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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

Print version ISSN 1808-5687On-line version ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.13 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2017

https://doi.org/10.5935/1808-5687.20170016 

10.5935/1808-5687.20170016 RELATOS DE PESQUISAS

 

Avaliação da raiva e das habilidades sociais nos transtornos alimentares

 

Assesment of anger and social skills in eating disorders

 

 

Juliana Furtado D' AugustinI; Vanessa Dordron de PinhoII; Eliane Mary de Oliveira FalconeIII

IDoutorado - (Psicóloga Professora da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO) - Rio de Janeiro - SP - Brasil
IIDoutorado - (Psicóloga Professora da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO)
IIIPós-doutorado - (Professora de Pós-graduação)

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente estudo foi avaliar os níveis de a raiva e habilidades sociais em mulheres com bulimia nervosa (BN) e transtorno da compulsão alimentar (TCA). A amostra foi composta por 21 indivíduos com bulimia nervosa e 25 indivíduos com TCA, comparados a um grupo controle, composto por 21 indivíduos com idade e escolaridade compatíveis com o grupo experimental. Foram utilizados os seguintes questionários: a) Inventário de Expressão de Raiva como Estado; Traço (S.T.A.X.I.); b) Teste de Investigação bulimica de Edinburgh (BITE); c) Escala de Compulsão Alimentar Periódica (ECAP); d) Inventário de Empatia (IE); e) Inventário de Habilidades Sociais (IHS). Os resultados mostram que as mulheres com BN e TCA apresentam maiores níveis de raiva disfuncional quando comparadas a controles normais. Além disso, elas também apresentam maiores déficits em habilidades sociais. Tanto a raiva disfuncional quanto os déficits em habilidades sociais estavam relacionados à maior gravidade da compulsão alimentar. Tais resultados apontam para importância de se considerar tais variáveis no tratamento desses transtornos.

Palavras-chave: Raiva; habilidades sociais; transtornos alimentares.


ABSTRACT

The aim of this study was to assess anger levels and social skills in women with bulimia nervosa (BN) and binge eating disorder (BED). The sample consisted of 21 individuals with bulimia nervosa and 25 individuals with BED, compared to a control group, consisting of 21 individuals with age and education compatible with the experimental group. The following questionnaires were used: a) State-Trait Anger Expression Inventory (S.T.A.X.I.); b) Bulimic Investigatory Test of Edinburgh (BITE); c) Binge Eating Scale (BES); d) Empathy Inventory (EI); e) Social Skills Inventory (SSI). The results have shown that women with BN and BED have higher levels of dysfunctional anger when compared to normal controls. Besides that, they also have higher deficits in social skills. Both dysfunctional anger as deficits in social skills were related to greater severity of dysfunctional eating behavior. Such results points out to the importance of considering these variables in these disorder treatments.

Keywords: Anger; social skills; eating disorders.


 

 

INTRODUÇÃO

Os Transtornos Alimentares (TA) são caracterizados por graves perturbações no comportamento alimentar. Geralmente têm inicio na adolescência, sendo mais prevalente em meninas adolescentes e adultas jovens, e bem menos comum entre homens (APA, 2014; Fairburn & Cooper, 2016). Vários fatores estão associados a sua etiologia, como fatores familiares, socioculturais, biológicos e psicológicos (APA, 2014). Uma vez estabelecidos, esses transtornos são difíceis de tratar e podem desenvolver um curso crônico (Fairburn & Cooper, 2016). Por apresentarem altas taxas de morbidade e cronicidade, a identificação de fatores que contribuem para a manutenção dos TA se torna importante para a elaboração de estratégias de tratamento mais eficazes.

A raiva disfuncional é uma característica psicopatológica importante nos TA, e parece contribuir para a manutenção do transtorno, sendo relacionada principalmente aos episódios de compulsão alimentar e métodos compensatórios (indução de vômitos, uso de laxantes e diuréticos, atividades física excessivas) (Fassino, Leombruni, Pierò, Abbate-Daga & Rovera, 2003). Pesquisadores sugerem que a dificuldade em regular a emoção da raiva pode favorecer a ocorrência de comportamentos alimentares inadequados configurando-se em uma estratégia disfuncional para aliviar o sofrimento e a intensidade da emoção (Connoly, Rieger & Caterson, 2007; Fassino & al., 2003; Laveder et al. 2015; Leehr, et al.2015).

Dados da literatura reforçam essa relação. Milligan & Waller (2000) investigaram as relações entre sintomas bulímicos e raiva em uma amostra não clínica de 87 mulheres. Os resultados mostraram correlações entre estado de raiva e repressão da raiva aos sintomas bulímicos (compulsão alimentar, seguidos de métodos compensatórios). Já em outro estudo, também com uma amostra não clínica, Peñas-Lledó, Fernandez & Waller (2004) encontraram correlações entre elevados níveis de traço de raiva e expressão da raiva com a compulsão alimentar. Entretanto, não houve correlações significativas para os comportamentos compensatórios.

Estudos com amostra clínica de bulímicas também encontraram relações entre raiva e episódios de compulsão alimentar. Os autores sugerem que as dificuldades em expressar a raiva e a tendência a comportamentos agressivos podem estar relacionadas a baixos níveis de assertividade (Miotto et al., 2008).

Outro fator importante a ser considerado nos TA são as dificuldades interpessoais. Segundo Fairburn (2008) problemas interpessoais contribuem significativamente para a manutenção do TA, muitas vezes sendo um gatilho para a ocorrência de episódios de compulsão alimentar. Além disso, dificuldades interpessoais também estão relacionadas à emoção da raiva. De acordo com Deffenbacker e Lynch (2003), 70 % das experiências de raiva são ativadas em situações sociais.

Vários estudos apontam para uma baixa assertividade em indivíduos com TA (Behar et al., 2006; D'Augustin, 2014; Willians et al., 1990; 1993). Apesar de se sentirem controlados pela família e sociedade, de um modo geral, esses indivíduos não conseguem se comportar de forma assertiva. Essa ausência de assertividade pode se manifestar na forma de passividade ou de agressão autodirigida (Behar et al., 2006).

Duchesne et al. (2012) investigou os níveis de habilidades sociais em indivíduos obesos com e sem TCA. Os resultados obtidos mostram que obesos com TCA apresentam maiores dificuldades em situações que demandam a afirmação e a defesa de direitos e com situações que envolvem a autoexposição a pessoas desconhecidas quando comparados a obesos sem TCA e controles normais. Também foram observados déficits na tomada de perspectiva, sugerindo que obesos com TCA apresentam dificuldades para compreender a perspectiva, os sentimentos e os comportamentos das outras pessoas e na flexibilidade interpessoal, indicando maior dificuldade para tolerar diferenças de comportamentos, atitudes e pensamentos dos outros, particularmente quando eles são provocadores de frustração. A tomada de perspectiva e a flexibilidade interpessoal são componentes cognitivos da empatia e são importantes para o estabelecimento de relações interpessoais bem-sucedidas (Duchesne et al. 2012; Falcone, 2012).

Portanto, parece que deficiências na assertividade, na tomada de perspectiva e flexibilidade interpessoal são importantes para um funcionamento social adequado (Falcone, 2012). Tais déficits poderiam estar associados a emoções negativas, como a raiva, e tais afetos negativos poderiam favorecer a ocorrência dos episódios de compulsão alimentar (D'Augustin, 2014; Duchesne et al, 2012).

Assim como elevados níveis de raiva estão associados a comportamentos alimentares disfuncionais, evidências apontam para a relação entre déficits em habilidades sociais e gravidade do comportamento alimentar. A literatura mostra que no tratamento da raiva, o treinamento de habilidades sociais tem sido bastante efetivo. Tal fato pode ser comprovado com pesquisas que mostram o papel moderador da empatia sobre a raiva assim como da importância da assertividade. Como o que é socialmente habilidoso em uma cultura pode não ser em outra, identificar os déficits em habilidades sociais e de que forma eles se relacionam a raiva no contexto brasileiro se torna relevante.

Identificar de que forma a raiva e os déficits em habilidades sociais se relacionam ao comportamento alimentar inadequado no contexto brasileiro se torna relevante para a criação de programas de intervenção que tenham como objetivo ensinar o indivíduo a manejar com a raiva e frustração, aumentando assim, a capacidade de resolução de problemas e diminuindo a ocorrência de comportamentos alimentares inadequados. Portanto, o objetivo desse estudo é avaliar os níveis de habilidades sociais e a raiva, assim como as relações entre essas variáveis com a gravidade do comportamento alimentar disfuncional em mulheres com Bulimia Nervosa e Transtorno da Compulsão Alimentar.

 

MATERIAIS E MÉTODO

Após a aprovação no comitê de ética (33497314.6.0000.5282), iniciou-se a seleção da amostra. Os participantes convidados a participar da pesquisa eram mulheres, com idade mínima de 18 anos e um mínimo de 8 anos de estudo. O grupo com transtornos alimentares foi recrutado no Núcleo de Assistência e Pesquisa em Transtornos Alimentares (NAPTA), ambulatório que funciona na Policlínica Piquet Carneiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro. Foram selecionados os pacientes de primeira vez que foram encaminhados ao ambulatório e ainda não estavam em tratamento para o transtorno alimentar. Após a consulta com a psiquiatria, onde se confirmava o diagnóstico de transtorno alimentar, o mesmo era encaminhado para a consulta com a psicologia, onde era convidado a participar da pesquisa. Os critérios de exclusão para todos os participantes eram: dificuldades para entender ou preencher os questionários de autoinforme, doenças clínicas com impacto no peso e/ou comportamento alimentar (ex. diabetes, hipotireoidismo), já estar em tratamento para transtorno alimentar e uso de medicações que poderiam influenciar no peso e/ou apetite.

A amostra final foi composta por 21 mulheres com bulimia nervosa, com média de idade de 26 anos, e média de 13,8 anos de estudo. O grupo de TCA foi composto por 25 mulheres com idade média de 37,7 anos e média de 12,2 anos de estudo. O grupo controle foi composto por 21 mulheres sem TA com média de idade de 34 anos e média de 14,2 anos de estudo. A idade e escolaridade do grupo controle foram compatíveis com o grupo de mulheres com BN(p=0,15 para idade e p=0,96 para anos de estudo) e TCA (p=0,43 para idade e p=0,77 para anos de estudo) A amostra não clínica foi recrutada através de contatos da pesquisadora.

Foram utilizados neste estudo os seguintes materiais: a) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; b) Ficha do participante; c) Inventário de Expressão de Raiva como Estado; Traço (S.T.A.X.I.); d) Teste de Investigação bulimica de Edinburgh (BITE); e) Escala de Compulsão Alimentar Periódica (ECAP); f) Inventário de Empatia (IE); g) Inventário de Habilidades Sociais (IHS)

a) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido: tem como objetivo de fornecer esclarecimentos sobre a pesquisa, compromisso com a preservação da identidade dos participantes, bem como com o direito destes de desistir de sua participação a qualquer momento, sem qualquer ônus envolvido.

b) Ficha do participante: utilizada para a obtenção de dados pessoais da amostra, como a idade e grau de instrução de cada participante.

c) Inventário de Expressão de Raiva como Estado e Traço (S.T.A.X.I.) (Spielberger & Biaggio, 2003): Construído para avaliar a experiência e a expressão de raiva, essa medida consiste de 44 itens que formam seis escalas e duas subescalas, especificadas abaixo:

Estado de Raiva: mede a intensidade dos sentimentos de raiva em um determinado momento. Consiste de sentimentos subjetivos de tensão, aborrecimento, irritação e fúria, acompanhados de estimulação do sistema nervoso autônomo e pressupõe que a raiva varia em intensidade e flutua com o passar do tempo como uma percepção de injustiça ou frustração resultante do impedimento do comportamento dirigido a um objetivo (10 itens).

Traço de Raiva: mede as diferenças individuais na disposição e na frequência para vivenciar a raiva, através de duas sub-escalas: Temperamento Raivoso (propensão geral para vivenciar e expressar a raiva sem provocação específica - 4 itens) e Reação de Raiva (diferenças individuais na expressão da raiva quando criticado ou tratado injustamente - 4 itens).

Raiva para Dentro: mede a frequência com que os sentimentos de raiva são reprimidos ou guardados, ou dirigidos a si mesmo (8 itens).

Raiva para Fora: mede a frequência com que o indivíduo expressa raiva em relação aos outros ou a objetos. Pode ser expressa através de atos físicos, tais como agredir os outros, ou na forma de críticas, insultos, ameaças verbais e uso extremo de palavrões. (8 itens).

Controle da Raiva: mede a frequência com que cada indivíduo tenta controlar a expressão da raiva, utilizando recursos que abrandam a raiva. (8 itens).

Expressão da Raiva: fornece um índice geral sobre a frequência com que a raiva é expressa, sem levar em conta a direção da expressão (24 itens das escalas de Raiva para dentro, Raiva para fora e Controle da Raiva).

As respostas dos sujeitos são classificadas numa escala de quatro pontos que avalia a intensidade dos sentimentos de raiva, bem como a frequência com que a raiva é vivenciada, expressada, reprimida ou controlada.

d) Teste de Investigação Bulímica de Edinburgh (BITE) para a BN- identifica indivíduos com compulsão alimentar e avalia os aspectos cognitivos e comportamentais relacionados à bulimia. Possui duas escalas: escala de sintomas e escala de gravidade. Na escala de sintomas, um escore maior ou igual a 20 indica um padrão alimentar muito perturbado e a presença de compulsão alimentar; escores médios (entre 10 e 19) sugerem padrão alimentar não usual, e necessitam de avaliação por uma entrevista clínica. Na escala de gravidade, um escore maior ou igual a 5 é considerado clinicamente significativo, e um escore maior ou igual a 10 indica elevado grau de gravidade. O teste já foi traduzido para o português (Cordás & Hochgraf, 1993). Sua confiabilidade foi avaliada e o coeficiente Kappa obtido foi de 0,85 (Magalhães & Mendonça, 2005).

e) Escala de Compulsão Alimentar Periódica (ECAP) para TCA - questionário amplamente utilizado e desenvolvido para avaliar a compulsão alimentar em indivíduos obesos. É composto por 16 grupos de afirmações, onde o sujeito marca a afirmação que o melhor descreve. Esse questionário avalia as manifestações comportamentais, os sentimentos e cognições envolvidos num episódio de compulsão alimentar. Já validada para a população brasileira (Freitas, Lopes, Coutinho & Appolinario 2001), com adequadas propriedades psicométricas (α = 0,85) que indicam um ponte de corte de 17 para o rastreamento do TCA.

f) Inventário de Empatia (I.E) (Falcone et al., 2008)- construído para avaliar a capacidade de interagir de forma empática em várias situações interpessoais. É composta de 40 itens divididos em quatro fatores: 1- Tomada de Perspectiva (TP), que avalia a capacidade para compreender a perspectiva e os sentimentos da outra pessoa (12 itens); 2- Flexibilidade (Fl), identifica a capacidade para entender e aceitar pontos de vista diferentes (10 itens); 3- Altruísmo (A), avalia a capacidade para sacrificar temporariamente as próprias necessidades em beneficio das necessidades da pessoa-alvo (9 itens); 4- Sensibilidade Afetiva (SA), revela sentimentos de compaixão e de interesse pelo estado emocional da outra pessoa (9 itens). As respostas dos sujeitos são avaliadas em uma escala do tipo Likert, que varia do 1 (nunca) até 5 (sempre). A análise de consistência interna dos fatores revelou coeficientes Alpha de Cronbach igual a 0,8525 para o fator 1; 0,7745 para o fator 2; 0,7496 para o fator 3 e 0,7222 para o fator 4, indicando confiabilidade do instrumento (Falcone et al., 2008).

g) Inventário de Habilidades Sociais (IHS- Del Prette & Del Prette, 1998) - instrumento que avalia cinco fatores de habilidades sociais. Os estudos com o IHS - Del Prette indicam uma consistência interna satisfatória para a escala total (α= 0,75) e para cada um de seus fatores: F1 - enfrentamento e auto-afirmação com risco (α = 0,9650); F2 auto-afirmação na expressão de sentimento positivo (α = 0,8673); F3 - conversação e desenvoltura social (α= 0,8187); F4 auto-exposição a desconhecidos e situações novas (α = 0,7525); e F5 autocontrole da agressividade (α = 0,7413). É composto por 38 itens que caracterizam interações sociais em contextos diversos.

h) Self Report Questionnaire (SRQ 20) - desenvolvido por Harding et al. (1980) e validado no Brasil por Mari e Willians (1986), essa medida identifica distúrbios psiquiátricos em nível de atenção primaria (Smaira, Kerr-Corrêa & Contel, 2003). É composta de 24 itens, dentre os quais, 20 avaliam distúrbios neuróticos e quatro identificam distúrbios psicóticos. Considerando-se que esses itens são pouco úteis, a recomendação da OMS é de que estes sejam omitidos (Smaira, Kerr-Corrêa & Contel, 2003). Os pontos de corte baseados nos 20 itens são 7, para os homens e 5 para as mulheres. Eles discriminam grupos de indivíduos com maior ou menor probabilidade de apresentar um quadro psiquiátrico.

 

PROCEDIMENTO

Após a consulta com a psiquiatria, onde o diagnóstico de transtorno alimentar é confirmado através da Entrevista Clínica Estruturada para Transtornos do Eixo I do DSM-IV, versão do paciente (Versiani, 1996), o mesmo é encaminhado para a consulta com a psicologia. Os objetivos da pesquisa são explicados e é ressaltado que a mesma consiste no preenchimento de questionários, que a participação é voluntária e em nada interfere no tratamento oferecido pelo ambulatório.

Os participantes do estudo receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e adicionalmente, as seguintes medidas de autoinforme foram aplicadas: Inventário de Empatia (I.E.) e o Inventário de Habilidades Sociais (IHS), para a avaliação das habilidades sociais; STAXI para a avaliação da raiva. Para a avaliação da gravidade do comportamento alimentar, o grupo de BN recebeu o Teste de Investigação Bulímica de Edinburgh e o grupo de TCA recebeu a Escala de Compulsão Alimentar Periódica.

O grupo controle foi selecionado a partir de contatos da pesquisadora. Os participantes preenchiam o SRQ 20, e apenas os indivíduos com escore inferior a cinco (ponto de corte para mulheres), foram selecionados. Em seguida, foram aplicados os seguintes testes: Teste de Investigação Bulímica de Edinburgh, Escala de Compulsão Alimentar Periódica, Inventário de Empatia (I.E.), o Inventário de Habilidades Sociais (IHS), e o STAXI.

 

ANÁLISE DOS DADOS:

Os dados foram digitados em uma planilha Excell, e posteriormente analisados no pacote estatístico SPSS versão 20. Os escores dos participantes foram comparados aos escores do grupo controle através do teste não paramétrico de Kruskal-Wallis. Foi feito também a correlação de Spearman, para avaliar a relação entre as variáveis estudadas.

 

RESULTADOS

Na avaliação da raiva, o grupo de BN apresentou maiores médias no STAXI, quando comparado ao grupo controle em todas as subescalas, com exceção da subescala controle da raiva. A diferença foi significativa para todas elas conforme observado na tabela 1. O grupo de TCA também apresentou maiores médias no STAXI, quando comparado ao grupo controle, com exceção da subescala controle da raiva. No entanto, a diferença só foi significativa para as subescalas estado de raiva, traço de raiva, temperamento, controle da raiva e expressão.

Em relação às habilidades sociais, no grupo de bulímicas, as médias foram menores e significativas no fator 2 (autoafirmação na expressão de sentimentos positivos), no fator 3 (conversação e desenvoltura social), no fator 4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas) e no fator 5 (autocontrole da agressividade). Não houve diferença significativa entre o grupo de TCA e o grupo controle.

Na avaliação da empatia, o grupo de BN apresentou diferenças significativas na tomada de perspectiva, quando comparado ao grupo controle e TCA (p<0,01) e na flexibilidade interpessoal, quando comparado ao grupo controle (p<0,01). Também não houve diferenças significativas na comparação do grupo de TCA e controles. Os resultados são apresentados na tabela 2.

Para avaliar a relação entre a gravidade do comportamento alimentar, habilidades sociais, empatia e a raiva, foi realizada a correlação de Spearman. Em relação às pacientes bulímicas, as correlações foram negativas e significativas para todos os fatores do IHS, com exceção do fator 1 (enfrentamento e autoafirmação com risco). No IE, as correlações foram negativas e significativas apenas para os fatores tomada de perspectiva e flexibilidade interpessoal.

Em relação à raiva, as correlações foram positivas para todos os fatores do STAXI, com exceção do controle da raiva, cuja correlação foi negativa. A significância estatística foi encontrada em todos as subescalas, com exceção da raiva para fora. Tais resultados podem ser observados na tabela 3.

Já no TCA, conforme se observa na tabela 4, as correlações entre o IHS e a gravidade da compulsão alimentar não foram significativas. No IE, a tomada de perspectiva se correlacionou de forma significativa com a ECAP. Na avaliação da raiva, os resultados mostram que todos os fatores do STAXI se correlacionaram significativamente com a ECAP, com exceção da raiva para dentro, raiva para fora e reação. O fator controle da raiva foi o único que se correlacionou negativamente.

E por fim, nas correlações entre o STAXI, o IHS e IE, os seguintes resultados foram encontrados e apresentados na tabela 5. A raiva estado se correlacionou de forma negativa e significativa com todos os fatores do IHS, e com todos os fatores do IE. A raiva-traço se correlacionou significativamente o fator 3 (conversação e desenvoltura social), fator 4 (autoexposição a desconhecidos e situações novas) e fator 5 (autocontrole da agressividade) do IHS e com os fatores tomada de perspectiva e flexibilidade interpessoal do IE. A raiva para dentro se correlacionou de forma significativa com todos os fatores do IHS, com exceção do fator 5 (autocontrole da agressividade) e com o fator tomada de perspectiva do IE. Já a raiva para a fora se correlacionou somente com os fatores flexibilidade interpessoal e altruísmo. A expressão da raiva se correlacionou com todos os fatores do IHS, com exceção do fator1, e com todos os fatores do IE.

 

DISCUSSÃO

O objetivo do presente estudo foi avaliar a raiva disfuncional e as habilidades sociais, assim como a correlação das mesmas com o comportamento alimentar inadequado. Segundo Spielberger & Biaggio (2003), indivíduos com um traço de raiva elevado tenderão a experienciar estados emocionais de raiva mais intensos e frequentes do que aqueles com traços inferiores de raiva. Os resultados obtidos mostram que tanto as mulheres com BN quanto as com TCA apresentam traço de raiva mais elevado quando comparadas a mulheres sem TA, o que aumenta as chances de se vivenciar e expressar a raiva com mais frequência. Os problemas na modulação e expressão da raiva podem aumentar a ocorrência de comportamentos agressivos, consequências negativas como prejuízo a si mesmo após comportamentos impulsivos e dificuldades interpessoais (Deffebacker, 2011; Spielberger & Biaggio, 2003). O entendimento de que existem características psicopatológicas comuns entre os TA, como a agressividade e problemas interpessoais, por exemplo, sugerem que tanto a raiva, como as habilidades sociais podem ser fatores importantes na formação e manutenção do transtorno (Fairburn, 2008; Fassino et al., 2001). Vale ressaltar que a raiva pode ser provocada por uma violação de valores pessoais, códigos de conduta, pela transgressão de um domínio pessoal e/ou no impedimento de se alcançar uma meta (Spielberger & Biaggio, 2003). No entanto, a experiência da mesma, assim como sua expressão vão depender do significado que o individuo atribuirá aquela experiência (Beck, 1999; Deffenbacker, 2011). Em relação à expressão da raiva, pode-se observar que a mesma é disfuncional tanto para a BN, quanto para o TCA. Nesse estudo, mulheres com BN apresentam maiores níveis de raiva para dentro, ou seja, os sentimentos de raiva são reprimidos ou guardados, ou ainda dirigidos a si mesmo. Pode-se argumentar que os métodos compensatórios sejam uma forma de agressão autodirigida, uma vez que tanto a purgação, quanto o abuso de laxantes e exercícios em excesso, por exemplo, ocorrem após os episódios de compulsão alimentar, que geram culpa e tristeza. Talvez esse comportamento, além de ter como objetivo evitar o ganho de peso, possa também ter uma função de punição por não ter se controlado em relação à alimentação exagerada. As mulheres com BN também apresentaram maiores níveis de raiva para fora, indicando uma maior propensão a expressar sua raiva em relação aos outros ou a objetos. Na literatura, a raiva para fora tem sido relacionada principalmente aos episódios de compulsão alimentar. Além disso, a gravidade do comportamento alimentar (compulsão alimentar e purgação) se correlacionou de forma negativa com a raiva, indicando que quanto maior a raiva disfuncional, maior a gravidade tanto da BN quanto do TCA (Miotto et al., 2008).

Segundo Novako (2011), a característica central da raiva no contexto dos problemas clínicos é que ela é disfuncional, ou seja, sua ativação, expressão e experiência ocorrem de forma inapropriada. Além disso, a raiva pode se tornar um impedimento aos esforços de mudança em tratamentos clínicos.

A baixa tolerância a emoções negativas favorece a busca por soluções imediatas que reduzam o sofrimento, mas estas não necessariamente resolvem o problema desencadeador de tal emoção (Connoly, et al., 2007; Fassino et al.,2003; Lavender et. al, 2015; Leehr et al. 2015). Considerando a compulsão alimentar como uma estratégia para manejar o afeto negativo, podemos considerar que a mesma serve para a redução do sofrimento, uma vez que muda o foco da atenção para a comida. Por essa razão, acaba sendo reforçada negativamente. Por outro lado, as dificuldades para solucionar os problemas reais, levam a um ciclo que se perpetua, onde problemas geram sentimentos de raiva, que por sua vez desencadeiam episódios de compulsão alimentar. Como o problema não é resolvido, a emoção da raiva permanece, iniciando novamente o ciclo.

A literatura já apontava que a maior parte das situações geradoras de raiva estaria associada a um contexto interpessoal (Deffenbacker & Lynch, 1998; Yu & Selby, 2013). A dificuldade em pensar em estratégias funcionais de solução de problemas pode ser influenciada pelos déficits em habilidades sociais encontrados nessas mulheres. Nesse estudo, o comportamento bulímico se correlacionou negativamente com as seguintes situações sociais: a) autocontrole da agressividade; b) auto-afirmação na expressão de afeto positivo (caracterizado por expressão de afeto positivo e afirmação da autoestima), c) conversação e desenvoltura social (retrata situações de iniciar, manter e encerrar conversações) e d) auto exposição a desconhecidos ou a situações novas (inclui a abordagem de pessoas desconhecidas). Além disso, também foi possível observar que déficits na tomada de perspectiva e na sensibilidade afetiva se correlacionaram com uma maior gravidade no comportamento bulímico. Em mulheres com TCA, apenas a tomada de perspectiva estava relacionada à maior gravidade da compulsão alimentar.

Tanto a assertividade, quanto a empatia são importantes na manutenção de relações interpessoais satisfatórias (Falcone, 2000). A assertividade é caracterizada pela expressão de pensamentos e sentimentos de uma forma que não seja agressiva. Além de contribuir para solução de problemas, está associada a autoestima elevada (Alberti & Emmons, 2008). Déficits nessa habilidade podem ser encontrados em indivíduos com TA, que geralmente não expressam seus sentimentos e emoções, e/ou quando o fazem, é de uma forma agressiva, o que também não contribui para a solução de problemas (Behar et al, 2006; D'Augustin, 2014).

A empatia, mais especificamente, a tomada de perspectiva também é prejudicada nessas mulheres. Uma vez que pacientes com transtornos alimentares estão constantemente preocupadas com a rejeição dos outros e com o impacto que sua aparência pode causar, estas provavelmente tenderão a prestar pouca atenção às necessidades daqueles com quem interagem, prejudicando a capacidade de compreender o outro de forma acurada, e como consequência, aumentando as chances de desentendimentos e conflitos, que por sua vez, favorecem a ocorrência de raiva.

Essa relação da raiva com as habilidades sociais também pode ser observada. Ou seja, maiores níveis de raiva disfuncional estavam correlacionados a maiores déficits em habilidades sociais (assertividade e empatia). Essa relação influenciou a gravidade do comportamento alimentar. Isso é compreensível a partir das constatações de que existe uma baixa tolerância à frustração e a emoções negativas, como a raiva, por exemplo. Na tentativa de aliviar o sofrimento, a compulsão alimentar surge como uma estratégia de enfrentamento, que pode ser caracterizada como disfuncional, pois não resolve o problema em si. No entanto, essas mulheres não apresentam habilidades sociais necessárias para buscar uma solução assertiva e empática, diminuindo as chances de solução dos problemas. Dessa forma, a compulsão alimentar continua sendo a primeira escolha para diminuir a consciência da raiva e como consequência reduzir o sofrimento.

Considerando-se a importância da assertividade, da capacidade para lidar com situações novas, da tomada de perspectiva e da flexibilidade interpessoal para um adequado funcionamento social e para a obtenção de metas em diversas situações interpessoais, pode-se especular que os déficits de habilidades sociais observados no estudo poderiam estar associados com níveis aumentados de raiva e frustração, relacionados a diversas situações do dia a dia. Como afetos negativos estão implicados na ocorrência da compulsão alimentar, é possível que os déficits de habilidades sociais encontrados possam, de fato, favorecer a ocorrência da compulsão alimentar.

Levando-se em consideração as evidências acima descritas, torna-se necessário pensar em estratégias que tenham como objetivo aumentar as capacidades de manejo da raiva, solução de problemas, assim como de aumentar a tolerância a frustração.

Alguns autores sugerem que intervenções focadas na emoção seriam úteis para o manejo da raiva disfuncional (Krug et al.,2008). Eles argumentam que a experiência da raiva em indivíduos com TA ocorre com uma certa frequência e sua intensidade costuma alcançar níveis elevados muito rapidamente. Considerando traços de personalidade e comorbidades muitas vezes associadas ao TA, eles sugerem, por exemplo, que a terapia dialética comportamental poderia ser uma opção de tratamento. Essa terapia tem sido aplicada a pacientes com BN e TCA, e tem como objetivo aumentar a eficácia interpessoal, regulação emocional, tolerância a estresses e autocontrole ( Fassino et al.,2003; Krug et al.,2008).

Uma outra alternativa seria incluir nos protocolos de tratamento de TA, intervenções para manejo da raiva. Essas intervenções incluem, na sua maioria, técnicas cognitivas para reestruturação de pensamentos e crenças disfuncionais subjacentes a raiva, assim como técnicas de relaxamento, que visam a diminuição da excitabilidade emocional e orgânica (Flanagan et al., 2010).

Fairburn (2008), considerando as características comuns aos TA, concluiu que as dificuldades interpessoais eram fatores importantes na manutenção do transtorno. Dessa forma, ele incluiu no seu protocolo de tratamento, um módulo específico para trabalhar essas dificuldades. No entanto, percebe-se que a literatura acerca dos déficits em habilidades sociais em indivíduos com TA ainda é escassa, e a maioria dos protocolos de tratamento, tem como objetivo desenvolver habilidades sociais de uma forma geral. A identificação de situações sociais específicas, assim como suas habilidades mais deficitárias pode contribuir para a elaboração de treinamentos em habilidades sociais mais efetivos para essa população. Além de melhorar o funcionamento social, a literatura mostra que as habilidades sociais (assertividade e empatia) também são importantes na redução da raiva. A assertividade aumenta a capacidade de solução de problemas, ao contrário do comportamento passivo e agressivo. Esses últimos estão relacionados a expressões disfuncionais da raiva, como a raiva para dentro e raiva para fora. A empatia também exerce influencia na experiência da raiva. Estudos que avaliaram a relação da empatia com a raiva disfuncional, observaram que a tomada de perspectiva desempenha papel importante no controle dessa emoção, que pode ser inibida pela compreensão precisa dos sentimentos e pensamentos de outra pessoa (Falcone, 2008; Morh et al.,2007).

Algumas limitações devem ser consideradas nesse estudo. Primeiro, foram utilizadas amostras relativamente pequenas, sendo possível que diferenças sutis entre os grupos avaliados não tenham sido detectadas. Adicionalmente, a amostra selecionada consistiu apenas de mulheres e os resultados não podem ser generalizados para homens. Além disso, o estudo realizado foi transversal, não sendo, portanto, possível avaliar relações de causalidade ou temporalidade.

Entretanto, vale ressaltar que, apesar das limitações, foi possível identificar não só a presença da raiva disfuncional em pacientes com TA, assim como a relação existente entre essa emoção e déficits em habilidades sociais. Essas evidências podem contribuir para o planejamento de intervenções que complementem os protocolos de tratamento utilizados atualmente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação da raiva e dos déficits em habilidades sociais com o comportamento alimentar disfuncional foi confirmada na presente pesquisa. Foi possível perceber que mulheres com TA apresentam maiores níveis de raiva disfuncional quando comparadas a controles normais. Além disso, a raiva geralmente é ativada em situações interpessoais, o que reforça a relação entre déficits em habilidades sociais e essa emoção.

Para diminuir o desconforto emocional gerado pela raiva, a estratégia utilizada foi o comer. A compulsão alimentar então assume uma função de aliviar o desconforto, se caracterizando como um reforço negativo. O problema dessa estratégia é que ela não resolve o problema, e portanto não é duradoura. No entanto, por reduzir a raiva, ela se configura na primeira opção de solução nessas situações. Por essa razão, o ciclo: situações interpessoais negativas, raiva e episódios de compulsão alimentar se perpetua.

É importante enfatizar que as experiências negativas podem ser influenciadas por padrões de pensamento distorcido. Portanto, a reestruturação cognitiva dessas distorções também pode reduzir a frequência da compulsão alimentar.

O desenvolvimento de habilidades sociais pode ser um importante auxiliar no tratamento, pois seus benefícios vão além da melhora dos relacionamentos interpessoais. A literatura aponta para o efeito moderador da empatia sobre a raiva, principalmente dos seus componentes cognitivos (tomada de perspectiva e flexibilidade interpessoal). Esses componentes envolvem processos sofisticados que incluem a autoconsciência e consciência do outro, autorregulação e flexibilidade, processos fundamentais nas interações sociais, especialmente naquelas em que as informações são ambíguas e/ou frustrantes para o indivíduo.

A assertividade também pode ser útil, uma vez envolve a expressão de pensamentos e sentimentos, respeitando o outro, e aumentando as chances de resolução de conflitos. Tanto a passividade, quanto a agressividade são comportamentos que favorecem a emoção da raiva, justamente por não tentar resolver a situação, ou por fazê-lo de forma inadequada.

Por fim, esses resultados podem contribuir para pesquisas futuras com intervenções para manejo da raiva e desenvolvimento de habilidades sociais em pacientes com TA.

 

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Correspondência:
Juliana Furtado D'Augustin.
Instituição: Policlínica Piquet Carneiro - PPC/UERJ Universidade Salgado de Oliveira - Universo
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Rio de Janeiro - RJ. CEP: 20550-140
E-mail: julidaugustin@yahoo.com.br

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 10 de Dezembro de 2017. cod. 572.
Artigo aceito em 01 de Maio de 2018.

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