS - 12; PUCRS - 27; ULBRA - 10; Unilasalle - 13). A aplicação do questionário envolveu o consentimento dos professores das disciplinas de início e fim de curso dos cursos de Química das respectivas instituições, os quais cederam cerca de meia-hora das suas aulas para que os alunos respondessem as questões. Não era permitido que os questionários fossem levados para posterior entrega, tendo em vista que gostaríamos de levantar suas noções mobilizadas in loco.

Neste trabalho serão discutidas as questões 5, 6, 7 e 11 que versam respectivamente sobre as finalidades da pesquisa em química, atributos de um pesquisador, papel da pesquisa no ensino e atributos daqueles que fazem parte das Instituições de Ensino e Pesquisa, restritas às respostas aos respondentes da UFRGS. Uma análise mais pormenorizada das respostas dos ingressantes pode ser encontrada em Strack (2010).

 

O paradigma do consenso

"Nossa leitura crítica aqui parte da seguinte argumentação: é possível propor um paradigma segundo a ótica de Thomas Kuhn? Nossa resposta, para tal, é não. É possível propor, na ERC [Estrutura das Revoluções Científicas], a identificação e a revisão de anomalias, não paradigmas. Os paradigmas não são produto de descobertas, mas de consenso." (Saldanha, 2008, p. 70)

O esforço de compreensão sobre a formação do cientista não pode ignorar que esta atividade está permeada por uma matriz disciplinar, abrangendo todo um conjunto de compromissos de pesquisa de uma comunidade, sua constelação de crenças, valores e técnicas partilhados pelos seus membros. Como Ostermann (1996) salientou, o modelo kuhniano de desenvolvimento científico traz como implicação para a Educação em Ciências a busca pela correspondência entre epistemologia e aprendizagem e, neste sentido, é importante compreender o papel das instituições de Ensino Superior na formação de um consenso com consequências epistemológicas.

"A partir do momento em que a competição dá lugar à estabilidade de um consenso epistemológico, o paradigma da escola que saiu vencedora é assumido em uma aceitação comum, tornando-se a estrutura de uma tradição." (Saldanha, 2008, p. 59)

O fato de Kuhn se deter especificamente na transição paradigmática, conforme constatado por Assis (1993), implica que a noção de ciência normal assumiu um caráter de lugar de estabilidade e, quiçá, de um senso comum instituído. Neste aspecto, um olhar mais atento a este 'lugar comum' onde a atividade educacional do futuro profissional da Química se desenrola pode fornecer subsídios para reflexões sobre a prática educativa formativa no Ensino Superior.

Um senso comum é instituído em algum lugar específico? Ou ele emerge de um conjunto heterogêneo de percepções sem um lugar privilegiado de construção? E as concepções que os ingressantes trazem, seriam um indício de qual perfil terá esse senso comum nos profissionais de amanhã?

Uma reflexão não somente sobre as respostas destes alunos mas, também, com relação às funções pedagógicas da pesquisa parece apontar na direção de que seria a academia um lugar onde certas compreensões de pesquisa são consolidadas enquanto outras são cambiadas. Tomando em específico as noções que permanecem sem alteração, seria de se supor que isso decorre do não-questionamento destas mesmas durante a formação profissional. Como muito bem coloca Durkheim (1995, p. 13), embora num contexto mais voltado à formação pedagógica,

"Adquirir a ciência não é adquirir a arte de comunicá-la; nem sequer é adquirir as noções fundamentais sobre as quais essa arte se apóia Dize-se que o jovem professor nortear-se-á apenas com as lembranças de sua vida de estudante. Será que não se vê que isso significa decretar a perpetuidade da rotina?"

Supondo isso verdadeiro, uma vez que os calouros adentram na instituição universitária com certas concepções e estas não são desestabilizadas, teremos ao final da graduação um profissional que simplesmente perpetuará o senso comum que já possuía e que não foi questionado nas suas noções pois estas já faziam parte da própria cultura instituída em torno da tal questão.

A instituição de certos modos de pensar na (e sobre a) pesquisa se dá através das práticas imersas nos hábitos, "culturas", existentes nas Instituições de Ensino Superior (IES). Afinal, mesmo enquanto instituidoras de formas de pensar, essas instituições também são pensadas e, talvez, justamente por essa mediação entre pensar e ser pensado que emerge o peculiar lugar da discussão sobre o papel das IES na formação paradigmática.

 

Algumas concepções

Questão 5: Graus de importância atribuídos às diversas finalidades da pesquisa na área de química5.

Gráfico 1 - Questão 5: Força Epistêmica - UFRGS.

Inicia-se a análise pela força epistêmica enfatizando o papel que esta (Gráfico 1) desempenha como quadro síntese das tendências de consenso e de atribuições de importância facilitando o entendimento das diferenças nos perfis de ingressantes e concluintes. O decréscimo da Fε atribuída ao item 'Descobrir leis naturais' quando transitamos dos ingressantes para os concluintes implica numa mudança de postura quanto ao papel do pesquisador na ciência. A força epistêmica Baixa dos concluintes frente a respectiva Fε Normal dos ingressantes parece apontar na direção do entendimento de que a pesquisa química não se restringe à síntese de substâncias. O papel de Inventar coisas recebe Fε Dúbia em conjunto com Atender os interesses do Governo, Compreender o mundo e Publicar artigos. O reconhecimento do papel de Atender às necessidades da população, embora num grau menor nos concluintes, se destaca junto com Construir Conhecimento, chegando à força epistêmica Normal, sendo que este último apresenta uma diferença de força epistêmica (dFε) positiva quando transita-se dos ingressantes aos concluintes.

Gráfico 2 - Questão 5: consenso UFRGS.

O gráfico 2 indica que alguns consensos permaneceram estáveis em itens como Atender os interesses do Governo, Compreender o mundo e Construir conhecimento. Aumentos de consenso surgiram em itens como Refletir sobre o Ensino, Publicar artigos, Inventar Coisas, Atender aos interesses do mercado e, em menor grau, Descobrir leis naturais.

Os respondentes mantêm um perfil semelhante entre ingressantes e concluintes no gráfico 3. Os pesos atribuídos em vários itens foi inferior ao conferido pelos ingressantes, à exceção de Construir conhecimento, Refletir sobre o ensino, Publicar artigos e Atender aos interesses do mercado.

A construção de conhecimento surge como um primeiro da imagem do papel desempenhado da pesquisa em química enquanto um processo epistêmico: de forma sucinta e genérica pode-se dizer que a concepção geral nesta questão é construir conhecimento atendendo as necessidades da população.

Neste contexto de pesquisa pergunta-se pelos atributos de um dos seus principais atores, o pesquisador (Questão 6), talvez a peça-chave na elucidação da imagem dos alunos sobre as liberdades e demandas na pesquisa química.

Questão 6: Graus de importância atribuídos aos diversos atributos de um pesquisador6.

Gráfico 3 - Questão 5: UFRGS.

Gráfico 4 - Questão 6: Força Epistêmica - UFRGS.

A diferença de força epistêmica apresentada no item Ser solitário (gráfico 3) conduz à conclusão de que houve uma mudança na força da imagem do pesquisador como alguém sozinho, isolado em seu laboratório, alcançando Fε Alta. Outras alterações que tipificam alterações significativas nas forças das noções foram Ser ateu e Ser criativo transitando na faixa da força epistêmica Normal. Itens que permaneceram praticamente sem alterações em ambos grupos foram Ser imparcial, Ser apolítico e Socialmente Engajado, com pontuações muito próximas de zero além de Ter muito conhecimento e Ser Competente, sendo este último reconhecido como atributo com Fε Normal.

A diferença de consenso entre ingressantes e concluintes (gráfico 5) apresentada no item Ser solitário conduz à conclusão de que houve uma mudança no grau de consenso com relação à imagem do pesquisador solitário alcançando um consenso de 90% (Cns=0,9). Outros itens com consensos igualmente fortes foram Ser ateu, e Ser competente, sendo que neste último ambos grupos mantiveram o mesmo grau de consenso, como no caso dos itens Ser imparcial e Ser apolítico, denotando um consenso consolidado.

Gráfico 5 - Questão 6: consenso UFRGS.

Gráfico 6 - Questão 6: UFRGS.

O gráfico dos pesos atribuídos (gráfico 6) indica que Ser ateu não é uma condição de um competente pesquisador na área de Química (valores negativos), da mesma forma, não é necessário Ser solitário, mas é extremamente valorizado o fato da Criatividade e da Competência, seguido pelo Ter muito conhecimento. Em suma, a grande dFε expressa em itens como Ateu e Solit indicam a existência de uma posição fortemente estabelecida de que estes atributos não são condições necessárias ao bom profissional da Química.

Aqui cabe uma ressalva importante. No cabeçalho da questão já havia a referência aos atributos de um competente pesquisador, o que implicou o fato de que o item ser competente ser redundante nas respostas. Infelizmente tal redundância passou despercebida não só pelos avaliadores do questionário como pelos próprios autores o que implica que a presença do item ser competente acaba por não trazer um acréscimo à discussão já que estava induzida a escolha por este item no cabeçalho.

Na verdade, o uso do termo 'competente' na pesquisa criou uma referência circular: marca-se o item "ser competente" porque a pergunta se referia à um "competente pesquisador". É interessante que a imensa maioria reforça a importância da competência que já estava expressa na questão. Essa pontuação alta se referiria apenas ao efeito da referência circular ou seria realmente um consenso?

Mas isso não nos responde uma pergunta básica: o que significa 'ser competente' ou "qual a definição de ser competente por parte dos respondentes?" Embora o termo competência faça parte inclusive de documentos orientadores educacionais nacionais como as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Química, sua definição não foi posta sob crivo, demonstrando a observação de Thomas Kuhn sobre uso dos conceitos na ciência: há consenso no uso, mas não necessariamente na definição que damos individualmente ao conceito. Enfim, seria competência um conceito que mobiliza diferentes noções de diferentes indivíduos? Uma espécie de núcleo agregador de significados7? Um tipo de schemata (Freitas, 2005)?

Observando os resultados, as respostas podem ser organizadas em dois grupos com importâncias relativas opostas: as atribuições de importância positiva, como por exemplo, ser criativo (Criat), ser competente (Cmtte) e ter conhecimento (Conh) e as atribuições de importância negativa, quais sejam, ser ateu (Ateu) e ser solitário (Solit).

É interessante observar a existência de dois atributos necessários que se destacam como comuns aos grupos: criatividade e conhecimento. O atributo desnecessário, ser ateu, também recorrente em todos os grupos, completa as características genéricas de um pesquisador da área de química, segundo o conjunto geral dos respondentes.

Retornando às reflexões do papel da pesquisa, uma outra pergunta a ser respondida versa sobre sua importância frente ao (ou para o) ensino acadêmico (Questão 7).

Questão 7: Graus de importância atribuídos aos diversos papéis que a pesquisa na área de química pode desempenhar no ensino acadêmico de química8.

Gráfico 7 - Questão 07: Força Epistêmica - UFRGS.

A primeira constatação possibilitada pelo gráfico da força epistêmica (gráfico 7) é do fato de que os ingressantes apresentam Fε maior que os concluintes, oscilando em torno de 1 nos ingressantes e em torno de 0,5 nos concluintes, ou seja, há uma dFε negativa, de Baixa para Dúbia no quadro geral quando comparamos ambos grupos. Parece que há uma redução das certezas com relação aos papéis que a pesquisa em Química desempenha no ensino de Química. A convergência no item em 'atualização de conhecimentos por parte daqueles que ensinam' pode apontar na direção de indícios da concepção do professor-pesquisador no sentido daquele que pesquisa na área de Química em que leciona.

Gráfico 8 - Questão 7: consenso UFRGS.

Uma parte do efeito da força epistêmica observada no gráfico anterior, justifica-se pelo consenso observado (gráfico 8), onde itens como 'habilita compreensão da natureza da ciência, análise das práticas e suas metodologias' e 'atualização de conhecimentos por parte daqueles que ensinam' mantenham-se estáveis entre ambos grupos.

Gráfico 9 - Questão 7: UFRGS.

A outra parte do efeito da força epistêmica observada na figura 7 se justifica pela pontuação observada (gráfico 9), onde, também, há uma tendência de pontuação maior por parte dos ingressantes. Aqui o item 'habilita compreensão da natureza da ciência, análise das práticas e suas metodologias' tem pontuação diferenciada, por parte de ambos grupos, enquanto a convergência no item 'atualização de conhecimentos por parte daqueles que ensinam' é perceptível pelas respostas dos concluintes.

Parece existir uma percepção de que a atividade de pesquisa, em maior ou menor grau, habilita tanto na consecução de objetivos químicos quanto educacionais. Aparentemente, uma perspectiva ampliada que expande a noção de pesquisa para além do laboratório, englobando o educar e guardando ressonâncias com a ideia de que a pesquisa desempenha uma função pedagógica. No entanto, o item 'saber ensinar', nos atributos de um pesquisador (Questão 6), embora presente, não havia se destacado o suficiente para estar pontuado acima da criatividade, por exemplo. Talvez, na concepção destes respondentes, ser pesquisador não implica saber ensinar nas respectivas instituições de ensino e pesquisa: a pesquisa é uma atividade educativa, conforme eles mesmos pontuaram, mas o pesquisador não é necessariamente uma pessoa que saiba ensinar.

Uma forma de delinear melhor as noções sobre as instituições de ensino e pesquisa neste contexto que engloba, como uma forma de institucionalização de uma função econômica, a função de formação de recursos humanos, reside em questionar sobre os atributos daqueles que fazem parte destas (Questão 11).

Questão 11: Graus de importância atribuídos aos diversos atributos daqueles que fazem parte das instituições de ensino e pesquisa9.

Gráfico 10 - Questão 11: Força Epistêmica - UFRGS.

Alguns itens da figura 10 mostram uma coincidência entre concepções de ingressantes e concluintes como, por exemplo, inventar coisas, pesquisar, ensinar, saber administrar e trabalhar em equipe. Pequenas diferenças surgem em itens como seguir metodologia das ciências, publicar artigos para outros pesquisadores e publicar artigos para o público em geral. Neste ultimo surge uma diferença de força epistêmica negativa.

O fato pertinente desta questão reside na prevalência, no conjunto analisado, da atividade de Pesquisa como uma instância acima à de Ensino o que parece indicar a manifestação de uma tendência de um processo de desvinculação ensino-pesquisa.

 

Algumas transposições: paradigmas, consensos e práxis educativa

"O estudo de Kuhn (1975) tem como foco a argumentação sobre o conceito "paradigma". Essa argumentação tem, em sua instância principal, a categoria do consenso. O paradigma é, antes de tudo, uma decisão comungada e legitimada por participantes de uma escola de pensamento." (Saldanha, 2008, p. 61)

"Lembremos, o conceito de ciência não é um paradigma kuhniano em nenhuma comunidade científica - estamos deliberadamente seguros quanto a uma noção geral do que é ciência?" (Saldanha, 2008, p. 72)

"Voltemos, finalmente, ao termo "paradigma". Ele aparece em A Estrutura das Revoluções Científicas porque eu, historiador-autor do livro, ao examinar a pertença a comunidade científica não consegui encontrar regras partilhadas em número suficiente para explicar a conduta de investigação a problemática do grupo. Os exemplos partilhados da prática bem podiam, concluí depois, fornecer o que faltava ao grupo no que respeita a regras. [...]. Os exemplos partilhados podem desempenhar funções cognitivas comumente atribuídas a regras partilhadas. [...] Se eles puderem ver-se, seremos capazes de dispensar o termo "paradigma", embora mantendo o conceito que conduziu à sua introdução." (Kuhn, 1989, pp. 381-382)

Ao refletirmos um pouco sobre a amplitude do termo "exemplos partilhados da prática", percebe-se que este não precisa ficar restrito ao contexto das atividades laboratoriais. O ensino, a vida de sala de aula institui, mediante a própria práxis educativa, um contexto formativo onde, seja explicitamente, seja implicitamente, partilham-se noções, concepções tanto acerca do conhecimento especializado daquela comunidade quanto da própria formação dos respectivos futuros membros do grupo. Decorre disso, também, o compartilhamento das imagens associadas à prática profissional sociedade afora. Fica a pergunta: é possível mudar concepções implicitamente partilhadas?

É a práxis, a prática, que modela o processo educativo. Vide o caso das concepções epistêmicas dos alunos que se relacionam com o tipo de abordagem do conteúdo na sala de aula. Mais do que conceitos, conteúdos, é a forma de trazê-los que modifica ou não as concepções "implícitas". Então, segundo a pergunta de se é possível mudar as concepções implícitas sem explicitá-las, podemos dizer que sim, mediante a forma, o conduto, o contexto formativo no qual os conceitos são trabalhados. Não há a necessidade de explicitá-los para mudá-los, há sim a necessidade urgente de uma proposta educativa que se baseie nas mudanças das práxis vigentes, se isso ainda for possível dado o grau de estabelecimento de um ciclo vicioso formativo no contexto educacional: aqueles os quais pressupõem-se poderem ou serem capazes de mudar suas práxis foram formados em um contexto que favorece a (sua) práxis tradicional o que implicitamente constrói um hábito que tende a ser reproduzido nos professores em formação e assim por diante.

Se mudar é possível, passa pela legítima "libertação" do que chamaremos de 'efeito de grupo', ainda que isso implique um distanciamento com a própria práxis vigente, redundando em possíveis efeitos psicológicos, numa tensão essencial como preconizada por Kuhn (1989), no que tangencia a nossa necessidade de aceitação por um determinado grupo. E talvez seja essa a questão fundamental.

Dadas as dificuldades que isso tudo envolve, a tendência é que o implícito se perpetue e nem mesmo o explicitar destas concepções seja capaz de 'ter força' de mudá-las, sendo apenas a práxis efetiva capaz de fazê-lo. Neste sentido, a mudança das noções implícitas que permeiam as práxis torna-se um caso particular de um conjunto amplo de processos que moldam o pensar e o agir dos diversos grupos. E é aqui que emerge um critério de pensamento no âmbito educacional: ainda que a mudança seja possível, o compreender a dinâmica "sócio-epistêmica" enquanto as sonhadas mudanças não ocorrem, em suma, o que transcorre enquanto 'as coisas não mudam', é o papel mais simples e mais próximo para os dados que temos em mãos. Discutir a mudança de concepção é um capítulo à parte10.

"How are scientists taught to do science?'' and ''What implication does this have for the research education of teachers?" (Feldman; Divoll & Rogan-Klyve, 2009, p. 443).

Feldman e cols. (2009) apontam o fato de que existem numerosos estudos sobre como cientistas fazem ciência, em contrapartida, poucos estudos foram feitos sobre como cientistas aprendem a fazer ciência. Transladando para a Didática das Ciências: embora existam estudos feitos sobre como os professores devam ensinar (e alguns outros sobre como eles atuam efetivamente enquanto ensinam), pouquíssimas pesquisas foram feitas no sentido de como os futuros professores de Ensino Superior aprendem a ensinar. Ligado à isso fica a própria formação de professores da Escola Básica, uma vez que sua formação se dá através de instituições nas quais seus professores-formadores ministrantes das diversas disciplinas são justamente estes professores Ensino Superior que passaram por uma formação orientada fundamentalmente para a pesquisa.

Seria de se supor que os professores da IES seriam capazes de promover, como os autores do artigo supracitado questionam, uma compreensão da atividade científica a ponto de habilitar os professores da Escolarização Básica a trabalhar a ciência enquanto atividade de investigação e menos como atividade de transmissão? Isso só seria possível se, conforme pontuam os referidos autores, os professores em formação estivessem, em maior ou menor grau, engajados em grupos de pesquisa, participando da vida de laboratório. Mas, neste caso, já não estaríamos formando pesquisadores (aqueles que pesquisam) ao invés de professores (aqueles que professam)? Ou seria possível um perfil intermediário que dê conta de ambas atribuições e, ainda sim, evitar recair na dicotomia cada vez mais emergente entre ensino e pesquisa? Afinal nada impede, a priori, que um dos vícios da formação universitária recorrentes atualmente, qual seja, a noção de formação de bons pesquisadores pressupondo que se tornem bons educadores, sejam reproduzidos nos diversos níveis de ensino.

A questão 'How are scientists taught to do science?" (Feldman et al, 2009, p. 443) é indissociável desta outra "Como os professores ensinam a ensinar?" Afinal os doutos que pesquisam e os doutos que ensinam participam dos mesmos grupos ou, no mínimo, da mesma comunidade dos praticantes de uma dada ciência. Ou não?

Tardif (2000, p. 18), ao discutir os problemas epistemológicos do modelo universitário de formação, argumenta:

"Por exemplo, a pesquisa, a formação e a prática constituem, nesse modelo, três pólos separados: os pesquisadores produzem conhecimentos que são em seguida transmitidos no momento da formação e finalmente aplicados na prática: produção dos conhecimentos, formação relativa a esses conhecimentos e mobilização dos conhecimentos na ação tornam-se, a partir desse momento, problemáticas e questões completamente separadas, que competem a diferentes grupos de agentes: os pesquisadores, os formadores e os professores. Por sua vez, cada um desses grupos de agentes é submetido a exigências e a trajetórias profissionais conforme os tipos de carreira em jogo. De modo geral, os pesquisadores têm interesse em abandonar a esfera da formação para o magistério e em evitar investir tempo nos espaços de prática: eles devem antes de tudo escrever e falar diante de seus pares, conseguir subvenções e formar outros pesquisadores por meio de uma formação de alto nível, doutoral ou pós-doutoral, cujos candidatos não se destinam ao ensino primário e secundário."

O supracitado autor argumenta que não se devem confundir os saberes profissionais dos professores com os conhecimentos transmitidos no âmbito da formação universitária. A partir da percepção de que a distância entre os saberes profissionais dos professores e a formação universitária pode assumir diversas formas podendo ir da ruptura à rejeição da formação teórica (Tardif, 2000) surge uma indicação relativa à atuação dos professores universitários no ensino de graduação. Um ensino que resulte em uma formação em química pouco contextualizada pode ser proveniente de uma prática de ensino por parte dos professores universitários que, paradoxalmente, contradiz a própria dinâmica da construção do conhecimento científico representada pela vida de laboratório. Prática essa que parece se constituir, no mínimo, em uma ruptura não em relação à formação teórica, mas relativa ao próprio papel do pesquisador na ciência. A construção de conhecimento parece terminar quando o pesquisador sai do laboratório e entra na sala de aula onde esta noção dá lugar à lógica de transmissão de informações. Haveria alguma justificativa à nível sócio-epistêmico para isso? Seria essa uma forma de instituir paradigmas numa dada comunidade de praticantes de uma dada ciência?

Dado um contexto no qual a formação (teórica) em química de bacharéis e licenciandos se dá de forma conjunta, mas a efetiva formação se dá através do envolvimento com os saberes profissionais (prática), pode-se refletir sobre o papel que a ação dicotômica entre pesquisar e ensinar pode ter na origem desta assimetria entre a teoria e a prática relativas à sala de aula tanto na Escola Básica quanto no Nível Superior.

"Os alunos passam pelos cursos de formação de professores sem modificar suas crenças anteriores sobre o ensino. E, quando começam a trabalhar como professores, são principalmente essas crenças que eles reativam para solucionar seus problemas profissionais." (Tardif, 2000, pp. 13-14)

Se a prática da docência não é suficiente para transformar concepções de ensino, porque a prática da pesquisa seria capaz de fazê-lo? Com relação à questão específica da prática da pesquisa, porque a prática desta seria capaz de mudar concepções sobre a atividade da ciência? E antes ainda: quem propõe o que seria uma visão mais ou menos apropriada sobre a pesquisa? E sobre o ensino?

Quem propõe uma dada forma de pensar, tida como apropriada, sobre o ensino são, em sua maioria, os professores de Nível Superior que pesquisam sobre ensino: não são os professores licenciados da Escola Básica. Da mesma forma, ao tomarmos autores como Latour, estamos assumindo que a visão de, por exemplo, um antropólogo, sobre os cientistas é mais apropriada que a própria visão sobre ciência dos próprios cientistas. Em síntese: são duas comunidades diferentes, na qual uma parece ter um poder especial para dizer o que seria o correto de outra.

Não são os próprios professores da Escolarização Básica que parecem estar decidindo sobre o melhor caminho no seu exercício profissional. Da mesma forma, a categoria profissional "cientista" parece ter sido tomada de assalto na capacidade de se autodefinir e se auto imaginar.

Parece que chegamos à um beco sem saída: surgem, aparentemente, condições de impossibilidade nas quais o pensar sobre e a prática parecem pertencer à comunidades diferentes. E agora? Para onde vamos?

Isso posto, parece ficar evidente a complexidade do jogo de (in)compreensões que afetam não só a atividade científica mas também e principalmente a atividade de ensinar.

"This is of importance to science teacher education because if we want to know how to teach teachers how to engage in scientific research, we ought to know how scientists are taught to be researchers." (Feldman et al., 2009, p. 443)

Novamente retornamos ao ideal de formação de professores que passa pela função pedagógica da pesquisa. Esse parece ser o nó górdio que obstaculariza o próprio pensar tanto sobre a Educação Básica (voltada à vida cidadã) quanto a superior (voltada a formação dos quadros técnicos-científicos). O primeiro passo para solver este problema passa pela compreensão de que tanto o pesquisar quanto o ensinar são práticas inseridas em culturas.

"What does it mean that science teachers ought to know how to do science? Does it mean that they should be Novice Researchers who have been exposed to a community of practice, but have developed little of the skills needed to develop and carry out a research project? Or does it mean that a teacher should be a Proficient Technician, who is a skilled member of the community of practice, but does not participate in the creation or warranting of new knowledge? Or does it mean that for a teacher to adequately teach children how to do science, he or she must be a Knowledge Producer?" (Feldman et al., 2009, p. 456)

Se a Vida de laboratório e sua respectiva "pedagogia da pesquisa" ensina a ser cientista/pesquisador, o que ensinam os bancos acadêmicos? A ser um acadêmico que espera pelo pronunciamento de uma autoridade, enfim, uma nova forma de abdicar do livre pensar? Que dicotomia parece ser essa entre uma sala de aula e um grupo de pesquisa? Talvez Kuhn em sua obra "Tensão Essencial" possa ajudar a encontrar uma resposta.

"Vou tentar resumir rapidamente a natureza da educação nas ciências naturais ignorando as muitas diferenças significativas, porém menores, entre as várias ciências e entre as abordagens de diferentes instituições educacionais. A característica mais estável desta educação é que, numa medida totalmente desconhecida noutros campos criativos, se realiza inteiramente através de manuais. É comum que os estudantes licenciados e pós-graduandos de química, física, astronomia, geologia ou biologia adquiram a substância dos seus campos a partir de livros escritos especialmente para estudantes. Até estarem preparados, ou quase, para começar o trabalho das suas próprias dissertações, não se lhes pede que tentem projetos de investigação experimentais nem são expostos a produtos imediatos da investigação feita por outros, isto é, às comunicações profissionais que os cientistas escrevem uns para os outros. Não há antologia de "textos selecionados" nas ciências naturais. Nem os estudantes de ciência são encorajados a ler os clássicos históricos dos seus próprios campos - trabalhos onde podiam descobrir outras maneiras de olhar os problemas discutidos nos seus livros de texto, mas onde também encontrariam problemas, conceitos e padrões de solução que as suas futuras profissões há muito descartaram e substituíram." (Kuhn, 1989, p. 279)

Parece que Kuhn se refere à grande maioria dos alunos de cursos de ciências naturais os quais não participam de atividades em grupos de pesquisa, a denominada Iniciação Científica. Convém observar que o simples nome "Iniciação Científica" já denota que a 'iniciação à ciência' ocorre com a participação em atividades de pesquisa. Fica a pergunta: o ensino, então, não é uma iniciação à ciência? Ou melhor, não é uma "iniciação científica" à ciência?

Nesse sentido, talvez devêssemos tentar reverter o pensamento sobre o papel da Iniciação Científica (IC) na formação do universitário para compreender o que significa a ausência da IC na formação universitária.

Antes, convém perguntar, "o que pretendemos com a IC"? Formar pesquisadores, professores ou professores-pesquisadores, ou ainda, professores pesquisadores de sua prática?Afinal, mesmo podendo ter um substrato comum, ou seja, o papel da pesquisa na retificação dos conhecimentos postos, as noções supracitadas podem desembocar em consequências diametralmente opostas. Pois vejamos:

  • Pesquisador: um cientista e sua vida de laboratório;
  • Professor: aquele que professa, discursa sobre uma arte ou ciência;
  • Professor-pesquisador: marcadamente esse é o caso dos professores das IES que devem ser professores e, ainda, realizar suas pesquisas. As consequências deste perfil é a disputa de tempo entre ensino e pesquisa.
  • Professor pesquisador de sua prática: neste perfil, o professor, ainda que um pesquisador, não necessariamente se engaja na fabril concepção de "máquina de produzir artigos" e sim na reflexão de sua prática diária. A questão é: que tipo de atividade faculta a emergência deste perfil de profissional? Parece que a IC forma pesquisadores e não necessariamente professores pesquisadores de sua prática.

Me parece que, o que é consenso em um grupo, é o questionável de outro. Dito de forma diferente: o que uma comunidade de pesquisadores considera ultrapassado, pode ser o senso comum subjacente à outra comunidade. Afinal essa última [comunidade] não pesquisa a temática da primeira. Seria o caso das diferenças entre os pesquisadores de ensino de Química e os pesquisadores da chamada "Química dura".

Retomando a discussão sobre a natureza da educação em ciências naturais, Kuhn (1989, p. 280) enfatiza que:

"Mesmo a teoria educacional mais vagamente liberal deve considerar esta técnica pedagógica como um anátema. Todos concordamos que os estudantes devem começar por aprender um bom bocado do que já se sabe, mas também insistimos em que a educação lhes deve dar muito mais. Dizemos que eles devem aprender a reconhecer e a avaliar problemas que ainda não tenham recebido nenhuma solução inequívoca; deve ser-lhes fornecido um arsenal de técnicas para abordarem os problemas futuros; e devem aprender a ajuizar da importância destas técnicas e a avaliar as possíveis soluções parciais que podem fornecer. Em muitos aspectos, estas atitudes em relação à educação parecem-me absolutamente correctas e, não obstante, devemos reconhecer duas coisas a seu respeito. Primeira, a educação nas ciências naturais parece que ficou incólume à sua existência. Continua a ser uma iniciação dogmática numa tradição preestabelecida em que o estudante não está equipado para avaliar. Segunda, pelo menos no período em que foi seguida por um certo prazo numa relação de aprendizagem, esta técnica de exposição exclusiva a uma tradição produziu uma imensa classe de inovações."

Curiosamente esta "iniciação dogmática numa tradição preestabelecida" tem uma consequência peculiar: o consenso que habilita a prática convergente da ciência normal.

"[...] espero contudo que a comunicação tenha esclarecido por que razão um sistema educacional, melhor descrito como uma iniciação a uma tradição inequívoca, deve ser inteiramente compatível com o trabalho científico com êxito. E espero, além disso, ter tornado plausível a tese histórica de que nenhuma parte da ciência progrediu muito e depressa antes de esta educação convergente e a correspondente prática normal convergente se terem tornado possíveis. Por fim, embora esteja para lá da minha competência derivar correlatos de personalidade desta concepção do desenvolvimento científico, espero ter dado um sentido claro à visão de que o cientista produtivo deve ser um tradicionalista que gosta de jogar intricados jogos com regras preestabelecidas, para ser um inovador com êxito que descobre regras novas e novas peças com que jogar." (Kuhn, 1989, pp. 288-289)

 

Conclusões

"As discussões tradicionais sobre o método científico procuraram um conjunto de regras que permitiriam, a qualquer indivíduo que as seguisse, produzir conhecimento correcto. Em vez disso, tentei insistir que, embora a ciência seja praticada por indivíduos, o conhecimento científico é intrinsecamente um produto de grupo e que nem a sua peculiar eficácia nem a maneira como se desenvolve se compreenderão sem referência à natureza especial dos grupos que a produzem. Neste sentido, o meu trabalho foi profundamente sociológico, mas não de modo a permitir que o tema seja separado da epistemologia." (Kuhn, 1989, p. 24)

O presente trabalho é um princípio de esforço para delinear de forma mais clara o papel da Educação em Ciências - tendo a formação profissional em Química como um caso especial desta - na instituição do consenso, em outras palavras, nos processos que constituem uma dada forma de pensar na (e sobre a) Ciência e, no nosso caso específico, na Química.

A partir da ênfase dada por Thomas S. Kuhn, buscou-se entender o papel da dinâmica do conhecimento não à nível individual, mas à nível do que ocorre em grupos, donde surgiu a expectativa de uma observação das variações de consenso ao longo do processo formativo. No entanto, a relativa homogeneidade das respostas e as diferenças pontuais não justificaram uma distinção clara entre ingressantes e concluintes exceto pelas alterações do consenso em itens específicos, sobressaindo a semelhança de perfis. O que isso significa?

Em primeiro lugar, os apontamentos de Kuhn relacionam-se mais aos conceitos científicos e não as concepções sobre ciência, outras investigações seriam necessárias visando um olhar detalhado sobre a formação de consenso em torno dos conceitos em grupos de estudantes. Em segundo lugar, as concepções sobre ciência, seus objetivos, suas instâncias de autoridade não são, necessariamente, objeto de uma teorização explícita nos cursos de formação de Químicos. O não dito, o não explícito parece perpetuar-se numa espécie de senso comum. Um senso comum é instituído em algum lugar específico? Ou ele emerge de um conjunto heterogêneo de percepções sem um lugar privilegiado de construção? E as concepções que os calouros trazem, seriam um indício de qual perfil terá esse senso comum nos profissionais de amanhã?

Uma reflexão não somente sobre as respostas destes alunos mas, também, com relação às funções pedagógicas da pesquisa parece apontar na direção de que seria a academia um lugar onde certas compreensões de pesquisa são consolidadas enquanto outras são cambiadas. Tomando em específico as noções que permanecem sem alteração, seria de se supor que isso decorre do não-questionamento destas mesmas durante a formação profissional. Como muito bem coloca Durkheim (1995, p. 13), embora num contexto mais voltado à formação pedagógica,

"Adquirir a ciência não é adquirir a arte de comunicá-la; nem sequer é adquirir as noções fundamentais sobre as quais essa arte se apóia. Dize-se que o jovem professor nortear-se-á apenas com as lembranças de sua vida de estudante. Será que não se vê que isso significa decretar a perpetuidade da rotina?"

Supondo isso verdadeiro, uma vez que os calouros adentram na instituição universitária com certas concepções e estas não são desestabilizadas, teremos ao final da graduação um profissional que simplesmente perpetuará o senso comum que já possuía e que não foi questionado nas suas noções, pois estas já faziam parte da própria cultura instituída em torno da tal questão.

 

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Notas

R. Strack
Endereço para correspondência: Instituto de Química (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500, Sala D-114, Campus do Vale, Porto Alegre, RS 91.501-970.
E-mail para correspondência: ricstrack@yahoo.com.br;

J.C. Del Pino
Endereço para correspondência: Instituto de Química (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500, Sala D-114, Campus do Vale, Porto Alegre, RS 91.501-970.
E-mail para correspondência: aeq@iq.ufrgs.br.

(1) "As conferências de consenso envolvem pequenos grupos de cidadãos, que passam por um processo de aprendizado sobre uma dada questão tecnológica, envolvem pessoas especializadas e fazem avaliação das questões-chave que identificam como críticas" (Einsiedel e Eastlick, 2005, p. 203)

(2) Conselho Federal de Química, Resolução Ordinária nº. 927, de 11/11/1970

(3) The Relevance of Science Education é um projeto comparativo internacional que visa averiguar a relevância dos conteúdos dos currículos de ciências em diferentes contextos culturais. A população de estudo são estudantes que estão a finalizar a educação secundária (15-16 anos). Maiores informações em http://www.ils.uio.no/english/rose/

(4) onde:

ai representa o valor associado pela normalização (-2, -1, 0, 1 ou 2) atribuído por cada i-ésimo respondente em cada conjunto de respondentes de uma respectiva k-ésima questão.

(5) Legenda: Desc: descobrir leis naturais, Sint: sintetizar substâncias, Inven: inventar coisas, Pop: atender às necessidades da população, Merc: atender aos interesses do mercado, Gov: atender aos interesses do governo, Comp: compreender o mundo, Public: publicar artigos, Refl: possibilitar reflexões sobre o ensino, Cons: construir conhecimento

(6) Legenda: Imp: imparcial, Apol: apolítico, Ateu: ateu, Criat: criativo, Solit: solitário, Meto: seguir rigidamente as metologias das ciências, Publ: publicar artigos, Ens: saber ensinar, Cptvo: competitivo, Cmtte: competente, Conhe: ter muito conhecimento, Enga: socialmente engajado

(7) Um termo que, mesmo sem possuir uma definição clara por parte daquele que o utiliza, é mobilizado, trazendo como consequência que cada indivíduo atribui um conjunto de noções. O resultado é um termo-chave que cria consenso, ainda que não exista consenso na sua definição. Provavelmente foi esse efeito que emergiu a partir do respectivo item da questão 06. Num exemplo mais sofisticado, Levine (2000) remonta aos apontamentos de Kuhn com relação à alguns trabalhos de Piaget - traçando uma correlação entre Desenvolvimento Cognitivo e História da Ciência - e, a partir disso, reflete sobre os trabalhos posteriores em psicologia do desenvolvimento que se inspiram em algumas noções de Thomas Kuhn, por sua vez inspiradas na psicologia do desenvolvimento, criando uma circularidade.

(8) Comp: habilita compreensão da natureza da ciência, análise das práticas e suas metodologias; Reflex: refletir sobre a prática como pesquisador e como professor; Ambi: aprendizagem no ambiente da produção científica; Atual: atualização de conhecimentos por parte daqueles que ensinam

(9) Invent: Inventar, Pesq: Pesquisar, Metod: seguir metodologia das ciências, ArtPq: publicar artigos para outros pesquisadores, Artpub: publicar artigos para o público em geral, Ens: ensinar, Admin: saber administrar, Equip: trabalhar em equipe.

(10) Seria de se perguntar, também, se são as práxis que moldam as concepções e não as concepções que mudam as práxis. Além disso, a relação entre uma noção e a prática relacionada a esta pode não ser linearmente dependente: o papel do grupo, a "pressão social", o "efeito de grupo" deve ser levado em conta. O que leva à outra pergunta: é possível transcender o 'efeito de grupo'?

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