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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.3 n.1 Ribeirão Preto ago. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Ser alcoolista na voz de sujeitos dependentes de álcool*

 

Ser un adicto en la voz de sujetos dependientes del alcohol

 

Being an alcoholic in the perspective of alcohol dependents

 

 

Cíntia NasiI; Leila Mariza HildebrandtII

I Enfermeira, residente em Saúde Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
II Enfermeira, Mestre em Enfermagem Psiquiátrica pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, docente do Curso de Enfermagem da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, Ijuí, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objetivo conhecer como é ser alcoolista na percepção de indivíduos portadores de alcoolismo, atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Trata-se de pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, do tipo estudo de caso. A coleta de informações se deu por meio de entrevista não estruturada. A análise dos dados seguiu a proposta metodológica de Minayo (2002). A partir das informações contidas nos depoimentos dos atores sociais, emergiu uma categoria de análise que trata da concepção dos sujeitos acerca de como é ser alcoolista, enfatizando as dificuldades cotidianas ocasionadas pelo uso do álcool.

Palavras-chave: Serviços de Saúde Mental, Alcoolismo, Percepção, Saúde Mental.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo conocer como es ser adicto a alcohol en la percepción de personas portadoras del alcoholismo, atendidos en un Centro de Atención Psicossocial Alcohol y drogas. Se trata de una investigación cualitativa, descriptiva y exploratoria, del tipo estudio de caso. La recolecta de informaciones se efectuó mediante entrevista no estructurada. El análisis de los datos siguió la propuesta metodológica de Minayo (2002). A partir de las informaciones contenidas en los relatos de los actores sociales, emergió una categoría de análisis, que trata sobre la concepción de los sujetos acerca de como es ser adicto a alcohol, enfatizando las dificultades cotidianas ocasionadas por el uso de alcohol.

Palabras clave: Servicios de Salud Mental, Alcoholismo, Percepción, Salud Mental.


ABSTRACT

This study aimed to get to know the meaning of alcoholism in the perception of alcoholics attended in a Psychosocial Care Center Alcohol and Drugs. It is a qualitative, descriptive and exploratory case study. Data were collected through unstructured interviews. The data analysis followed Minayo’s (2002) methodological reference framework. A category of analysis emerged from the social actors’ statements regarding the subjects’ conception about what it means to be an alcoholic. The daily difficulties caused by the use of alcohol were emphasized.

Keywords: Mental Health Services, Alcoholism, Perception, Mental Health.


 

 

INTRODUÇÃO

A dependência química constitui hoje problema de saúde experienciado por um contingente significativo da população. Considerando esse contexto, os municípios precisam organizar-se para atender pessoas acometidas por essa patologia, indo ao encontro dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Uma das drogas de ampla ingestão é o álcool. O consumo desse é um dos hábitos sociais mais antigos e difundidos entre as populações, já que está correlacionado a ritos religiosos, valores sociais e culturais, além de lhe ser conferido efeitos como calmante, afrodisíaco, estimulante de apetite, desinibidor dentre outros(1-2). Além do mais, “a cultura pode influenciar o padrão e o contexto, assim como a quantidade do consumo de álcool e o padrão desse consumo pode, por sua vez, ser um determinante importante dos problemas com bebida”(2).

Cerca de 15% das pessoas que consomem álcool progridem para o alcoolismo. Esse é um dado realmente preocupante, já que tal patologia pode prejudicar tanto a qualidade de vida dos sujeitos alcoolistas, como do seu meio familiar e social(3). Ainda, o Ministério da Saúde salienta que 6% da população apresenta transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas(4).

Com relação ao atendimento aos dependentes químicos, cabe destacar que apresenta duas fases: a desintoxicação, que visa a retirada das drogas, e a manutenção, que tem por objetivo reorganizar a vida do sujeito sem o uso delas. Cabe assinalar que, quando o paciente procura voluntariamente o tratamento e tem participação ativa na definição de programas terapêuticos, é maior a possibilidade de sucesso da intervenção(5). Na maior parte dos serviços ambulatoriais, um dos critérios para o ingresso nesses espaços é de que o usuário venha desintoxicado, portanto, preconizando somente a segunda fase do tratamento aos dependentes químicos, a manutenção.

Em se tratando de serviços substitutivos em saúde mental, cabe destacar os centros de tratamento especializados para pessoas com alguma dependência química, os quais não possuem conotação de institucionalização. Dentre esses serviços pode-se salientar os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad), que são serviços ambulatoriais para atendimento a tais indivíduos(6).

Pensa-se ser importante para o atendimento de sujeitos alcoolistas conhecer as suas experiências e vivências, relacionadas com o uso de álcool, e as implicações que possam demandar na vida de tais pessoas.

Sobre a temática do tratamento recebido por pessoas portadoras de dependência química em serviços substitutivos em saúde mental, há, como pergunta de pesquisa: como é ser alcoolista para uma pessoa acometida por alcoolismo, atendida em um serviço substitutivo de saúde mental (CAPS ad)?

Considerando o acima exposto, este estudo tem como objetivo conhecer como é ser alcoolista na percepção de indivíduos portadores de alcoolismo, atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad).

Esta pesquisa tem relevância na medida em que entender a vivência do alcoolismo, na voz do sujeito portador dessa patologia, permite à equipe de saúde conhecer essa experiência e, assim, propor formas de intervenção adequadas às demandas desse grupo de indivíduos.

 

MATERIAL E MÉTODOS

A pesquisa é “um processo formal e sistemático de desenvolvimento do método científico”, e tem por finalidade o progresso da ciência(7). A metodologia é o caminho e o instrumental específicos de abordagem da realidade, ocupando lugar central no interior das teorias. Além disso, a metodologia engloba as concepções teóricas da abordagem, as técnicas para apreensão da realidade e o potencial criativo do pesquisador(8). Considerando o objeto deste estudo, optou-se, aqui, pela realização de pesquisa qualitativa, com abordagem descritiva e exploratória.

A pesquisa qualitativa se preocupa com o nível de realidade que não pode ser quantificado. Busca compreender o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, os quais não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis(9).

As pesquisas descritivas possuem, como principal objetivo, a “descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis”(7). As pesquisas exploratórias possibilitam que o pesquisador aumente sua experiência em relação a determinada situação(10).

O primeiro contato para a realização da pesquisa foi feito junto à 17ª Coordenaria Regional de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul e, em seguida, junto ao CAPS ad II do município de Augusto Pestana, local de investigação, solicitando autorização para a coleta de dados. Após a aceitação dessas instituições, entrevistou-se os sujeitos, no próprio CAPS, no período de 13 a 16 de janeiro de 2004.

Este estudo foi realizado no município de Augusto Pestana, situado na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, com população de 8 173 pessoas(11). O CAPS ad II – Opção pela Vida – Centro de Atenção Psicossocial com referência em álcool e drogas, localizado no município supracitado, é centro de atenção diária, regional, que atende pessoas de ambos os sexos, para tratamento e recuperação de portadores de transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas, assistidos pelo Sistema Único de Saúde - SUS. A região de abrangência desse CAPS ad II corresponde aos 20 municípios pertencentes à 17ª Coordenadoria Regional de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, atingindo população de 221 314 habitantes.

Importante destacar que os usuários devem acessar o serviço já tendo passado pela desintoxicação e encaminhados pela equipe de saúde do município de origem. Os tipos de tratamento oferecidos são intensivo, semi-intensivo e não intensivo. Esse serviço atende de segunda a sexta-feira, oito horas diárias, sendo que, durante a noite, os usuários em tratamento intensivo permanecem em um albergue na instituição.

Os sujeitos do estudo eram pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool, em acompanhamento no CAPS ad II do município de Augusto Pestana. Elencou-se como critérios de inclusão para o estudo os usuários que estivessem em tratamento intensivo na instituição, maiores de 18 anos, aqueles que não estivessem acometidos por algum distúrbio mental, além da dependência química, que estivessem em tratamento há pelo menos 10 dias no serviço e que concordassem em participar da pesquisa. Todos os indivíduos que atenderam esses critérios, no período da coleta de dados, aceitaram participar do estudo, totalizando oito sujeitos.

Os entrevistados eram todos do sexo masculino, com idade entre 37 e 62 anos. Três eram casados, quatro solteiros e um era concubino. Um dos entrevistados faz parte da Igreja Assembléia de Deus e os demais são da Igreja Católica. Com relação à profissão, um era motorista, três serviços gerais, um operário, um pedreiro, um agricultor e um comerciante, sendo que, dos entrevistados, quatro estão inseridos no mercado formal de trabalho. Os sujeitos do estudo foram identificados com denominações de elementos químicos da Tabela Periódica.

Utilizou-se como instrumento de coleta de dados a entrevista não estruturada com uma questão norteadora: como é para o(a) senhor(a) ser alcoolista? As informações foram gravadas em áudio-tape e transcritas na íntegra. A entrevista não estruturada é aquela em que “o informante aborda livremente o tema proposto”(9). Optou-se por utilizar a entrevista aberta, ou não estruturada, já que esse tipo de entrevista permite ao pesquisador obter um quadro mais completo das experiências dos sujeitos da pesquisa do que se fosse fornecido por entrevista estruturada(12).

A coleta das informações obedeceu aos princípios éticos, preconizados pelas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos - Resolução 196/96 do Ministério da Saúde(13), garantindo o sigilo das informações por meio da utilização de um termo de consentimento livre e esclarecido, bem como o respeito pela decisão do sujeito em participar, ou não, do estudo.

A fase de análise das informações tem por objetivo “estabelecer uma compreensão dos dados coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder as questões formuladas e ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando com o contexto cultural da qual faz parte”(9).

Nessa etapa, seguiu-se os seguintes passos(9): a) ordenação dos dados - reuniu-se todos os dados obtidos no trabalho de campo e realizou-se a transcrição das entrevistas gravadas; b) classificação dos dados - procedeu-se à leitura exaustiva e repetida do material obtido para estabelecer questões importantes e construir as categorias empíricas do estudo; c) análise final – relacionou-se os dados aos referenciais teóricos da pesquisa, procurando elucidar a pergunta de investigação.

 

RESULTADOS

Durante a realização das entrevistas, os sujeitos discorreram a respeito de características de uma pessoa alcoolista, salientando dificuldades cotidianas, ocorridas devido ao uso do álcool.

Tema 1 - Aspectos pessoais de um alcoolista e sua relação com o trabalho

Nas falas a seguir, podem se evidenciar aspectos do funcionamento de uma pessoa com transtorno decorrente do uso de substâncias psicoativas

(...) mas nos últimos tempos já comecei trazer para casa, escondido né que a mulher não queria, aí eu trazia umas duas, mas escondia, arrumava uma frestinha e quando ela ia trabalhar tomava né, é verdade (...) (Berkélio).

(...) eu quando estava são (...), trabalhava igual louco agora quando estava bêbado, tinha um tempo que eu levava até dentro da térmica cachaça e dizia que era água (...), daí levava a minha térmica de cachaça e tomava e trabalhava, mas quando eu vinha, o prefeito notava logo, não dizia nada, deixava, ia fazer o quê, me mandava embora, daí isso que eu achava melhor me mandavam embora eu não fazia nada, daí que eu bebia mesmo (Neodímio).

Com os depoimentos dos entrevistados acima mencionados, pode-se perceber que o usuário de bebidas alcoólicas, muitas vezes, precisa mentir para a família, ou até mesmo para os seus empregadores, a respeito da utilização de tais substâncias para continuar fazendo o seu uso. Além do mais, Neodímio demonstra o quanto a bebida influencia negativamente no seu emprego, ele mesmo admite que, com o uso da bebida, o trabalho fica prejudicado. Na fala a seguir, outro sujeito reforça essa idéia.

(...) como é que a gente vai trabalhar desse jeito, como é que eles vão aturar, e o meu rendimento era pouco, eles não podiam falar nada que eu ia né, sou concursado, para a rua não podem colocar, eu ia ao serviço, mas não fazia metade do que fazia (...) (Tório).

Com a fala do Tório, pode-se verificar o baixo rendimento no trabalho quando um indivíduo está alcoolizado. Assim, é possível presumir que, pessoas portadoras de transtornos relacionados com o uso de substâncias psicoativas, provavelmente não conseguem se estabelecer em um emprego, caso esse não seja obtido por meio de concurso público. Inicialmente, com o uso de bebidas alcoólicas, pode ser difícil para os sujeitos levantarem para ir ao trabalho, posteriormente a embriaguez prejudica a capacidade de trabalhar e, em estágio mais avançado do consumo de álcool, há comprometimento físico e mental sendo praticamente impossível esses usuários conseguirem trabalhar(2).

Um sujeito alcoolista, entretanto, ou drogadicto, inserido no mercado formal de trabalho, provavelmente, conseguirá alcançar a abstinência mais facilmente do que aqueles que estão desempregados.

(...) é mais brabo o cara estar sem serviço (...) ah vou tentar, serviço não, primeiro um emprego né (...) (Érbio).

O alcoolismo pode trazer como conseqüência, diversas perdas.

(...) eu perdi tudo o que eu tinha por causa da cachaça, (...) era enfermeiro, datilógrafo, fiz curso de educação familiar, mas tudo foi fora, perdi toda minha mocidade só em coisa que, tudo por causa da cachaça, nem pra Deus não fiz nada que preste por causa da cachaça, (...) agora as coisas estão se ajeitando, depois que eu parei de tomar cachaça as coisas estão se ajeitando, tem uma casinha pra mim, um serviço, no momento que eu sair daqui eu saio pra trabalhar (Lutécio).

Esse entrevistado relata que, após a alta do serviço, almeja começar a trabalhar. Além do mais, o mesmo salienta as diversas perdas que houve em sua vida devido à utilização da cachaça, desde perdas com relação à qualificação profissional até mesmo relacionadas à sua espiritualidade. O depoimento desse mesmo sujeito reforça a idéia de que somente depois de parar de utilizar bebidas alcoólicas é que ficou mais fácil obter um emprego. Estar trabalhando é importante para tais sujeitos, já que ficar sem exercer atividades pode propiciar a procura pelo álcool. Além do mais, o trabalho possui especial importância na vida dos sujeitos, já que “é o trabalho, portanto, mais do que um regulador das relações entre os indivíduos de uma sociedade, uma condição fundamental para a sua estruturação psíquica”(14).

Tema 2 - Relacionamento com a família e amigos

Com respeito à família, alguns participantes do estudo relataram a forma como se dão as relações familiares, especialmente antes do tratamento, período em que estavam fazendo uso de bebidas alcoólicas. Com a fala abaixo, percebe-se o comportamento agressivo deste indivíduo quando alcoolizado.

(...) com a família agora melhorou, que lá antes as coisas estavam bravas que eu bebia e quando a gente bebe, acontecia umas coisas comigo, as vez eu ficava meio violento, (...) mas quando o dia passava, a bebedeira passava tudo né era o álcool que eu bebia demais subia pra cabeça passava da medida e fazia coisa errada, que não adianta, o cara tem que dizer, depois que o cara, no outro dia que o cara enxerga que tem que parar pra ti se analisar e ver que o errado era eu, eu que estava errado (...) (Tório).

Esse entrevistado destaca a sua mudança de comportamento quando da ingestão demasiada de álcool, segundo ele, a bebida o levava a ter atitudes que não eram da sua índole, inclusive com violência e agressividade aos seus familiares. É possível perceber, no seu depoimento, que sua família tinha muito medo quando tais fatos ocorriam, necessitando fugir do lar para proteger-se. Também, com essa fala, se percebe que, quando sóbrio, surgia o arrependimento pelo comportamento adotado, quando estava alcoolizado.

A família do alcoolista também é atingida pelos malefícios do álcool, já que é ela que convive com esse sujeito dependente. O alcoolismo interfere nos papéis dos membros do grupo familiar, fazendo com que necessitem alterar sua dinâmica. A família também pode adotar regras que podem contribuir para o alcoolista continuar com o uso de bebidas, como não falar a respeito do abuso do álcool. Esse tipo de regra “pode ser considerado como uma estratégia usada para proteger seus membros da dor emocional que experimenta e, ao mesmo tempo, para estes membros aceitarem sem resistência este padrão familiar”(15).

Apesar de a família, muitas vezes, sofrer com medo de agressões por parte do alcoolista é ela que, geralmente, o apóia para que prossiga em busca da abstinência e da sua recuperação, como pode se evidenciar nos depoimentos que seguem.

(...) a minha mulher sempre apoiou, sempre, sempre, desde a primeira vez que eu fui pra lá que ela foi junto lá pra Caxias (...) ela sempre me apoiou (...) o pai também começou a se preocupar (...) o velho já estava virando uma coisa e vendo eu beber daquele jeito, cada vez pior, agora me dá força de eu vir pra cá eu vou lá agora, final de semana eu chego lá, vou lá na casa dele (...), renovou o velho, parece que renovou, ele estava preocupado (Tório).

(...) minhas irmãs estão me dando apoio, ah elas estão faceiras né, (...) eu chego lá na casa delas elas me abraçam (...) elas apóiam (...), elas dizem assim, ‘agora vale a pena prosear contigo antes quando tu bebia não dava coragem de prosear contigo, nós chegava chorar de dó de ver você desse jeito e agora nós choramos de alegria né’ (...) eu sei que lá tudo eles estão me apoiando que eu preciso lá deles, eles me ajudam, as minhas irmãs em Novo Hamburgo também o que eu precisar delas para não voltar para a bebida, o que eu precisar elas estão me apoiando (...) (Rutêmio).

Com essas falas pode-se evidenciar o apoio que os familiares dispensam aos sujeitos para que prossigam com o tratamento no CAPS, encorajando-os a perseguirem a busca da abstinência do álcool. A família dos entrevistados parece incentivá-los durante os finais de semana, quando se encontram em casa. Além disso, pode-se perceber a forma carinhosa com que os parentes estimulam os indivíduos, fazendo com que se sintam valorizados e reforçando o vínculo existente entre ambos. Esse estímulo da família, para os sujeitos, é de fundamental importância, já que, no alcoolismo, o prognóstico é reservado quando os familiares não se engajam conjuntamente com o indivíduo na proposta terapêutica(15).

Com o depoimento do Rutêmio, nota-se que a família faz comparações entre o comportamento desse quando alcoolizado e agora que se encontra em tratamento, enfatizando a melhora significativa após o sujeito estar sóbrio. Esse pode ser um fator que contribua para que os indivíduos procurem persistir com o tratamento e não retornem ao uso de bebidas alcoólicas.

Com relação a Tório, esse relata a melhora na aparência de seu pai, o qual, segundo ele, não estava em boas condições de saúde devido à preocupação com a situação vivenciada pelo participante do estudo, em função do seu alcoolismo. Com o depoimento, evidencia-se o sofrimento que pode ser causado na família quando um dos seus membros está acometido pelo alcoolismo. Essa patologia não atinge somente uma pessoa, individualmente, mas sim todo o seu meio familiar, prejudicando as relações entre si(15). Além do mais, o relacionamento familiar é um dos aspectos mais comprometidos em conseqüência do alcoolismo, uma vez que as relações interpessoais podem estar permeadas pelos sentimentos de raiva e culpa, freqüentemente associados ao abandono e negligência por parte do alcoolista(15).

Muitos dos sujeitos, além de contarem com o apoio e dedicação da família para que persistam com o tratamento e mantenham-se em abstinência, também recebem incentivo de amigos que não os convidam para ingerir bebidas alcoólicas. Alguns depoentes também relatam que, em alguns bares, os balconistas não vendem bebidas para eles, pois conhecem as suas histórias pregressas, como mostram as falas.

(...) os caras, muitos caras lá me conhecem porque eu me criei lá daí eles sabem e não me convidam para a bebida (...) eles me dão, até os companheiros me dão apoio que tem companheiro que ajuda o cara a beber mais e esses não, esse ali não (...) (Rutêmio).

...se eu vou no bolicho (bar) eu tenho certeza que o cara não me vende, é meu colega de serviço, já antes de eu vir ele sempre me dizia não beba (...) (Tório).

Em tais manifestações é destacado o não oferecimento de álcool por parte dos amigos, entretanto, sabe-se que a tendência é de que a convivência com os companheiros que bebem acabe por induzir os sujeitos a retornarem ao uso de substâncias psicoativas. Nos depoimentos abaixo é possível deduzir tal constatação.

(...) lá os meus parentes procuram não deixar eu sair muito, por causa dos companheiros, então eu aceito eles, fico final de semana lá (...) (Lutécio).

(...) nós estava lidando, o cara trazia cachaça, eu estava mal sempre, bebia igual, não adiantava nada, acompanhava os outros o cara trazia para aperitivar, nós tomava quatro copão daqueles (...) (Tório).

Existe oferecimento de bebidas alcoólicas aos sujeitos dependentes do álcool até porque a sociedade em geral não entende o alcoolismo como sendo uma doença, mas sim como falta de controle, ou prevalecimento, de tais indivíduos. Além do mais, é muito forte o papel social e cultural que o álcool desempenha(2).

Tema 3 – Uso e atribuições aos medicamentos como adjuvantes no tratamento do alcoolismo

Em relação ao alcoolismo, também aparece neste estudo o uso de medicamentos para impedir a ingesta de álcool. Nas falas que seguem, os entrevistados relataram sobre o uso de medicação específica para o tratamento do alcoolismo, o dissulfiram. Tal medicação é utilizada por grande parte dos usuários do serviço, bloqueando a oxidação do etanol, produzindo sensação desagradável quando do contato com o álcool. Tal medicamento só deve ser utilizado em pacientes cooperativos, que tenham conhecimento quanto ao uso, que estejam recebendo acompanhamento, já que a ingestão de álcool durante a terapia medicamentosa pode provocar vários sintomas físicos e até mesmo levar a óbito(16-17).

(...) esse remédio aí eu tinha em casa, mas é que eu fazia de conta que tomava (...) e não tomava, me davam lá para mim, me davam eu colocava em baixo da língua aí quando viravam as costas eu colocava no bolso, de noite eu bebia e se eu tomasse o remédio aí não podia beber eu sei, já experimentei um dia quase morri, eu tive que ir para o hospital, tiveram que me levar (...) (Tório).

(...) se eu tivesse uma pilha de remédio chegava na hora de tomar nem estava em tomar e se tomasse nem tava se ia morrer ou não porque eu acho que só por Deus que eu me escapei, (...) começava beber né, tomava remédio coisarada e dali dois dias dava o resultado, eu ia parar no hospital (...) (Rutêmio).

Eu fiquei uma vez meio ano eu fiquei sem tomar, sem beber, é que eu estava tomando remédio, aí parei com o remédio e voltei (...) (Érbio).

Aqui cabe salientar a ênfase que os usuários do serviço atribuem ao uso da medicação específica para o tratamento do alcoolismo. A terapia medicamentosa é sim importante para a intervenção terapêutica, mas, isoladamente, ela provavelmente não será a responsável por garantir que os usuários mantenham-se em abstinência. É fundamental que esses sujeitos conciliem a medicação com terapias individuais, em grupo, apoio familiar, dos amigos e muita determinação, para se ter êxito na recuperação. Ter essa rede de apoio disponível ao alcoolista é imprescindível, já que se sabe da dificuldade em manter-se afastado do álcool. Portanto, a medicação, como o dissulfiram, pode ser indicada para o tratamento de alcoolistas e funcionar como suporte, desde que o indivíduo tenha conhecimento dos riscos, caso ingira substâncias contendo álcool e queira usar tal fármaco(2).

Durante as entrevistas, os sujeitos relataram a dificuldade em manter-se afastados do álcool, já que a vontade de consumir bebidas alcóolicas continua presente. Essa necessidade de ingerir álcool ocorre especialmente quando retornam para seus lares, nos finais de semana, como se percebe nas falas.

(...) sonhar eu sonho com bebida (...) tomara que nunca seja preciso eu voltar a beber na vida (Rutêmio).

(...) tem dias que o cara dá vontade de o cara beber, dá, quando o cara chega em casa (...) quando vai em casa final de semana, esses dias eu fui em um bolicho peguei um cigarro e aí eu estava tomando refri e o cara um copinho de cachaça do lado, aí eu corri, fui embora ligeiro, cheguei a tremer as mãos de vontade (Érbio).

Os alcoolistas em recuperação precisam ter a noção de que o álcool é bebida presente em vários espaços sociais e que é muito difícil ficar isolado dessa substância. É necessário que esses indivíduos tenham consciência de que a vontade de beber não irá passar automaticamente após a realização do tratamento. Com relação às situações sociais e ambientais em que há álcool, “o paciente deve se conscientizar gradativamente dessas condições e encontrar, com auxílio do terapeuta, formas adequadas de enfrentamento do desejo de beber”(18).

Tema 4 – Atribuições de causas para o alcoolismo

Durante a realização das entrevistas, dois sujeitos discorreram sobre a existência do alcoolismo entre seus familiares, sendo que ambos relataram ocorrência de óbito de irmãos seus devido ao uso crônico da cachaça, como mostram as falas abaixo.

(...) eu tenho um irmão meu que já morreu por causa da cachaça, meu pai morreu por causa da cachaça (...) (Lutécio).

(...) tem um irmão meu que morreu por causa disso, mais velho que eu, o outro não bebe, faz 12 anos que parou, mas um morreu por motivo da cachaça (...) (Tório).

Em diversas literaturas existentes que abordam a questão do alcoolismo não existe consenso de que essa patologia possa ser desencadeada somente por fatores genéticos. O fator hereditário pode sim contribuir para que um indivíduo venha a fazer uso abusivo de bebidas alcoólicas, porém, é muito mais aceito que uma variedade de fatores de risco, conjuntamente, possam ser determinantes. Esses fatores podem ser a própria genética, o meio ambiente em que vivem, a cultura, fatores psicológicos, dentre outros(19-20). Esses últimos autores, corroborando a discussão, afirmam que “um comportamento como o consumo de álcool não pode ser totalmente entendido com base nos genes ou no meio ambiente isoladamente, mas apenas como um produto da interação entre uma variedade de influências genéticas e ambientais”(2).

Assim, o alcoolismo é doença ocasionada por diversidade de fatores, tanto genéticos, como culturais, ambientais, que ocasiona ao indivíduo dependente diversas modificações no seu estilo de vida, no relacionamento familiar, social, nas condições de trabalho e de saúde especialmente. Já que essa patologia é multifatorial, é necessário que o indivíduo recorra a diversas maneiras para conseguir alcançar a sobriedade ao longo de sua vida. Dentre essas maneiras, é importante destacar o apoio familiar e dos amigos, recorrência a um serviço de saúde que atenda às suas demandas, participação em grupos como dos Alcoólicos Anônimos, utilização de medicação específica, caso necessário, e a força de vontade própria do indivíduo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo pôde-se compreender um pouco sobre o funcionamento, comportamento, características de uma pessoa alcoolista e o quanto o uso das bebidas alcoólicas pode influenciar no cotidiano desses sujeitos. Além disso, também foi possível evidenciar as dificuldades enfrentadas devido à dependência química, dificuldades essas em relação ao trabalho, nas relações sociais, familiares, com os amigos, enfim, as diversas perdas porque passaram em suas vidas.

A partir das informações obtidas, junto aos sujeitos dependentes químicos, os mesmos fizeram menção sobre o uso de medicação específica em seus domicílios. Com as falas, evidenciou-se a pouca resolutividade do tratamento medicamentoso quando o sujeito não está comprometido com o tratamento e quando não tem noção exata dos malefícios do uso concomitante com álcool. Portanto, o uso da medicação requer a aquiescência do indivíduo que vai utilizá-la e a indicação médica adequada para que os objetivos propostos com essa modalidade de tratamento sejam atingidos.

Considera-se de grande importância os depoimentos em que os sujeitos discorreram a respeito da dificuldade de interromper o uso de bebidas alcoólicas por consideráveis períodos de tempo. Tal questão deve ser levada em consideração pela equipe de saúde ao intervir com indivíduos alcoolistas para que possam implementar mecanismos de cuidados–intervenção, que sejam realmente eficazes e que abordem esse aspecto.

Enfim, este estudo proporcionou maior conhecimento acerca da percepção dos sujeitos, alcoolistas, que estavam em tratamento intensivo em um Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas sobre como é, para eles, serem alcoolistas. Pensa-se que os dados obtidos podem ser utilizados pelas equipes de saúde que atendem alcoolistas como maneira de refletirem sobre o trabalho desenvolvido com esse grupo populacional.

 

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Endereço para correspondência
Cíntia Nasi
E-mail: cintinasi@yahoo.com.br
Leila Mariza Hildebrandt
E-mail: leilah@unijui.tche.br

Recebido: 11/10/2006
Aprovado: 14/02/2007

 

 

* Artigo elaborado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Enfermagem da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), Ijuí, Brasil.

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