O suporte familiar, principalmente na infância, está vinculado às competências cognitivas e comportamentais para lidar com situações cotidianas, assim como ao desenvolvimento de possíveis transtornos do humor e de ansiedade (Baptista, 2005). As relações interpessoais primárias constituídas na infância e na adolescência podem acarretar o desenvolvimento de esquemas iniciais desadaptativos (EIDs), que são reproduzidos no restante do ciclo vital e cuja consequência é a dificuldade na formação de vínculos com outras pessoas (Young et al., 2008). Compreender as relações entre os EIDs e a dinâmica familiar se mostra importante à prática clínica voltada ao tratamento de um sistema familiar adoecido, visto que torna claro ao indivíduo aspectos cognitivos que distorcem as experiências no círculo familiar e que podem levar a maiores conflitos (Janovsky et al., 2020).
Desenvolvida como uma abordagem que amplia o modelo teórico beckiano ao integrar conceitos de outras escolas da psicologia, como a teoria do apego, as relações objetais da psicanálise, a Gestalt, entre outras (Young et al., 2008), a terapia do esquema (TE) configura-se como uma abordagem capaz de lidar com os EIDs. Criada por Jeffrey Young, é orientada especificamente ao impacto das primeiras experiências inter-relacionais nos funcionamentos cognitivo e comportamental do indivíduo (Young et al., 2008).
SUPORTE FAMILIAR, ESQUEMAS INICIAIS DESADAPTATIVOS E BEM-ESTAR
O bem-estar é uma temática que vem sendo discutida pela psicologia positiva (Carvalho et al., 2023). Estudos mostram que relações interpessoais de qualidade e que fornecem suporte social ao indivíduo estão positivamente associadas a uma percepção elevada do bem-estar, enquanto a falta de apoio indica aumento no nível de estresse e declínio da saúde física e psicológica (p. ex., Shin & Park, 2022; Woyciekoski, 2012; Yildirim et al., 2023). Ou seja, o bem-estar subjetivo depende de relações, cognições e afetos positivos (Passareli & Silva, 2007).
Uma busca realizada nos bancos de dados PubMed NCBI, American Psychological Association (APA), SciELO, Google Acadêmico e da revista Frontiers, não retornou nenhum estudo específico sobre correlações entre a percepção do suporte familiar e os EIDs desenvolvidos ao longo do ciclo vital. Para realizar essa busca, foram utilizados os descritores “(Esquemas Iniciais Desadaptativos OR EID OR Early Maladaptive Schema OR EMS) AND (Percepção do Suporte Familiar OR Perceived Family Support)” e “(Esquemas Iniciais Desadaptativos OR Early Maladaptive Schema) AND (Percepção do Suporte Familiar OR Perceived Family Support) AND (Bem-estar OR Florescimento OR Well-being OR Flourishing”, considerando-se o período entre 2013 e 2023.
Apesar de haver trabalhos voltados à relação dos EIDs com a percepção do suporte social e com os estilos parentais, não foram encontrados artigos ou demais fontes de conhecimento acadêmico cujo foco fosse a percepção do suporte familiar. Adicionalmente, a procura nos bancos não devolveu estudos que buscassem explicar o bem-estar a partir da díade suporte familiar e EIDs.
TERAPIA DO ESQUEMA
A TE foi idealizada por Jeffrey Young como uma alternativa de tratamento para pacientes que não respondiam aos pressupostos da terapia cognitivo-comportamental de Beck (Young et al., 2008). Esses pacientes, geralmente com algum transtorno da personalidade, aparentavam ter menos acesso às suas cognições e sentimentos, apresentando menor flexibilidade psicológica e maior resistência ao tratamento orientado às mudanças comportamentais (Young et al., 2008). Era comum que assumissem uma postura de evitação cognitiva e afetiva quando precisavam confrontar suas lembranças e emoções, principalmente aquelas relacionadas à infância (Young et al., 2008). A TE foi desenvolvida, então, para dar maior atenção às fases iniciais do ciclo vital: a infância e a adolescência.
Os esquemas já eram considerados nas abordagens cognitivas anteriores à TE e suas definições tinham em comum a ideia de que reações passadas influenciavam aquelas que viriam posteriormente. Ainda, esses esquemas começariam a se desenvolver na infância e na adolescência, complexificando-se com o tempo e sendo reproduzidos posteriormente (Bartlett, 1932; Beck, 1964). Para a TE, existem quatro tipos de experiências que ocorrem na infância e que contribuem para o desenvolvimento dos EIDs: frustração nociva das necessidades, traumatização ou vitimização, excesso de eventos bons e gratificações, e internalização ou identificação seletiva com figuras de importância (Rafaeli et al., 2011).
Young et al. (2008) definem os EIDs como:
i. um tema ou padrão amplo, difuso; ii. formado por memórias, emoções e sensações corporais; iii. relacionado a si próprio ou aos relacionamentos com outras pessoas; iv. desenvolvido durante a infância ou adolescência; v. elaborado ao longo da vida do indivíduo; vi. disfuncional em nível significativo. (p.22)
Adicionalmente, Wainer e Rijo (2016, p. 55) os descrevem como “conjuntos de crenças nucleares referentes a temas centrais do desenvolvimento emocional”. Assim como nas demais linhas da terapia cognitiva, são essas crenças que irão gerar respostas comportamentais, cognitivas e emocionais no indivíduo quando ele for exposto a situações estressoras e/ou semelhantes àquelas que originaram o esquema (Wainer & Rijo, 2016).
Os EIDs não necessitam ter a sua gênese em eventos traumáticos, sendo comum que estejam também relacionados à repetição de experiências negativas na fase inicial da vida e na adolescência e que ocorrem, principalmente, no núcleo familiar (Young et al., 2008). Entende-se, ainda, que os esquemas são um espelho do ambiente no qual a criança, agora adulta, estava inserida (Young et al., 2008). A não satisfação das necessidades emocionais infantis, aliada ao temperamento emocional, é tida como o ponto de partida para o desenvolvimento dos EIDs (Rafaeli et al., 2011; Wainer & Rijo, 2016; Young et al., 2008).
Young et al. (2008) postularam que existem 18 EIDs e os dividiram em cinco domínios. No primeiro domínio, denominado desconexão e rejeição, encontram-se os EIDs de abandono/estabilidade, desconfiança/abuso, privação emocional, defectividade/vergonha e isolamento social/alienação. O segundo domínio, conhecido como autonomia e desempenho prejudicados, é formado pelos esquemas de dependência/incompetência, vulnerabilidade ao dano ou à doença, emaranhamento/self subdesenvolvido e fracasso. O terceiro domínio é chamado de limites prejudicados e engloba os esquemas de arrogo/grandiosidade e autocontrole/autodisciplina insuficientes. O direcionamento para o outro é o quarto domínio e agrega os EIDs de subjugação, autossacrifício e busca de aprovação/busca de reconhecimento. O último domínio é denominado supervigilância e inibição, sendo caracterizado pelos esquemas de negativismo/pessimismo, inibição emocional, padrões inflexíveis/postura crítica exagerada e postura punitiva.
Young integrou à TE pressupostos de diversas abordagens da psicologia, além de ideias como a teoria do apego para expressar a importância da vinculação familiar na constituição do indivíduo (Young et al., 2008). Para explicar os laços familiares entre indivíduos, John Bowlby (1969/2002; Mendes & Maia, 2019) discorre sobre uma necessidade biológica que tem por função promover segurança e proteção, tanto para outros mamíferos quanto para os seres humanos. Os cuidados dados às crianças em seus primeiros anos de vida e a satisfação de suas necessidades influenciam os estilos de apego estabelecidos com os demais indivíduos no futuro, além de assumir um papel relevante no desenvolvimento das emoções (Ainsworth et al., 1978/2015; Mendes, 2021; Shiramizu et al., 2013)
Os comportamentos desadaptativos se relacionam com a falta desses cuidados primários. O ambiente familiar saudável capaz de suprir as necessidades da criança impacta diretamente no desenvolvimento dos EIDs. Ressalta-se que a dinâmica familiar de uma criança é, também, a dinâmica de todo o seu mundo naquele momento da vida. E são as experiências com os cuidadores na infância, suas figuras de apego, que formarão os EIDs que trarão maior prejuízo e sofrimento na vida adulta. As relações interpessoais com outros indivíduos também influenciam no desenvolvimento dos EIDs, porém, de maneira menos intensa e com menor potencial nocivo (Young et al., 2008).
Neste estudo, serão avaliados somente os esquemas de desconfiança/abuso, privação emocional, defectividade/vergonha, isolamento social, dependência/incompetência, emaranhamento, autocontrole e autodisciplina insuficientes, e inibição emocional. Essa seleção teve como critério a hipótese de que os EIDs apresentam alguma associação com os domínios afetivo-consistente, autonomia e adaptação familiar do suporte familiar de Baptista (2005).
As experiências infantis levam o indivíduo com o esquema desadaptativo de desconfiança/abuso a esperar que outras pessoas irão negligenciá-lo, machucá-lo, humilhá-lo, enganá-lo, entre outros. A privação emocional refere-se à expectativa de que os cuidados emocionais necessários não serão supridos por outros indivíduos e pode ser segmentada em três tipos significativos: a) privação de cuidados - não há afeto, carinho e atenção; b) privação de empatia - não existe o sentimento de compreensão, de escuta, de expressão mútua de afetos; e c) privação de proteção - ausência de direcionamento ou de orientação por outros (Young et al., 2008). O esquema de defectividade/vergonha descreve o sentimento de que o indivíduo é falho, indesejado e inferior aos demais, o que o tornaria indigno de receber afeto. Ainda no primeiro domínio, o isolamento social é o esquema que leva o indivíduo a entender a sua existência como solitária e, portanto, de não pertencimento a nenhum grupo (Young et al., 2008).
No segundo domínio, o EID de dependência/incompetência refere-se à crença de que o indivíduo não será capaz de cuidar de si próprio e de lidar com suas responsabilidades sem necessitar de intervenção alheia. Além disso, pessoas provenientes de núcleos familiares emaranhados podem desenvolver o EID de emaranhamento, levando-as a relacionar sua sobrevivência e sua felicidade com o apoio do outro (Young et al., 2008).
O esquema de autocontrole e autodisciplina insuficientes faz parte do terceiro domínio esquemático. Entende-se que indivíduos com alta ativação desse esquema apresentam dificuldades para exercer autocontrole sobre suas ações, assim como para tolerar a frustração dos seus desejos. Por fim, os autores descrevem o esquema de inibição emocional, presente no quinto domínio esquemático, como o controle de comportamentos e sentimentos a fim de evitar a perda e/ou a desaprovação de alguém (Young et al., 2008).
Pesquisas apontam que os EIDs estão positivamente correlacionados aos sintomas depressivos e ansiosos em adolescentes e jovens adultos (p. ex., Bishop et al., 2022; Tariq, Quayle et al., 2021; Tariq, Reid et al., 2021), assim como a diversos outros transtornos mentais (p. ex., Bär et al., 2023; Dostal & Pilkington, 2023) e ao risco de comportamento suicida (p. ex., Khosravani et al., 2019). Ademais, achados sugerem que indivíduos com sintomas depressivos estão propensos a ter baixa autoestima, expectativas pessimistas a respeito de interações interpessoais e crenças de que não merecem relacionamentos saudáveis (Tariq, Reid et al., 2021).
Ainda, os domínios esquemáticos estão positivamente associados às adições comportamentais e por substâncias psicoativas, em especial o domínio de desconexão e rejeição (Sakulsriprasert et al., 2023; Vieira et al., 2023). Os EIDs se correlacionam significativamente aos estilos de apego inseguro e à negligência das necessidades emocionais básicas ao longo da infância e da adolescência (Pilkington et al., 2021; Vieira et al., 2023).
PERCEPçãO DO SUPORTE FAMILIAR
A sociedade é estruturada por meio de relações interpessoais, que tem a família como um dos principais grupos organizacionais. O grupo familiar se organiza em um período sócio-histórico a fim de se adaptar ao contexto e garantir a sua sobrevivência e reprodução. O indivíduo tem, em sua própria existência, a construção de vínculos com outras pessoas por meio do compartilhamento de objetivos e do amparo recíproco (Campos, 2004; Narvaz & Koller, 2006).
Independentemente da estruturação (nuclear, monoparental, pais divorciados, entre outros), é na família que o indivíduo encontra as suas primeiras relações sociais e provedoras do cuidado necessário à sua saúde física e psicológica. A primeira função da família é dar afeto ao bebê, considerando que os pais exercem o papel de contribuição à construção da identidade de seus filhos (Souza & Baptista, 2008). Um elemento necessário ao desenvolvimento de uma pessoa saudável é fornecer suporte social adequado.
Um bom suporte familiar está vinculado à superação de estresses, enquanto o suporte inadequado está associado ao desenvolvimento de patologias e à dificuldade de interações interpessoais (Baptista, 2005). O suporte familiar pode ser definido pelo modelo circumplexo de Olson et al. (1983), que o divide em coesão, adaptabilidade e comunicação.
A coesão familiar é definida como a capacidade do grupo de equilibrar a separação e a união dos membros. Aspectos como vínculo afetivo, fronteiras bem delimitadas, aliança, espaço, liberdade para tomar decisões e interação estão contidos no conceito de coesão. Uma coesão equilibrada está no cerne de famílias funcionais (Olson et al., 1983).
A adaptabilidade refere-se à capacidade do grupo de ser flexível em relação aos papéis de cada membro e às regras estabelecidas. Essa flexibilidade pode ser dividida em quatro domínios: rígida (baixa), estruturada (baixa a moderada), flexível (moderada a alta) e caótica (muito alta). A adaptação familiar agrega características como assertividade, controle, disciplina e negociação para mudanças de regras e de estrutura de poder (Baptista, 2005; Olson et al., 1983).
Por fim, a comunicação atua como um agente de mediação entre os outros dois componentes do modelo circumplexo do suporte familiar. Nessa dimensão, trabalha-se com a habilidade de escuta, abertura para os membros expressarem seus sentimentos em relação a si e à família, empatia, comentários de apoio e respeito (Olson et al., 1983). A comunicação negativa associa-se a um alto nível de criticismo entre o círculo familiar.
Em seu trabalho, Kashani et al. (1994) mostraram que a saúde mental das crianças se relaciona com o ambiente familiar. Aquelas que disseram ter menos figuras de suporte se apresentaram menos atentas ou mais retraídas, além de se mostrarem mais nocivas com outras pessoas, pouco cooperativas e de terem maiores níveis de desesperança. Crianças que vivem em um ambiente familiar de baixa qualidade apresentam desvios de conduta e comportamento antissocial (Álvarez-García et al., 2019; Saladino et al., 2020). Indivíduos com histórico de maus-tratos na infância, ainda, apresentam sintomas clínicos relevantes (Boroujerdi et al., 2019).
Conflitos familiares foram relacionados a maior probabilidade de ideação suicida e de comportamentos de automutilação sem intenção suicida. Em adição, baixo controle parental também foi associado a ideação suicida, automutilação e tentativa de suicídio, mesmo após serem considerados outros fatores relevantes à saúde mental, como situação financeira, gênero e histórico familiar (DeVille et al., 2020). As relações familiares podem servir como fator de risco, quando marcadas por conflitos e negligência, ou como agente de proteção ao comportamento suicida, quando há suporte parental e circulação de afeto (Silva & Marcolan, 2021; Yang et al., 2022).
Um estudo buscou investigar as relações entre o funcionamento familiar e o bem-estar subjetivo, assim como o papel mediador dos EIDs nessa dinâmica. Os resultados indicaram uma correlação positivamente significativa entre o funcionamento da família e o bem-estar. Além disso, foi identificada uma associação negativamente significativa entre os EIDs e o bem-estar. Os resultados também sugerem haver uma correlação negativa e significativa entre os EIDs e o funcionamento familiar. O estudo mostrou que os EIDs têm um papel mediador entre os construtos de bem-estar subjetivo e de funcionamento familiar. Portanto, segundo os autores, conflitos no seio familiar podem ativar os EIDs do indivíduo, resultando em prejuízos para o bem-estar (Tutal & Yalçin, 2021).
O papel da família na formação do indivíduo já é constatado e investigado em diferentes abordagens da psicologia. O cuidado com a criança e a satisfação de suas necessidades fisiológicas, sociais e emocionais influenciam as demais relações ao longo do ciclo vital. As interações primárias, portanto, servem como a base do desenvolvimento do indivíduo (Lockwood & Perris, 2012).
O modelo cognitivo sugere que o comportamento de abuso tem a sua origem nas experiências infantis, assim como ocorre com a depressão e a ansiedade. Essas experiências ocorridas na infância favorecem que esquemas desadaptativos, crenças nucleares e crenças condicionais sejam constituídos. As crenças/esquemas relacionados ao objeto da adição é que vão contribuir para a manutenção do comportamento aditivo (Rangé & Marlatt, 2008).
Adolescentes que apresentam alguma dependência comportamental percebem o ambiente familiar como pouco coeso e com pouca intimidade entre os membros, além de sentirem que as relações com a família e a comunicação do grupo são fracas. Ainda, os adolescentes relataram que as relações familiares eram marcadas por conflitos (Karaer & Akdemir, 2019). A violência intrafamiliar também se mostra como fator de risco para o uso de substâncias lícitas e ilícitas entre os jovens (Neves et al., 2021).
Em estudo de Pessoa et al. (2022) acerca das relações entre os EIDs e eventos estressores precoces (abusos e negligência), o abuso emocional foi a variável de estresse que se correlacionou com todos os EIDs. As implicações das negligências parentais física e emocional também foram expressas por meio de uma correlação positiva com o esquema de privação emocional.
A qualidade da relação com os cuidadores é fator importante para um desenvolvimento psicossocial sadio (Grevenstein et al., 2019; Umberson & Thomeer, 2020). Esse relacionamento depende de diversas variáveis, sendo os estilos parentais uma delas (Mak et al., 2020). Habilidades parentais de baixa qualidade podem ter efeitos negativos no desenvolvimento da personalidade (Basso et al., 2009). Os estilos parentais apresentam relações com sintomas depressivos e ansiosos, transtornos alimentares e da personalidade (Basso et al., 2009). Ainda, comportamentos de negligência parental são considerados relevantes para o desenvolvimento da depressão (Basso et al., 2019). Infere-se, portanto, que o impacto dos maus-tratos na infância pode ter como agente de mediação esquemas iniciais desadaptativos (Basso et al., 2019; Mak et al., 2020).
Indivíduos com histórico de violência física contra os parceiros apresentaram escores mais altos nos EIDs do que aqueles sem experiência de violência. A associação entre comportamentos violentos e funcionalidade familiar gerou resultados que indicam que quanto melhor for o funcionamento da família, menor será a probabilidade de o indivíduo constituir relações amorosas destrutivas (Borges & Dell’Aglio, 2020; Paim & Falcke, 2016). A exposição à violência intrafamiliar na infância atua como agente de influência na manutenção de relacionamentos violentos na idade adulta (Mosena & Bossi, 2022).
FLORESCIMENTO: O BEM-ESTAR NO MODELO PERMA
Martin Seligman é um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da psicologia positiva. Para o autor, é necessário compreender os aspectos saudáveis do indivíduo, ao contrário de outras linhas teóricas da psicologia que enfocam, principalmente, as patologias e as disfuncionalidades comportamentais e emocionais (Bedin & Zamarchi, 2019). Entre uma das maiores áreas de interesse da psicologia positiva está o bem-estar. Na teoria do bem-estar, o termo “florescimento” pode ser encontrado. Florescer, para os positivistas, é um estado no qual o indivíduo apresenta um bom funcionamento emocional e social (Bedin & Zamarchi, 2019).
Seligman (2011) afirma que um dos objetivos da psicologia positiva é aumentar o nível de florescimento na vida do indivíduo. Para a teoria do bem-estar, portanto, o florescimento pode ser compreendido a partir de dois pressupostos: o indivíduo, para florescer, precisa ter todos os traços essenciais (emoções positivas, engajamento, interesse, sentido de vida e propósito) e, pelo menos, três dos seis traços adicionais (autoestima, otimismo, resiliência, vitalidade, autodeterminação e relações positivas).
O modelo PERMA (acrônimo em inglês para as dimensões do bem-estar), também proposto por Seligman (2011), explica o florescimento a partir de cinco dimensões: emoções positivas (P), engajamento (E), relacionamentos positivos (R), sentido de vida (M) e realização (A).
As emoções positivas representam sentimentos de entusiasmo e de prazer; o engajamento refere-se ao envolvimento intenso com alguma atividade que está sendo realizada; a dimensão dos relacionamentos positivos pode ser observada pelo sentimento de pertencimento e pela sensação de ser querido pelas pessoas do convívio; o sentido de vida pode ser considerado como o sentimento de que a vida tem um propósito; já a realização se distingue dos demais ao significar o sentimento de que os sonhos já foram alcançados e que outros ainda o serão (Carvalho et al., 2023).
Em uma pesquisa cujo objetivo era avaliar o impacto da comunicação familiar no bem-estar, os resultados indicaram associação positiva entre as famílias que conversavam abertamente sobre suas questões, o bem-estar psicológico dos filhos e a apresentação de menos sintomas em relação à saúde mental. Já indivíduos que cresceram em famílias que desencorajavam a discórdia entre os membros apresentavam redução no bem-estar, quando comparado ao outro grupo. Logo, o estudo apontou que o bem-estar de um indivíduo adulto é mediado pelo suporte parental (Lindsey, 2022).
O suporte vindo da família é um elemento relevante às características associadas ao bem-estar. Pessoas que encontram apoio no grupo familiar dizem ter maiores níveis de satisfação de vida, enquanto aquelas que vivem em um ambiente familiar permeado por conflitos apresentam redução na satisfação de vida (Rodriguez-Rivas et al., 2022). Ainda, experiências positivas durante a fase infantil estão associadas às habilidades sociais e à saúde mental na fase adulta (Bethell et al., 2019), enquanto momentos intrafamiliares de qualidade insatisfatória relacionam-se à redução do bem-estar (Waters et al., 2023).
A frequência e a qualidade do cuidado durante a infância refletem-se nas formas de se relacionar na idade adulta, sendo ambas importantes no desenvolvimento dos estilos de apego em um relacionamento amoroso (Becker & Crepaldi, 2019). Os padrões de apego ativados na fase adulta se associam significativamente ao bem-estar: maiores níveis das dimensões de apego inseguro indicam menor sentimento de bem-estar (Calvo et al., 2022; Kafetsios & Sideridis, 2006).
Ainda, o apego se relaciona ao modo como os jovens adultos vivenciam o propósito e o significado da vida, bem como ao estabelecimento de relacionamentos positivos com outros indivíduos e ao sentimento de satisfação com a vida (Booker et al., 2021). Conflitos parentais, restrições e supervisão podem prever o florescimento de maneira negativa e significativa (Mohebb Ali, 2020), e as relações familiares também mostraram ter mais efeito no bem-estar subjetivo do que os relacionamentos interpessoais de outros tipos (Cheng et al., 2011).
Este estudo teve por objetivo testar as relações entre os EIDs (desconfiança/abuso, privação emocional, defectividade/vergonha, isolamento social, dependência/incompetência, emaranhamento, autocontrole e autodisciplina insuficientes, e inibição emocional), a percepção do suporte familiar e o bem-estar. Além disso, também investigou o poder preditivo dos EIDs e do suporte familiar sobre o bem-estar.
MéTODO
PARTICIPANTES
Participaram do estudo 171 adultos de todos os estados do território nacional, com média de 26,1 anos (DP = 8,50; mín. = 17, máx. = 58). Entre os participantes, 82,5% eram mulheres, 14,4% se identificaram como homens e 3,1% assinalaram identificação com outros gêneros. A maior parte da amostra se identificou como heterossexual (62,4%), enquanto 8,2% afirmaram ser gays/lésbicas e 25,3% se descreveram como bissexuais. A amostra residia, em maior parte (48,0%), no estado do Rio de Janeiro. Acerca do nível de escolaridade, 45,9% tinham ensino superior incompleto. Para os itens relativos a características do núcleo familiar, 86,0% relataram ter irmãos, 38,9% afirmaram ter sido cuidados pelos pais de maneira integral e 56,3% disseram que os pais eram casados ou se relacionavam amorosamente no período da infância/adolescência. Sobre ter ou não diagnóstico psiquiátrico, 36,7% informaram ter algum diagnóstico, sendo ansiedade (36,9%) e depressão (34,5%) os com maior frequência de menções.
INSTRUMENTOS
Foi utilizado um questionário on-line disponibilizado em um endereço na internet contendo perguntas sociodemográficas que abordavam o gênero, o grau de instrução, a renda familiar, a idade e a região onde vivia. Ele também continha questões sobre a família, sendo solicitado que o participante definisse o grupo familiar de origem (cuidado integralmente pelos pais, cuidado dividido entre pais e avós, cuidado integralmente pelos avós, pais separados ou casados, cuidado por outros cuidadores) e informasse se tinha irmãos.
Para coletar os dados acerca da percepção do suporte familiar, foi utilizado o Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF), elaborado por Baptista (2005; 2007), que apresenta 42 itens a serem respondidos em uma escala de três pontos que varia entre “quase nunca ou nunca”, “às vezes” e “quase sempre ou sempre”. O instrumento se subdivide em três fatores, sendo eles afetivo-consistente, adaptação familiar e autonomia. O inventário apresentou satisfatórios índices de consistência interna para cada um de seus fatores, α = 0,91, α = 0,90 e α = 0,78, respectivamente (Baptista, 2005; 2007).
Para mapear os EIDs, foi utilizado o Questionário de Esquemas de Young - forma reduzida (YSQ-S2) (Cazassa, 2007), que acessa 17 EIDs. Para este estudo, foram utilizadas as afirmativas referentes aos EIDs de desconfiança/abuso (4 itens), privação emocional (5 itens), defectividade/vergonha (4 itens), isolamento social (4 itens), dependência/incompetência (4 itens), emaranhamento (5 itens), autocontrole e autodisciplina insuficientes (5 itens) e inibição emocional (5 itens). Os itens consistem em afirmativas para que os participantes respondam em uma escala de seis pontos o quanto cada um deles os descreve adequadamente, variando de “não me descreve de modo algum” e “me descreve perfeitamente”. Considerando os 75 itens da escala, a adaptação brasileira do instrumento apresentou consistência interna satisfatória (α = 0,95) (Cazassa, 2007).
A fim de avaliar um possível desfecho clínico, investigou-se também o bem-estar por meio da Escala PERMA-Profiler (Carvalho et al., 2023), que afere cinco fatores do bem-estar - emoções positivas, engajamento, relacionamentos positivos, sentido de vida e realização - e permite calcular um escore geral do construto. O instrumento contém 23 itens em formato de afirmativas a serem respondidas em escalas de 1 a 10, variando de nunca a sempre, ou terrível a excelente, ou nada a completamente. A versão brasileira da escala de florescimento PERMA-Profiler apresentou consistência interna satisfatória (α = 0,93) (Carvalho et al., 2023).
Em cada um dos instrumentos havia itens de controle de atenção. Os participantes eram solicitados a marcar uma resposta específica a fim de verificar se estavam lendo os itens, por exemplo: “Este é um item de controle, por favor, marque o número dois como resposta”.
PROCEDIMENTOS
O projeto foi apreciado pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Petrópolis, sob nº de protocolo CAAE 74355423.1.0000.5281 e recebeu parecer favorável. Este projeto está de acordo com as resoluções éticas da Resolução n. 466 (2012) e suas complementares do Conselho Nacional de Saúde.
A coleta foi feita por meio de um formulário on-line com um link que foi compartilhado em redes sociais e por e-mail. O endereço do formulário foi divulgado nas redes sociais dos pesquisadores, juntamente a um texto-convite. Além disso, foram recrutados participantes nas dependências da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro utilizando-se o método CORP (Wachelke et al., 2014) - coletavam-se os endereços de e-mail dos interessados na pesquisa e enviavam-se convites com o link para o formulário.
Inicialmente, procedeu-se à limpeza do banco de dados retirando-se os participantes que erraram os itens de controle, assim como aqueles que não responderam a todo o questionário. Realizaram-se análises de correlação de Spearman entre as variáveis do estudo. Para avaliar desfechos clínicos das dimensões do IPSF e do YSQ-S2 no bem-estar, foi realizada uma análise de regressão linear múltipla com o escore geral da PERMA-Profiler. As análises foram feitas no programa JAMOVI versão 2.4.11.0 (The Jamovi Project, 2023).
RESULTADOS
Os coeficientes das correlações, rho de Spearman, podem ser observados na Tabela 1. De modo geral, as correlações apontam para associações fracas a moderadas. A análise correlacional mostrou que todos os fatores do IPSF e os EIDs investigados neste estudo correlacionaram-se negativamente, apresentando forças de relacionamento que variam de fracas a moderadas. Ou seja, quanto maior o nível de gravidade nos EIDs, menos suporte familiar percebido, e vice-versa. Destacam-se as relações entre o esquema de privação emocional e as dimensões do suporte afetivo-consistente (rho = -0,64), adaptação familiar (rho = -0,62) e autonomia (rho = -0,50).
Tabela 1 Correlações entre os esquemas iniciais desadaptativos e as dimensões do suporte familiar e do modelo PERMA.
M | DP | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | 13 | 14 | 15 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1. Afetivo-consistente | 1,93 | 0,49 | - | ||||||||||||||
2. Adaptação | 2,18 | 0,50 | 0,77*** | - | |||||||||||||
3. Autonomia | 2,38 | 0,55 | 0,60*** | 0,63*** | - | ||||||||||||
4. Desconfiança/abuso | 2,99 | 1,41 | -0,31*** | -0,37*** | -0,42*** | - | |||||||||||
5. Privação emocional | 3,02 | 1,44 | -0,64*** | -0,62*** | -0,50*** | 0,58*** | - | ||||||||||
6. Defectividade/vergonha | 3,51 | 1,33 | -0,38*** | -0,45*** | -0,43*** | 0,26*** | 0,29*** | - | |||||||||
7. Isolamento social | 2,48 | 1,45 | -0,34*** | -0,40*** | -0,40*** | 0,47*** | 0,55*** | 0,37*** | - | ||||||||
8. Dependência/incompetência | 3,26 | 1,35 | -0,34*** | -0,39*** | -0,35*** | 0,46*** | 0,59*** | 0,40*** | 0,63*** | - | |||||||
9. Emaranhamento | 2,40 | 1,00 | -0,12 | -0,24*** | -0,44*** | 0,31*** | 0,40*** | 0,34*** | 0,45*** | 0,68*** | - | ||||||
10.Autocontrole/autodisciplina insuficientes | 3,17 | 1,36 | -0,39*** | -0,46*** | -0,37*** | 0,36*** | 0,55*** | 0,45*** | 0,56*** | 0,71*** | 0,57*** | - | |||||
11. Inibição emocional | 3,12 | 1,29 | -0,36*** | -0,31*** | -0,30*** | 0,39*** | 0,50*** | 0,56*** | 0,46*** | 0,61*** | 0,60*** | 0,63*** | - | ||||
12. Emoções positivas | 5,63 | 2,01 | 0,34*** | 0,38*** | 0,38*** | -0,46*** | -0,43*** | -0,46*** | -0,46*** | -0,46*** | -0,27*** | -0,36*** | -0,34*** | - | |||
13. Engajamento | 7,03 | 1,71 | 0,25*** | 0,21** | 0,25*** | -0,44*** | -0,27*** | -0,37*** | -0,33*** | -0,37*** | -0,26*** | -0,18* | -0,21** | 0,57*** | - | ||
14. Relacionamentos positivos | 6,04 | 2,29 | 0,45*** | 0,39*** | 0,40*** | -0,42*** | -0,63*** | -0,49*** | -0,49*** | -0,49*** | -0,27*** | -0,46*** | -0,51*** | 0,56*** | 0,35*** | - | |
15. Sentido de vida | 5,82 | 2,51 | 0,31*** | 0,29*** | 0,32*** | -0,57*** | -0,37*** | -0,52*** | -0,54*** | -0,52*** | -0,26*** | -0,42*** | -0,31*** | 0,70*** | 0,54*** | 0,49*** | - |
16. Realização | 5,94 | 2,10 | 0,33*** | 0,29*** | 0,28*** | -0,52*** | -0,35*** | -0,56*** | -0,46*** | -0,56*** | -0,22** | -0,31*** | -0,31*** | 0,52*** | 0,48*** | 0,38*** | 0,68*** |
N = 171;
*p < 0,05;
**p < 0,01;
***p < 0,001.
No que diz respeito às relações entre EIDs e o bem-estar, todos os EIDs investigados correlacionaram-se negativamente com os fatores da PERMA-Profiler. Quanto maior a disfuncionalidade nos esquemas (pontuações mais elevadas), menores serão as experiências de emoções e relacionamentos positivos, de engajamento, de sentido de vida e de realização, e vice-versa. Entre as variáveis observadas, o esquema de emaranhamento apresentou associações mais fracas com os cinco fatores da PERMA (rho variando de -0,22 a -0,27) quando comparados às demais dimensões do grupo de esquemas.
Os resultados demonstram que existem relações positivas entre as três dimensões do IPSF e os cinco fatores do bem-estar. Quanto mais funcional o suporte familiar é percebido, maior o bem-estar, e vice-versa. Destaca-se o fator relacionamentos positivos e suas correlações com a as dimensões afetivo-consistente (rho = 0,45), adaptação familiar (rho = 0,39) e autonomia (rho = 0,40).
A análise do poder preditivo do suporte familiar e dos EIDs sobre bem-estar geral foi realizada em dois momentos. Primeiro, todos os fatores do IPSF e os EIDs investigados neste estudo foram incluídos em um mesmo bloco como preditores do bem-estar geral, em uma análise de regressão linear múltipla. Esse modelo pode ser visualizado na Tabela 2. Verificou-se que 52% da variância do bem-estar foi explicada por fatores do suporte familiar e EIDs. Entre as variáveis incluídas no modelo como preditoras, somente os EIDs de dependência/incompetência e desconfiança/abuso se mostraram significativos. Observando-se os coeficientes padronizados, o EID de dependência/incompetência se mostrou o preditor mais forte.
Tabela 2 Suporte familiar e esquemas iniciais desadaptativos como preditores do bem-estar geral.
β | t | p | ||
---|---|---|---|---|
Constante | 9,26 | < 0,001 | ||
Afetivo-consistente | 0,18 | 1,91 | 0,06 | |
Adaptação familiar | -0,14 | -1,51 | 0,13 | |
Autonomia | 0,12 | 1,61 | 0,11 | |
Desconfiança/abuso | -0,20 | -2,44 | 0,02 | |
Privação emocional | -0,09 | -1,06 | 0,29 | |
Defectividade/vergonha | -0,11 | -1,17 | 0,24 | |
Isolamento social | -0,14 | -1,68 | 0,10 | |
Dependência/incompetência | -0,26 | -3,37 | <0,001 | |
Emaranhamento | 0,08 | 1,08 | 0,28 | |
Autocontrole e autodisciplina insuficientes | 0,01 | 0,13 | 0,90 | |
Inibição emocional | -0,08 | -1,14 | 0,26 | |
R2 | 0,55 | |||
R2 ajustado | 0,52 | |||
F | 17,8*** |
N = 171;
***p < 0,001.
Devido ao resultado do modelo em que todos os fatores foram inseridos ao mesmo tempo, optou-se por analisar em separado o poder preditivo dos fatores do suporte familiar percebido (IPSF) e dos EIDs sobre o bem-estar geral. Os resultados para o suporte familiar podem ser vistos na Tabela 3. Verificou-se que 24% da variância do bem-estar geral foi explicada pelo suporte familiar percebido. Dois fatores do IPSF mostraram-se preditores positivos: afetivo-consistente e autonomia.
Tabela 3 Suporte familiar como preditor do bem-estar geral.
β | t | p | ||
---|---|---|---|---|
Constante | 3,73 | <0,001 | ||
Afetivo-consistente | 0,25 | 2,26 | 0,02 | |
Adaptação familiar | 0,05 | 0,41 | 0,68 | |
Autonomia | 0,26 | 3,15 | <0,01 | |
R2 | 0,24 | |||
R2 ajustado | 0,23 | |||
F | 17,6*** |
N = 171;
***p < 0,001
Quando só os EIDs foram incluídos como preditores do bem-estar geral, observou-se que eles explicaram 53% da variância do bem-estar. Os resultados podem ser vistos na Tabela 4. Os EIDs de dependência/incompetência, desconfiança/abuso e privação emocional mostraram-se preditores significativos e negativos do bem-estar.
Tabela 4 Esquemas iniciais desadaptativos como preditores do bem-estar geral.
β | t | p | ||
---|---|---|---|---|
Constante | 28,5 | < 0,001 | ||
Desconfiança/abuso | -0,20 | -2,32 | 0,02 | |
Privação emocional | -0,17 | -2,18 | 0,03 | |
Defectividade/vergonha | -0,09 | -0,95 | 0,35 | |
Isolamento social | -0,15 | -1,87 | 0,06 | |
Dependência/Incompetência | -0,29 | -3,68 | <0,001 | |
Emaranhamento | 0,06 | 0,84 | 0,40 | |
Autocontrole e autodisciplina insuficientes | 0,03 | 0,42 | 0,67 | |
Inibição emocional | -0,10 | -1,39 | 0,17 | |
R2 | 0,53 | |||
R2 ajustado | 0,50 | |||
F | 22,7*** |
N = 171;
***p < 0,001
DISCUSSãO
A TE surgiu como uma alternativa à TCC de Beck e tem sua teoria orientada à valorização das relações interpessoais constituídas na infância e na adolescência de um indivíduo, em especial com os seus cuidadores principais (Young et al., 2008). Para a TE, então, a família tem um papel central nos desenvolvimentos cognitivo e socioemocional de uma pessoa. Neste estudo, buscou-se testar as relações entre os EIDs, a percepção do suporte familiar e o bem-estar, bem como o poder preditivo desses construtos sobre o bem-estar.
O suporte familiar pode ser compreendido por meio da comunicação entre os membros do sistema familiar, da adaptabilidade aos eventos que influenciam a dinâmica familiar e da coesão nas relações entre as pessoas da família e seus respectivos papéis (Olson et al., 1983). Assim como esperado, os EIDs apresentaram correlações negativas com as dimensões do suporte familiar. Essas associações são teoricamente embasadas, visto que a qualidade das relações familiares é o principal fator para o desenvolvimento dos EIDs (Young et al., 2008). A relação entre o ambiente familiar e os sintomas clínicos, como os desenvolvidos a partir dos EIDs, são extensivamente cobertos em outros estudos (Asarnow et al., 1987; Kashani et al., 1994; Sandler, 1980; Tutal & Yalçin, 2021).
A família é a responsável por fornecer ao indivíduo as primeiras relações sociais, sendo o vínculo com outras pessoas essencial para o desenvolvimento (Campos, 2004; Souza & Baptista, 2008). São as interações com a família que implicam o desenvolvimento dos EIDs, os quais, como descrito na TE, são espelhos do ambiente familiar na infância e na adolescência e, portanto, ressaltam a importância dessas relações (Wainer & Rijo, 2016; Young et al., 2008). Logo, uma boa relação familiar é um fator significativo para a superação de estresses e para o desenvolvimento de EIDs, de crenças disfuncionais e de perturbações psicológicas (Baptista, 2005; Young et al., 2008).
Os EIDs também apresentaram correlações negativas com as dimensões do bem-estar. Considerando que os EIDs dizem respeito a padrões autoderrotistas carregados de afetos negativos, compreende-se que os sentimentos e as experiências únicas do bem-estar seriam prejudicados pelos esquemas. Os achados deste estudo vão ao encontro de resultados de pesquisas anteriores, como uma análise de mediação dos EIDs no relacionamento entre o ambiente familiar e o bem-estar, que retornou que indivíduos de famílias com maior presença de conflitos têm os seus EIDs ativados e, portanto, o seu bem-estar reduzido (Tutal & Yalçin, 2021). O resultado da análise de regressão revelou que os fatores dependência/incompetência, desconfiança/abuso e privação emocional foram os que mais contribuíram negativamente para o bem-estar. Esses EIDs podem levar a sentimentos de desamparo e vulnerabilidade, e sua ativação pode interferir nas habilidades de enfrentamento e na regulação emocional, reduzindo, assim, o bem-estar (Ke & Barlas, 2020).
O bem-estar e o suporte familiar se mostraram positivamente associados. Esses achados corroboram os resultados encontrados anteriormente em outros estudos que sugerem que um suporte familiar de qualidade se associa a maiores níveis de bem-estar (p. ex., Lindsey, 2022; Mohebb Ali, 2020). Os resultados do modelo preditivo do suporte familiar sobre o bem-estar mostraram que os fatores afetivo-consistente e autonomia foram os que mais contribuíram positivamente para o bem-estar. O primeiro deles, ao proporcionar um ambiente emocionalmente estável e previsível, permite que os indivíduos se sintam seguros, o que contribui para melhor regulação emocional e redução do estresse, impactando positivamente o bem-estar (Azpiazu Izaguirre et al., 2021). Já o segundo fator, ao promover a independência e o autocontrole, permite que os indivíduos tomem decisões próprias e cultivem um senso de competência e autoeficácia (Lan et al., 2019), o que pode aumentar a resiliência e a capacidade de enfrentar desafios, ampliando, assim, os níveis de bem-estar.
Quando os fatores do suporte familiar percebido e os EIDs avaliados neste estudo foram considerados em conjunto como preditores do bem-estar, verificou-se que apenas os EIDs dependência/incompetência e desconfiança/abuso mostraram-se preditores significativos e negativos do bem-estar. Destaca-se, portanto, que a variância explicada pelo suporte familiar é suprimida quando os EIDs são incluídos. Esses resultados sugerem que os esquemas iniciais desadaptativos têm um papel predominante na explicação do bem-estar individual, possivelmente devido a sua característica de interferir de maneira mais profunda nas respostas emocionais dos indivíduos. Consequentemente, isso enfatiza a importância de abordagens terapêuticas focadas na modificação de EIDs para promover melhorias no bem-estar.
Os resultados revelaram suporte às hipóteses formuladas. No entanto, o estudo apresenta algumas limitações importantes. Entre elas, destaca-se que a amostra foi pequena, sendo constituída por 171 participantes, e que apenas 30 indivíduos se identificaram como sendo do gênero masculino. Devido à limitação da amostra, os resultados não podem ser generalizados a uma população. Sugere-se a replicação do estudo em uma amostra maior e mais diversificada.
CONSIDERAçõES FINAIS
Este estudo teve por objetivo testar o papel preditivo dos EIDs e do suporte familiar no bem-estar. Os resultados obtidos fornecem apoio às hipóteses testadas e evidenciam o impacto da qualidade das relações familiares e dos EIDs na saúde psicológica. Contudo, por ser um estudo transversal correlacional, as relações entre as variáveis não podem ser interpretadas como causais. Ainda, a TE considera relevante o papel dos estilos de enfrentamento na expressão dos EIDs e, nesta pesquisa, eles não foram avaliados. Sugere-se, portanto, que o estudo seja reproduzido em uma amostra maior e que haja a consideração dos estilos de enfrentamento como variáveis mediadoras da relação entre os EIDs e o bem-estar.