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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

Print version ISSN 1808-5687On-line version ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.4 no.1 Rio de Janeiro June 2008

 

ARTIGOS

 

Esquemas desadaptativos: revisão sistemática qualitativa

 

Maladaptative schemas: qualitative sustematic review

 

 

Aline Loureiro Chaves Duarte*; Maria Lúcia Tiellet Nunes**; Christian Haag Kristensen***

*Clínica de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental (Cógnita), psicóloga especialista em psicoterapia cognitivo-comportamental
**Programa de pós graduação em psicologia; faculdade de psicologia (FAPSI), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Doutora em Psicologia
***Programa de pós graduação em psicologia; faculdade de psicologia (FAPSI), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Doutor em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As terapias cognitivo-comportamentais (TCC) abrangem diferentes abordagens que compartilham pressupostos básicos, bem como terminologia específica. No entanto, alguns conceitos teóricos fundamentais – como esquemas e crenças – têm sido empregados com variabilidade indesejável, gerando imprecisão e dificultando a comunicação entre psicoterapeutas. Assim, o objetivo deste estudo foi revisar de forma sistemática o conceito “esquema desadaptativo” no âmbito das TCC. Foram identificados nesta revisão 23 artigos publicados nos anos de 2003-2005, a partir das bases de dados SciELO, Lilacs e PsycINFO, submetidos à seleção de juízes para desenvolvimento da análise do conceito em questão. A análise qualitativa dos 11 artigos selecionados resultou na identificação de cinco categorias. Os resultados indicaram um número expressivo de artigos com o emprego do termo Early Maladaptive Schemas (EMS) derivado da obra de Jeffrey Young. De forma ainda mais relevante, verificou-se a imprecisão conceitual no uso dos termos esquemas e crenças, bem como grande variação nos termos empregados para qualificar estes conceitos. Os resultados são discutidos nas suas conseqüências para o desenvolvimento teórico das TCC.

Palavras-chave: Esquemas desadaptativos, Crenças, Terapia cognitivo-comportamental.


ABSTRACT

Cognitive-Behavioral Therapies (CBT) includes different approaches that share fundamental assumptions, as well as specific terminology. However, some core theoretical concepts – such as schema and beliefs – have been used with undue variability, causing imprecision and disturbing the communication between therapists. Therefore, this study’s goal was to conduct a systematic review of the concept “maladaptive schema” within the CBT literature. Twenty-three articles published between 2003 and 2005 were identified in the following databases: SciELO, Lilacs and PsycINFO, and were submitted to the judgment of field experts. The qualitative analysis of the 11 selected articles produced five categories. The outcomes showed an expressive number of articles using Jeffrey Young’s Early Maladaptive Schemas (EMS) terminology. Even more important, it was found a conceptual lack of precision regarding the use of schema and beliefs, as well as great variability among these concepts’ definitions. The outcomes are discussed in reference to the potential consequences to the theoretical development of CBT.

Keywords: Maladaptive schema, Beliefs, Cognitive-behavioral therapy.


 

 

Introdução

Ao longo das últimas quatro décadas, as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) foram gradualmente se estabelecendo como abordagens terapêuticas eletivas em diferentes transtornos mentais. As TCC abrangem uma variedade de mais de vinte abordagens que compartilham alguns pressupostos básicos, incluindo o papel mediacional fundamental da cognição e a possibilidade de acessar e alterar os processos cognitivos e, com isso, modificar o comportamento (Dobson & Dozois, 2006). Além desses pressupostos, também conceitos fundamentais são compartilhados como esquemas e crenças. No entanto, talvez pela própria diversidade entre as abordagens, estes conceitos vêm sendo empregados de diferentes maneiras, gerando imprecisão e dificultando a comunicação. Dobson e Dozois afirmam que termos compartilhados por diferentes subdisciplinas da psicologia podem ser usados com aplicação não-idêntica, causando confusão semântica. O uso da noção de “esquema” serve como exemplo, pois o conceito foi desenvolvido na psicologia cognitiva, posteriormente aplicado à cognição social e atualmente utilizado de forma ampla na caracterização cognitiva de problemas clínicos. Assim, o objetivo deste artigo é apresentar uma revisão sistemática qualitativa a respeito do conceito “esquemas desadaptativos” abordado no escopo teórico das TCC. Inicialmente o conceito de esquema é revisado, tanto em sua formulação original na psicologia cognitiva como no seu uso dentro das TCC. Logo a seguir é apresentada uma distinção entre esquema e crença, a partir da abordagem de um dos fundadores das TCC, Aaron T. Beck. Neste momento de franco desenvolvimento da TCC em nosso meio, permitir ao leitor a apreensão crítica de conceitos fundamentais pode facilitar a comunicação entre profissionais de diferentes orientações. Nas palavras de Beck (2005), desde o início, a formulação de um quadro de referência conceitual precedeu o desenvolvimento de estratégias terapêuticas.

 

Definição de Esquemas

Esquema deriva da palavra grega skhêma (σχήμα), no plural skhêmata (σχήματα), significando forma, aparência, plano ou maneira de ser. Na filosofia, esquema foi empregado por Immanuel Kant (1787/2001) para designar a regra processual na qual uma categoria ou conceito não-empírico é associado à imagem mental de um objeto. De acordo com Eysenck e Keane (1994), as concepções kantianas incluíam a noção de esquemas como estruturas inatas que serviriam para organizar a nossa percepção do meio ambiente.

Atualmente, esquema pode ser amplamente definido na psicologia cognitiva como um agrupamento estruturado de conceitos “utilizado para representar eventos, seqüência de eventos, preceitos, situações, relações e até mesmo objetos” (Eysenck & Keane, 1994, p. 245). A investigação empírica deste conceito possivelmente teve inicio com Sir Frederic C. Bartlett, na Universidade de Cambridge, que “foi o primeiro psicólogo a defender persuasivamente que os esquemas desempenham um importante papel na determinação do que recordamos das histórias” (Eysenck & Keane, 2007, p. 371). Naquela que foi sua mais importante publicação, Bartlett (1932) constatou que o entendimento e a lembrança de eventos que as pessoas tinham eram imensamente influenciados e moldados pelas suas expectativas. Através de estudos empíricos, Bartlett “sugeriu que estas expectativas tinham alguma forma esquemática de representação mental” (Eysenck & Keane, 1994, p. 245), afetando a forma como as pessoas compreendiam os eventos. Tomou, então, emprestado o conceito de esquema que Sir Henry Head, famoso neurologista britânico, utilizara para descrever um modelo ou padrão organizado de posturas e movimentos corporais e empregou no estudo dos processos de recordação. Dessa forma, Bartlett (1932) acentuou o caráter construtivo da memória: “esquema se refere a uma organização ativa de reações anteriores ou de experiências anteriores” (p. 202) que acaba por integrar novas informações e orientar ou direcionar o organismo em suas respostas.

Outro precursor da noção de esquemas na teoria psicológica foi Jean Piaget (Sternberg, 2008). Ao longo da obra deste autor, a noção de esquema ocupa uma posição de destaque no desenvolvimento cognitivo, sendo fundamental na compreensão das invariantes funcionais de organização e adaptação, incluindo-se os processos de assimilação e acomodação. Uma definição preliminar para esquema seria a de “uma estrutura cognitiva que se refere a uma classe de seqüências de ação semelhantes, seqüências que constituem totalidades potentes e bem delimitadas” (Flavell, 1988, p. 52). Ainda na obra de Piaget (1923/1986), um esquema organiza a experiência e se constitui justamente a partir da experiência. Esquemas se compõem, então, por padrões de ação organizados na memória para a compreensão de eventos, situações e conceitos quando um sujeito se encontra em contato com o ambiente. Segundo a teoria de Piaget, o desenvolvimento cognitivo se dá justamente pela inter-relação dessas estruturas cognitivas (esquemas).

A obra de Bartlett e a de Piaget foram, em sua totalidade, fundamentais para o surgimento da revolução cognitiva na década de 1950 (Miller, 2003). Posteriormente às contribuições iniciais destes autores, o conceito de esquema foi retomado e definido de diferentes formas por psicólogos cognitivos. Sternberg (2000, 2008) refere que os conceitos (unidade fundamental do conhecimento simbólico) podem estar organizados em esquemas, que são estruturas mentais para representar o conhecimento, abarcando uma cadeia de conceitos inter-relacionados e organizados de forma significativa. Já Rumelhart (1980) concebe os esquemas de outra forma:

Os esquemas são utilizados no processo de interpretação de dados sensoriais (lingüísticos e não lingüísticos) para acessar a informação armazenada na memória, organizar as ações, determinar metas e submetas, localizar fontes e, de um modo geral, direcionar o fluxo do processamento (das informações) (p. 34).

Nesta abordagem, as principais características dos esquemas são: (a) esquemas podem incluir outros esquemas; (b) abrangem fatos típicos gerais; (c) podem variar em seu grau de abstração. Segundo o autor, os esquemas podem representar o conhecimento em todos os níveis, desde as crenças ideológicas até os aspectos culturais (Rumelhart, 1977 citado por Sternberg, 2000). Assim, os esquemas representam o nosso conhecimento e todo o nosso conhecimento está estruturado em esquemas. Na psicologia cognitiva interessa observar as relações causais (tipo: se-então) estabelecidas entre os esquemas e as informações nestes incluídas que poderemos utilizar como base para extrair inferências em situações novas (Lloyd Komatsu, 1992, citado por Sternberg, 2000). Nos modelos cognitivos de personalidade, a noção de esquema empregada é bastante similar, mas enfatiza ainda a “maneira como percebemos e respondemos a outras informações, como objetos físicos, pessoas e eventos” (Pervin & John, 2004, p. 388).

 

O Conceito de Esquemas nas TCC

No início da década de 1960, baseando-se em observações de pacientes deprimidos, Aaron Beck descreveu os significados idiossincráticos que estes pacientes atribuíam às situações experienciadas. Sugeriu, então, que certos automatismos no pensamento desses pacientes poderiam ser agrupados em uma categoria de visão negativa das experiências presentes, passadas e futuras (Beck, 1964). Em grande parte, essas formulações iniciais derivaram de uma mudança que, no campo mais amplo das ciências, foi denominada “revolução cognitiva”. Assim, na terapia cognitiva, o modelo de psicopatologia fundamentou-se na abordagem do processamento de informação (Beck, 2005). Este modelo sustenta que na depressão ocorre uma mudança cognitiva negativa (Beck, 1991), que acaba por distorcer o processamento de eventos externos ou estímulos internos. Subjacente a estas distorções (erros cognitivos), encontra-se uma rede de crenças, pressupostos, regras e fórmulas conectadas a memórias relevantes ao desenvolvimento e à formação de tais crenças (Beck, 1964).

A observação clínica da continuidade dos conteúdos das crenças ao longo do curso crônico e recorrente dos episódios depressivos sugeria que estas permaneciam inativas ou latentes. Tomando o conceito de esquemas cognitivos utilizado na psicologia cognitiva – derivando-o, principalmente, dos trabalhos de George Kelly, Bartlett e Piaget – Beck sugeriu que essas crenças poderiam ser formadas relativamente cedo na vida e incorporadas em estruturas cognitivas, denominadas esquemas (Beck, 1991). Beck acreditava que a ativação de certos esquemas cognitivos idiossincráticos representava o problema central na depressão e poderiam ser apontados com tendo um papel primário na produção de vários sintomas cognitivos, emocionais e comportamentais. Afirmou ainda que as intervenções terapêuticas deveriam ser voltadas à modificação das interpretações ou predições disfuncionais, bem como das crenças disfuncionais (incorporadas aos esquemas) (Beck, 1976). O resultado disso foi o surgimento de uma nova forma de intervenção, bem como uma teoria explicativa dos transtornos mentais denominada terapia cognitiva da depressão. Posteriormente, as TCC foram ampliadas, constituindo: (a) modelos de intervenção em diferentes transtornos mentais, (b) modelos explicativos de diferentes transtornos e (c) teorias de personalidade.

Ao definir esquema, Beck (1976) se refere a uma rede estruturada e inter-relacionada de crenças que orientam o indivíduo em suas atitudes e posturas nos mais variados eventos de sua vida. Esquemas são, então, compreendidos como estruturas de cognição com significado. Outra definição, de acordo com essa, afirma: “Os esquemas, definidos como estruturas cognitivas que organizam e processam as informações que chegam ao indivíduo, são propostos como representações dos padrões de pensamento adquiridos no início do desenvolvimento do indivíduo” (Dobson & Dozois, 2006, p. 26).

Além do conteúdo, Beck atribuiu características aos esquemas, afirmando que estes possuem qualidades estruturais adicionais, como amplitude, flexibilidade (ou rigidez) e densidade (Beck, 1964, 1991). Também podem ser descritos em termos de sua valência, que denota a sua ativação, variando de latente a hipervalente. Quando estão latentes os esquemas não estão participando do processamento da informação e quando ativados canalizam o processamento cognitivo do estágio inicial ao final. Na investigação do processamento cognitivo nos transtornos mentais, o conceito de esquemas tem sido utilizado para referir estruturas com conteúdos idiossincráticos altamente personalizados, que são ativados na manifestação da psicopatologia. Quando hipervalentes, estes esquemas idiossincráticos predominam sobre outros esquemas que seriam mais adaptativos a uma determinada situação. Dessa maneira, quando hipervalente, o esquema acaba por induzir um viés sistemático no processamento da informação (Beck et al., 1985, citado por Beck, Freeman, & Davis, 2005).

Atualmente, tais definições de esquema têm sido utilizadas para descrever aquelas estruturas mentais que integram os eventos e atribuem significados a eles. O esquema funciona como uma espécie de filtro, que seleciona as informações, assimilando, priorizando e organizando aqueles estímulos que sejam consistentes com a estrutura do esquema, e evitando todo o estímulo que não seja consistente com essa estruturação.

Em consonância com essa definição, Young (2003) elaborou uma teoria a respeito dos esquemas na qual os denomina como Esquemas Iniciais Desadaptativos (Early Maladaptive Schemas; EMS), empregando-os na compreensão das psicopatologias da personalidade. Desta forma “esquemas iniciais desadaptativos se referem a temas extremamente estáveis e duradouros que se desenvolvem durante a infância, são elaborados ao longo da vida e são disfuncionais em um grau significativo” (p. 15). Young refere que a maioria dos EMS são crenças e sentimentos incondicionais sobre si mesmo em relação ao ambiente, servindo como um modelo para processar a experiência posterior.

Na abordagem de Young, os EMS apresentam várias características definidoras, dentre as quais: são incondicionais, ou seja, são verdades a priori; são autoperpetuadores, resistentes à mudança; são disfuncionais de maneira significativa e recorrente; são ativados por acontecimentos ambientais relevantes para o esquema específico; estão ligados a altos níveis de afeto; e, finalmente, parecem resultar da interação entre o temperamento (inato) e as experiências disfuncionais nas relações familiares e sociais nos primeiros anos de vida (Young, 2003). Adicionalmente, três processos de um esquema foram identificados podendo ocorrer nos domínios cognitivo, afetivo ou comportamental, incluindo: a manutenção, a evitação e a compensação do esquema. Aquele esquema (ou operações de esquemas) que está atualmente ativado em um indivíduo é denominado de modo de esquema. Na psicopatologia, um modo de esquema disfuncional (dysfunctional schema mode) é ativado quando esquemas desadaptativos específicos ou respostas de coping geram emoções perturbadoras, comportamentos de evitação ou mesmo auto-derrotistas que contaminam o funcionamento do indivíduo (Young, 2005).

 

Conteúdo dos Esquemas: Crenças

Embora já se tenha apresentado ampla definição a respeito dos esquemas, como foi mencionado anteriormente, alguns autores afirmam que crenças são sinônimos de esquemas, ou utilizam-nas dessa forma. Logo, é fundamental nesta revisão sistemática podermos diferenciar esquemas de crenças. Na obra de Beck, crenças são definidas a partir do dado desenvolvimental. Desde a infância, os indivíduos desenvolvem determinadas crenças sobre si mesmos, outras pessoas e seus mundos. São denominadas crenças centrais aqueles entendimentos mais fundamentais, nucleares e profundos de uma pessoa, consideradas verdades absolutas e, por isso, dificilmente articulados por ela. As crenças centrais são o nível mais fundamental de crença, caracterizando-se como globais, rígidas e supergenalizadas. As crenças centrais surgem da necessidade do ser humano extrair sentido do seu ambiente desde os estágios mais primitivos do desenvolvimento. Para isso, precisa organizar a sua experiência de maneira coerente para funcionar de forma adaptativa. É a partir de suas interações com o ambiente e outras pessoas que um sujeito elabora determinados entendimentos e aprendizagens, ou seja, suas crenças, as quais variam em precisão e funcionalidade. Conforme salienta Judith Beck (1997), ao processo terapêutico da abordagem cognitiva importam as crenças disfuncionais. Afirma que alguns autores referem-se às crenças centrais pela denominação de esquemas. No entanto, diferencia os dois conceitos, afirmando que “os esquemas são estruturas cognitivas dentro do pensamento, cujo conteúdo específico são as crenças centrais” (Beck, 1964, citado por J. Beck, 1997, p. 174). Tal diferenciação é ainda melhor descrita a seguir:

a maneira pela qual uma situação é avaliada depende, pelo menos em parte, das crenças relevantes subjacentes. Essas crenças estão inseridas em estruturas, mais ou menos estáveis, chamadas de ‘esquemas’, que selecionam e sintetizam os dados fornecidos. (...) Consideramos as estruturas básicas (esquemas) das quais dependem esses processos cognitivos, afetivos e motivacionais como as unidades fundamentais da personalidade (Beck et al., 2005, p. 31).

Judith Beck (1997) utiliza também o termo crenças negativas, ao invés de crenças disfuncionais ou desadaptativas, empregados anteriormente por outros autores. Afirma que crenças centrais negativas são usualmente globais, supergeneralizadas e absolutistas.

Na literatura em TCC existe uma variedade de termos para designar que algumas destas cognições (idéias) mais centrais e arraigadas a respeito do self estão, em certo grau, inadequadas à realidade do sujeito e, portanto, causadoras de uma série de dificuldades interpessoais e sofrimento psíquico. Os termos mais comumente empregados como qualificadores dessas cognições consitem em desadaptativos, negativos, disfuncionais, maladaptativos ou irracionais, entre outras definições. Tais cognições específicas são denominadas crenças, e estas são os conteúdos básicos de um esquema, que é uma estrutura mental responsável pelo processamento da informação. Logo, embora muitos autores utilizem crenças e esquemas como sinônimos, é importante diferenciá-los, particularmente quando empregados na literatura científica. Utilizando-os indistintamente como sinônimos, os autores acabam reduzindo e distorcendo o significado de cada termo, prejudicando o entendimento do leitor. Além disso, uma teoria que se propõe científica deve estabelecer critérios mais claros e estáveis para a definição operacional de seus termos e sua utilização. Portanto, o objetivo desta revisão sistemática é identificar como o termo “esquemas desadaptativos” tem sido empregado em publicações atuais.

 

Tabela 1 - Artigos identificados em bases de dados

Nota. Os resultados estão limitados aos anos 2003-2005

 

Método

Para a elaboração dessa pesquisa, foi realizada uma revisão sistemática da literatura publicada na área das TCC, sobre o termo “esquemas desadaptativos”. A revisão sistemática consiste em uma abordagem padronizada para identificar e apresentar aqueles estudos publicados – e, eventualmente, não-publicados – na literatura com relevância ao tema de interesse. Os procedimentos metodológicos comumente utilizados no processo de revisão sistemática incluem: (a) formulação da questão de pesquisa; (b) identificação dos estudos concluídos; (c) definição de critérios de inclusão e exclusão; (d) extração uniforme de características e resultados de cada estudo; (e) apresentação clara e uniforme dos resultados (Hearst, Grady, Barron & Kerlikowske, 2003). Foram utilizadas as bases de dados eletrônicas Lilacs, SciELO e PsycINFO, com os descritores “maladaptive schema”, “dysfunctional schema”, “dysfunctional beliefs”, “crença(s) irracional(s)”, “crença nuclear disfuncional”, “crença(s) disfuncional(is)”, “esquema(s) desadaptativo(s)” e “esquema(s) disfuncional(is)”. Os limitadores foram definidos como “todos os índices” na base SciELO, “todos os índices” e “palavras” (com operador booleano AND) na base Lilacs e somente o limitador “key words” na base PsycINFO. Foram identificados 23 artigos no período de 2003 a 2005, provenientes apenas das bases Lilacs e PsycINFO (ver Tabela 1). Teses e dissertações foram excluídas da seleção. Os resumos de todos os artigos foram aleatoriamente separados em três conjuntos: dois com 8 artigos e um com 7 artigos. Estes foram distribuídos, também de forma aleatória, para três juízes com experiência clínica em TCC. Sem a definição de critérios apriorísticos, foi solicitado que cada juiz selecionasse 4 artigos que considerasse relevante para tal revisão, indicando os critérios empregados.

Os artigos selecionados foram analisados de forma qualitativa através do procedimento de análise de conteúdo (Bardin, 1977). Métodos qualitativos são comumente empregados em investigações exploratórias ou descritivas e apresentam, em geral, boa validade interna (Serapioni, 2000). Dentro das abordagens qualitativas, a análise de conteúdo surge no início do século XX, nos Estados Unidos da América, como uma ferramenta para analisar material jornalístico (Nunes, 2004), composta por uma sistematização de procedimentos objetivos de descrição do conteúdo de mensagens, bem como dos indicadores (quantitativos ou não) que possam levar à inferência das condições de produção e recepção destas mensagens (Bardin, 1977). Tradicionalmente, a análise de conteúdo inclui as seguintes etapas: pré-análise, exploração do material e interpretação dos resultados. Na fase da pré-análise ocorre a leitura flutuante, bem como a elaboração de indicadores que possam fundamentar os recortes do texto em unidades de significado, de forma a permitir a codificação e posterior categorização dessas unidades para a análise (Nunes, 2004). Na exploração do material ocorre a codificação e identificação das unidades de significado já recortadas, bem como a categorização, que inclui agrupamentos de dados comuns – tendo em vista a semelhança ou analogia entre os recortes – originando categorias temáticas. Posteriormente é possível produzir um texto que sintetize e descreva o conjunto de significados presente nas diversas unidades que constituem cada categoria. Na fase de interpretação dos resultados, o pesquisador deduz os símbolos e valores a partir da análise das categorias e apresenta uma síntese coerente com os elementos bibliográficos que forneceram a base para a pesquisa (Nunes, 2004).

 

Resultados

Como resultados da estratégia definida para realização dessa pesquisa, foram selecionados 11 artigos (Baker & Beech, 2004; Cecero, Nelson & Gillie, 2004; Jovev & Jackson, 2004; Richardson, 2005; Schmidt & Joiner, 2004; Sheppard & Teasdale, 2004; Taylor, Abramowitz & McKay, 2005a; Taylor, Abramowitz & McKay, 2005b; Tolin, Woods & Abramowitz, 2003; Turner, H. M. Rose & Cooper, 2005). Os critérios de seleção empregados pelos juízes consistiram nos objetivos dos estudos adequados ao tema “esquemas desadaptativos”, aplicabilidade dos resultados encontrados e artigos que referiam ao modelo de Jeffrey Young sobre “esquemas iniciais desadaptativos”. Os artigos foram analisados na íntegra, quando foi realizada a leitura com vistas à identificação dos termos de interesse para o presente estudo. Os termos selecionados para revisão foram classificados e divididos em cinco categorias: (1) esquemas iniciais desadaptativos (EMS); (2) crenças disfuncionais; (3) esquemas; (4) EMS/crenças e (5) terminologia equivalente. Das categorias EMS e esquemas derivaram subcategorias, conforme ilustrado na Tabela 2.

 

Tabela 2 - Artigos Identificados por Categorias e Subcategorias

O termo “Early Maladaptive Schema” (EMS) foi identificado em sete artigos, encontrados sob formas de definição (7 artigos), origem (6 artigos) e/ou funcionamento (5 artigos). Destacam-se nas definições encontradas que EMS circundam temas sobre o self e as relações pessoais e são descritos como estruturas estáveis e duradouras que formam o núcleo do auto-conceito individual (Cecero, Nelson & Gillie, 2004; Jovev & Jackson, 2004; Nordahl, Holthe & Haugum, 2005; Richardson, 2005; Schmidt & Joiner, 2004). Também é caracterizado como incondicional, hipervalente, auto-perpetuável e muito resistente à mudança (Jovev & Jackson, 2004; Schmidt & Joiner, 2004; Turner, Rose & Cooper, 2005). Alguns estudos afirmam que os EMS são ou compreendem crenças disfuncionais estáveis e duradouras sobre si mesmo (Schmidt & Joiner, 2004; Turner et al., 2005). Outros artigos afirmam que os EMS abrangem memórias, emoções, cognições, sensações corporais e aspectos comportamentais (Cecero et al., 2004; Nordahl et al., 2005).

Quanto à origem dos EMS, os estudos revelam que estes se desenvolvem na infância (Baker & Beech, 2004; Cecero et al., 2004; Jovev & Jackson, 2004; Nordahl et al., 2005; Schmidt & Joiner, 2004; Turner et al., 2005) pela interação com os pais/familiares/cuidadores (Baker & Beech, 2004; Nordahl et al., 2005; Schmidt & Joiner, 2004) e são elaborados durante toda a vida de um indivíduo (Cecero et al., 2004; Jovev & Jackson, 2004). Sua origem se relaciona com a não satisfação das necessidades básicas ou a exposição a experiências traumáticas (Cecero et al., 2004; Nordahl et al., 2005; Turner et al., 2005).

Os EMS funcionam filtrando seletivamente a experiência, guiando o processamento da informação para confirmar o conteúdo do esquema, assim perpetuando-os (Baker & Beech, 2004; Jovev & Jackson, 2004; Schmidt & Joiner, 2004). Os EMS são hiperativados em situações sociais/ambientais relevantes ao esquema (Nordahl et al., 2005; Richardson, 2005; Schmidt & Joiner, 2004), causando intenso sofrimento e prejuízo no funcionamento do sujeito (Jovev & Jackson, 2004; Nordahl et al., 2005; Richardson, 2005; Schmidt & Joiner, 2004).

Alguns artigos se referem ao termo “crenças disfuncionais”, que estariam funcionando subjacentes ao desenvolvimento e manutenção de obsessões e compulsões (Tolin, Woods & Abramowitz, 2003), conduzindo a pessoa a interpretar equivocadamente ou superestimar os pensamentos automáticos (Taylor, Abramowitz & McKay, 2005a; Taylor, McKay & Abramowitz, 2005b). Outro artigo (Sheppard & Teasdale, 2004) faz referência ao termo “esquema disfuncional”, explicando que este é responsável pela interpretação automática dos eventos de forma negativa.

Na presente revisão, foram identificados em três artigos o emprego do termo “esquemas”. Esquema é definido como um nível profundo de estrutura da cognição (Schmidt & Joiner, 2004; Sheppard & Teasdale, 2004) dos distúrbios psicológicos, que forma o núcleo do auto-conceito individual (Schmidt & Joiner, 2004). Esquemas funcionam criando sofrimento e distúrbio funcional pelos vieses que resultam em interpretações disfuncionais de si, do meio e das relações interpessoais (Jovev & Jackson, 2004; Schmidt & Joiner, 2004).

Seis artigos utilizaram os termos originais “EMS”, “esquemas”, “crenças centrais” e “crenças disfuncionais” de forma intercambiável ou mesmo imprecisa (Baker & Beech, 2004; Cecero et al., 2004; Nordahl et al., 2005; Richardson, 2005; Turner et al., 2005). No entanto, um artigo (Schmidt & Joiner, 2004) fez clara distinção entre “EMS” e “crenças subjacentes” conforme as teorias de Young e Beck, afirmando que os EMS têm sua natureza incondicional, enquanto as crenças subjacentes têm sua natureza condicional.

Na revisão sistemática foram identificados termos adicionais empregados como terminologia equivalente aos termos originais (EMS, crenças disfuncionais). Tal categoria incluiu um total de cinco artigos, cujos termos seguem: “esquemas disfuncionais” (no artigo empregado como dysfunctional schemata) (Jovev & Jackson, 2004), “esquemas subjacentes” (underlying schemas) (Jovev & Jackson, 2004); “esquemas do self desadaptativos” (maladaptive self-schemas) (Schmidt & Joiner, 2004); “crenças centrais não-saudáveis” (unhealthy core beliefs) (Turner et al., 2005); “crenças distorcidas” (distorted beliefs) (Cecero et al., 2004) e “esquemas disfuncionais” (dysfunctional schemas) (Sheppard & Teasdale, 2004).

 

Discussão e Conclusões

Apesar da diversidade dos descritores empregados na pesquisa, a necessidade de adotar limitadores constituiu um risco potencial à exclusão de artigos relevantes sobre o tema. Da mesma forma, a falta de estabelecimento de critérios apriorísticos impossibilitou o controle por parte dos pesquisadores de possíveis viéses utilizados pelos juízes na seleção dos artigos.

Considerando os descritores empregados nesta revisão sistemática [“maladaptive schema”, “dysfunctional schema”, “dysfunctional beliefs”, “crença(s) irracional(s)”, “crença nuclear disfuncional”, “crença(s) disfuncional(is)”, “esquema(s) desadaptativo(s)” e “esquema(s) disfuncional(is)”] é importante destacar a elevada representatividade do conceito de EMS desenvolvido por Jeffrey Young. Dos 11 artigos revisados, 63,6% mencionaram este referencial teórico, enfatizando aspectos da definição, origem e funcionamento dos EMS em consonância ao trabalho original deste autor.

Chama a atenção o expressivo número de artigos (63,6%) que utilizaram termos de forma intercambiável, mais comumente entre esquemas e crenças, evidenciando certa imprecisão quanto ao emprego destes termos. Igualmente interessante foi observar que em 45,5% dos artigos foram identificadas terminologias adicionais, em sua maioria sinônimos, utilizados em substituição aos termos originais. Como exemplo, Cecero et al. (2004, p. 344): “através da identificação e mudança de crenças distorcidas ou esquemas, sobre si mesmo ou outros, a terapia cognitiva tem sido aplicada com sucesso na avaliação e tratamento da depressão, ansiedade, e uma gama de transtornos de personalidade” [grifo nosso].

A imprecisão conceitual ou mesmo certa flexibilidade na introdução de terminologia científica pode refletir a diversidade de orientações que caracterizou as TCC desde seus primórdios. Ainda que tal diversidade possa representar um enriquecimento teórico, também acarreta em conseqüências negativas. Por exemplo, o uso de crenças e esquemas como sinônimos (imprecisão conceitual) induz o leitor a um erro básico que é equivaler um conteúdo (crenças) à estrutura (esquema).

O outro problema se refere aos qualificadores empregados na descrição de conceitos como esquemas (disfuncionais; subjacentes; desadaptativos do self; iniciais desadaptativos) e crenças (centrais não-saudáveis; distorcidas; negativas; disfuncionais; desadaptativas). Todos os adjetivos identificados se assemelham por serem sinônimos em certo nível. Contudo, podem exprimir um significado diferente e um aspecto distinto de funcionalidade para cada leitor, variando conforme cultura, tradução etc. Ainda cabe salientar que uma terminologia imprecisa e vasta pode acarretar também em obstáculos ao pesquisador, especialmente quanto à busca de artigos e publicações em bases de dados de literatura científica – como foi o caso dessa pesquisa, com emprego excessivo de descritores e possível omissão de outros, por desconhecimento ou esquecimento. Em uma tentadora analogia com a psicanálise, ainda que revisões tenham ocorrido, os conceitos fundamentais propostos por Sigmund Freud foram, em grande parte, preservados (preservando também a própria teoria). Já na TCC, a confusão ou variabilidade no uso de conceitos tão fundamentais como esquemas e crenças pode trazer conseqüências indesejáveis, como a desintegração teórica, distorções ou mesmo impossibilidade na comunicação. Corroborando com essa idéia, Dobson e Dozois (2006) afirmam:

Assim, enquanto a elaboração de diversos processos e constructos cognitivos específicos é útil, é importante que os teóricos definam os constructos precisamente, e que outras pessoas no campo adotem essas definições. Esse aumento em precisão ajudaria a esclarecer o terreno da teoria cognitivo-comportamental, e também poderia contribuir para as iniciativas de pesquisadores cujo interesse seja a avaliação cognitiva. (p. 37-38)

Finalmente, no intervalo de tempo delimitado (2003-2005), apenas três artigos em língua portuguesa foram identificados nas bases de dados pesquisadas – e nenhum encontrado na base SciELO. É importante notar que nenhum desses artigos foi selecionado pelos juízes. Ainda que as limitações do presente estudo impeçam generalizações a partir dos resultados encontrados, é surpreendente a baixa expressividade da produção nacional em TCC publicada na forma de artigo em periódicos científicos. Logo, parece haver uma priorização dos autores nacionais pela publicação de seus trabalhos na forma de livros ou capítulos de livros. Neste sentido, o surgimento de periódicos científicos orientados às TCC deve servir como um propulsor para a disseminação da produção nacional.

 

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Endereço para correspondência
Endereço do autor principal: Christian Haag Kristensen. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, Sala 936. Porto Alegre, RS, CEP 90619-900.
E-mail: christian.kristensen@pucrs.br

Recebido em: 13/02/2008
Aceito em: 23/04/2008

 

 

Os autores gostariam de agradecer à Professora Dra. Irani Argimon, à Professora Dra. Margareth Oliveira e ao Professores Ms. Wilson Melo pelas suas valiosas contribuições à realização deste trabalho.

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