INTRODUÇÃO
Com foco em investigação empírica, a compaixão, como proposta por Gilbert (2022), vem sendo repetidamente associada à saúde mental, além de ser apontada como fator de proteção para psicopatologias (Di Bello et al., 2020; MacBeth & Gumley, 2012; Muris & Petrocchi, 2016). Além de benefícios individuais, a compaixão se dá a partir de mentalidades específicas que promovem comportamentos pró-sociais, fortalecendo também a segurança social e facilitando o acesso às motivações de colaboração e cuidado mútuo (Gilbert, 2019a; Matos, Duarte, Duarte, et al., 2017; Matos et al., 2021). Apesar dos seus benefícios, um desafio clínico comum é o enfrentamento de resistências para o desenvolvimento de uma postura compassiva (Gilbert & Mascaro, 2017; Steindl et al., 2022). Embora muitos estudos venham se apropriando dos fatores que promovem o desenvolvimento da compaixão, a literatura ainda conta com poucos dados sobre o funcionamento dos aspectos dificultadores de uma postura compassiva (Kirby, Day, et al., 2019). Sob o ponto de vista evolutivo, as mentalidades sociais de cuidado e afiliação envolvidas na compaixão são fundamentais para a sobrevivência e a evolução da espécie, de forma que apresentar dificuldades ou bloqueios para tais mentalidades pode configurar-se como origem para o desenvolvimento de psicopatologias (Gilbert, 2019b; Kirby, Day, et al., 2019). Além disso, bloqueios às mentalidades de cuidado tendem a dificultar a formação de vínculos seguros, como a relação terapêutica, aspecto básico e fundamental para o trabalho psicoterapêutico (Gilbert & Mascaro, 2017; Steindl et al., 2022). Investigar de que forma os medos, bloqueios e resistências à compaixão (MBRs) se comportam pode contribuir para o reconhecimento de fatores que não apenas estão relacionados ao sofrimento, mas que ainda podem bloquear o acesso aos cuidados necessários para o tratamento.
Conforme definido por Gilbert e Mascaro (2017), processos dificultadores da compaixão podem ser experienciados de três diferentes formas: medos, bloqueios ou resistências. Os medos da compaixão são entendidos como processos de evitação à ideia de ser compassivo ou às sensações emocionais e fisiológicas que a compaixão pode promover. Já os bloqueios à compaixão acontecem quando a pessoa tem o desejo de ser compassiva, mas é impedida por restrições do ambiente. Por sua vez, resistências à compaixão aparecem quando o indivíduo poderia compassivo, mas escolhe não ser (Steindl et al., 2022).
Os MBRs podem gerar diferentes ideias, entre elas, o medo de tornar-se fraco, indulgente, complacente, carente ou patético ao ser compassivo tem sido repetidamente apontado pela literatura (Gilbert & Mascaro, 2017; Germer & Neff, 2019; Gilbert at al., 2011). Além disso, a crença de que não se é merecedor de compaixão também aparece entre os medos relacionados ao recebimento de compaixão (Germer & Neff, 2019). Também são reportados na literatura o medo de que os esforços para prestar cuidados para os outros sejam incompetentes, inúteis, rejeitados ou expostos à vergonha (Gilbert & Mascaro, 2017). Em contrapartida, também é identificado o medo de ficar excessivamente comovido pela dor do outro, provocando estresse (Germer & Neff, 2019; Gilbert et al., 2011). Ainda sobre a oferta de compaixão para os outros, a literatura traz o medo de que as intenções de ser compassivo sejam mal interpretadas como manipulativas ou para o próprio interesse (Gilbert & Mascaro, 2017). Já os bloqueios à compaixão não são necessariamente baseados em medos, estando mais relacionados a contingências do ambiente, como aqueles nos quais ha uma alta carga de demanda de cuidado, mas muita burocracia ou impedimentos para a sua prestação, muito comum em ambientes hospitalares, por exemplo (Kirby et al., 2019). Além disso, compreendendo a necessidade de empatia para o desenvolvimento da compaixão, pessoas com essa capacidade comprometida, como aquelas expostas a altos níveis de estresse, também tendem a apresentar dificuldades para fornecer compaixão para si ou para os outros (Gilbert, McEwan, et al., 2014; Liotti & Gilbert, 2011). Indivíduos excessivamente motivados por competição e comparação social tendem a apresentar resistência à compaixão, visto que tais mentalidades operam por sistemas neurais distintos (Basran et al., 2019; Gilbert et al., 2009). Quanto mais inseguro e incerto o indivíduo se sentir na tarefa de criar impressões positivas na mente dos outros, mais competitivamente tende a se portar, evidenciando a resposta a ameaças experienciada nas mentalidades de competição. Esse estilo dificulta o desenvolvimento de uma postura compassiva tanto em relação a si mesmo quanto em direção a outras pessoas (Basran et al., 2019; Gilbert et al., 2009).
Estudos têm repetidamente apontado que o potencial para a compaixão está relacionado às experiências da infância que formam a base moral e ética para os comportamentos da vida adulta, mas também fortemente assentado nas experiências de apego com os cuidadores primários (Gilbert, 2022). Ambientes com suporte e cuidado coletivo desenvolverão pais mais voltados para essas atitudes na parentalidade, com modelagem e reforço que induzem a comportamentos mais pró-sociais e compassivos. Da mesma forma, adultos que cresceram em ambientes hostis, com cuidadores isolados, sem suporte e sob pressão de competitividade, tendem a criar seus filhos para sobreviver a esse tipo de ambiente, enviesando o foco atencional e os comportamento modelados, reforçados e punidos nos filhos (Kirby, Sampson, et al., 2019). Estudos sugerem que adultos que tiveram um ambiente seguro na infância têm tendência a perceber nos outros uma possível fonte de tranquilização, segurança e suporte e, quando angustiados, são mais propensos a buscar por cuidados, estando abertos a receber compaixão e a serem ajudados (Gilbert, 2022; Gilbert et al., 2011; Matos et al., 2017b). Portanto, as pessoas tendem a se tratar compassivamente no mesmo grau em que receberam compaixão e cuidados em momentos difíceis (Hermanto & Zuroff, 2016).
Memórias traumáticas de humilhação, negligência e abuso por parte dos cuidadores estão na origem dos medos da compaixão, sobretudo de receber compaixão dos outros e de autocompaixão (Matos, Duarte, & Pinto-Gouveia, 2017a). Ainda, histórico de abusos físico e sexual, cuidadores invalidantes e ausência de afeto podem operar como preditores para o desenvolvimento do medo da autocompaixão em indivíduos com transtornos da personalidade (Naismith et al., 2018). Essas crianças, que encontram em seus cuidadores fontes de ameaça e não de proteção e cuidado, não apresentam, sozinhas, condições de resolver essas ameaças, sendo que a única forma de cuidado que o organismo pode oferecer é a evitação de exposição a novas possíveis agressões, acabando por bloquear o sistema de busca por cuidados (Gilbert et al., 2014; Liotti & Gilbert, 2011). Assim, situações de estresse ativam memórias aversivas associadas à busca por proximidade, bondade e compaixão (Gilbert et al., 2014). Com a falta de experiências iniciais de amor e segurança, há uma tendência a enfrentar dificuldades no envolvimento em relacionamentos íntimos com abertura e fornecimento de cuidados, prejudicando o desenvolvimento de estratégias saudáveis para regulação emocional (Liotti & Gilbert, 2011; Matos et al., 2017b; Pfeiffer et al., 2022).
Os prejuízos dos medos da compaixão vêm sendo investigados em estudos recentes e em número crescente. São reportadas relações importantes com desfechos negativos de saúde mental, como depressão, ansiedade, estresse e vergonha (Kirby, Day, et al., 2019; Matos et al., 2017b), maiores níveis de autocriticismo e frieza e menores níveis de empatia (Gilbert et al., 2012, 2014), maior severidade em sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) (Boykin et al., 2018) e um papel importante nos transtornos alimentares (Duarte et al., 2020), além de apresentar associações com estilo de apego inseguro e evitativo (Gilbert et al., 2014; Matos et al., 2017b). Na prática, pessoas que enfrentam MBRs são propensas a resistir fortemente à formação de vínculos seguros e profundos. Da mesma forma, tendem a se apresentar como clientes de difícil vinculação em psicoterapia (Gilbert, 2022; Steindl et al., 2022). Gilbert (2022) defende que os MBRs são profundamente importantes no processo psicoterapêutico porque geram um senso de solidão e desconexão social e tendem a inibir o acesso ao tratamento (Gilbert & Simos, 2022; Matos et al., 2021b).
Dada a importância fundamental da relação terapêutica para os resultados em psicoterapia, indivíduos com MBRs tendem a enfrentar prejuízos significativos e costumam ser difíceis no manejo clínico, dadas as resistências à abertura ao cuidado (Gilbert, 2022; Steindl et al., 2022). A terapia focada na compaixão (TFC) tem como objetivo recrutar sistemas cerebrais para criar conexões de cuidado consigo e com os outros, de forma que o trabalho com os dificultadores da compaixão passa por processos de reconhecimento de sua função e uma investigação profunda sobre como operam e organizam a mente do indivíduo (Gilbert, 2022). Conhecer de que forma os MBRs atuam pode contribuir para avaliações clínicas mais assertivas e para uma condução mais sensível no processo de reconhecimento da natureza da mente, ponto de partida fundamental da TFC. Ainda, considerando os prejuízos dos MBRs, conhecer e compreender de que forma operam também pode trazer contribuições para uma gama de psicoterapias atuais que têm como base conceitos da teoria do apego e o foco na relação terapêutica. O objetivo deste estudo é explorar o comportamento dos MBRs por meio de uma análise de rede, buscando analisar a relação entre os construtos e os fatores com maior influência no fenômeno.
MÉTODO
Participantes
Participaram do estudo 284 adultos brasileiros com idades entre 18 e 65 anos (média = 36,47 anos; DP = 12,45) sem relato de diagnóstico psicológico/psiquiátrico, de 14 estados do Brasil, em sua maioria do Rio Grande do Sul (80%). A amostra foi formada majoritariamente por pessoas autodeclaradas do gênero feminino (75%), de cor branca (87%) e heterossexuais (88%).
Procedimentos de coleta de dados
A pesquisa foi realizada por meio de coleta on-line pela plataforma Qualtrics, com divulgação via redes sociais. Apenas os participantes que aceitaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) tiveram acesso aos instrumentos. Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (CAAE nº 30586320.0.0000.5336).
Instrumentos
Questionário sociodemográfico: coleta de dados básicos de contextualização da amostra, como idade, gênero, nível socioeconômico, raça, orientação sexual e escolaridade.
Escalas de Medos da Compaixão: o instrumento, originalmente desenvolvido por Gilbert et al. (2011) e adaptado e validado para uso no Brasil por Pfeiffer et al. (2022), é composto por três escalas - Expressar compaixão por outros (nove itens), Respondendo à compaixão de outras pessoas (14 itens) e Expressar compaixão e bondade para si mesmo (15 itens). Os itens são pontuados em uma escala Likert de cinco pontos (0-4). As três escalas apresentam bons índices de consistência interna (α = 0,837 e ω = 0,829; α = 0,884 e ω = 0,891; e α = 0,917 e ω = 0,925, respectivamente). No estudo de validação brasileira, o item sete da primeira escala foi excluído (Pfeiffer et al., 2022). No entanto, para fins de análise do comportamento das crenças relacionadas aos medos da compaixão, ele foi incluído neste estudo.
Procedimentos de análise de dados
Foi conduzida uma análise de rede por meio do software R com o pacote Pgraph (Epskamp & Fried, 2018). A análise de rede possibilita uma descrição quantitativa e gráfica da centralidade e agrupamento de vários traços relacionados (Marcus et al., 2018). Construtos são representados por nodos e a proximidade dos nodos representa sua relação - quanto mais relacionados, mais próximos; a centralidade da variável demonstra que esta é mais relacionada às demais; a espessura das arestas indica a magnitude das relações; e a cor, sua direção - se positiva, linhas azuis, se negativa, linhas vermelhas (Machado et al., 2015). Assim, a análise de rede fornece uma representação visual da forma como variáveis se relacionam entre si e mostra os fatores mais centrais para o fenômeno analisado (Marcus et al., 2018).
Para a condução da análise de rede, primeiramente foi estimada uma matriz de correlações parciais entre os itens do instrumento, por meio do algoritmo Graphical Least Abssolute Shrinkage and Selection Operator (GeLASSO) (Friedman et al., 2007), evitando o superajustamento ao penalizar correlações de pequena magnitude as fixando em zero. Na sequência, uma análise de comunidades foi realizada para cada uma das três escalas, buscando-se identificar subagrupamentos dos itens, de forma a identificar conjuntos de variáveis mais associadas entre si (Devotto & Machado, 2020). Também foi analisada a influência esperada (expected influence), tanto em cada uma das três escalas quanto em relação a todos os itens delas, de modo a identificar o potencial de propagação das variáveis na rede - uma vez que a variável é ativada, tem a tendência de ativar variáveis vizinhas (Machado et al., 2015).
RESULTADOS
Os resultados da análise de rede e comunidades da escala 1 (Expressar compaixão por outras pessoas) são apresentados na Figura 1 (com os itens resumidos na legenda). Os dados indicam a centralidade do item 4 - “Eu receio que ser muito compassivo torna as pessoas um alvo fácil”, que apresenta relação com muitos itens e parece funcionar como ponte na relação entre as comunidades. De fato, a análise de influência esperada (Figura 2) aponta o item 4 como sendo de maior influência sobre os demais. Isso indica que quando o medo de se tornar um alvo fácil está ativado, há um potencial de que outras crenças relacionadas ao medo de ser compassivo com as pessoas também estejam, de forma que o medo de ser visto como um “alvo fácil” parece ser central no medo de expressar compaixão por outras pessoas.
A análise de rede apontou duas comunidades na escala 1, permitindo aferir que dois conjuntos de elementos podem ser destacados quando se observa o funcionamento das crenças envolvidas no medo de expressar compaixão por outras pessoas. Os itens 2, 3, 7 e 10 formaram a primeira comunidade, com ideias sobre as pessoas não merecerem compaixão, incluindo itens como “As pessoas não merecem compaixão” e “Ser compassivo é permitir que se livrem das responsabilidades”. A segunda comunidade, representada pela cor verde, é composta pelos itens 1, 4, 5, 6, 8 e 9 e traz ideias sobre prejuízos que o indivíduo possa ter no caso de ser compassivo: “Vão se aproveitar de mim”, “Ficarão dependentes de mim” e “Me acharão ingênuo”. O item 7 - “As pessoas precisam se ajudar ao invés de ficar esperando que os outros as ajudem” - (excluído no estudo de validação para o Brasil) se mostrou desconectado dos demais, apresentando ligação apenas com o item 10 - “Para algumas pessoas, eu acho que disciplina e punições adequadas ajudam mais do que ser compassivo com elas”.
Na escala 2 (Receber compaixão de outras pessoas), a análise de rede apresentada nas Figuras 3 e 4 apontou o item 10 - “Se as pessoas são bondosas comigo, eu sinto que elas estão se aproximando demais” - com maior influência esperada, de forma que sua ativação representa uma tendência de que as outras crenças envolvidas no medo de receber compaixão de outras pessoas também estejam ativadas. Três comunidades foram indicadas pela análise: a primeira, com os itens 1, 4, 5, 8, 9, 10 e 11 (na cor vermelha), incluiu crenças relacionadas ao medo de ser abusado de alguma forma ao receber compaixão; a segunda, com os itens 6, 7, 12, 13 e 14 (representada pela cor verde), apresenta conteúdos relacionados a barreiras emocionais enfrentadas pelo medo da vergonha; e a terceira (em azul) inclui os itens 2 e 3, com crenças relativas ao medo da negligência, ao confiar no cuidado do outro e não o receber. Esta última comunidade apresentou um comportamento diferente, com forte relação entre os seus itens, mas sem relações com o restante da rede, demonstrando que a ativação do medo de ser negligenciado tende a ocorrer de forma independente aos demais medos de receber compaixão dos outros. A relação entre as outras duas comunidades (que abordam os medos de abuso e das sensações da vergonha) pode indicar conexão entre experiências de abuso e ativação da vergonha, entendida na TFC como resposta a experiências de ataque à figura do self (Gilbert, 2014).
A escala 3 (Expressar compaixão e bondade para si mesmo) apresentou, a partir da análise de rede (Figuras 5 e 6), duas comunidades bem relacionadas entre si. A primeira comunidade, contemplando os itens 3, 7, 8, 11, 12, 13, 14 e 15, traz itens com a temática do autocriticismo, com resistência à autocompaixão em função do medo de perder padrões, ter efeitos nocivos por ser autocompassivo ou perder a autoimagem de forte. Já a segunda comunidade contempla itens com conteúdos relativos ao medo das sensações emocionais que poderiam aparecer com uma postura compassiva, como vazio, tristeza, luto ou sensação de não merecimento de cuidado. A análise de influência esperada apontou o item 8 - “Receio que, se eu for mais autocompassivo, eu vou me tornar uma pessoa fraca” - como potencial ativador das demais crenças.
Por fim, a análise de influência esperada com todos os itens das três escalas é apresentada na Figura 7 e apontou o item 2 da escala 3, “Se eu realmente penso em ser bondoso e gentil comigo mesmo, me sinto triste”, com maior influência sobre todos os itens das escalas, indicando a relevância desse medo na presença de outras crenças associadas aos MBRs. Na sequência, os outros itens com maior influência sobre os medos da compaixão são destacados - “Receio que, se eu desenvolver compaixão por mim mesmo, vou me tornar alguém que eu não quero ser” (item 12 da escala 3); “Eu receio que ser muito compassivo torna as pessoas um alvo fácil” (item 4 da escala 1); “Se eu acho que alguém está se importando e sendo bondoso comigo, eu levanto uma barreira e me fecho” (item 13 da escala 2); e “Receio que, se eu for mais autocompassivo, eu vou me tornar uma pessoa fraca”(item 8 da escala 3). Dos cinco itens que apresentam maior influência esperada sobre os demais, três deles se referem à escala de medo de ser compassivo consigo mesmo, apontando que a presença do medo da autocompaixão pode ser um indicativo de maior possibilidade da presença dos medos da compaixão nos demais fluxos.
DISCUSSÃO
Considerando os prejuízos à saúde mental e os impactos psicossociais que os MBRs podem causar (Best et al., 2021; Crimston et al., 2021; Kirby, Day, et al., 2019; Matos et al., 2021b; Steindl et al., 2022), o presente estudo teve por objetivo explorar os comportamentos dos medos da compaixão e a relação entre eles, bem como investigar as ideias com maior influência sobre o fenômeno. Por meio da análise de rede, agrupamentos de MBRs foram identificados, assim como itens com maior influência esperada para cada um dos fluxos dos medos da compaixão e dos MBRs de forma geral. A análise de rede apontou múltiplas comunidades nas três escalas, indicando que, mesmo que cada uma das três escalas seja composta por apenas um fator, o comportamento dos seus itens pode ser compreendido por alguns conjuntos de elementos.
Na escala 1, sobre o medo de expressar compaixão para outras pessoas, comunidades sobre as pessoas não merecerem compaixão e sobre o medo de ter prejuízos por ser compassivo com outras pessoas foram identificadas. Além disso, a escala apresentou o item “Eu receio que ser muito compassivo torna as pessoas um alvo fácil” como de maior influência esperada para ativação das demais crenças da escala, que também aparece como central nas conexões da rede, sugerindo que sua presença pode influenciar a ativação de crenças de ambas as comunidades. Assim, se perceber como alvo fácil pode tanto influenciar o julgamento sobre as pessoas não merecerem compaixão, ativando um lado mais crítico, quanto bloquear a expressão de bondade pelo receio de sofrer consequências individuais ao ser compassivo. Ademais, esta análise permite uma compreensão teórica com viés clínico do construto: aparentemente por trás da resistência em ser compassivo com outras pessoas tende a haver o medo de sentir-se frágil e desprotegido e esperar que as outras pessoas se aproveitem disso de forma hostil, uma vez que se teme tornar-se um alvo fácil. Estudos aprofundados nos MBRs vêm apontando, de fato, um esforço para evitar inferioridade em indivíduos com medos da compaixão (Basran et al., 2019; Duarte et al., 2020; Hart et al., 2020). Os dados deste estudo indicam que, ao identificar um cliente com falas que indicam esse medo, há grandes chances de que outras crenças sobre o medo de expressar compaixão também estejam presentes.
A ideia apontada pela primeira comunidade da escala 1 destaca os prejuízos ao ser compassivo (como ser visto como alguém fácil de tirar proveito), o que tende a tornar a oferta de compaixão, de fato, ameaçadora (Gilbert & Mascaro, 2017). O medo de ficar excessivamente comovido pela dor do outro, provocando estresse, além do medo das reais intenções da outra pessoa ao buscar cuidados, são apontados na literatura como importantes aspectos nos bloqueios à expressão de compaixão por outras pessoas (Germer & Neff, 2019; Gilbert & Mascaro, 2017). O ser humano é mais rápida e fortemente motivado a evitar experiências negativas do que a procurar boas (Baumeister et al., 2001). Além disso, quanto mais o mundo é percebido como perigoso, mais o foco atencional é direcionado para a própria defesa e proteção, desativando sistemas relacionados à cooperação e suas ações de compartilhamento e cuidado, dificultando o desenvolvimento da compaixão (Best et al., 2021; Gilbert, 2014, 2019a). Assim, pessoas que não percebem o mundo como um lugar seguro facilmente associarão a ideia de relaxar as defesas para cuidar de outra pessoa como algo nocivo ao próprio bem-estar.
Já a ideia de que as pessoas não merecem compaixão, conforme apontado pela segunda comunidade da escala 1, pode operar como uma resistência à sensibilidade ao sofrimento do outro, evitando que o indivíduo entre em contato com a posssibilidade de ser compassivo por um avaliação prévia do merecimento alheio. Resistências e inibições à compaixão são discutidos por Gilbert e Mascaro (2017) ao argumentarem sobre a influência de valores culturais pautados na competição social. A busca por vantagens individuais, a competitividade, o foco no ganho individual e a ausência do desejo de compartilhar tendem a ativar resistências e bloqueios ao desenvolvimento de uma postura compassiva (Gilbert, 2022). Embora possa ser compreendida de forma separada, na prática, a resistência pelo medo de prejuízos e pela avaliação de que as pessoas não merecem compaixão atua de maneira conjunta, uma vez que a ativação de um conjunto de crenças facilmente ativa o outro, conforme empiricamente demonstrado pelas análises desenvolvidas neste estudo.
A escala 2 (Receber compaixão de outras pessoas) apontou o item 10 - “Se as pessoas são bondosas comigo, eu sinto que elas estão se aproximando demais” com maior influência esperada. A análise apresentou três comunidades: uma relacionada ao medo de abuso do cuidador, outra relativa à vergonha e a terceira relacionada ao medo da negligência. Assim, a ideia de que o medo de receber compaixão seja primariamente ativado ao sentir que as pessoas estão se aproximando demais, conforme o item 10 afirma, parece se dar em três sentidos: pela desconfiança da intenção da outra pessoa - ao avaliar que a oferta de cuidados não seja genuína ou que a aproximação seja usada para um ganho pessoal de quem oferece cuidados; por medos oriundos da vergonha - em decorrência de senso de self inadequado, gerando ansiedade e medo de que algo seja descoberto sobre si; e pelo medo de depender do cuidado do outro e ser negligenciado. As três comunidades apontadas pela análise de rede corroboram pressupostos sobre experiências precoces relacionadas aos bloqueios à compaixão: indivíduos com experiências emocionais de abuso, negligência ou vergonha provocada por cuidadores têm a tendência a experimentar o recebimento de compaixão de forma aversiva e ameaçadora, com consequências que envolvem evitação de proximidade em níveis fóbicos (Liotti & Gilbert, 2011; Matos et al., 2017b).
Memórias aversivas relacionadas a situações de necessidade de cuidado e seu não atendimento por parte de pessoas significativas durante a infância tendem a provocar sensações semelhantes quando o indivíduo se depara com a oferta de carinho e cuidado (Germer & Neff, 2019). Com efeito, na lógica protetiva do organismo, a abertura emocional para buscar cuidados encontra-se associada a experiências nocivas e perigosas, parecendo lógico para a manutenção da sobrevivência simplesmente não arriscar (Germer & Neff, 2019; Gilbert et al., 2022). O que os resultados deste estudo sugerem é que as crenças subjacentes aos bloqueios para receber compaixão podem ser de origens distintas e parecem estar associadas justamente aos estilos parentais mais prejudiciais ao recebimento da compaixão. O estudo de validação da escala 2 no Japão inclusive encontrou uma solução bifatorial para ela: um fator relativo a respostas emocionais e o outro à evitação (“Concern about Compassion from Others” e “Avoidance of Compassion from Others”; Asano et al., 2017). Embasados na teoria do apego, os autores sugerem relação com os apegos ansioso e inseguro, também associando os bloqueios ao recebimento de compaixão com experiências precoces. Estudos (Matos et al., 2017b; Naismith et al., 2019) vêm investigando os efeitos dos estilos parentais no medo de receber compaixão, porém utilizando a medida total dessa escala. Pesquisas futuras podem valer-se dos dados das comunidades destacadas neste estudo para investigar se, de fato, há uma relação entre a ativação de diferentes grupos de crenças sobre o medo de receber compaixão e diferentes estilos parentais.
Na escala 3 (Expressar bondade e compaixão para si mesmo), o item “Receio que, se eu for mais autocompassivo, eu vou me tornar uma pessoa fraca” foi identificado com maior influência esperada, sugerindo que quando essa crença está ativada, há grandes chances de que outras crenças relativas ao medo da autocompaixão também estejam. O medo de tornar-se fraco, indulgente ou complacente ao ser compassivo consigo mesmo é um bloqueio bastante discutido (Germer & Neff, 2019; Gilbert, 2014). Desde as propostas iniciais do construto, essas crenças já aparecem, por vezes tratadas como mitos da autocompaixão (Gilbert, 2014; Neff, 2003). A sensação de insegurança provocada por ambientes sociais competitivos tende a elicitar uma avaliação hierárquica entre as pessoas em volta, promovendo a comparação social e o medo de ser rejeitado no caso de ser avaliado como inferior ou fraco (Gilbert, 2022). Os dados deste estudo sugerem que o medo central nos MBRs pode estar relacionado, de fato, à imagem social.
As comunidades apontadas pela análise indicam dois grupos de crenças para a escala de medo da autocompaixão. O primeiro é relativo ao autocriticismo, com o medo de que a autocompaixão diminua os padrões de desempenho, com itens que tendem a se relacionar mais com as resistências à compaixão (Gilbert & Mascaro, 2017). Já o segundo grupo se refere a itens associados com o medo de reações emocionais, como medo, luto, vazio, tristeza e sensação de não merecimento de cuidado. A segunda comunidade parece se referir à experiência emocional a nível dos sistemas de apego, sugerindo que se trata do medo de acessar as memórias emocionais traumáticas associadas com a abertura ao cuidado (Gilbert et. al., 2011). Os estudos de validação da escala 3 no Japão e no Canadá também encontraram dois grupos de crenças (sugerindo, inclusive, uma solução bifatorial para a escala), com conteúdos semelhantes às comunidades encontradas na análise de rede deste estudo: busca de padrões e vulnerabilidade emocional (Asano et al., 2017; Geller et al., 2019). No presente estudo, os itens das duas comunidades encontradas apresentaram muitas relações entre si (indicado pelas arestas), sugerindo interconexões importantes entre o autocriticismo e o medo das sensações emocionais que a autocompaixão poderia gerar. Essas relações sugerem que o medo da abertura às emoções que a autocompaixão possa promover pode se dar justamente pelo receio em prejudicar a identidade social que o indivíduo acredita necessitar atender por meio de padrões rígidos de desempenho. Essas evidências são reforçadas por culturas competitivas e produtivistas, uma vez que demandam uma imagem de força e determinação constantes e incansáveis para se alcançar o sucesso, mas que trazem prejuízos individuais e sociais (Basran et al., 2019; Crimston et al., 2021; Gilbert & Mascaro, 2017; Matos et al., 2021b; Neff, 2003; Pfeiffer & Lisboa, 2021).
De forma geral, a representaçao interna da própria imagem tende a ser afetada por altos níveis de autocriticismo, o que provoca diálogos internos de constante avaliação negativa (Kim et al., 2020). A crença de que não se é merecedor de compaixão também pode surgir como efeito de níveis de exigência inalcançáveis (Germer & Neff, 2019). Esses diálogos internos, marcados pela crítica excessiva, de um lado, e sensações de inferioridade e não merecimento, do outro, hiperestimulam o sistema emocional de ameaça/defesa, o que pode estar por trás das muitas relações encontradas entre as duas comunidades (Kim et al., 2020; Kirby, Day, et al., 2019). Intervenções para o desenvolvimento da compaixão trazem propostas com alguns vieses importantes: um deles se trata do desenvolvimento de sabedoria, a partir de psicoeducação, que busca compreender a natureza evolutiva da mente e questiona a lógica cultural de competitividade que sustenta o autocriticismo. Outro foco importante trata do manejo emocional, envolvendo diferentes práticas que buscam aumentar a abertura e a tolerância às emoções, compreendendo as motivações subjacentes e desenvolvendo formas compassivas de responder a elas, com grande interesse nas emoções que surgem a partir da própria intervenção (Gilbert, 2022). As comunidades apresentadas pela análise de rede do presente estudo confirmam a importância de se intervir clinicamente nos bloqueios cognitivos e emocionais, compreendendo que se tratam de processos distintos, mas intrinscicamente relacionados.
Na análise com todos os itens das três escalas, o item “Se eu realmente penso em ser bondoso e gentil comigo mesmo, me sinto triste” foi identificado com maior influência esperada para o fenômeno. Esse dado indica que o medo de se sentir triste ao pensar em ser mais compassivo consigo mesmo tende a influenciar a presença de outras crenças associadas não somente ao medo da autocompaixão, mas também de expressar e receber compaixão de outras pessoas. Assim, o medo da tristeza que a autocompaixão poderia gerar parece ser a experência com maior influência sobre o fenômeno dos MBRs. Esse dado corrobora a literatura, considerando a importância que especialistas conferem aos impactos nos sistemas de apego, apontando que os medos da compaixão são mais sentidos fisiologicamente do que apenas percebidos como regras ou crenças a nível cognitivo (Gilbert, 2022; Matos et al., 2017b; Steindl et al., 2022). Ainda assim, vale salientar que regras e crenças são desenvolvidas tanto como forma de manutenção e reforço das estratégias de evitação a tais emoções dolorosas quanto como forma de adaptação ao meio social, muitas vezes desde a infância (Gilbert, 2019a; Matos et al., 2017b).
A análise também destacou três dos cinco itens de maior influência sobre os MBRs sendo provenientes do medo da autocompaixão, sugerindo que o medo de ser compassivo consigo mesmo pode ter maior influência para a presença também nos outros dois fluxos. Os medos de expressar compaixão por outros, receber compaixão dos outros e ser autocompassivo tendem, de fato, a estar associados, com estudos que registram correlações entre si de magnitude moderada a forte (Biermann et al., 2020; Gilbert et al., 2011; Guo et al., 2020; Pfeiffer & Lisboa, 2021), sobretudo entre o medo de ser compassivo consigo mesmo e o medo de receber compaixão, que tendem a apresentar correlações mais fortes. O que o presente estudo indica é que essas associações possam ter sua maior influência pelo medo da compaixão por si mesmo, reforçando com dados empíricos que a condução de intervenções tenha seu foco, sobretudo, no desenvolvimento de uma relação compassiva interna.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez que clientes com MBRs tendem a apresentar maiores dificuldades na formação de aliança terapêutica e no manejo clínico, este estudo buscou contribuir para a prática clínica ao oferecer dados empíricos para uma compreensão mais aprofundada sobre como esse fenômeno ocorre. Mesmo não se tratando de diferentes fatores, examinar as comunidades de cada uma das escalas contribui para um entendimento mais apurado dos comportamentos relacionados aos medos da compaixão. Este estudo se propôs a apresentar uma reflexão com dados empíricos com um viés clínico sobre a temática, que ainda conta com poucas pesquisas no Brasil.
Os dados coletados possibilitam recomendar que a identificação da ideia de temer se tornar um alvo fácil ao ser bondoso com outras pessoas possa ser um indicativo de que o medo de expressar compaixão pelos outros esteja presente. Da mesma forma, clientes que demonstram receio de que as pessoas se aproximem demais, incluindo o terapeuta, merecem atenção clínica na investigação da presença do medo de receber compaixão de outras pessoas - e de todas as experiências infantis que podem ter desenvolvido esse bloqueio aos sistemas de cuidado. A preocupação em se tornar uma pessoa fraca também pode ser um indicativo da presença do medo da autocompaixão, sendo recomendada uma avaliação sobre esse aspecto. A investigação clínica do fenômeno pode se valer das Escalas de Medos da Compaixão (Pfeiffer et al., 2022), mas, sobretudo, deve ocorrer na relação terapêutica (Gilbert, 2019b). Além disso, os dados empíricos deste estudo reforçam que o foco de intervenções seja dado no desenvolvimento da autocompaixão, uma vez que esse medo tende a influenciar a presença dos medos de expressar e receber compaixão na relação com outras pessoas. Recomenda-se, principalmente, o adereçamento do medo de experienciar tristeza ao pensar sobre ser compassivo consigo mesmo.
Cabe ressaltar que a análise de influência esperada indica conteúdos de maior relevância para o fenômeno estudado, mas não tem potencial de indicar causalidade (Machado et al., 2015). Também é importante considerar que a amostra deste estudo alcançou, em sua maioria, gaúchos, heterossexuais, de pele branca e do sexo feminino, o que pode ser um limitador para a ampliação dos achados para a população brasileira. Pesquisas futuras com amostras que contemplem pessoas de contextos sociais mais vastos são sugeridas para investigar o fenômeno de maneira mais ampla. Além disso, este é o primeiro estudo identificado na literatura internacional que utiliza a análise de rede para explorar os medos da compaixão. Novas investigações replicando as análises e avaliando o comportamento dos dados podem ser de grande valia, bem como o exame do fenômeno em populações clínicas e em grupos de minorias sociais, que possam enfrentar violência social e sofrer impactos diferentes dos MBRs.
Compreender as crenças centrais de cada um dos medos da compaixão pode contribuir significativamente para a prática clínica no desenvolvimento do construto e suas destacadas consequências positivas para a saúde mental. Uma vez identificadas as crenças centrais ao medo de ser compassivo com outras pessoas, de receber compaixão ou da autocompaixão, é possível compreender que pode haver grandes chances de que outras ideias ou sensações que bloqueiam o desenvolvimento da compaixão também estejam presentes. A base da compaixão é sabedoria, coragem e comprometimento (Gilbert & Simos, 2022). Com mais conhecimento sobre como os MBRs operam, clínicos podem se municiar de mais sabedoria sobre o fenômeno e agir com comprometimento e coragem para dar atenção e cuidado de que os clientes necessitam.