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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.5 n.2 Rio de Janeiro dez. 2005
RESENHA
Narcisismo e publicidade: uma análise psicossocial dos ideais de consumo na contemporaneidade
Narcissism and advertising: psychossocial analisys of the contemporary conumption idelas
Maria Cláudia Tardin Pinheiro*
Instituto de Psicologia da UERJ
O livro de Maria de Fátima Vieira Severiano apresenta os resultados de seu trabalho de tese de doutoramento, em que analisa como a produção da indústria cultural, em específico a publicidade contemporânea, afeta os atuais processos de individuação humana, ao divulgar seus ideais e instrumentalizar mecanismos psíquicos primários e inconscientes com fins de dominação. Ela relaciona a publicidade (um forte meio de produção simbólica) com o narcisismo, considerado como um traço predominante de personalidade em nossa época. Seus estudos de tese foram realizados no Brasil e na Espanha, no Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação da Universidade de Campinas, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e no Departamento de Psicologia Social da Universidad Complutense de Madrid.
Maria de Fátima realizou uma pesquisa de campo extremamente interessante nos dois países, investigando o nível da produção publicitária (representado por produtores e profissionais da área de publicidade) e o nível do consumo (investigando jovens universitários brasileiros e espanhóis). A autora construiu uma escala para mensurar traços narcisistas de personalidade, aplicou-a nos estudantes e os separou em quatro grupos de discussão: os de baixos escores de narcisismo no Brasil e na Espanha e os de altos escores nos mesmos países. Depois, comparou os posicionamentos dos estudantes desses quatro grupos de discussão com as respostas encontradas nas entrevistas com os publicitários e apresentou conclusões muito importantes à reflexão de como a lógica do mercado se insere na lógica do desejo, através das contínuas estimulações às formas regressivas de obtenção dos ideais de “individualidade”.
O primeiro capítulo desse livro faz uma correlação do conceito do mundo unidimensional de Marcuse, em que a repressão era exercida através de uma falsa liberação da sexualidade, com o que a autora chama da versão da unidimensionalização do ser contemporâneo, em que a repressão é exercida por meio da falsa liberação da individualidade, analisada no consumo de imagens narcisistas nas publicidades.
A respeito da exposição e abertura do ser ao excesso de imagens mediadas, o sociólogo John Thompson analisa em seu livro “A mídia e a modernidade” (1998), como o self de uma pessoa pode se tornar mais disperso e descentrado, podendo perder qualquer unidade e coerência que possa ter. O self vai se transformando à medida que se seduz com novos símbolos, sem conseguir se fixar. Ele está continuamente consumindo fantasias, explorando possibilidades, criando alternativas e projetando a si mesmo.
A discussão que Maria de Fátima nos propõe é que essa metamorfose na subjetividade dos indivíduos não representa um novo homem, conforme a mídia anuncia, mas, uma nova roupagem, ou “pseudo-individualidade”, promovida pelas estratégias mercadológicas e por uma cultura que trata com indiferença a relação com o passado e com projetos futuros. O aprisionamento do homem atual ao presente, sem a possibilidade de recusar o único mundo possível, lhe confere um caráter unidimensional.
No segundo capítulo, ela analisa o fetichismo da mercadoria na era do consumo globalizado, em que o objeto é naturalizado e estetizado (recebendo qualidades subjetivas), tornando-se o último fetiche, e rejeita o espírito antiutópico que naturaliza a atual realidade como a única possível. Severiano assinala alguns fatores sociais que geraram uma instabilidade psíquica nos indivíduos, tais como: a intensa urbanização, o anonimato das grandes metrópoles, a descrença na comunidade, na ética, na religião, nas instituições políticas ou em qualquer outra referência tradicional. Ela aponta que o desejo de participação política do cidadão foi substituído pelo de participação no consumo e surge um novo ethos, voltado para valores hedonistas e lúdicos, tais como de auto-realização e felicidade, que são buscados no ato de consumir. O homem deixa de investir em ideais coletivos e direciona seus interesses para ideais narcísicos.
Ao analisar as fases do modo de produção capitalista, a autora correlaciona as mudanças no homem em função das etapas estratégicas do capitalismo. Para uma produção em massa, falava-se do “homem massificado”, mas, ao personalizar a produção, inaugura-se o “homem individualizado”.
No terceiro capítulo, Severiano analisa a crítica que Adorno realizou à indústria cultural e a relação sujeito-objeto que com esta emergiu, além de apresentar outros posicionamentos de teóricos mais recentes que complementam essa discussão. A fetichização de novos produtos, principalmente através das imagens publicitárias que apresentam o poder que “emana” dos objetos, capazes de realizar todos os sonhos individuais, aponta para a coisificação a que as identidades contemporâneas se remeteram. Assinala que a segmentação do mercado atual e o enaltecimento das identidades “plurais” pelas mídias não representam liberdade e autonomia, mas submissão ao poder do capital. O homem pós-moderno está descrente do mundo e refugia-se em soluções pessoais, em que o consumo se torna um paliativo, diante da angústia generalizada. Os objetos de consumo parecem conferir poder à impotência do homem e, pior ainda, parecem configurar a única forma de alteridade possível.
No quarto capítulo, Severiano faz uma análise muito interessante do papel da publicidade na formação dos ideais do homem contemporâneo e, para tal, utiliza conceitos freudianos da formação do ego e do arcaico modo de funcionamento psíquico das instâncias ideais a que são continuamente remetidas as subjetividades contemporâneas nas mensagens publicitárias.
Na perspectiva freudiana, a primeira imagem de um indivíduo é construída a partir de uma relação intersubjetiva, isto é, a partir do olhar do outro e, ao longo de sua vida, construída também a partir de sua inserção na cultura, onde extrai seus modelos ideais, valores e padrões de conduta. Em seu livro, Severiano assinala como o homem contemporâneo se encontra cada vez mais fragilizado em seu ego, ao retirar de uma cultura narcísica de consumo seus ideais de status, de poder, de beleza, dentre outros. O consumo dá a ilusão de preencher o vazio interior humano, mas, na verdade, aprofunda-o ao aumentar sua impotência mediante seus problemas reais. A ideologia do consumo não provê um projeto identificador capaz de vincular as pessoas de uma comunidade entre si, com um ideal a ser realizado fora do indivíduo. Ela “paparica” seus membros isoladamente e lhes faz promessas de realizações plenas. Deste modo, confunde a realidade com as aspirações megalomaníacas do “ego ideal” de cada um, que apresenta modos de pensar que desconhecem a falta e a diferença. Para a autora, a publicidade estimula modos de pensar primitivos, que remetem ao narcisismo primário, em que a criança não fazia a diferenciação entre seu ego real e seu ego ideal.
A meu ver, o grande problema do incentivo a reviver esse período do narcisismo primário é que ele representa um não investimento em si mesmo, porque a pessoa se vê como os outros a olham, conforme é espelhada pelo outro e seu desejo fica à mercê do desejo do outro. Por ela ainda não fazer a diferenciação entre o “eu” e o “outro”, não há desenvolvimento no ego. A pessoa tem a vivência imaginária de ser tudo de bom ou de ruim. Como, em geral, a publicidade está lhe mostrando a possibilidade de ser tudo de bom, ela propõe uma relação de completude imaginária ao “cuidar” do consumidor e lhe mostrar como atingir sua onipotência. Dentro dessa relação de “cumplicidade materna” (o desejo onipotente da mãe está representado pelo desejo publicitário ao consumidor), o investimento em si é feito pelo outro. Logo, a pessoa se vê conforme o outro a deseja.
Em relação à solicitude da publicidade em realizar os desejos individuais, Jean Baudrillard assinala em seu livro O sistema dos objetos (2002) que a publicidade discursa sobre um objeto de consumo, mas ela própria se torna o objeto consumido, uma vez que representa, no psiquismo humano, uma instância imaginária superior (a mãe, a sociedade global, o mercado) que se adaptará ao consumidor, o protegerá e o gratificará. Ela parece retratar o quanto a sociedade industrial está trabalhando para gratificar os desejos individuais através da oferta de seus produtos.
No quinto e sexto capítulos, Severiano apresenta os resultados de sua pesquisa empírica com os profissionais de publicidade e com os jovens consumidores. No quinto capítulo, ela busca compreender os atuais objetivos publicitários e as estratégias de promoção de seus ideais ao consumidor. Como a autora aborda questões já analisadas nos capítulos anteriores, o texto fica um pouco repetitivo e cansativo ao leitor. Acredito que esse poderia ser um capítulo menor, abordando diretamente os comentários selecionados das entrevistas com os publicitários, acrescentando as análises até então não apresentadas.
No sexto capítulo, Severiano aborda como os receptores se apropriam das mensagens e ideais publicitários, levando em consideração seus traços narcisistas.
A apropriação da lógica publicitária pelos receptores das mensagens apenas se revelou distinta entre os participantes dos grupos de discussão com diferentes traços de narcisismo. Interessante que a pesquisa mostrou que aqueles que possuíam baixos escores na escala de pontuação de narcisismo apresentaram um reconhecimento mais crítico da publicidade. Apresentaram maior resistência à lógica publicitária e apontaram seu caráter negativo, inclusive a produção de irracionalidade nos receptores. Já os grupos de altos escores de narcisismo, viram a publicidade como um objeto autônomo, menos relacionada com o social e com perspectivas ideológicas. Para eles, a publicidade reflete seus sonhos e não conseguiram delimitar uma fronteira nítida entre ficção e realidade. Esse grupo, assim como os publicitários, acreditam que a publicidade deve entreter, mostrar imagens belas e não deve mostrar a realidade cotidiana, especialmente, cenas desagradáveis. Ao mostrar elementos da realidade, deve colori-los, ampliá-los com brilhos.
No último capítulo, Maria de Fátima faz uma análise comparativa entre os grupos pesquisados no nível da produção e no nível do consumo. Concluindo, apresenta uma discussão teórica sobre os possíveis efeitos psicossociais da unidimensionalização do homem numa cultura narcísica, que nos leva a repensar os rumos de nossa sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SEVERIANO, M.F.V. Narcisismo e publicidade: uma análise psicossocial dos ideais do consumo na contemporaneidade. São Paulo: Annablume, 2001.
Endereço para correspondência
E-mail: mctpinheiro@terra.com.br
Recebido em: 02/09/2005
Aceita para publicação em: 05/09/2005
NOTAS
* Doutoranda em Psicologia Social (UERJ), psicóloga, consultora e professora universitária.