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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas
Print version ISSN 1808-5687On-line version ISSN 1982-3746
Rev. bras.ter. cogn. vol.15 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2019
https://doi.org/10.5935/1808-5687.20190021
ENTREVISTA
Entrevista com Paulo Machado
Entrevistadores: Renata Ferrarez; Juliana D'Augustin; Angela Donato Oliva
Paulo P. P. Machado é professor catedrático de Psicologia na Universidade do Minho em Portugal. É fellow da Academy for Eating Disorders e ex-presidente da Eating Disorder Research Society. Foi executive officer da Society for Psychotherapy Research e editor do Journal Psychotherapy Research. É membro dos conselhos editoriais das mais importantes revistas internacionais na área dos transtornos alimentares. Esta entrevista foi realizada durante o XII Congresso Brasileiro de Terapias Cognitivas, que ocorreu em Fortaleza, de 6 a 9 de abril de 2019.
RBTC: Professor Paulo, nós podemos começar a entrevista procurando traçar sua história e suas contribuições, que são muitas, no campo dos transtornos alimentares. Se tomarmos como ponto de partida o seu Ph.D. em 1993, na University of California, e seu interesse àquela época, que era o treinamento dos terapeutas para o reconhecimento das emoções, como se desenvolveu seu interesse pelos transtornos alimentares, especialmente pelos pacientes bariátricos?
Paulo Machado: Durante meu treino na University of California, eu atendi uma paciente que tinha transtorno alimentar como parte dos meus treinamentos, meu "Practice" como terapeuta durante o doutorado. Quando regressei a Portugal, fui contatado por um colega da Society for Psychotherapy Research que tinha um projeto em que tentavam recolher dados em vários países europeus sobre o tratamento dos transtornos alimentares. Inicialmente, eu recusei. Eu disse: "Não é minha área; não tenho grande experiência nisso". No ano seguinte, encontramo-nos na mesma conferência. Eu fui a uma reunião e pensei: se vou participar em um grupo como esse, devo começar uma investigação nessa área. O interesse pelo tema surgiu e começamos a contatar vários hospitais e centros de tratamento em Portugal, e desenvolvemos o nosso primeiro projeto na área. Desde então, o interesse pelos transtornos alimentares foi se desenvolvendo. Sua pergunta sobre o início desse trabalho tem algo curioso. Minha tese de doutoramento foi sobre a identificação das emoções e os processos emocionais e agora quase que se fecha um ciclo, porque nos projetos mais recentes nós estamos tentando compreender um pouco melhor de que modo os contextos de desregulação emocional são importantes no tratamento dos transtornos alimentares, especialmente da bulimia nervosa.
RBTC: A cirurgia bariátrica parece ser um tema de interesse atual da sua equipe.
Paulo Machado: É um tema de interesse atual e eu costumo me referir a isso quase como um spin-off do nosso grupo de investigação. A minha colega Dra. Eva Conceição, que fez o doutorado em nosso grupo de investigação, é que começou a desenvolver interesse nessa área e, ao mesmo tempo, cirurgiões gástricos pediram nossa ajuda no trabalho com esses pacientes. Eva buscou ver de que modo os conhecimentos que nós tínhamos adquirido no trabalho com os transtornos alimentares podiam ser úteis para os problemas que frequentemente vão surgindo após a cirurgia bariátrica. Eva tomou a frente dessa vertente do nosso grupo de investigação. Continuamos a colaborar nesse projeto, mas foi quase um spin-off. Nossa meta eram os transtornos alimentares. Mas o trabalho com os pacientes que foram submetidos à cirurgia bariátrica mostrou-se fértil para tentarmos compreender quais aspectos subjacentes aos transtornos alimentares, como desregulação emocional ou impulsividade, estão presentes nos casos de eventual insucesso após a cirurgia.
RBTC: Esses estudos envolvem tanto pacientes pré-cirúrgicos quanto pós-cirúrgicos?
Paulo Machado: Inicialmente, pré-cirúrgicos e, depois, em função dos resultados da linha de investigação que Eva foi coordenando, passamos a atuar no acompanhamento pós-cirúrgico, principalmente a partir do primeiro ano após a cirurgia, momento em que com frequência começa a aparecer o reganho de peso. Então, tentamos compreender o que está associado ao reganho de peso e como podem ser detectados casos em que eventualmente a intervenção psicológica ou psicoterapêutica possa ser útil. Busca-se identificar comportamentos menos adequados, quase equivalentes aos sintomas bulímicos. Pacientes bariátricos não conseguem comer grandes quantidades de comida. Um comportamento que temos interesse em estudar é o de petiscar de maneira contínua, no qual as pessoas comem frequentemente pequenas quantidades, portanto, não se caracteriza como um episódio bulímico na definição tradicional; pode estar associado a uma perda do controle da alimentação e é isso também que nos tem interessado.
RBTC: Vocês têm enfrentado a dificuldade relacionada aos pacientes desistirem de dar continuidade ao tratamento? Aqui no Brasil, à medida que vão perdendo peso, eles tendem a abandonar o tratamento.
Paulo Machado: Eva responderia melhor a essa questão, mas posso dizer que a experiência que temos tido é que os pacientes ficam muito agradecidos e satisfeitos com o fato de estarem sendo contatados depois da cirurgia e por termos programas de acompanhamento via internet. Esses programas possibilitam contatar os pacientes e monitorar seu avanço, além de propiciar o tratamento de eventuais problemas alimentares que surgem desse processo.
RBTC: Poderia falar brevemente sobre o programa de seu grupo, via internet, denominado Mind the Gap?
Paulo Machado: É o uso da internet (em um programa de acompanhamento) com os pacientes bariátricos. O Mind the Gap é o espaço entre a cirurgia e a adaptação. A ideia é ir acompanhando os comportamentos, especificamente, monitorando os fatores preditivos de sucesso e intervindo, o mais cedo possível, em situações-problema. O objetivo é a disseminação de um tratamento eficaz. Quando os pacientes estão longe dos centros que contam com recursos terapêuticos, o melhor é usar a tecnologia de informação como modo de atingir esses pacientes realizando estratégias de seguimento, como técnicas de intervenção.
RBTC: Em 2012 o senhor presidiu a Eating Disorders Research Society. Quais aspectos dos transtornos alimentares têm sido foco de interesse dessa sociedade nestes últimos anos e qual o papel da terapia cognitivo-comportamental nesses interesses?
Paulo Machado: Presidir a Eating Disorders Research Society foi uma grande honra, eu fiquei muito satisfeito, visto que ela é uma sociedade científica com características muito particulares. Temos um grupo muito restrito de membros, com participantes de todo o mundo, atuando de forma multidisciplinar. São pessoas interessadas em diferentes pesquisas nessa área. Portanto, os encontros da sociedade são sempre momentos muito intensos de trocas de investigação. São discutidas e apresentadas pesquisas sobre quase todas as vertentes dos transtornos alimentares, desde a investigação genética, aspectos médicos, sociais, terapêuticos, e é o espaço no qual os avanços são apresentados e discutidos. Se pensarmos nos aspectos mais interessantes em termos de tratamento, considerando a melhora para a bulimia nervosa e para a compulsão alimentar, pode-se afirmar que a terapia cognitiva é bastante eficaz para um número considerável de pacientes. No entanto, há pacientes que não respondem a esse tratamento ou que não conseguem apresentar as melhorias que esperamos. Precisamos incluir módulos relativos a problemas interpessoais, regulação emocional, e esses aspectos estão sendo estudados. Na anorexia grave e persistente, há um subgrupo de pacientes que apresenta um curso relativamente crônico do transtorno. Uma maneira de ajudar esses pacientes é melhorar a qualidade de vida.
RBTC: O senhor nos apresentou ontem no workshop o protocolo de Fairburn, que tem características transdiagnósticas e com o qual o senhor está trabalhando agora em seu centro. Há resultados e evidências de eficácia?
Paulo Machado: Sim. A terapia cognitiva para o tratamento da bulimia nervosa e do transtorno do comer compulsivo é consensualmente considerada tratamento de primeira linha. As diretrizes do sistema de saúde inglês elegeram a terapia cognitiva como tratamento de primeira linha, e é a primeira vez que um tratamento psicológico tem essa indicação para um transtorno importante. A TCC é claramente eficaz e tem impacto claro nesses pacientes. Mas ainda é preciso melhorar, pois não funciona para todos. Buscamos encontrar uma forma de lidar com os pacientes que não têm o resultado que esperaríamos e gostaríamos de ter.
RBTC: Em sua opinião, por que alguns pacientes não respondem tão bem? É um problema da técnica da TCC ou alguma outra abordagem talvez fosse mais eficaz.
Paulo Machado: Uma das coisas que eu defendi, quer ontem no workshop, quer hoje na minha conferência, é que eu acho que não se trata tanto de rótulos da abordagem terapêutica ou de substituir um tipo de terapia por outra. Trata-se de perceber quais são os mecanismos psicológicos que estão mantendo o transtorno e perceber quais as estratégias terapêuticas que podemos utilizar para maximizar o impacto da nossa intervenção. A regulação emocional parece ser importante não apenas para o grupo de pacientes com transtornos alimentares. Não faz sentido dizer que agora vamos substituir a psicoterapia cognitiva de abordagem clássica por uma terapia focada nas emoções porque isso pode não ser bom para todas as pessoas, porque se mudássemos a abordagem cognitiva ajudaríamos um subgrupo e deixaríamos de ajudar outro subgrupo. Eu acho que é importante continuar buscando aumentar nossos conhecimentos acerca do transtorno, sobre o que o mantém, bem como tentar maximizar o impacto das nossas intervenções, selecionando as estratégias que parecem ser adequadas para lidar com aquela constelação de sintomas e o modo como estão dinamicamente se mantendo. Eu gosto particularmente desse modelo de rede para a explicação da psicopatologia, porque deixa-nos compreender como é que os sintomas interagem e se mantêm simultaneamente e como perpetuam o transtorno. Uma das coisas curiosas dos transtornos alimentares é que a partir de certo momento eles tendem a se autoperpetuar se não houver intervenção, e, dificilmente, as pessoas tendem a abandoná-los, porque são mecanismos de manutenção muito potentes.
RBTC: Até porque se trata de uma função biológica, o comer...
Paulo Machado: Exatamente. E claramente os aspectos biológicos são muito importantes nesses transtornos. Em determinados momentos, entram em funcionamento mecanismos de manutenção como adaptação à fome, adaptações biológicas ao peso baixo, desregulação dos sistemas de fome e saciedade, as funções metabólicas e uma série de outras coisas que nós estamos começando agora a compreender, como as alterações do microbioma decorrentes de certos comportamentos alimentares, as implicações genéticas e epigenéticas sobre como um determinado gene pode corresponder a manifestações fenotípicas diferentes.
RBTC:A anorexia está associada a diferentes transtornos da personalidade. Qual o papel das comorbidades nesse tratamento?
Paulo Machado: Há comorbidades quando os sintomas que nós identificamos em cada paciente correspondem a classificações distintas. Outro modo de olhar para isso, em minha opinião, é que, se tivermos uma perspectiva de rede dos sintomas, podemos pensar que esses sintomas interagem mutuamente. Se considerarmos a existência de um aglomerado (cluster) de sintomas que podem ser classificados como transtorno alimentar, encontramos de forma associada as dificuldades de regulação emocional e as respostas a acontecimentos de vida. Se a pessoa não tem as estratégias adaptativas para lidar com essa experiência emocional, ela se envolve em comportamentos de regulação emocional inadequados típicos do transtorno alimentar, como, por exemplo, ingestão compulsiva e, depois, provocar vômito. Há pessoas que dizem que isso acalma. Há outros comportamentos de desregulação emocional que podem ser os ferimentos autolesivos ou os exercícios físicos exagerados. Se quisermos compreender melhor como essas comorbidades ocorrem, precisamos entender como essas constelações de sintomas estão associadas e quais são os nós que explicam o modo como esses sintomas estão associados. Então é isso que eu defenderia. É mais interessante em termos de intervenção pensar o que está acontecendo com essa pessoa específica, em vez de pensar que essa pessoa tem dois transtornos e não saber qual começar a tratar primeiro ou se seria melhor tratar ambos ao mesmo tempo. Isso é o que eu acho que pode ser um desenvolvimento futuro em termos de psicoterapia.
RBTC: Quando a gente fala de transtorno alimentar, é preciso sempre falar da família, pois ela tem um papel importante tanto no desenvolvimento quanto na manutenção dos sintomas. E o senhor falou que não faz a terapia familiar, mas traz a família para o tratamento. Como funciona?
Paulo Machado: Eu trabalho basicamente com adultos. Portanto a intervenção familiar é uma intervenção específica que foi desenvolvida no hospital de Maudsley, que tem uma versão um pouco mais atualizada e parece ser um tratamento de primeira linha e eficaz para a anorexia nervosa em adolescentes. Em adultos com bulimia nervosa, a necessidade do envolvimento da família não é tão clara. Na realidade, eu não faço terapia familiar, embora possa fazer sentido envolver a família ou o parceiro, a pessoa com quem o paciente tem um relacionamento. Há um estudo desenvolvido na North Carolina State University para tratar bulimia nervosa envolvendo o casal. Algumas teorias mais antigas culpavam a família pelo desenvolvimento desses transtornos. Isso não é verdade, e a ideia é como podemos utilizar a família como recurso para o tratamento.
RBTC: Em relação à anorexia nervosa, que é um transtorno difícil de tratar, alguns casos se tornam crônicos. O que se pode fazer para engajar melhor esses pacientes ao tratamento, uma vez que é muito difícil estabelecer esse vínculo terapêutico.
Paulo Machado: É muito difícil. É um desafio bastante grande quando tratamos de pacientes com anorexia nervosa. Eu acho que falei sobre isso no meu workshop. Na bulimia nervosa, o objetivo do cliente e o objetivo terapêutico coincidem, que é eliminar os episódios compulsivos. É isso que as pessoas procuram, porque esse comportamento é perturbador e elas querem se livrar dele. Na anorexia nervosa, o objetivo terapêutico, que é recuperar o peso, é assustador para os pacientes. Portanto, é necessário, logo no início, dar muita importância e ênfase ao estabelecimento de uma relação terapêutica. Eu acho que é crucial que os pacientes confiem no terapeuta e que estejam dispostos a correr riscos com base nessa confiança. Os procedimentos da entrevista motivacional são muito importantes no estabelecimento desse contrato terapêutico. Recentemente, estive em uma conferência sobre transtornos alimentares em Londres, e uma das mensagens muito claras que queremos deixar é que existe esperança de recuperação mesmo em casos de anorexia prolongada. É um tratamento demorado, mas existe. Há casos que parecem ter uma evolução mais crônica, que chamamos de anorexia grave persistente, resistente ao tratamento. Estão tentando desenvolver procedimentos que ajudem esses pacientes.
RBTC: E ainda não há um tratamento que seja considerado eficaz para a anorexia nervosa?
Paulo Machado: Não.
RBTC: Em sua apresentação de hoje, o senhor mencionou que as três primeiras sessões seriam importantes, pois elas conseguem fazer uma diminuição em torno de 50% dos sintomas de transtornos alimentares. Aí estavam excluídos os casos de anorexia?
Paulo Machado: Sim, mas não todos. O que eu disse é que resultados de investigações demonstram que os ganhos terapêuticos precoces, ou seja, pessoas que respondem rapidamente ao tratamento, são bons preditores do resultado ao final da terapia. Portanto, a ideia é que, no início da terapia, faz todo o sentido focarmos toda a atenção na redução sintomática. Por isso, diante de um paciente com bulimia nervosa, o objetivo é reduzir o número de episódios bulímicos e eliminar os métodos compensatórios. Esse é o foco da primeira fase. Temos que dirigir toda a nossa energia para o estabelecimento de uma boa relação terapêutica e, curiosamente, nos transtornos alimentares a qualidade da relação terapêutica parece estar muito associada com alteração sintomática precoce. Ficamos sem saber o que provocou o quê. A seguir, vamos olhar para os outros mecanismos que podem estar associados. Inicialmente, esse é o objetivo terapêutico.
RBTC: Então parece que um bom vínculo pode ser um fator importante para o resultado do tratamento?
Paulo Machado: Um bom vínculo é provavelmente uma condição necessária para que consigamos isso. Mas, na realidade, o contrário também é verdade. Quando as pessoas respondem ao tratamento, manifestam melhor relação terapêutica.
RBTC: E o trabalho é realizado com equipe multidisciplinar? Vocês trabalham com outros profissionais?
Paulo Machado: Nós trabalhamos com outros profissionais. Nosso trabalho é realizado em uma clínica da universidade, um ambulatório envolvendo a interlocução com médicos psiquiatras. Temos uma médica psiquiatra que colabora e é membro do nosso grupo de investigação. Quando necessário, ela faz a avaliação médica e prescreve os exames médicos que podem ser importantes e necessários. Pontualmente, temos a colaboração de nutricionistas. O projeto de tratamento, como um todo, é liderado pelos psicoterapeutas. O psicólogo e o psiquiatra é que administram o tratamento.
RBTC: E esses trabalhos, do ponto de vista psicológico, são feitos em grupo ou de forma individual?
Paulo Machado: Nós já tentamos e temos várias experiências distintas. Na universidade, é principalmente atendimento individual. Colaboramos com centros de tratamento em hospitais em Lisboa e, por causa dos projetos de investigação, também algumas intervenções são feitas em grupo. E os resultados parecem ser úteis, quer em formato individual, quer em formato de grupos.
RBTC: Qual seria a sua perspectiva futura no tratamento de transtornos alimentares levando em consideração diferentes perspectivas cognitivas de tratamento? Elas devem trabalhar de maneira integrada ou devem ser mantidos limites claros entre as distintas abordagens cognitivas que têm surgido mais recentemente?
Paulo Machado: Eu tenho certa resistência a pensar que devemos encontrar uma nova terapia com um novo nome e que nem sempre é tão inovadora quanto promete ser. Em minha perspectiva, o futuro seria compreender a patologia e os mecanismos que a mantêm e quais as estratégias terapêuticas. Por exemplo, quantas abordagens cognitivas utilizam a "exposição"? A exposição é um instrumento terapêutico poderoso para lidar com a evitação. E diversas abordagens, com rótulos diferentes, utilizam esse instrumento. O mesmo acontece com mindfulness (atenção plena), distração e estratégias atencionais e experienciais que ajudam os pacientes a modular suas capacidades de regulação emocional.