Dentre tantas formas de preconceito existentes, uma das que tem tido menor visibilidade social e acadêmica é o preconceito contra idosos ou ageísmo (Silva et al., 2022). Traduzido do inglês ageism, o termo ageísmo foi cunhado em 1969 pelo psicólogo americano Robert Butler (Ayalon & Tesch-Römer, 2018). Butler concluiu a ocorrência do ageísmo após avaliar as reações negativas de uma comunidade, em razão da construção de um imóvel para pessoas idosas nas proximidades. A insatisfação pela presença dos vizinhos se fundamentou apenas por serem pessoas idosas. A crença compartilhada que a aproximação com idosos poderia desvalorizar os imóveis locais evidenciou a discriminação contra esse grupo etário. Embora o termo ageísmo remeta ao preconceito destinado aos diferentes grupos etários, essa forma de preconceito é mais frequente em idosos (Chasteen et al., 2020).
Para compreender o preconceito, faz-se necessário reconhecer alguns processos cognitivos que estão na base desse fenômeno. Os atributos associados a uma determinada categoria social, muitas vezes, não correspondem à realidade; entretanto, são armazenados na memória de longo prazo e ativados independentemente da vontade individual, cada vez que algum membro pertencente a essa categoria se apresente. Sendo assim, o processo de categorização social e formação de estereótipos faz parte da composição do preconceito (Aronson et al., 2015). Desse modo, estereótipos negativos compartilhados socialmente acerca da velhice podem impactar severamente a autopercepção dos idosos (Couto et al., 2009). Estereótipos são crenças exageradas associadas a uma determinada categoria social que são compartilhadas socialmente; referem-se a traços e atributos característicos de grupos sociais que tendem a ser generalizados aos membros pertencentes a esse grupo; apresentam-se como consequências do processo de categorização social; e servem para racionalizar e justificar os pensamentos, sentimentos e comportamentos destinados a grupos sociais (Allport, 1954).
O fenômeno do ageísmo é considerado um fenômeno multidimensional e complexo (Ayalon & Tesch-Römer, 2018). Entretanto, é uma temática invisibilizada nas discussões sobre discriminação (Ayalon et al., 2019; Silva et al., 2022). A discriminação engloba qualquer ação que manifeste um tratamento injusto, hostil e ilegítimo a outra pessoa, em razão da sua pertença a outro grupo social. A este respeito, existe uma área de pesquisa que avalia a percepção de discriminação para membros de grupos minoritários. A discriminação percebida pode ser compreendida a partir da percepção que as pessoas têm de serem abordadas injustamente (Yao et al., 2018) em função das características fenotípicas, como por exemplo, a idade (World Health Organization, 2022). A discriminação percebida por idade ocorre de modo diferente a depender das condições sociais, tendo como exemplos idade, gênero e raça (Rocha et al., 2022).
A discriminação é um fenômeno que tem tido mais atenção e sido mais analisado na perspectiva de quem discrimina do que na perspectiva do próprio grupo alvo (Couto et al, 2009; Braga et al., 2019; Silva et al., 2022). Assim, para avaliar o fenômeno da discriminação, faz-se necessário compreender como o grupo-alvo percebe essa discriminação. No Brasil, o fenômeno do ageísmo na perspectiva do grupo-alvo vem sendo avaliado a partir da utilização da escala Ageism Survey elaborada por Palmore (2001).
Estudos desenvolvidos em diferentes regiões do Brasil apresentaram a prevalência da discriminação contra os idosos nas relações sociais e no acesso à saúde (Braga et al., 2019; Couto et al., 2009; Fernandes-Eloi et al., 2020; Rozendo, 2016). Rozendo (2016) avaliou o preconceito e a discriminação contra idosos na cidade de Rondonópolis. Os resultados apontaram que os tipos mais frequentes de discriminação contra idosos se manifestam por meio de piadas (42%), pela atribuição de que seriam velhos demais para realizar atividades (38%) e por serem ignorados (31%) em função da idade. Fernandes-Eloi et al. (2020) avaliaram o nível de estresse atribuído pelos participantes aos diferentes tipos de discriminação experienciadas. Participaram 217 idosos que integravam um grupo de um Centro de Referência de Assistência Social (Cras) em Fortaleza/CE. Os resultados demonstraram episódios de discriminação vivenciados pelos idosos, especialmente ao associar dor à idade (61,8%), ser demasiado velho para fazer algo (57,6%) e paternalismo (52,5%).
As pesquisas brasileiras sobre a discriminação contra idosos na perspectiva do próprio grupo minoritário apresentam limitações no modo como o fenômeno está sendo avaliado (Couto et al, 2009; Fernandes-Eloi et al., 2020). Alguns estudos avaliam as formas de discriminação contra os idosos de maneira quantitativa por meio da utilização da escala Ageism Survey (Couto et al., 2009; Fernandes-Eloi et al., 2020; Rozendo, 2016). Esses estudos destacam que a escala utilizada no Brasil, construída a partir do contexto norte-americano, não explora as diversas possiblidades de discriminação contra idosos a partir das especificidades do contexto brasileiro (Couto et al., 2009; Fernandes-Eloi et al., 2020; Rozendo, 2016). Ademais, o delineamento metodológico predominantemente quantitativo pode limitar as múltiplas possibilidades de expressão da discriminação etária a partir das especificidades de cada contexto. Desse modo, ressalta-se a necessidade de estudos que investiguem o fenômeno do preconceito e discriminação contra idosos e, principalmente, suas implicações nos membros do grupo alvo. Destarte, elegeu-se como objetivo investigar como as pessoas idosas percebem e experienciam a discriminação na velhice.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 27 idosos, com idades variando entre 63 a 88 anos (M = 72,55; DP = 6,24), sendo 16 mulheres (59,26%) e 11 homens, residentes no Estado do Piauí. Quanto ao estado civil, teve-se a seguinte distribuição: casados (f = 09; 33,34%), viúvos (f = 07; 25,93%), divorciados (f = 06; 22,22%) e solteiros (f = 05; 18,51%). As ocupações mencionadas foram: dona de casa (f = 04; 14,81%), professor (f = 04; 14,81%), diarista (f = 03; 11,11%), pedreiro (f = 03; 11,11%), cuidador (f = 02; 7,41%), trabalhador rural (f = 02; 7,41%), vendedor (f = 02; 7,41%), comerciante (f = 01; 3,70%), promotor de justiça (f = 01; 3,70%), engenheiro agrônomo (f = 01; 3,70%), ferreiro (f = 01; 3,70%), mecânico (f = 01; 3,70%), técnico em administração (f = 01; 3,70%) e técnico em contabilidade (f = 01; 3,70%). Todos os idosos ressaltaram que no presente momento não exerciam mais tais ocupações, seja por aposentaria ou abandono da ocupação. No que se refere à religião, a maior parte dos entrevistados se declarou católica (f = 22; 81,48%); além destes, outros idosos se declararam espíritas (f = 03; 11,12%), evangélico (f = 01; 3,70%) e sem religião definida (f = 01; 3,70%). Quanto à renda por pessoa, apenas um idoso possuía renda média alta, os demais possuíam renda média e renda média baixa.
O fechamento amostral foi realizado por saturação teórica no momento em que se considerou que os resultados obtidos passaram a apresentar repetições, não sendo necessária a inclusão de novos participantes para compreensão do fenômeno e aperfeiçoamento da reflexão teórica (Nascimento et al., 2018).
Instrumentos
a) Ficha de identificação. Na coleta dos dados, foi utilizada primeiramente uma ficha de identificação desenvolvida pelas autoras contendo informações gerais acerca dos idosos que protagonizaram este estudo, como idade, estado civil escolaridade/ ocupação e religião.
b) Teste de Associação Livre de Palavras (TALP). Em seguida, os participantes responderam ao TALP, utilizando “velhice” como palavra indutora, a fim de identificar os estereótipos a ela relacionados. Questionou-se aos/às participantes: quais as três primeiras palavras que vem a sua cabeça quando você pensa no termo “velhice”? Cabe mencionar que considerando as noções pejorativas que perpassam a palavra velho, bem como os eufemismos que envolvem termos como terceira idade, melhor idade, optou-se pela palavra indutora “velhice”, ponderando que esta denominação parece ser menos corrompida por rótulos ou avaliações pseudopositivas dessa fase da vida (Vieira & Lima, 2015).
c) Entrevista semiestruturada. Por fim, indagou-se os/as participantes sobre os seguintes eixos temáticos: (a) percepção sobre a velhice; (b) experiências de preconceito e discriminação etária; (c) percepções sobre a discriminação contra a pessoa idosa; e (d) experiências pessoais de se tornar idoso. Considerando esses eixos, a entrevista guiou-se por um roteiro de entrevista elaborado previamente pelas autoras e validado por um grupo de pesquisadores que estudam a temática em questão. O roteiro de entrevista não seguiu uma ordem fechada, pois as perguntas foram apenas instigadoras de uma fala livre. A entrevista também foi composta por seis cenários que ilustravam situações fictícias de preconceito e discriminação vividas por idosos: (1) no mercado de trabalho, (2) no exercício do direito à prioridade, (3) nas trocas intergeracionais, (4) em relação à capacidade dos idosos de aprender novas tecnologias, (5) em propostas para o envelhecimento bem-sucedido e (6) em situações de suicídio de idosos. Esses cenários foram usados na entrevista como estratégia para acessar o pensamento dos idosos sobre o preconceito e a discriminação dirigidos a eles e outros idosos.
Procedimentos
O acesso aos primeiros participantes aconteceu através da mediação feita pela assistente social que coordena um grupo de convivência, formado por 70 idosos, de uma clínica-escola de uma universidade privada. Vale ressaltar que o uso dessa estratégia de mediação teve como objetivo exclusivo convidar o idoso a participar da pesquisa, oferecendo-lhes os esclarecimentos necessários para a obtenção do aceite. Para continuidade do acesso aos participantes, os primeiros idosos entrevistados indicaram outros idosos que necessariamente não pertenciam ao grupo para participar da pesquisa. Somente após a confirmação do interesse do idoso em colaborar voluntariamente com a pesquisa, a pesquisadora solicitou o contato telefônico do pretenso participante. Em seguida, foram agendados data e local para a realização da entrevista. As entrevistas foram realizadas em uma clínica de Psicologia vinculada à instituição de ensino superior que coordena o grupo de idosos, com o objetivo de oferecer o maior conforto possível a cada participante, além de assegurar que as entrevistas fossem conduzidas com tranquilidade e sem interrupções, haja visto abordar tema delicado, cuja discussão requereu que os entrevistados estivessem à vontade para expressar seus sentimentos.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza Número do parecer: 2.273.588, CAAE n. 70704617.3.0000.5052, e seguiu todos os preceitos éticos recomendados pelas Resoluções nº 466/12 e 510/16, do Conselho Nacional de Saúde. As entrevistas tiveram aproximadamente 40 minutos de duração, sendo gravadas e transcritas, após autorização de cada participante.
Análise dos Dados
A análise do TALP contou com a utilização do software IRaMuTeQ (acrônimo de Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), por meio de uma análise lexical (nuvem de palavras), que agrupa as palavras e as organiza graficamente em função da sua frequência. Inicialmente, os dados coletados pelo TALP passaram pelo processo de lematização e foram reorganizados os vocábulos semelhantes a partir das evocações de maior prevalência (Pereira, 2005). Para as entrevistas, foi realizada uma análise de conteúdo segundo as recomendações de Minayo (2012), de forma a reconhecer as falas mais elucidativas.
Resultados e Discussão
Ao serem indagados sobre quais palavras vinham à mente ao se ouvir a palavra “velhice”, os 27 idosos evocaram 57 palavras diferentes que foram agrupadas em categorias, de acordo com seus conteúdos. A partir da análise de frequências múltiplas (f), as evocações de maior frequência, com a porcentagem superior a 1,8% foram: solidão (f = 13; 8,28%); morte (f = 10; 6,37%); doença (f = 09; 5,73%); depressão (f = 09; 5,73%); ruim (f = 01; 4,46%); saudade (f = 07; 4,46%); inválido (f = 07; 4,46%); excluído (f = 6; 3,82%); experiência (f = 6; 3,82%); problema (f = 6; 3,82%); tristeza (f = 5; 3,18%); cansaço (f = 3; 1,91%); dor (f = 3; 1,91%); e memória (f = 3; 1,91%). Através desses dados, observa-se que os participantes percebem a velhice predominantemente de maneira negativa, denotando falta de contato com outras pessoas, desvalorização social e carência de perspectivas positivas em relação à vida. Esse resultado pode ser visualizado a partir da nuvem de palavras na Figura 1.
Para a análise das entrevistas, foram relacionados os dados dos dois instrumentos deste estudo, analisando os sentidos das palavras evocadas no TALP juntamente com a entrevista semiestruturada. Após serem submetidos à técnica de análise de conteúdo, o material colhido nas entrevistas foi dividido em categorias. Inicialmente, buscou-se averiguar a percepção dos idosos acerca da velhice, indagando sobre as características que uma pessoa precisa ter para ser considerada idosa, bem como a percepção em relação à própria velhice. Considerou-se a possibilidade de estereótipos relacionados à velhice terem sido ativados à medida que o conteúdo das respostas dos idosos contemplaram julgamentos baseados em estereótipos naturalmente compartilhados no contexto brasileiro.
A Velhice no Brasil: Características e Estereótipos
O eixo primário da entrevista investigou as percepções do idoso sobre a velhice e evidenciou a categoria “Características e Estereótipos acerca da velhice”. Esta, por sua vez, desmembrou-se em três subcategorias nomeadas: a) Desvalorização social, isolamento e solidão; b) Declínio da saúde física e mental; e c) Associação entre velhice e finitude.
Vale ressaltar que, na percepção dos idosos entrevistados, a velhice não é definida por delimitações cronológicas, tendo em vista que não foram mencionadas idades específicas para marcar o início da velhice. Nesse sentido, a experiência de se tornar velho não foi caracterizada pelo avançar da idade e sim pelos estereótipos que a ancoram socialmente. Logo, estereótipos negativos com base na idade são predominantes nos relatos dos participantes. Em geral, as caracterizações de velhice foram pautadas em comportamentos que distanciam o idoso de uma conduta jovial. Foi possível identificar percepções estereotipadas conferindo à velhice características de perda do ritmo de vida, lentificação física e cognitiva, declínio da memória, incapacidade, cansaço, dependência, solidão e diminuição da vontade de experienciar novos projetos de vida. Estes aspectos podem ser constatados nas subcategorias a seguir.
Desvalorização social, isolamento e solidão
Esta subcategoria engloba a perspectiva social da velhice, a desvalorização do idoso no âmbito familiar e social e, sobretudo, suas consequências vinculadas ao isolamento e à sensação de estar sozinho e incapacitado nos diversos âmbitos da vida. Como exemplo, evidenciam-se no TALP as seguintes palavras: abandono, solidão, saudade, desemprego, esquecido, excluído, abrigo, inválido, imprestável e falta de amor.
Na contemporaneidade, observa-se uma valorização intensa de atributos ligados à juventude. Características como produtividade, beleza, dinamismo e autonomia são frequentemente reforçadas como positivas e essenciais para a felicidade. Na tentativa de estetizar a vida, rejeita-se, mesmo que de forma não intencional, a velhice e tudo que se vincula a essa fase da vida (Silva & Fixina, 2018). Essa relação é manifestada no seguinte relato:
Eu prefiro contato com pessoas mais jovens, eles me animam, injetam um gás na vida, eu gosto mais de estar perto da alegria dos jovens, as pessoas mais velhas falam muito em doença e problema e eu não gosto. Eu não me sinto idoso ainda porque minha cabeça é muito ativa, acho que depois dos 80 o aspecto físico começa a pesar um pouco, aí tem as plásticas pra corrigir as rugas. (Homem, 76 anos, divorciado, procurador de justiça, católico).
A cultura atual busca sutilmente alojar a velhice em dois pontos extremos que ampliam sua rejeição. Por um lado, a sociedade idealiza uma modelo de velhice admirada e cultuada (Goldfarb et al., 2009). As falas dos participantes ilustram características cultuadas para distanciar o idoso da própria velhice. Isto é, aproximar-se de pessoas jovens, manter a cabeça ativa, realizar “correções plásticas” e frequentar academias. A velhice tolerável é aquela que passa por um processo de higienização que aproxima o idoso da juventude, mesmo que aparentemente, como observado no relato exposto:
Vi colegas contando que sofreram preconceitos principalmente dentro do ônibus, que as pessoas dizem, a senhora agora quer sentar, mas quando está lá no forró eu duvido. Aí é diferente de mim, eles se sentem humilhados, agora comigo não acontece não. Eu sou falante, sou simpática, sorridente, as pessoas gostam de mim, me dão a cadeira. Só fazem isso com velha zangada, carrancuda, aquelas velhas caducas, aí as pessoas tratam mal. A gente tem que mostrar que é jovem também. (Mulher, 70 anos, viúva, dona de casa, católica).
Parece ser necessário percorrer sobre um modelo já padronizado de uma velhice “bem-sucedida”, a saber, aquela que não manifesta marcas comuns à velhice, sejam elas físicas, comportamentais e emocionais. Ser um idoso fora dos padrões idealizados é se dispor ao risco de ser excluído e discriminado. No outro ponto extremo dessa relação encontra-se uma velhice descartável, que enfraquece e desvaloriza o idoso. Nessa perspectiva, o idoso é colocado como incapaz, improdutivo e dependente. A figura do velho é a lembrança que o corpo deteriora e o fim da vida se aproxima (Goldfarb et al., 2009).
Por conseguinte, o envelhecimento é investido de sofrimentos, sendo visto como algo indesejável, especialmente pela pessoa que envelhece. Essa rejeição foi identificada de diferentes formas nos relatos de todos os participantes do estudo, como explicitado neste trecho: “Não sou velha porque eu sempre gostei de ser alegre, de brincar, de me divertir, de passear, de andar, porque eu vou conviver com as pessoas, eu vou conversar, é trocar ideias” (Mulher, 75 anos, casada, professora, católica).
A maioria dos entrevistados não se perceberam como idosos. Os demais expressaram em seus discursos um distanciamento, por vezes, intencional dos aspectos que lembram a velhice, como se pode perceber na seguinte locução: “Enquanto a pessoa tiver forças e vontade de viver ela não deve ser vista como idosa. Talvez depois dos 95 as forças acabem” (Mulher, 88 anos, viúva, vendedora, católica). O desabafo sugere a necessidade de destinar uma força para não se perceber idoso, associa-se então, a velhice à falta de ânimo para viver. A forma como o indivíduo se percebe, relaciona-se ao grau de pertencimento que estabelece com determinado grupo social (Fernandes-Eloi et al., 2020). De forma consciente ou inconsciente, busca-se valorizar e enaltecer o grupo que pertence e minorar grupos externos. Nesse sentido, os participantes apresentaram uma resistência a integrar o grupo de idosos, uma vez que este é desvalorizado socialmente.
Os participantes além de não se perceberem como idosos, expuseram diversas estratégias para não serem vistos como membros desse grupo e, sobretudo, manter uma imagem pessoal positiva. Fica evidente os esforços de alguns idosos para se dissociarem do grupo de pessoas idosas, como pode ser exemplificado a seguir:
Enquanto a pessoa for independente ela é jovem, a mente não envelhece. Não tem uma idade certa pra ser velha. Velho pra mim é o mundo, aquelas pessoas que não se cuidam e deixam a juventude ir embora. Eu não me considero velha, porque eu me cuido. (Mulher,73 anos, solteira, técnica em administração, católica).
A crença enraizada do “velho incapaz” é representada com clareza na seguinte fala: “Você é velho assim que começa a não responder adequadamente ao que antes você fazia corriqueiramente, aí você já pode se considerar um velho” (Homem, 66 anos, casado, engenheiro, espírita). Trata-se de uma incapacidade aprendida pelo idoso, que muitas vezes foi comunicado sobre impotências e fragilidades experienciadas quando se chega à velhice. Esse tipo de aprendizado ofusca a percepção de futuro do idoso, que facilmente começa a associar a velhice com a morte.
Associação entre velhice e finitude
Esta subcategoria evidencia os discursos que vinculam a velhice com o fim das possibilidades de construir novos planos de vida e com sua aproximação com a morte concreta ou simbólica. Algumas palavras mencionadas no TALP aparecem como exemplo: desmotivado, querer morrer, cansaço da vida, desistir de viver, fim de tudo, risco, pensamentos ruins, morte e suicídio.
A sociedade normatiza que muitos comportamentos não são apropriados para os idosos, restando-lhe poucos estímulos para novas perspectivas e planos de vida. Em razão disso, a aproximação da morte surge como questão para muitos idosos, como pode ser visto no seguinte relato “[...] é triste envelhecer, por perceber que o dia da morte está mais próximo. Começam a aparecer as doenças e aí vem a preocupação em se cuidar, e isso é para tentar adiar o dia da morte” (Mulher, 70 anos, viúva, dona de casa, católica). A associação entre finitude e velhice castra as motivações para pensar e viver o futuro. A angústia gerada pela ideia de finitude conduz o idoso a um luto antecipado em relação à própria vida (Goldfarb et al., 2009; Rozendo, 2016).
O surgimento de doenças de ordem física ou emocional também corrobora o temor dos idosos de viver uma velhice com possibilidades restritas. A ideia de ter que conviver com a aproximação constante da morte ou de perder a qualidade de vida em razão de algum adoecimento foi uma realidade trazida pela maioria dos idosos entrevistados.
Declínio da saúde física e mental
Essa subcategoria contempla os discursos associados às limitações e ao declínio da saúde física e mental na velhice, como por exemplo: desmemoriado, depressão, doença, dor, insônia e desajuste. O idoso intimida-se com a possibilidade de experienciar a perda da sua capacidade funcional na velhice. A associação do envelhecimento com adoecimentos físicos, comprometimentos cognitivos e vulnerabilidades psíquicas revela estereótipos que fazem a velhice ser interpretada como desagradável, como pode ser percebido no trecho a seguir:
Acho que ser idoso é quando você começa a ter muitos problemas com doenças, dificuldade de aceitação da sua condição, tem falta de paciência, limitações físicas, a decadência da memória. Então, o que caracteriza uma pessoa idosa é essa questão de ser mais debilitado, fica mais teimoso, tem dificuldade em mudar seus pontos de vista. Por isso disse que não me sinto um idoso ainda. (Homem, 76 anos, divorciado, procurador de justiça, católico).
Após descrever como percebe a velhice, o idoso em questão reforça que ainda não faz parte desse grupo. Parte significativa dos motivos que fazem as pessoas não se perceberem como idosos reside no medo de perder a capacidade de cuidar de si e de precisar readaptar-se às mudanças do mundo. Assemelha-se a uma luta para não pertencer a um grupo que possui características pouco estimadas socialmente, como perda da qualidade de vida, adoecimento, dependência e morte. Todas essas associações arbitrárias e generalistas, colaboram para que a velhice seja naturalizada como problema e passe a ser tratada como uma enfermidade que precisa ser combatida e evitada (Teixeira et al., 2018). Os estereótipos influenciam reações emocionais e cumprem a função de justificativa para desigualdades entre membros de diferentes grupos (Aronson et al., 2015). Desse modo, abre-se espaço para o surgimento e manutenção de relações hierárquicas entre grupos, vulnerabilizando grupos minoritários, como os idosos, a experienciarem preconceito e discriminação.
Percepção de discriminação na velhice
No segundo eixo da entrevista, nomeado “experiências de preconceito e discriminação na velhice”, os idosos participantes deste estudo descrevem a velhice como uma experiência negativa da vida humana e, por conseguinte, buscaram se distanciar, haja visto não reconhecerem em si características desse grupo.
As consequências negativas dessas percepções estereotipadas são evidentes nos relatos dos participantes: “[...] a gente quando é jovem enxerga tudo bonito depois quando fica velho aí vê as coisas como elas realmente são. O idoso é maltratado nos ambientes, as pessoas não valorizam o velho não” (Mulher, 79 anos, divorciada, técnico em contabilidade, católica). A aceitação e, posteriormente, interiorização dos estereótipos como verdadeiros podem resultar em barreiras à funcionalidade do idoso. De tal modo que estes se esforçam para não serem vistos como pertencentes a esse grupo. Por outro lado, podem começar a se comportar de acordo com os estereótipos e expectativas impostas a esse grupo social (Fernandes-Eloi et al., 2020). Apenas quatro idosos confirmaram fazer uso do direito à prioridade assegurado pela lei brasileira à pessoa com mais de 60 anos de idade. A grande maioria justificou que não fazia uso do direito, pois ainda não se percebiam dentro de um grupo “necessitado”. Esse exemplo esclarece a resistência do idoso em aceitar ou experienciar a própria velhice livre de padrões e expectativas sociais, além de reforçar a ideia que o idoso que usufrui dos seus direitos legais, admite em si as fragilidades do envelhecer.
Quando questionados a respeito da existência ou não de preconceito ou discriminação na velhice, a maioria dos idosos respondeu que o brasileiro é preconceituoso e expôs diversos exemplos dessa percepção, como apresentados nos trechos de fala a seguir: “No Brasil existe muito preconceito, tenho visto muitas pessoas tratarem idosos com desdém, velhice não é doença, mas as pessoas têm aquela repugnância pelo velho” (Mulher, 72 anos, solteira, professora, católica). E no relato: “Preconceito e rejeição, rejeição, as pessoas olham pro velho e acham que ele é incapaz e aí a própria pessoa se sente rejeitada. Vi colegas contando que sofreram preconceitos principalmente dentro do ônibus” (Mulher, 73 anos, solteira, técnica em administração, católica). Quando questionados sobre sofrerem com preconceitos e discriminações, a maioria dos idosos revelou que já sofreu. Essas revelações contrapõem o fato desses participantes não se perceberem como idosos, mas de algum modo serem reconhecidos socialmente como membros desse grupo minoritário. A naturalização do ageísmo autoriza sutilmente que ele aconteça em todos os espaços, sem que haja uma censura imediata em razão da sua ocorrência. O preconceito contra idosos articula-se, muitas vezes, sem passar por um exame e sem intenção consciente de prejudicar seu alvo. É caracterizado pela sutileza por meio da qual se manifesta, considerando que é recebido com conformação pelo próprio idoso (Vieira & Lima, 2015).
A infantilização da pessoa idosa é uma forma de discriminação sutil, tendo em vista que na maioria das vezes são comportamentos aplicados de forma inconsciente e sem a intenção de atingir os idosos (Fernandes-Eloi et al., 2020). Exemplos disso são os comportamentos de auxílio excessivo a pessoas idosas, como explicitado no trecho a seguir:
[...] uma vez eu fiz uma viagem com outros idosos, pra São Paulo, e a pessoa, com que a gente foi queria usar uns crachás no pescoço da gente como se a gente fosse assim uns inválidos. Eu me senti tão mal. Ela dizia que a gente não podia se afastar dela, como se vocês fossem se perder como crianças. Era como se ela estivesse controlando os cachorrinhos. Ela também consumia bebida e dividia a conta por igual, como se a gente não soubesse usar o próprio dinheiro. (Mulher, 75 anos, casada, professora, católica).
Essas são atitudes pseudopositivas, à medida que se confundem com comportamentos protetivos e bem-intencionados, no entanto reforçam a noção de incapacidade e dependência associados à velhice. O ageísmo hostil é mais facilmente identificado; entretanto, o ageísmo benevolente pode disfarçar uma relação de hierarquia e desvantagem sobre os idosos (World Health Organization, 2022). Sendo assim, é comum o idoso vivenciar uma discriminação, sem tomar consciência disso. Por meio da análise dos relatos a respeito de alguns cenários ilustrativos sobre preconceito e discriminação na velhice, foi possível verificar a forte naturalização do ageísmo e internalização desses conteúdos pelos idosos que protagonizaram este estudo.
No cenário que retratou o mercado de trabalho, observou-se polarização de justificativas em contratar o idoso. Alguns participantes concordaram que os idosos não deveriam permanecer no mercado de trabalho, apresentando como justificativa, a proteção dos idosos em relação a situações de preconceito no contexto de trabalho. Este relato evidenciou a internalização do preconceito contra idosos pelo próprio idoso: “Porque a pessoa idosa tem mais facilidade de adoecer do que uma pessoa nova [...] Por mais que ele tenha capacidade ele não irá render o suficiente para a sua função” (Homem, 66 anos, casado, engenheiro, espírita). Quanto ao cenário que ilustrou o exercício do direito à prioridade, os idosos falam sobre a indignação que é ter que lutar para utilizar a fila preferencial: “Eu acho um absurdo. É um direito que o idoso tem, essa garantia temos por lei. As pessoas precisam pensar no dia de amanhã. Respeitar os idosos é tratar o seu próprio futuro com respeito” (Homem, 83 anos, casado, vendedor, católico).
Em relação ao cenário que exemplificou às trocas intergeracionais, os idosos concordam que os jovens e idosos devem aprender em locais separados, pois a etapa do desenvolvimento humano de cada grupo etário apresenta características que poderiam dificultar o ritmo de aprendizagem: “A dinâmica da aula ia ser melhor, não ia ter que ficar parando, por que o jovem aprende muito mais rápido e o idoso aprende mais devagar” (Mulher, 64 anos, solteira, cuidadora de idosos, católica). Esse discurso exemplifica que os idosos se percebem como um problema para o processo de aprendizagem dos jovens, à medida que concordam que aprendem de forma mais lenta. Essa relação entre aprendizagem lenta e velhice ancora-se no estereótipo do idoso desmemoriado e incapaz de realizar novas aprendizagens. A ativação desse estereótipo, em geral, repercute negativamente na motivação dos idosos a se dedicarem a novas aprendizagens. A ameaça de confirmar o estereótipo negativo desestimula o idoso a tentar aprender algo novo, fazendo com que ele naturalmente se torne pouco habilidoso em determinadas áreas, como informática e novas tecnologias. Assim, a ameaça de estereótipo afeta negativamente os membros de grupos estereotipados em razão do medo de confirmar tal estereótipo (Giasson et al., 2017).
No cenário sobre envelhecimento bem-sucedido, a maioria dos idosos concordaram que é possível envelhecer bem quando se mantem ativo, especialmente quando frequentam academias, vestem roupas joviais, continuam produtivas no mercado de trabalho e, sobretudo, conseguem manter uma vida social, como foi retratado no relato da idosa: “Um envelhecimento bem-sucedido pra mim é envelhecer bem, fazer academia, procurar ocupar a cabeça, trabalhar e viver ativo” (Mulher, 74 anos, solteira, cuidadora, católica). Os idosos também comentaram um cenário sobre suicídio na velhice. Os participantes apontam que o modo como a sociedade trata os idosos pode afetar na tentativa do suicídio: “É mais normal do que se pensa o suicídio entre idosos pela falta de atenção dada a eles até pela própria família, até por não terem tempo também, essa dificuldade de poder da atenção gera isso” (Homem, 76 anos, divorciado, procurador de justiça, católico).
Diante dos relatos dos entrevistados, é possível afirmar que o preconceito contra idosos pode se manifestar de forma claramente negativa, ou disfarçar-se em práticas socialmente aceitáveis que se justificam por respeito e proteção aos idosos (Vieira & Lima, 2015). O ageísmo, mesmo podendo se manifestar de forma velada e naturalizada, produz consequências nocivas, pois tende a fortalecer a ideia de incapacidade e dependência associadas à velhice. O senso de autoeficácia dos idosos é prejudicado e a ameaça do estereótipo reduz suas tentativas de construir novos projetos de vida.
Novas possibilidades e avaliação positiva da velhice
Essa categoria engloba os relatos relacionadas aos novos planos de vida e perspectivas do futuro, à capacidade de transpor as dificuldades comuns associadas à velhice ou uma verbalização de sentimentos positivos, tendo como exemplo as seguintes palavras mencionadas no TALP: alegria (f = 02; 1,27%), sabedoria (f = 02; 1,27%), respeito (f = 02; 1,27%), amor (f = 02; 1,27%), privilégio (f = 01; 0,64%), futuro (f = 01; 0,64%) e possibilidade (f = 02; 1,27%). Embora a velhice seja perpassada por muitos estereótipos negativos na cultura ocidental, muitos idosos se apresentam diante de um processo de envelhecimento saudável e estruturado por propósitos consistentes. Nesse estudo, os traços positivos da velhice não tiveram representatividade na análise dos resultados do TALP. Todavia, na análise qualitativa das entrevistas, é legítimo ressaltar as descrições positivas da velhice: “Estou me formando agora na terceira graduação e me sinto vivo. Agora quero só trabalhar de forma voluntária para quem precisar” (Homem, 76 anos, divorciado, procurador de justiça, católico).
A autopercepção positiva do envelhecimento é fundamental para a manutenção do bem-estar da pessoa idosa (Alonso-Debreczeni & Bailey, 2021). A qualidade das relações interpessoais estabelecidas ao longo da vida e os acontecimentos marcantes da trajetória do indivíduo estabelecem relação direta com a maneira como as pessoas envelhecem. Portanto, a maneira como o idoso vive o seu envelhecimento é resultante de uma construção que ele mesmo fez ao longo de sua história, podendo, assim, assumir diferentes perspectivas. Seria um equívoco acreditar que o idoso contemporâneo está condenado a envelhecer de maneira infeliz. As possibilidades de se autorrealizar na velhice são inúmeras e podem ser descobertas quando distanciadas das percepções estereotipadas do envelhecer. Assim, promover uma autopercepção positiva da velhice é vista como uma estratégia importante frente o impacto da discriminação etária.
Considerações Finais
A partir desse estudo, analisou-se percepções e experiências da discriminação na velhice na perspectiva dos próprios idosos. A partir dos resultados, observou-se uma naturalização da discriminação contra a velhice e uma dificuldade do próprio idoso em identificar conteúdos preconceituosos. Os participantes não se percebiam como pessoas idosas, por associarem tantos estereótipos negativos à velhice. Os idosos desta pesquisa reconhecem que existe preconceito, mas tendem a se distanciar dele a qualquer custo. É possível identificar a dificuldade dos idosos de reconhecerem que são afetados diretamente pela discriminação, talvez pelo fato de não se reconhecerem como pessoas idosas.
Quanto às limitações desse estudo, é válido mencionar que oportuniza apenas a análise de relatos de idosos de classe média e classe média baixa. Além disso, não foram exploradas informações adicionais acerca da realidade demográfica dos idosos, tais como a raça/etnia e orientação sexual. Em estudos futuros, pode-se fazer uma análise comparativa a partir de perfis socioeconômicos diferentes, reconhecendo que algumas condições sociais vulnerabilizam ainda mais o idoso. Faz-se necessário investigar o fenômeno da discriminação contra idosos considerando as especificidades de cada região brasileira. Destarte, confia-se que o presente estudo traz uma importante contribuição sobre a forma como a velhice é percebida e experienciada na realidade de idosos brasileiros. Espera-se com esses resultados promover uma reflexão sobre o que é a velhice no contexto brasileiro e, a partir disso, possibilitar a criação de políticas públicas que busquem combater essa visão negativa da velhice e a naturalização do preconceito e da discriminação na velhice.