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Estudos e Pesquisas em Psicologia
On-line version ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.8 no.3 Rio de Janeiro Dec. 2008
ARTIGOS
Juventude e família: expectativas, ideais e suas repercussões sociais
Youth and family: expectations, ideals and social repercussions
Hebe Signorini Gonçalves I, *; Luciana Gageiro Coutinho II, **
I Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC), Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ - Rio de Janeiro, Brasil
II Pesquisadora-Associada (FAPERJ) do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC), Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ - Rio de Janeiro, Brasil
Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
RESUMO
O artigo analisa dados parciais de pesquisa realizada na periferia do Rio de Janeiro; enfoca as falas de 39 jovens acerca das questões que os afetam e persegue os sentidos atribuídos à família, tanto no que diz respeito à família de convivência quanto no que se refere à família como ideal. Na análise, o texto vale-se de estudos acerca da juventude na sociedade contemporânea, em particular da juventude brasileira, e toma por referência a noção de ideal tal como tratada na teoria psicanalítica. Conclui-se que a idealização da família pelo jovem (a) deve ser entendida tanto a partir de questões individuais quanto sociais; e (b) aponta para a necessidade de intervenções que ofereçam referências extra-familiares capazes de auxiliar os jovens na consecução de seus projetos futuros, delimitando o lugar institucional ocupado pela família.
Palavras-chave: Juventude, Família, Idealização.
ABSTRACT
This article analyzes partial data acquired during research in the suburbs of Rio de Janeiro; it deals with interviews with 39 youngs concerning questions that affect them and pursues the meanings given to family, both with respect to a cohabitation group and the family as an ideal. In the analysis, we take advantage of studies on youth in contemporary society, in particular the Brazilian youth, and utilize the notion of ideal as treated in psychoanalytical theory. We conclude that the idealization of family (a) should be better understood as a matter of both individual and social spheres; and (b) demands interventions capable of providing them with extra-familiar references as a way of helping the young in the consecution of their future projects as well as delimitating the institutional functions of the family.
Keywords: Youth, Family, Idealization.
Juventude e família: Expectativas, ideais e suas repercussões sociais
O presente texto faz uma análise pautada em dados coletados na Comunidade de Bom Retiro, em Duque de Caxias, no curso do Projeto Jovem Total. No bojo do projeto, que envolveu 1.900 jovens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, realizaram-se entrevistas e grupos de reflexão sobre suas vidas, suas comunidades e perspectivas de futuro (CASTRO, CORREA, GONÇALVES, COUTINHO, AZEVEDO, MATTOS, LISBÔA, VIDAL, JUNCKEN, VILLELA, ROCHA e MONTEIRO, 2005). A análise das falas dos jovens tornou evidente a idealização da família, que, contudo, se fez acompanhar de uma crítica. Anunciando ao mesmo tempo que a família é uma referência e um problema, os jovens entrevistados apontavam para algo que é da ordem do não-dito, e que revela questões que demandam atenção e análise mais acurada. As falas dos entrevistados são contrapostas às de outros jovens, que viveram ou vivem em épocas e culturas diversas, na intenção de desvendar-lhes o sentido e o alcance. O texto não pretende responder a essas questões & até mesmo porque respostas dessa ordem nunca são definitivas & mas quer lançar hipóteses que merecem ser levadas em conta, inclusive em eventuais trabalhos futuros.
As falas reproduzidas ao longo do texto dizem respeito aos depoimentos de 39 jovens moradores da Comunidade de Bom Retiro, com idades que variam entre 13 e 22 anos, 28 do sexo feminino e 11 do sexo masculino. Quase todos os entrevistados vivem com sua família de origem, ainda que o formato dessas famílias seja diversificado (famílias monoparentais ou recasadas, com a presença de madrasta ou padrasto). Há cinco exceções: três jovens que vivem com parentes, na ausência dos pais biológicos; e dois jovens com suas próprias famílias constituídas. Os nomes são, evidentemente, fictícios.
A família: seu lugar na perspectiva dos jovens
Estudos recentes (ABRAMO; BRANCO, 2005; CASTRO e col., 2005) têm apontado que a família ocupa lugar proeminente na vida dos jovens. Os Retratos da Juventude Brasileira mostram uma realidade complexa, e por vezes díspar, atravessada pela referência comum à família como pólo de organização da vida do jovem brasileiro.1 A despeito das mudanças na estrutura familiar, constatadas ao longo das últimas décadas, os jovens brasileiros vivem em família: 48% moram com o casal parental, 17% residem em lares uniparentais, 19% já têm filhos e convivem com eles e outros 13% dividem o espaço doméstico com adultos mais velhos (ABRAMO; BRANCO, 2005, p.377). Estão representados aí 97% dos jovens para os quais a convivência intergeracional está presente na vida diária. Trata-se de um dado numérico que confere densidade à designação da família “como instância fundamental para a vida” nos planos afetivo, ético e comportamental (ABRAMO, 2005, p. 60).
Trata-se, assim, de um retrato moldado pela mudança, com tintas de permanência. A importância da família é acompanhada pelas transformações na sua composição, que abarcam o crescimento da família monoparental em gerações sucessivas e os rearranjos familiares promovidos pelo divórcio e pelo recasamento. Mas o alto índice de jovens que coabitam com seus pais, ou que, logo após os 20 anos já constituíram seus próprios núcleos familiares autônomos, sugere que a família detém, ainda hoje, algum grau de influência na formação das futuras gerações e um papel relevante no nucleamento dos laços sociais. Assim, os números não questionam a presença efetiva da família no cotidiano dos jovens brasileiros & eles a reafirmam.
A força do vínculo entre o jovem e sua família de origem não se limita à realidade brasileira. A Europa, berço dos inúmeros estudos que anunciam uma nova juventude, individualista e desenraizada, convive com jovens para os quais a família mantém-se como referência. Pais, Cairns e Pappámikail (2005) entrevistaram quase 2000 jovens europeus e verificaram que grande número deles ainda vivia com a família de origem. Entre os italianos, sobretudo, esse percentual se aproximava dos 88%. Os fortes vínculos de dependência econômica da família, conforme apontado pelos próprios jovens, são tidos como normais. Ao contrário de ansiar pelo afastamento do casal parental, de modo a concretizar a própria autonomia financeira e afetiva, “esses jovens esperam poder prolongar a sua permanência na casa dos pais”(PAIS; CAIRNS; PAPPÁMIKAIL, 2005, p. 124).
Essa convivência de gerações, constatada no Brasil e na Europa, é, além do mais, atravessada pelos mesmos conflitos identificados há décadas. Entre nós, Velho (1999) referiu-se às divergências que eclodem na esfera doméstica, em vista das perspectivas diversas de uma ou outra geração quanto aos projetos de vida que a família traça para as próximas gerações. A distância temporal e geográfica não impediu que Pais Cairns e Pappámikail (2005, p. 125) identificassem no convívio próximo certas fontes de tensão “que parecem resultar de descontinuidades culturais de natureza geracional”. Seria possível, diante dessas análises, supor algum nível de identidade, decorrente da globalização e de caráter transcultural, que subjaz às transformações neste fenômeno que é "ser jovem"?
Evocando os clássicos estudos de Marialice Foracchi, publicados nos anos 60, Augusto (2005) reafirma a atualidade daquela análise. A obra dessa autora toma o estudante como categoria social analisada em três níveis: “as relações interpessoais e as manifestações vinculadas à situação de classe, além da referência aos processos de transformação da sociedade inclusiva” (p. 13). Ao analisar o estudante como produto de seu tempo e de seu meio social, Foracchi expandiu o olhar sobre os fenômenos da juventude e ofereceu as chaves para o presente: as transformações sociais e os fatores de classe como contingências a serem levadas em conta e como eixo em torno do qual seus trabalhos permanecem relevantes na sociedade contemporânea.
Do ponto de vista do presente trabalho, importa destacar aquilo que Foracchi (apud AUGUSTO, 2005) referiu como relações interpessoais. Destacam-se aí as relações familiares, por meio da qual se organizam as relações de manutenção e de geração. Na família, a reciprocidade, os ajustamentos e a tolerância mútua estruturam-se em torno e a partir da função de provedores dos pais. O provimento, ainda que seja visto como "natural" pelo jovem, abre a possibilidade de que os pais exerçam algum grau de controle das expectativas, das perspectivas, e das “manifestações individuais de vontade” (AUGUSTO, 2005, p. 14).
Esta seria uma das fontes da tensão, característica das relações familiares:
Fica claro que a obrigatoriedade de sustento por parte da família sem encargos correlatos é uma crença sem fundamento, já que é exigida uma contrapartida por parte do jovem estudante. Também é evidente que “os elementos permanentes de tensão ou de oposição que caracterizam as relações entre jovens e adultos” (FORACCHI, 1965, p. 21) ficam encobertos pelas idéias de despojamento e gratuidade, ainda que isso não seja obrigatoriamente notado pelos envolvidos (AUGUSTO, 2005, p. 14; grifo nosso).
No contemporâneo, a família de fato ainda é uma importante fonte de provimento para o jovem. Assim como os europeus, os jovens brasileiros vivenciam, cada vez mais, “certos elementos de ‘transição para a vida adulta’ sem realizar a independência da família de origem” (ABRAMO, 2005, p. 47). Tal conclusão destaca a família como a instituição em que os jovens mais confiam, o suporte vital para seu amadurecimento; ela é a responsável pelo apoio e pela orientação de que necessitam para enfrentar os problemas que a vida lhes apresenta.
Vejamos, no entanto, a natureza desses problemas. Cerca de 55% dos jovens citam segurança e violência como os problemas que mais os preocupam. Esse dado é generalizado: não há diferença segundo idade nem sexo, mas aumenta com o grau de escolarização do jovem. São números que se relacionam à informação de que a convivência com os riscos está entre as piores coisas de ser jovem (ABRAMO, 2005) e à importância que os jovens atribuem ao fim da violência (SINGER, 2005).
Esse quadro coincide com os dados coletados pelo Projeto Jovem Total nas entrevistas com jovens habitantes de várias comunidades do Rio de Janeiro. Ao ser solicitado a enumerar os quatro principais problemas da cidade, um jovem responde: “Roubos; assassinatos; muita violência; e homicídios” (MANOEL, 13 anos).
À mesma pergunta, outro jovem cita a violência como o principal problema, e acrescenta: “Não sabe outros problemas, pois a violência está relacionada com tudo e é o principal problema” (PEDRO, 18 anos).
Já apontamos certos fatores que permitem a aproximação entre as juventudes de Brasil e da Europa. Mas a violência, apontada no Brasil como fator central, constitui-se um elemento de distinção. Ela parece ser um dos fatores contingentes que introduzem diferenciação, produzem matizes, forjam uma subjetividade que, se é de certo modo similar, comporta a diferença. Entre os brasileiros, a violência aparece, além disso, estreitamente vinculada às dificuldades próprias da inserção no mercado de trabalho: “Para falta de emprego às vezes a pessoa corre atrás ou procura o caminho mais fácil que às vezes é a droga, ou o trabalho ilegal” (FABIANA, 21 anos).
O trabalho é o veículo por intermédio do qual o jovem conquista autonomia financeira e, por extensão, independência pessoal, marcos do ingresso na vida adulta. O ingresso no mercado de trabalho expressa, por isso, uma preocupação que se estende para além do presente, que permite projetar expectativas de futuro. Os dados coletados na Europa desenham um jovem otimista com relação ao futuro, com boas perspectivas habitacionais e profissionais. Levando em conta sua qualificação acadêmica diversificada, eles consideram que não enfrentarão dificuldade de inserção no mercado de trabalho após a conclusão dos estudos (PAIS; CAIRNS; PAPPÁMIKAIL, 2005). Como salientam os autores, essa visão otimista de futuro parece forjada num meio em que a preocupação com a inserção dos grupos jovens no mercado de trabalho faz com que o poder público invista em programas que têm permitido manter taxas de desemprego baixas entre os segmentos mais jovens da população2.
Não é o que ocorre no Brasil, onde o desemprego é apontado pelos jovens como o principal problema do país e uma de suas principais preocupações. De fato, os dados mostram que, embora 36% dos jovens brasileiros estejam trabalhando, 60% destes estão no mercado informal (ABRAMO; BRANCO, 2005). São dados que se assemelham às respostas oferecidas pelos jovens entrevistados no Bairro de Bom Retiro, em Caxias, pelo Projeto Jovem Total. Para eles, os jovens “não têm a qualificação pedida nos empregos (cursos, experiência, nível de escolaridade)” e, mesmo quando conseguem um trabalho, este exige “carga horária pesada e paga muito pouco” (ANA, 20 anos).
Perguntados sobre a ajuda que recebem para enfrentar seus problemas, os jovens denunciam ainda que “não costumam receber ajuda de instituições” (ANTONIO, 16 anos). Eles contam com a família, com os amigos e consigo próprios. O apoio dos amigos parece constituir-se um traço característico da juventude. A busca do igual, a identidade nas questões, a proximidade dos conflitos intergeracionais, fazem com que, ao longo do tempo e nas diversas culturas, o jovem busque fora de casa o espaço para firmar a diferenciação que instrumente a autonomia em relação à geração anterior.
A convivência dos grupos de jovens já havia sido apontada por Foracchi no Brasil dos anos 50 (apud AUGUSTO, 2005), e é citada por Pais e col. (2005) entre os europeus, em anos mais recentes. Segundo este último estudo, os valores tradicionais representados na família coexistem com os apelos hedonistas dos amigos. No Brasil, ao contrário, a procura dos amigos se traduz na busca daqueles que compartilham os mesmos valores associados à família. Os jovens de Bom Retiro definem os amigos como “os irmãos na hora da aflição”(KATIA, 21 anos),“quase irmãos”(RITA, 15 anos),“tipo uma família”(FABIANA, 16 anos).Outros apontam seus melhores amigos como a própria mãe (ANA, 20 anos; SERGIO, 14 anos; SANDRA, 17 anos). Configura-se, assim, uma continuidade na matriz de valores, e a referência à família como pólo de organização de relações exteriores a ela.
Os jovens brasileiros, entrevistados em Bom Retiro, conectam essa escolha & orientada pelos valores familiares & à questão da violência. Dados os riscos impostos pela droga, ampliados pela dificuldade no mercado de trabalho e pela relativa facilidade do ingresso no mundo da droga, que pode prover o ganho fácil quando o trabalho não aparece, é preciso saber escolher os amigos, eleger dentre todos aqueles que compartilham valores, já que um falso amigo pode induzir aos caminhos errados. Assim, a violência, a falta de amparo institucional e as dificuldades de inserção no mercado de trabalho terminam por produzir um reforço dos valores familiares.
A família é tudo. A frase, repetida por vários dos entrevistados, parece sintetizar uma centralidade que é típica do brasileiro. As linhas de contraposição de valores, identificadas na sociedade européia, se esvaem entre os brasileiros. Tudo conduz a um refluxo sobre a família, tornando-a referência não só primeira, mas fonte quase isolada de amparo. É aqui que a contingência faz com que refluam sobre a família as expectativas, reforçando os elos e a dependência. Como essas questões ecoam sobre a subjetividade?
A família no lugar de ideal
Diferentemente do que se constata na realidade européia, os jovens brasileiros revelam que, para além da situação de dependência material, a família tem para eles um lugar central enquanto referência no que diz respeito ao apoio, no caso de algum problema, a seus projetos futuros, aos valores, etc. Nesse sentido, ao entrar no debate relativo à desinstitucionalização da juventude no contemporâneo, no caso do Brasil, não podemos deixar de notar algo de singular, quando nos deparamos com as aspirações dos jovens pobres, tanto pelos laços familiares quanto pela escolaridade. Trata-se de uma questão complexa, como tantas outras próprias à sociedade brasileira, onde o moderno e o tradicional coexistem. Como observa Sposito (2005), no Brasil, mesmo ao falar de juventude contemporânea, somos obrigados a falar no que há de mais tradicional da modernidade & família, trabalho, escola, como de fato indicam vários dos estudiosos sobre o tema (ABRAMO; BRANCO, 2005; CASTRO e col., 2005, GONÇALVES, 2005).
Recorrendo ao conceito de ideal na psicanálise, podemos supor que a família ocupa o lugar de um ideal privilegiado para os nossos jovens, o que, de certa forma, restringe a construção de ideais próprios da nova geração para além das referências familiares. Isto pode ser explicado em termos de uma restrição de expectativas entre os jovens, como notou Mateus (2003) em seu estudo sobre os ideais de um grupo de jovens pobres em São Paulo. Segundo ele, estes jovens fazem um esforço pragmático no sentido de construir seus ideais a partir das referências que dispõem no âmbito social e o que prevalece, muitas vezes, é o ceticismo em relação às possibilidades de mudança do universo que os cerca. Assim, talvez possamos supor que aqui o conflito entre as gerações é diverso daquele que caracteriza as famílias européias, já que os jovens brasileiros se voltam para a família como importante fonte de trocas afetivas e simbólicas, buscando uma estabilidade diante de um quadro de ausência de ação pública e exercício de direitos.
A questão dos ideais é fundamental para o jovem. São eles que irão fornecer os meios necessários para elaborar a passagem da família ao mundo social mais amplo. O ideal do eu é justamente esse conceito de fronteira entre o individual e o social, que faz com que cada sujeito possa se constituir e se reconhecer numa dada sociedade e numa dada cultura. Como já dizia Freud (1974[1914a], p. 119), “além do seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação”.
Entendemos que, ao tratar do tema do “reencontro do objeto” (FREUD, [1905] 1972) e do “afastamento do primeiro ideal” (FREUD, [1914 b] 1974) na puberdade Freud aponta o fato de que o ideal do eu é posto à prova neste período, diante do declínio das idealizações parentais, devendo assumir novas formas, em função das novas identificações que então se dão a partir do encontro de novos objetos, idéias ou projetos que ocupem para os jovens o lugar de ideais. Este trabalho possibilitará a construção de novas vias de escoamento para a pulsão, diferentes das que foram até então trilhadas durante a infância. Entretanto, como já mostramos anteriormente (COUTINHO, 2003), tal passagem da idealização3 à construção de ideais mais impessoais e abstraídos da relação direta a um outro não se dá repentinamente. Sabemos que o recurso às idealizações, mesmo fora do universo familiar, é freqüente entre os jovens, recurso este que pode ser notado em alguns estados de apaixonamento, na eleição de ídolos ou grupos de amigos exclusivos, etc. (MARCELLI, 1991). Sabemos também o quanto as idealizações carregam em si a marca da decepção causada pelo confronto com o objeto real, sempre tão aquém do ideal.
O que surpreende entre os jovens de Bom Retiro é a persistência destas idealizações na esfera da família. Isto pode ser notado em suas falas, tanto no que diz respeito à família como uma instituição que lhes garante apoio e tranqüilidade, quanto na eleição de alguns de seus membros, sobretudo a mãe, como figuras de admiração, como já trabalhamos anteriormente (COUTINHO et al., 2005). A referência familiar se destaca de forma quase absoluta quando perguntamos aos jovens sobre a quem recorrem quando precisam de ajuda para resolver algum problema. A família aparece como a fonte principal de apoio e, na maioria das vezes, as instituições públicas só são citadas quando a família não pode ajudar, ou então são desqualificadas em relação a ela: “A melhor ajuda é a da família. Depois as instituições” (RENATA, 14 anos).
De modo semelhante, quando, durante as entrevistas, pedimos que os jovens associassem idéias em torno da palavra família, surgem palavras fortes e totalizantes, tais como: tudo (resposta mais recorrente), a base de tudo, paz, harmonia, união, essencial. Entre os entrevistados de Bom Retiro, só uma jovem parece fazer alguma ressalva quando associa livremente a partir da palavra família, dizendo: “Família é tudo, mas às vezes não é” (LUCIMARA, 20 anos).
Quando perguntados sobre os projetos futuros, a maioria diz: quero estar casado(a) e com filhos. Mas há também alguns que afirmam justamente não querer casar, para não ter problemas, como tiveram com suas famílias de origem. Assim, como mostram sutilmente algumas falas, a idealização da família por nossos jovens é acompanhada de experiências frustrantes advindas do universo familiar. A família, além de ser fonte de apoio, é também identificada como fonte privilegiada de problemas na vida deles:
“(Conto com) a família, que às vezes não apóia” (LIGIA, 18 anos).
“Parente não ajuda muito, ou ajuda e joga na cara. Vizinho ajuda mais”. (LUCIMARA, 20 anos).
A família aparece também de forma recorrente quando perguntamos diretamente a eles alguns problemas que os jovens têm que enfrentar:
“Problemas domésticos, pais que não conversam ou que brigam muito” (SANDRA, 17 anos).
“Querer ser independente e não ser; problemas com os pais que bebem e maltratam, obrigação de trabalho para ajudar em casa ou obrigação de estudar e não fazer mais nada” (ADRIANA, 17 anos).
Em seu estudo sobre as relações entre juventude e escola no Brasil, Sposito (2005) também identifica que, ao lado da escola, a família é uma importante referência para os jovens brasileiros, mas recusa a hipótese relativa a uma idealização da família, já que eles descrevem conflitos em relação a ela e não omitem seus aspectos negativos em seu discurso. Porém, a autora não explora esse tópico e adverte que a questão da família mereceria ser abordada de forma mais exaustiva.
De modo diferente, pensamos que estamos sim diante de uma idealização da família no caso dos jovens de Bom Retiro. Entretanto, estas não podem ter um destino diferente de outras idealizações típicas deste momento da vida, montadas sobre figuras externas ao universo familiar, cujo confronto com o real é decepcionante. Assim, apesar de a família permanecer como forte referência, ela não se sustenta para os jovens neste lugar idealizado em que a colocam; pelo contrário, aparece também como fonte de problemas e preocupações no discurso deles. O que fica evidenciado nesta oscilação idealização x decepção é a situação de dependência da família como referência exclusiva na vida destes jovens. Seria este um traço característico da juventude pobre brasileira, diante da ausência de perspectivas e de sustentação para seus projetos no espaço público?
Da família ideal à família real: um impasse
Seguindo a trilha freudiana, o declínio dos ideais ligados ao universo familiar pode ter um efeito transformador na vida do jovem, a partir de um novo encontro com o social e com a cultura (FREUD, [1914 b] 1974). Trata-se de um distanciamento dos vínculos familiares, para que o jovem faça seu caminho a partir daquilo que deles foi herdado, que agora se atualiza na construção de novos ideais. Entretanto, hoje se discutem os entraves nesta “passagem”, tendo em vista a pulverização e o enfraquecimento dos ideais da cultura, que dão consistência à herança simbólica a ser transmitida, tornando-a falha para todos: pais, mães e filhos.
Na leitura de Lébrun (2004), estamos diante de um “simbólico virtual”, que se faz notar desde o interior da família, onde o lugar de autoridade dos pais é abalado, mas que também se faz presente em inúmeras outras esferas da sociedade, tais como as instituições de educação, o Estado, e até mesmo o judiciário, que se torna inflado exatamente numa tentativa de suprir as falências das outras instâncias. Assim, segundo Lébrun, o discurso social não prescreve para o jovem que ele deve crescer, renunciar às satisfações da infância em nome de outros ganhos, ou ainda, diríamos nós, não lhes aponta outro caminho senão o de permanecer na posição infantil. Posição de submetimento e de crença na onipotência daquele ao qual se submete, que é também a posição daquele que acredita na encarnação do ideal, ficando à mercê dos objetos que venham a ocupar este lugar através da idealização.
Desta forma, é como se o sujeito abdicasse de sua necessidade de assumir a insatisfação própria a sua condição, que o faz erguer para si um ideal desvinculado de um investimento necessário e atual em um objeto. Ideal este que aponte para a possibilidade de gozo em outro tempo e/ou lugar. De modo contrário, há um convite à não-realização do simbólico, que remete a uma permanência no registro do amor materno incondicional e ameaça a possibilidade dos laços sociais:
Podemos pensar que o amor materno é, em sua estrutura, sem condição, a saber, que é da natureza desse amor amar a criança como ela é, sem esperar dela outra coisa que ser, mas que, em troca, o amor paterno só pode ser dispensado com a condição de que a criança consinta em sair do campo materno para ir tomar seu lugar de homem ou de mulher no social [...] (LÉBRUN, 2004, p. 45).
Com isso, desenha-se a hipótese segundo a qual o submetimento e os entraves na passagem das idealizações à construção dos ideais na juventude não se restringem ao caso brasileiro, tampouco aos jovens de Bom Retiro. O que chama a atenção nos jovens cujo discurso é aqui analisado é a prevalência das idealizações atreladas especifica e diretamente à esfera familiar. Desses discursos, emerge uma tensão entre a pulverização e as restrições às quais eles se submetem, em vista das precárias condições e oportunidades sociais que lhes são oferecidas. Isso possivelmente acentua sua posição de dependência em relação à família, bem como a idealização da mesma como uma referência absoluta centrada no modelo materno, contingências que limitam a consecução de seus projetos, dada a ausência quase absoluta de outras opções disponibilizadas pelo social.
Talvez a situação dos jovens de Bom Retiro possa ser melhor compreendida a partir da história e da cultura brasileiras, que forjam formas peculiares de encaminhar as questões próprias da vida coletiva. Conforme observa Figueiredo (2000), há no Brasil um projeto coletivo baseado fundamentalmente na crença numa generosidade desmedida aliada à necessidade de proteção absoluta que remetem às figuras infantis da mãe e do pai, com destaque para a figura materna. Como ele nota, tais marcas se fazem presentes na própria forma de exaltar o Brasil pela “generosidade” ilimitada da natureza da “terra-mãe gentil”, na qual presume-se que “em se plantando tudo dá”, tal como sustenta a crença na onipotência materna. Contudo, em sua análise, Figueiredo chama a atenção para o fato de que
Na ausência da contenção, o amor generoso da mãe pode se converter em um dos principais desagregadores da vida social e da vida mental dos indivíduos. A presença do pai na cultura, como destinatário do apelo dos filhos, é o que se traduz como força dos ideais, valores, normas e leis, indispensáveis para a constituição saudável do psiquismo, e esta forma de presença & uma presença reservada & [...] está sujeita a uma série de vicissitudes (FIGUEIREDO, 2000, p. 150).
Figueiredo (2000) atribui tais marcas psíquicas a razões históricas e culturais que favorecem, entre os brasileiros, um movimento regressivo em direção a figuras infantis onipotentes, o que, a seu ver, complica enormemente o exercício da democracia em nosso país. Assim, no Brasil, a maneira pela qual os líderes e os projetos políticos são eleitos pela população pode ser articulada a uma condição cultural de permanência no discurso materno e na posição infantil de dependência. Desse modo, o sentido de coletividade, de renúncia individual e do convívio com as diferenças fica prejudicado.
Como pensar as repercussões destas marcas culturais nos jovens com os quais estamos trabalhando? Em primeiro lugar, isto nos conduz a evitar a redução da análise ao plano intra-familiar. Inversamente, somos levados a supor o quanto as questões e impasses que se apresentam aos jovens em sua relação familiar estão fortemente marcados pelo coletivo e pelo social. Fala-se hoje, e isso não se restringe ao caso brasileiro, em um deslizamento da função do pai na direção do ideal da mãe (LÉBRUN, 2004), cuja imagem encontra no social maior respaldo e legitimidade. O ideal materno presente no imaginário social de nossos tempos torna-se paradigmático das relações familiares e sociais, afetando a todos - pais, mães e filhos -, em diferentes classes sociais. Tal ideal ganha, porém, contornos e dimensões particulares no caso brasileiro, diante da fragilidade das referências públicas que favoreçam o exercício da função paterna e a saída de uma posição infantil de submetimento a figuras onipotentes (FIGUEIREDO, 2000).
A emergência do ideal da mãe não deve ser atribuída à presença ou não do pai real na família, embora, como ressalta Lébrun (2004), não possamos deixar de admitir que as condições sociais possam dificultar a ocupação deste lugar. Desta forma, a idéia do ideal da mãe nos interessa não somente pelo fato de ir ao encontro do que observamos nas novas composições familiares, constituídas muitas vezes só pela mãe e filhos, mas por nos remeter a algo que aparece no discurso dos jovens, referenciados a uma família idealizada, sustentada principalmente pela figura materna. Parece-nos que esta família, que eles qualificam como “tudo” na vida, de modo semelhante ao que fazem ao falar da mãe, remete de fato a um modelo materno de cuidado e amor incondicional, modelo este que favorece uma posição de dependência, ancorada em um modelo dual e especular de relação, atrelado à idealização, dificultando o distanciamento necessário ao crescimento.
Aproximando-se do modelo materno descrito por Lébrun (2004) e Figueiredo (2000), a família idealizada presente no discurso dos jovens, que é “tudo” para eles, parece-nos muito distante da estrutura triangular e dissimétrica, da qual a psicanálise fez paradigma, onde frustrações e renúncias se impõem em nome de uma promessa de satisfação futura em outro espaço. Parece-nos que, quando o social não aponta para a possibilidade de encontrar tais caminhos para o desejo fora do universo infantil e materno, a situação do jovem e de toda a família se complica. Não há lugar para os conflitos, as diferenças de posição, nem para a emergência de referências alteritárias, o que se faz notar tanto no interior da esfera familiar quanto na cena social externa a ela. Uma das conseqüências disso, especificamente no plano familiar, é que os confrontos e as diferenças de posição tendem a ser cada vez mais abolidos.
A prevalência deste discurso totalizante no social está em consonância também com as contradições que identificamos na fala dos jovens sobre a família, ao mesmo tempo idealizada e apontada como fonte de problemas, quando não corresponde ao que esperam dela. Nesse sentido, os jovens entrevistados vivem intensamente o conflito entre o ideal e o real: a família real, atravessada pelos limites e pela “falta de diálogo”, e pelas tensões a que se refere Abramo (2005), contrapõe-se à ideal, que é “tudo”, sinônimo de ”união” e “paz” para eles. Para os entrevistados, os obstáculos a seus projetos - o convite ao consumo de drogas que abre portas à violência; o exercício da sexualidade, que carrega o risco da gravidez precoce; e as limitações de instituições sociais, como a escola e o mercado de trabalho, empecilhos à realização profissional & só podem ser superados com o suporte familiar. Mas se a família almejada é tão idealizada, como lidar com as agruras e inconsistências da família real? Assim, a família passa de ideal a problema, ou melhor, talvez a própria idealização da família esteja na origem do conflito com a família real.
Nos jovens de Bom Retiro, entendemos que este conflito se agrava pela situação de carência econômica e assistencial em que se encontram, na medida em que a família, sobrecarregada em suas funções de transmissão e sustentação, nem por isso está habilitada a suportar os conflitos e tensões que lhe são endereçados. Trata-se de conflitos originados do social, que fogem à sua esfera de influência e a submetem igualmente. Assim, mais uma vez podemos constatar que a situação do jovem brasileiro agrava o desamparo necessário e inevitável com o qual a juventude se depara hoje no momento de seu afastamento das referências familiares, na medida em que ele se vê não somente desorientado, mas sobretudo desprovido do suporte mínimo & material e simbólico - necessário à construção de novas referências (ROSA, 2002).
Diante dessas restrições, sem meios para relativizar a onipresença da família, o afastamento do núcleo familiar tende a ser brusco, atropelando projetos como forma de demarcar a passagem para a vida adulta. Portanto, parece-nos que, na ausência de redes de mediação simbólica fora da família, as elaborações necessárias à apropriação de ideais e à ocupação de uma nova posição subjetiva e social pelo jovem ficam comprometidas. Por outro lado, a família, que fica no lugar de referência exclusiva e total para eles, tampouco está menos desamparada e sem perspectivas. Não é à toa que a maioria das famílias brasileiras acaba apontando para o jovem o ideal de “ter uma família” como uma das poucas referências e indicadores para a definição do lugar do adulto. Mesmo em casos extremos, como diante de uma gravidez precoce, é bastante comum que a própria família de origem da jovem espere que ela possa “tomar jeito” após ter o filho (KEHL, 2004). Assim, a prevalência do ideal de família, aliado ao ideal da mãe, talvez explique em parte porque a grande maioria das adolescentes pobres, diante da constatação de uma gravidez, não hesite em dizer que quer ter o filho.
Verificamos, então, que a idealização da família, presente no discurso dos jovens entrevistados, ecoa algo que tanto é do social quanto da própria instituição familiar. Isto nos leva a reafirmar a necessidade e a importância de algum tipo de trabalho com a família, paralelo aos atendimentos dirigidos aos jovens. Desamparada diante da tarefa de educar e sustentar os filhos, mas idealizada como pólo exclusivo de investimento, a própria família talvez tenda a reforçar a idealização que o jovem faz dela, restringindo as relações de alteridade e o reconhecimento das diferenças, bases para a solidariedade e para relações igualitárias e (neste sentido) mais democráticas. Assim, como num círculo vicioso, a família idealizada idealiza a si mesma, mascarando os seus conflitos internos e o seu próprio desamparo, o que a leva, muitas vezes, a depositar no jovem os problemas que insiste em eludir. Este é o caso comum de muitos jovens toxicômanos, em relação aos quais a família (e a sociedade) freqüentemente se exime da própria responsabilidade. Entretanto, enfrentar o problema da gravidez precoce, das drogas, da violência ou dos grandes dilemas juvenis em torno da família, não se resume a tratar esses adolescentes e seu grupo familiar, mas sim em promover possibilidades de mudanças sociais, que facilitem para eles a tarefa de crescer e se engajar socialmente.
Enfim, supomos que os jovens de Bom Retiro espelham em seus discursos a enorme dificuldade que se coloca na construção e sustentação de um espaço público e de um projeto de vida coletiva no Brasil. A construção da vida coletiva demanda a ponderação do interesse individual, no intuito de abrir caminho para referências extra-familiares, socialmente compartilhadas e legitimamente constituídas. Contrariamente, se a família permanecer como o único ideal na construção dos projetos de vida dos jovens brasileiros, e tender por isso a ser super-estimada e idealizada, o jovem e a sociedade ver-se-ão privados das suas possibilidades de crescimento e renovação.
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Endereço para correspondência
Hebe Signorini Gonçalves
E-mail: hebe@globo.com
Luciana Gageiro Coutinho
E-mail: lugageiro@uol.com.br
Recebido em: 02/08/2007
Aceito para publicação em: 14/01/2008
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra T. Prestrelo
Notas
* Psicóloga, doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.
** Psicóloga, doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Puc-Rio.
1 A pesquisa Retratos da Juventude Brasileira entrevistou 3.501 jovens de ambos os sexos em todo o território nacional; o desenho amostral representava o universo de 34,1 milhões de jovens residentes no Brasil. O questionário totalizava 160 questões abarcando ampla gama de temas: ser jovem, escola, trabalho, valores e referências, sexualidade, drogas, cultura e lazer, mídia, violência, política e participação, direitos.
2 Os dados foram coletados antes dos acontecimentos recentes na França, em que & conforme ampla cobertura na imprensa & os jovens se rebelaram contra a proposta de flexibilização da legislação trabalhista. A despeito das enormes divergências, que eclodem em conflitos, a análise não está invalidada.
3 Termo utilizado por Freud. Segundo Freud, podemos definir a idealização como um mecanismo através do qual o objeto, hiper-investido libidinalmente, é colocado no lugar do ideal do eu. Assim, na idealização, o sujeito empresta ao objeto determinados méritos que gostaria de alcançar em seu próprio eu. Há uma tendência à supervalorização do objeto amado e à diminuição da capacidade de julgamento crítico em relação ao mesmo, de modo que todas as suas características são igualmente admiradas e aproximadas da perfeição (Freud (1974[1914a], 1976[1921]).