O cenário mundial vivenciou, em dezembro de 2019, a emergência de uma doença infectocontagiosa, causada pela síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). O vírus inicialmente surgiu na China, e impôs uma crise sanitária de saúde decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, que posteriormente se espalhou para os demais continentes e denominou-se pandemia em 11 de março de 2020 (Aquino et al., 2020). Logo, diversas incógnitas surgiram diante das características e consequências da infecção viral, uma vez que, o que se sabia, baseava-se em outros vírus anteriormente já identificados. A Covid-19, no primeiro momento, trazia indícios de ser uma enfermidade respiratória, que se revelou sistêmica (Guimarães, 2020).
Nesta perspectiva, foram observadas manifestações clínicas no cérebro causadas pela infecção viral da Covid-19 através de estudos prospectivos, longitudinais e meta-análise realizados por pesquisadores(as) infectologistas. Alguns dos impactos que essas manifestações clínicas podem ocasionar são: dificuldades de atenção, planejamento, comportamento e orientação. Essas alterações na cognição podem ocorrer mesmo em casos mais leves, todavia, em casos graves tendem a ter maior intensificação e prevalência (Ritchie & Chan, 2021).
Esses comprometimentos cognitivos podem ser causados por diversos mecanismos advindos da Covid-19 tais como inflamação, impactos psicossociais, deficiências cognitivas após a vacinação, além de trazer consequências a longo prazo para a cognição. Contudo, ainda não se tem respostas concretas sobre como a doença afeta o cérebro (Awan et al., 2021), mas sabe-se que essas causas provavelmente são multifatoriais (Burdick & Millett, 2021).
O termo “long covid” refere-se às manifestações persistentes que o vírus pode acarretar mesmo após o período agudo da doença. Essas manifestações persistentes podem surgir semanas ou meses após a infecção, sendo que não ocorre somente em pacientes com infecção grave pela Covid-19. Uma possível explicação refere-se a processos inflamatórios ou autoimunes no cérebro que podem contribuir significativamente no desenvolvimento de alterações tardias. Um termo coloquial utilizado para remeter-se a essas alterações cognitivas compreende o “nevoeiro cerebral”, ou seja, envolve dificuldades de concentração, prejuízo na memória e funções executivas (Del Brutto et al., 2022).
A pandemia da Covid-19, por ser um fenômeno ainda recente, traz consigo diversas incógnitas relacionadas aos seus efeitos físicos, psicológicos e cognitivos. Em uma busca realizada em diversas plataformas científicas nacionais e internacionais percebeu-se que, no contexto da pesquisa não sistemática realizada, apareceram raramente estudos e pesquisas relacionados à compreensão de quais os impactos cognitivos em pacientes Pós-Covid-19. Diante disso, a motivação para a realização deste estudo surgiu a partir da monitoria da disciplina de Neuropsicologia, a vivência da pandemia da Covid-19 e as intensas queixas cognitivas trazidas pelas pessoas próximas que sofreram com a doença. Portanto, objetiva-se com esse estudo compreender quais as alterações cognitivas em pacientes Pós-Covid-19 através de uma revisão narrativa da literatura nacional e internacional. Além de identificar de que forma a memória é impactada e quais os subtipos de memória envolvidos em pacientes Pós-Covid-19; verificar quais são os processos atencionais prejudicados em pacientes Pós-Covid-19; compreender quais são as alterações em funções executivas e os subtipos percebidos em pacientes Pós-Covid-19.
Método
O presente estudo adotou como método uma revisão de literatura do tipo narrativa que se caracteriza por mapear conteúdos sobre uma temática de forma ampla, não exigindo critérios rígidos, específicos e predeterminados para essa busca. Logo, os materiais são selecionados de forma arbitrária, conforme a exigência subjetiva do pesquisador (Cordeiro, 2007).
O estudo se direcionou a partir da seguinte pergunta de pesquisa: quais são as alterações cognitivas observadas em pacientes Pós-Covid-19? Utilizou-se os seguintes descritores booleanos em Ciências da Saúde (DeCS): “Brain” AND “Pandemic” AND “Cognition”. Para isso, foi realizada uma busca nas bases de dados científicas nacionais e internacionais tais como: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), APA Psycinfo (American Psychological Association), Scopus (SciVerse Scopus), PubMed (National Library of Medicine) no período de julho a novembro de 2022. Os critérios de inclusão adotados para a seleção dos artigos incluíram estudos empíricos que abordassem a temática: alterações cognitivas observadas em pacientes Pós-Covid-19. Já os critérios de exclusão foram: artigos com uma linguagem técnica-médica e que não atendessem ao recorte temporal dos últimos três anos (2019-2022), artigos pagos, além de estudos de revisão.
Para a inclusão do estudo na presente pesquisa, foi realizada a leitura do título e resumo do material encontrado após a busca. Posteriormente, foram selecionados os estudos que corresponderam ao objetivo da pesquisa. Considerando as temáticas relacionadas à pergunta de pesquisa, foi definida uma categoria de acordo com as alterações cognitivas relacionadas aos objetivos de pesquisa.
Resultados e Discussão
Os Efeitos da Covid-19 na Cognição
Ao longo do tempo estão sendo realizadas pesquisas com a finalidade de compreender as alterações cognitivas em pacientes Pós-Covid-19. Um estudo de coorte prospectivo longitudinal, realizado com adultos de meia idade e idosos, com e sem histórico de infecção sintomática pela Covid-19, verificou declínio cognitivo em 11 dos 52 (21%) pacientes com infecção sintomática leve e apenas em um dos 41 (2%) assintomáticos. Desse modo, há uma correlação entre sintomas pela infecção leve e posterior declínio cognitivo, constatando que pessoas com histórico de infecção leve possuem 18 vezes mais chances de terem declínio cognitivo do que indivíduos assintomáticos. Esse declínio cognitivo pode estar relacionado a uma consequência tardia da inflamação sistêmica que ocorre durante a fase aguda da doença. Além disso, pode haver um aumento na prevalência de distúrbios neurodegenerativos do SNC em pacientes que tiveram Covid-19. Essas manifestações cognitivas podem ter implicações a longo prazo e por isso a importância de conhecê-las para entender o curso da doença e o seu potencial de reversibilidade. Todavia, os mecanismos que podem estar envolvidos na ocorrência de manifestações cognitivas ainda são incertos (Del Brutto et al., 2021).
Após a realização de um estudo com 78 adultos, 50 tiveram infecção leve pelo vírus da Covid-19 e 28 não foram infectados. Após 6 meses, principalmente às pessoas com histórico de Covid-19 apresentaram declínios cognitivos (Del Brutto et al., 2022). Entretanto, essas alterações cognitivas melhoraram um ano após a infecção, evidenciando que a "névoa cerebral” pode ir se diluindo ao longo do tempo (Brutto, 2022).
Em uma avaliação neuropsicológica com 87 pacientes em uma Unidade de Reabilitação Covid-19 na Itália, verificou que mais de 80% dos pacientes apresentavam alterações cognitivas. Esse comprometimento configura-se, principalmente, nas funções visuoespaciais/executivas, nomeação, memória de curto e longo prazo, abstração e orientação (Alemanno et al., 2021).
Pacientes com idades entre 20 e 60 anos que tinham infecção confirmada para Covid-19 participaram de um estudo de coorte unicêntrico que concluiu que, dos 35 pacientes, 12 (34,3%) apresentaram queixas cognitivas após a infecção pela Covid-19. A presença de sintomas durante a infecção como: cefaleia (dor de cabeça), anosmia (perda do olfato) e disgeusia (perda do paladar) podem ser considerados fatores de risco para o desenvolvimento de comprometimentos cognitivos, principalmente na memória de trabalho (Almeria et al., 2020). Durante a fase aguda da infecção pela Covid-19, percebem-se comprometimentos quimiosensoriais associados a perda do paladar ou olfato. Esses foram observados após 6 e 11 meses de acompanhamento. A interação de várias estruturas cerebrais pode explicar essa correlação (Damiano et al., 2022).
Em consonância com outros estudos, uma pesquisa com 45 participantes que passaram por uma avaliação neurológica 142 dias após a infecção evidenciou que os déficits cognitivos referem-se à memória, atenção, funções executivas e linguagem. As alterações mais acentuadas envolvem funções executivas e atenção com variação de um a seis meses após a infecção. Segundo o estudo, os déficits apresentados não estão correlacionados com a gravidade da infecção. No entanto, pode haver maiores comprometimentos cognitivos quando a gravidade da doença é mais elevada. Logo, esses sintomas cognitivos podem surgir após o período de infecção e perdurar após a remissão dessa (Crivelli et al., 2021).
A Covid-19 gera a possibilidade de desenvolvimento de um quadro clínico prolongado após a infecção que apresenta uma variedade de sintomas físicos (fadiga, tosse, cefaleia, palpitações) quanto cognitivos. Neste viés, mesmo após a recuperação inicial da doença, essas manifestações prolongadas atuam de forma persistente por um período indeterminado impactando significativamente na qualidade de vida (Matos-Ferreira, 2021).
Outro estudo realizado na Itália com 1.215 participantes demonstrou que as alterações cognitivas se referem a tarefas da rotina que envolvem atenção, orientação temporal e funções executivas. Logo, percebeu-se uma piora no funcionamento cognitivo durante o isolamento social, comparado a um período “normal”. Ainda, as mulheres tiveram uma piora significativa no funcionamento cognitivo em relação aos homens, sendo que essas demonstraram maiores dificuldades em tarefas da vida diária que dependem de atenção, concentração e funções executivas (Fiorenzato et al., 2021). A presença de maiores déficits cognitivos nas mulheres, principalmente em tarefas cotidianas, pode se justificar por aspectos culturais. Neste sentido, culturalmente as mulheres estão mais alocadas em tarefas do cuidado da casa e dos filhos de forma mais intensa e diária do que os homens, o que torna mais evidente seus déficits cognitivos.
Outro fator refere-se às mulheres serem a maioria das respondentes das pesquisas realizadas, ou mesmo buscarem mais auxílio médico em relação aos homens. Diante disso, percebe-se condições sociais ainda muito arraigadas em relação às mulheres voltadas ao cuidado. Logo, as mulheres podem buscar mais frequentemente os serviços de saúde em função da “fragilidade” imposta ao feminino e as questões relacionadas à maternidade (Gutmann et al., 2022).
Nos Estados Unidos, uma pesquisa com 3.762 participantes, sendo a maioria mulheres (78,9%) com suspeita ou confirmação de Covid-19, constatou que 3.203 (85,1%) apresentaram névoa cerebral/disfunção cognitiva envolvendo falta de atenção, funções executivas, resolução de problemas e tomada de decisão. Além disso, 2.739 (72,8%) tiveram perda de memória de curto e longo prazo e independente da faixa etária, 88% dos entrevistados apresentaram disfunção cognitiva, em especial perda de memória. No entanto, a ressonância magnética de 87% desses participantes que experimentaram perda da memória e disfunção cognitiva não apresentaram anormalidades estruturais. Segundo a pesquisa, em função desses sintomas cognitivos, a área da vida mais afetada refere-se ao trabalho, sendo que apenas 27,3% estavam trabalhando a mesma quantidade de horas que trabalhavam antes da Covid-19 (Davisa et al., 2021). O esforço mental e o estresse relacionados ao trabalho podem estar influenciando nas dificuldades apresentadas em relação ao trabalho, bem como a mudança da maioria dos trabalhos para o formato home-office e a sensação de estar constantemente trabalhando e não conseguir estabelecer uma rotina de trabalho (Troitinho et al., 2021).
Uma pesquisa nos Estados Unidos com 1.000 participantes relatou que 999 dos entrevistados, 76 (7,6%) apresentavam histórico de Covid-19 e 19 dos 76 (25%) tinham sintomas que perduraram em média 4 meses. Em função dos sintomas prolongados, houve maior interferência no trabalho e em atividades cotidianas. Os sintomas cognitivos compreendem nevoeiro cerebral (confusão mental, dificuldade de concentração, esquecimento) em 47% dos entrevistados. Logo, ter histórico de Covid-19 e a persistência dos sintomas por longos períodos foi um fator contribuinte para uma piora na disfunção cognitiva (Frontera et al., 2021).
Corroborando com o exposto, durante o período de isolamento social houve uma demanda em aprender novas tecnologias, controlar o tempo de trabalho e o esforço dedicado para tentar separar trabalho, atividades domésticas, escolares e de lazer. Desse modo, o tempo de descanso necessário para a reabilitação física e mental nem sempre foi o suficiente (Losekann & Mourão, 2020). Sendo assim, principalmente nas infecções graves ocasionadas pelo vírus pode-se observar alterações na memória, visto que experimentam uma tempestade de citocinas que levam ao aumento da inflamação. Essas citocinas secretam ácido quinolínico e geram mais glutamato e regulação positiva de receptores de NMDA (N-metil D-Aspartato), o que pode induzir essas alterações (Boldrini et al., 2021).
Atualmente, há estudos que sugerem que a Covid-19, mesmo em pacientes assintomáticos, pode trazer impactos cognitivos de curto e longo prazo. Um estudo transversal com 18 pacientes Pós-Covid-19, entre 17 e 71 anos, identificou níveis menores, principalmente nos domínios de memória de curto prazo, atenção e concentração do que em pacientes saudáveis. Dos 18 participantes, 9 (50%) apresentaram após o período de recuperação déficit de atenção, 8 (44,4%) déficit de concentração, 8 (44,4%) déficit de memória de curto prazo e 5 (27,8%) problemas na recuperação de palavras (Woo et al., 2020). Além disso, os sintomas cognitivos de longo prazo referem-se a perda da memória e dificuldade de concentração, com duração superior a 30 dias. Após 60 dias, houve uma acentuação na dificuldade de concentração (Cirulli et al., 2020).
A partir da análise de prontuários médicos eletrônicos com 32 sintomas gerais autorrelatados com um coorte geral da população adulta (entre 18 e 89 anos), constatou-se que as pessoas que possuem sintomas com duração superior a 30 dias correspondem a 36,1% e 14,8% após 90 dias, ainda continuam a apresentar pelo menos um sintoma. Esse número é mais elevado em pacientes que tiveram a infecção grave, sendo 44,9% em 30 dias e 20,8% em 90 dias. Todavia, 21,3% dos casos leves apresentam sintomas que perduram pelo período de 30 dias ou mais. Assim, a gravidade da doença corresponde a um fator importante na estatística de sintomas apresentados por pacientes infectados pela Covid-19 (Cirulli et al., 2020). Desse modo, há uma correlação entre os sintomas cognitivos apresentados e a duração da doença, ou seja, indivíduos cuja infecção perdurou por períodos mais longos estavam suscetíveis a maiores índices de comprometimentos cognitivos (Guo et al., 2022).
No Reino Unido, uma pesquisa transversal com 2.250 participantes constatou nas duas primeiras semanas de infecção que os sintomas mais comuns correspondem a disfunção cognitiva (69,2%). Dentre os sintomas da disfunção cognitiva estão incluídos a névoa cerebral (36,1%), falta de concentração (27,4%), problemas de memória (30,7%), sendo que esses permanecem ao longo da doença em 36,9% dos indivíduos. Após um período, vários dos sintomas foram diminuindo, com exceção da disfunção cognitiva (Ziauddeen et al., 2021). Outro estudo de investigação transversal/longitudinal misto com 181 indivíduos que tiveram infecção pela Covid-19 e 185 que não foram infectados identificou os seguintes sintomas cognitivos: dificuldade de concentração (77,8%), confusão mental (69%), esquecimento (67,5%) e comprometimento na atenção autorrelatada (Guo et al., 2022).
Em relação a memória, pacientes com SARS-CoV-2 manifestaram uma piora considerável na memória de trabalho com base no que é esperado quando comparados a uma população normativa (Broche-Pérez & Medina-Navarro, 2021; Graham et al., 2021). Conforme o estudo realizado, aproximadamente metade dos pacientes apresentaram um exame cognitivo alterado, principalmente na memória de curto prazo (Graham et al., 2021).
Após a hospitalização por Covid-19, uma análise retrospectiva de 315 pacientes analisou a relação entre dados demográficos, SDOH (idade, raça/etnia, educação, emprego, estado de seguro de saúde, renda, idioma e deficiência pré-covid-19) e os resultados cognitivos após os 6 meses de hospitalização. Dentre as funções cognitivas, a memória foi a mais afetada, na qual apenas 14% dos participantes atingiram a pontuação máxima em uma tarefa simples de rastreio cognitivo (Valdes et al., 2022).
Cada vez mais pacientes que estão se recuperando da Covid-19 trazem queixas relacionadas aos processos atencionais, principalmente com alterações diversas na atenção sustentada (Broche-Pérez & Medina-Navarro, 2021). Na Alemanha, um estudo prospectivo acompanhou pacientes entre o quinto mês após o início dos sintomas até doze meses. No quinto mês de acompanhamento, o sintoma cognitivo mais presente refere-se a problemas de concentração (31,3%). Após 12 meses de acompanhamento, os problemas de concentração ainda persistiam, sendo que apenas 22,9% dos pacientes não apresentavam nenhum tipo de sintomas (Seeßle et al., 2022).
As mulheres apresentam maior possibilidade de desenvolver sintomas de longo prazo, bem como um número maior de sintomas no período de 60 dias em comparação aos homens (Cirulli et al., 2020). Neste viés, a permanência de alterações cognitivas após 12 meses pode ocorrer, principalmente em mulheres e pacientes com anticorpos antinucleares. Diante disso, há estudos de que a autoimunidade é o que pode justificar esse aspecto, pois fatores de risco prévios em relação à imunidade podem prolongar os sintomas (Seeßle et al., 2022).
Uma análise baseada no sexo concluiu que as mulheres apresentaram mais frequentemente cefaleia (dor de cabeça), anosmia (perda do olfato) e disgeusia (perda do paladar). Em função disso, têm maior tendência a alterações cerebrais em relação aos homens. Essa diferença estatística baseada no sexo pode ser explicada por meio de respostas de humor e inatas as infecções virais mais acentuadas em mulheres (Liguori et al., 2020).
Foram identificadas correlações entre raça, tempo de escolarização e desemprego e alterações cognitivas após período de hospitalização (Valdes et al., 2022). Essa diferença racial em relação à infecção pela Covid-19 é multifatorial. A exposição dessa população às atividades desempenhadas (Price-Haywood et al., 2020), devido ao vírus da Covid-19, bem como as formas de acesso aos serviços de saúde, pode ter interferência direta no desenvolvimento de comprometimentos cognitivos. Neste viés, a dificuldade de acesso segundo um estudo foi de 23,37% e a precariedade no acesso e qualidade do serviço ofertado é maior quando associadas a fatores de vulnerabilidade como renda (23,94%) e baixa escolaridade (30,48%). Além disso, a população negra sofre maiores índices de discriminação racial (2,29%) por profissionais da saúde em relação a população branca (0,56%) (Dantas, 2019).
O acesso das mulheres negras aos serviços de saúde envolve aspectos sociodemográficos, sendo que apenas 7,9% possuem um bom acesso em comparação a mulheres brancas (15,4%). Outra dificuldade corresponde a níveis de escolaridade mais baixos para ambas as raças: negras (90,6%) e brancas (92,8%). Esse ainda é diretamente proporcional à renda, visto que, quanto menor a renda, menor é o acesso aos serviços de saúde. Isto inclui aspectos sociais e demográficos, gerando maiores iniquidades em saúde, prejuízo no processo de saúde e doença e impactos na qualidade de vida (Goes & Nascimento, 2013).
Além disso, com relação ao tempo de escolaridade, segundo Schlindwein-Zanini et al. (2022), pode haver maiores alterações cognitivas com destaque para linguagem e memória verbal recente e tardia em pessoas que apresentam menor escolaridade, sendo que isso pode estar relacionado com a reserva cognitiva. Por outro lado, no Brasil, a população branca com 12 anos ou mais de escolaridade corresponde a três vezes mais quando comparados a população negra, sendo que em 2015 apenas 12,8% dos negros estavam cursando o ensino superior em relação aos brancos (26,5%) (Fernandes et al., 2020).
Neste viés, em relação ao trabalho, 9,2% disseram que estavam trabalhando em um período reduzido e 19,1% não podiam trabalhar. A principal justificativa foi a infecção pela Covid-19, sendo respectivamente relatado por 96,5% e 88,3% dos participantes. Ser demitido ou aposentar-se antecipadamente foi relatado apenas por 1,9% dos entrevistados. Após 7 meses de infecção pela doença, 75% disseram que isso tinha alguma interferência no seu trabalho, sendo que dois terços tiveram que se afastar do trabalho (Ziauddeen et al., 2021).
Além disso, 54,6% permaneceram sem trabalhar por longos períodos, 34,5% perderam o emprego em função da doença e 63,9% demonstraram dificuldades em atividades cotidianas. Pessoas que apresentaram infecções mais graves e que tiveram sintomas contínuos estavam mais propensas a incapacidade de trabalhar, perder o emprego ou lidar com atividades do dia a dia (Guo et al., 2022). Logo, o conjunto de funções denominadas funções executivas, e suas relações com a Covid-19 serão discutidas na sequência.
A infecção pela Covid-19 pode ocasionar alterações na função cerebral, gerando comprometimento cognitivo. Em especial, diversos prejuízos foram observados nas funções executivas tais como alterações no controle da atenção, dificuldades no planejamento, abstração, controle comportamental e orientação. Essas manifestações sugerem uma síndrome disexecutiva, sendo que um número significativo de pacientes acometidos pela infecção viral associa-se a essa disfunção. Desse modo, entende-se que essas alterações nas funções executivas correspondem a consequências advindas da infecção viral pelo SARS-CoV-2 (Ardila & Lahiri, 2020). Ainda apresentam déficits na flexibilidade cognitiva, fluência verbal, e velocidade de processamento (Broche-Pérez & Medina-Navarro, 2021).
Na apresentação de um quadro clínico, uma mulher de 56 anos, sem histórico médico e infectada pela Covid-19, apresentou além de sintomas respiratórios, dificuldades de concentração, esquecimento de detalhes e dificuldades em multitarefas. Após dez meses da infecção, conseguiu atingir apenas 20% da sua produtividade anterior no ambiente de trabalho. Devido a persistência desses sintomas, seis meses após a infecção, ela foi encaminhada para uma avaliação neurológica. A avaliação demonstrou déficits leves e moderados na atenção, velocidade de processamento, controle executivo, destreza motora fina, aprendizado e memória. O diagnóstico estabelecido para ela foi uma síndrome dissexecutiva (Warren et al., 2022).
Observou-se uma correlação entre a proteína C reativa (PCR) e declínio cognitivo. Neste sentido, indivíduos mexicanos-americanos cognitivamente normais com níveis mais elevados de PCR tinham menores pontuações em testes de fluência verbal e nas funções executivas. Assim, mesmo em indivíduos que possuem uma cognição normal, os maiores níveis de PCR estão associados a pior desempenho no funcionamento executivo. Diante disso, as mulheres apresentam níveis de PCR (52,8%) mais elevados em relação aos homens (19 de 62), o que pode explicar maiores alterações cognitivas (Vintimilla et al., 2019).
Quatro meses após a hospitalização pela Covid-19, um estudo prospectivo recrutou 29 pacientes na Dinamarca. Nesse, a porcentagem de pacientes que apresentaram algum comprometimento cognitivo significativo variava entre 59% e 65%, sendo o aprendizado verbal e as funções executivas os domínios mais afetados. Alterações moderadas foram observadas na memória de trabalho, fluência verbal e velocidade. Além disso, 83% dos indivíduos tiveram dificuldades cognitivas graves em atividades da vida diária, principalmente nas funções executivas (Miskowiak et al., 2021). Conforme Cioato & Bicca (2021) alterações cognitivas podem trazer dificuldades em atividades da vida diária tais como: desempenhar, coordenar e realizar demandas psicológicas que envolvam responsabilidades e estresse, tomada de decisão e realização de escolhas. Todas essas habilidades são fundamentais para a funcionalidade do indivíduo.
Impactos nas funções executivas podem dificultar de forma mais intensa a execução de tarefas novas, ambientes desconhecidos ou regras conflitantes do que tarefas rotineiras automatizadas. Além disso, as funções executivas têm grande influência sobre os demais domínios cognitivos, e por isso alterações nessa área podem acarretar em dificuldades de atenção, concentração, processamento de novas informações, seleção, monitoramento de tarefas e memória de trabalho. No entanto, a disfunção executiva é experienciada por cada indivíduo de forma única, ou seja, alguns podem apresentar esquecimento ou dificuldade de concentração, outros uma disfunção global que gera nebulosidade e lentidão. Pacientes que estiveram em estados mais graves têm altas taxas de disfunção cognitiva após a infecção pela Covid-19. O comprometimento cognitivo dissexecutivo pode ter um risco de 20% de ser desenvolvido, mesmo em casos de infecção leve (Warren et al., 2022).
Considerações Finais
O trabalho teve como objetivo compreender as alterações cognitivas em pacientes Pós-Covid-19 através de uma revisão narrativa da literatura nacional e internacional. Diante disso, o cenário mundial vivenciou a emergência de uma pandemia pelo vírus da Covid-19 e diversas medidas foram adotadas pelos órgãos de saúde. Neste sentido, inúmeras incógnitas surgiram em relação às manifestações cognitivas, principalmente em vários domínios da memória, déficits de atenção e funções executivas. Logo, é fundamental identificá-las, visto que, podem perdurar para além do período da doença e ocorrer mesmo em casos mais leves. No entanto, em casos graves há maior intensificação e prevalência.
Apesar das descobertas iniciais, ainda há uma carência de pesquisas relacionadas à forma como a infecção da Covid-19 afeta a cognição. Alguns estudos mostram que pode ser por inflamação, atividade viral direta no cérebro ou por processo parainfeccioso. As principais alterações cognitivas relacionadas aos domínios de memória e atenção incluem prejuízos na memória de curto prazo e memória de trabalho, atenção sustentada e concentração. Essas alterações ocorrem com maior frequência em casos graves, mulheres, e têm maior impacto sobre o trabalho e em atividades da vida diária.
Com relação às funções executivas, essas alterações cognitivas sugerem uma síndrome dissexecutiva gerada pela infecção viral da Covid-19. Os principais acometimentos dessa síndrome compreendem: dificuldades em atividades da vida diária, atividades novas, ambientes desconhecidos ou regras conflitantes. Devido à grande influência que as funções executivas exercem em relação aos demais domínios cognitivos, alterações nessa área podem trazer diversos prejuízos à funcionalidade do indivíduo.
Dentre as limitações do estudo, tem-se o período breve desde o surgimento da pandemia até o momento atual para se ter algumas explicações, visto que se utilizou o período desde o surgimento da pandemia até o momento atual. A pesquisa revisou estudos que descreveram impactos na população internacional, especialmente. Além disso, a limitação de estudos correlacionando as variantes e a duração dos sintomas relacionados a Covid-19, ou seja, se determinada variante da Covid-19 apresentaria maior prevalência e gravidade de sintomas cognitivos. Ainda não se tem dados estatísticos que possam explicar se todas as pessoas que foram infectadas pelo vírus da Covid-19 terão alterações cognitivas ao longo do tempo, quais serão os prejuízos funcionais ou mesmo se há fatores de risco. A reabilitação pode ser útil em pacientes Pós-Covid-19 na medida em que podem ser elaborados programas ou protocolos de reabilitação específicos para esse público. Sugere-se que mais pesquisas sejam realizadas ao longo do tempo, a fim de contribuir para o meio científico, com a finalidade de identificar as alterações cognitivas em pacientes Pós-Covid-19, com vistas a melhorar a qualidade de vida.