A definição dos comportamentos de autolesão varia de autolesão a autolesão não suicida, conforme a inclusão ou exclusão de tentativa de suicídio (Nock, 2010). Os comportamentos de autolesão não suicida são entendidos como aqueles em que o adolescente provoca lesões em si mesmo, de modo intencional, sem o componente da ideação suicida (International Society for the Study of Self-Injury [ISSS], 2023), excluindo-se os comportamentos socialmente aceitos, como tatuagens e piercings (Nock, 2010).
Entre as manifestações preponderantes de comportamento de autolesão não suicida, destacam-se práticas como corte da pele, arranhões, riscas severas, mordeduras, autogolpes, impactos da cabeça contra a parede e tração capilar (Hughes et al., 2019; Nester et al., 2023; Nock, 2010), com a possibilidade de adoção concomitante de múltiplos métodos. Geralmente, esses comportamentos ocorrem em cenário privado, uma vez que são associados a um forte sentimento de vergonha (Jørgensen et al., 2022; McLoughlin et al., 2022).
A autolesão não suicida é considerada um problema de saúde pública (Clarke et al., 2019; Hughes et al., 2019; Shao et al., 2021) em função da elevada prevalência em amostras comunitárias e clínicas (Muehlenkamp et al., 2023; Wang et al., 2022). Consiste em uma prática que precisa ser compreendida em toda a sua complexidade (Kothgassner et al., 2021), pois envolve variáveis sociodemográficas (Mehmood et al., 2023; Nicol et al., 2021; Wang et al., 2022), individuais de manejo de problemas (Gohari et al., 2019; Miscioscia et al., 2022; Pérez et al., 2021) e de emoções (Miscioscia et al., 2022) , variáveis psicossociais (Wang et al., 2022; Witt et al., 2020), relacionais (Miscioscia et al., 2022) e aspectos de estado mental/emocional, como TMC e afetos positivos e negativos (Faura-Garcia et al., 2021; Nock, 2010).
Como variáveis sociodemográficas associadas à autolesão não suicida, pode-se apontar gênero, idade, raça/cor, escolaridade dos pais, prática religiosa e status socioeconômico (Costa et al., 2021; Muehlenkamp et al., 2023; Neinstein et al., 2016). Já a facilidade de comunicação com pessoas de referência e os maus-tratos, configurados como abuso (Lee et al., 2021; Huang et al., 2022; Kiekens et al., 2023), fazem parte das variáveis relacionais. Os TMC, os afetos positivos e negativos e o estresse interpessoal dizem respeito às variáveis de estado mental/emocional (Hauber et al., 2019; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022). A capacidade de regulação emocional, as estratégias de coping e as habilidades sociais interpessoais correspondem às variáveis individuais de enfrentamento (Peel-Wainwright et al., 2021; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022) a situações estressantes e/ou aversivas.
Com base na teoria sobre autolesão não suicida adotada neste estudo, foi formulada a hipótese de um modelo hierárquico de fatores associados a esse comportamento. Nesse modelo, as características sociodemográficas são consideradas as mais próximas, seguidas pelas variáveis relacionais. As variáveis de estado mental/emocional e as variáveis individuais de enfrentamento são vistas como mais distantes (conforme representado na Figura 1). Essa estrutura hierárquica facilita a organização e a compreensão da complexidade dos fatores ligados à autolesão não suicida, o que possibilita uma análise mais sistemática e a identificação de áreas-chave para intervenção e prevenção.

Figura 1 Modelo de análise hierarquizada de determinação de autolesão não suicida entre adolescentes escolares.
O presente estudo teve como objetivo investigar a prevalência e os fatores associados à autolesão não suicida em 878 adolescentes escolares de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. A pesquisa visou confirmar o modelo hierárquico teórico proposto.
MÉTODO
Foi realizado um estudo de base escolar, observacional, analítico, com corte transversal, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), parecer nº 2.971.591, CAAE 94359518.8.0000.5345, do qual participaram estudantes de ambos os gêneros, com idade entre 10 e 17 anos, cursando do 5º ao 9º ano do ensino fundamental regular, matriculados na rede pública municipal de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, em 2019. O presente estudo buscou manter uma distribuição equitativa entre os participantes mais jovens (10 a 12 anos; n = 437) e os mais velhos (13 a 17 anos; n = 441), a fim de assegurar a representatividade e a confiabilidade dos resultados. Essa divisão foi embasada nas definições da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1998), que considera a adolescência a partir dos 10 anos, e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, 1990), que a define a partir dos 12 anos. A idade limite foi de 17 anos, em virtude de não terem sido identificados alunos com 18 anos ou mais nas escolas pesquisadas.
POPULAçãO E AMOSTRA
A população foi identificada a partir dos dados disponibilizados pela Secretaria Municipal da Educação da cidade em estudo (n = 1.388), distribuídos entre nove escolas localizadas tanto na área urbana quanto rural, estando matriculados no 5º ano (n = 307); 6º ano (n = 308); 7º ano (n = 266); 8º ano (n = 246); e 9º ano (n = 261). Das nove escolas do município, uma não aceitou participar. Entre as instituições de ensino participantes, 1.107 adolescentes responderam aos instrumentos. Foram excluídos 229 participantes - 92 por não terem respondido ao instrumento principal referente à autolesão não suicida e 137 pela presença de ideação suicida na prática de autolesão. Assim, a amostra final ficou composta por 878 adolescentes (63,2% dos adolescentes matriculados na rede pública municipal), sendo 473 (53,9%) com pelo menos um comportamento de autolesão não suicida na vida e 405 (46,1%) sem a presença de comportamento de autolesão não suicida.
INSTRUMENTOS
Os instrumentos foram organizados em cinco blocos para abranger as variáveis de interesse, incluindo: variáveis sociodemográficas (gênero, idade, raça/cor autorreferida, escolaridade dos pais, prática religiosa e classe econômica); autolesão não suicida; variáveis relacionais (comunicação com pessoas de referência e traumas na infância); variáveis de estado mental/emocional (TMC, afetos positivos e negativos e estresse interpessoal); e variáveis individuais de enfrentamento (coping, regulação emocional e habilidades sociais interpessoais).
VARIáVEIS SOCIODEMOGRáFICAS
O inquérito de dados sociodemográficos foi desenvolvido para o presente estudo e incluiu: gênero (feminino; masculino), idade (10-12 anos; 13-17 anos), raça/cor autorreferida (branco; não branco), escolaridade dos pais (até ensino fundamental; ensino médio; ensino superior), prática religiosa (sim; não) e status econômico (classes A e B; C a E).
Para avaliação da classe econômica, foi utilizado o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2015), que é composto por 15 questões, contendo a posse de itens (11), se a família conta com o auxílio de empregados domésticos (1), grau de instrução do responsável econômico pela família (1) e disponibilidade dos serviços públicos de água encanada e rua pavimentada (2). O CCEB estabelece a classificação entre as classes A, B, C, D e E.
AUTOLESãO NãO SUICIDA
A Escala de Autolesão Não Suicida foi elaborada para o presente estudo a partir de estudos sobre o tema encontrados nas literaturas nacional (Giusti, 2013) e internacional (Ren et al., 2018), e busca investigar a prevalência e a frequência dessa prática entre os adolescentes. São elencados 12 comportamentos de autolesão não suicida entre adolescentes (cortes nos braços, cortes nas pernas, bater a cabeça, queimar a pele, arranhar a pele, reabrir a mesma ferida várias vezes até sangrar, inserir objetos embaixo das unhas e da pele, esfolar a pele, morder-se, bater o punho contra objetos, entre outras formas) a serem respondidos em uma escala de quatro pontos: (0) nunca aconteceu comigo; (1) aconteceu algumas vezes; (2) aconteceu muitas vezes; e (3) acontece sempre. O alfa obtido para os 12 itens foi de 0,73. Foi incluído um item sobre a autolesão associada à intenção suicida, com quatro opções de resposta: (0) nunca; (1) raramente; (2) às vezes; e (3) frequentemente. Esse item teve como objetivo identificar a autolesão não suicida, e os adolescentes que selecionaram a opção zero (0) foram mantidos no estudo, enquanto aqueles que indicaram qualquer outra opção foram excluídos como critério de exclusão. Os demais 12 itens são somados e foram mantidos no estudo aqueles que obtiveram escore ≥ 1, indicando pelo menos um comportamento de autolesão não suicida na vida. A escolha desse ponto de corte foi a de se ter uma escala de maior sensibilidade.
VARIáVEIS RELACIONAIS
Em relação à comunicação com pessoas de referência, foi utilizado instrumento que avalia a facilidade de comunicação com pai, mãe, outros adultos, irmãos, irmãs, amigos e professores. O instrumento foi adaptado para o Brasil (Câmara et al., 2012) a partir do The Health Behavior in Schoolchildren (1985/86): a WHO Cross-National Survey (Wold, 1995), e apresentou alfa de 0,77. Apresenta sete questões com cinco opções de resposta: muito fácil; fácil; difícil; muito difícil; e não tenho esta pessoa. Neste estudo, o coeficiente alfa de Cronbach foi de 0,72. O ponto de corte foi estabelecido a partir da escala de respostas, considerando-se as respostas fácil e muito fácil como fácil comunicação (0), e difícil e muito difícil como difícil comunicação (1).
Já o Childhood Trauma Questionnaire (CTQ), com a denominação Questionário Sobre Traumas na Infância (QUESI) (Grassi-Oliveira et al., 2006), diz respeito a um instrumento de autorrelato retrospectivo (Bernstein et al., 2003). Uma nova versão, direcionada para amostras não clínicas, foi desenvolvida por Brodski et al. (2010) e é composta por 21 itens que avaliam três dimensões: abuso emocional (12 itens, α = 0,90), abuso sexual (5 itens, α = 0,86) e abuso físico (4 itens, α = 0,69). As opções de resposta são: nunca ocorreu (1); ocorreu poucas vezes (2); ocorreu às vezes (3); ocorreu muitas vezes (4); e ocorreu sempre (5). Neste estudo, os coeficientes de confiabilidade foram: α = 0,87 (abuso emocional), α = 0,88 (abuso sexual) e α= 0,58 (abuso físico). O ponto de corte de cada dimensão foi estabelecido a partir da escala de respostas, considerando-se a resposta nunca como ausência (0) e de poucas vezes a sempre como presença (1) de pelo menos um episódio de abuso emocional, sexual e/ou físico.
VARIáVEIS DE ESTADO MENTAL/EMOCIONAL
A fim de avaliar os TMC, foi utilizado o General Health Questionnaire (GHQ-12), instrumento que mensura morbidade psicológica e é composto por 12 itens do tipo Likert de 4 pontos que avaliam a presença ou a ausência de sintomas. Para avaliação de TMC, de acordo com o método desenvolvido por Goldberg e Williams (1988), as respostas podem ser avaliadas como 0-0-1-1. O questionário foi validado na sua versão original e na sua versão brasileira, tendo, em ambos os casos, a Clinical Interview Schedule como padrão de referência (Mari & Williams, 1986). Em estudo de validação com adolescentes, o GHQ-12 apresentou um coeficiente de consistência interna de 0,80 (Sarriera et al., 1996); no presente estudo, o alfa foi de 0,91. O ponto de corte utilizado para o questionário considera cada item como presente ou ausente (0 ou 1), de acordo com o método do GHQ-12. São considerados casos de TMC aqueles que forem positivos em pelo menos três itens (Goldberg & Williams, 1988).
A Escala de Afetos Positivos e Negativos, de Mroczek e Kolarz (1998), inclui uma série de seis aspectos positivos (alegre, de bem com a vida, feliz, calmo, satisfeito, cheio de vida) e seis negativos (triste, nervoso, incomodado, sem esperança, tudo é uma obrigação, inútil), avaliados em termos de frequência (1 = nunca a 5 = o tempo todo) e que foram sentidos durante os últimos 30 dias. Em estudo com 3.396 adolescentes brasileiros, a dimensão de afetos negativos obteve um coeficiente de consistência interna (alfa de Cronbach) de 0,77 e a de afetos positivos, de 0,81 (Câmara & Tomasi, 2015). Neste estudo, o coeficiente alfa encontrados foi de 0,77 para afetos negativos e de 0,85 para afetos positivos. O ponto de corte foi estabelecido a partir da escala de respostas, considerando-se as respostas nunca e pouco frequentemente como ausência (0) e de algumas vezes a todo o tempo como presença de afetos negativos (1).
A Escala de Estresse Interpessoal foi desenvolvida para o presente estudo, com base nos estudos de Hashimoto et al. (2010) e Matsushima e Shiomi (2003), e é composta por 17 itens sobre dificuldades no relacionamento com amigos e colegas. Apresenta cinco opções de resposta: nunca; às vezes; muitas vezes; quase sempre; e sempre. O coeficiente de consistência interna foi de 0,85 e o ponto de corte foi estabelecido a partir da escala de respostas, considerando-se as respostas nunca e poucas vezes como ausência (0) e de algumas vezes a sempre como presença (1).
VARIáVEIS INDIVIDUAIS DE ENFRENTAMENTO
A Escala Brasileira de Coping para Adolescentes (EBCA), versão revisada (Câmara & Carlotto, 2016), é composta por 15 itens - oito avaliam as estratégias com foco na emoção e sete com foco no problema. Apresenta cinco opções de resposta, em uma escala Likert que varia de 0 (nunca) a 4 (sempre). Os índices de fidedignidade dos fatores da escala original foram superiores a 0,70 (Câmara & Carlotto, 2016). No presente estudo, a escala obteve alfas de 0,65 (foco na emoção) e de 0,70 (foco no problema). O ponto de corte foi estabelecido a partir da escala de respostas, considerando-se as respostas nunca e poucas vezes como ausência (0) e de algumas vezes a sempre como presença (1).
Para a avaliação da regulação emocional, utilizou-se a Trait Meta-Mood Scale (TMMS-24) (Fernández-Berrocal et al., 2004; Queirós et al., 2005). Esta escala é composta por 24 itens, organizados em três fatores, cada um contendo oito itens. Os participantes avaliaram seu grau de concordância com cada afirmação utilizando uma escala do tipo Likert, que varia de 1 (“discordo totalmente”) a 5 (“concordo plenamente”). A confiabilidade do instrumento para cada dimensão na versão desenvolvida pelos autores foi: α = 0,90 (atenção), α = 0,90 (clareza) e α = 0,86 (reparação) (Fernández-Berrocal et al., 2004); na versão portuguesa foi: α = 0,80 (atenção), α = 0,79 (clareza) e α = 0,85 (reparação) (Queirós et al., 2005). Neste estudo, o coeficiente alfa foi de 0,87 para cada um dos fatores. Para o levantamento da escala, foram seguidas as fórmulas da versão portuguesa, que estabelecem o escore de cada dimensão a partir da soma dos respectivos itens. Os pontos de corte são diferentes de acordo com o gênero dos participantes. Aqui, foram considerados como pouca atenção escores < 20 (homens) e < 24 (mulheres), pouca clareza escores < 25 (homens) e < 23 (mulheres), e pouca reparação escores de < 23 para ambos os gêneros. Escores superiores indicam regulação emocional adequada nas três dimensões.
A Escala de Habilidades Sociais Interpessoais foi desenvolvida para o presente estudo a partir do estudo de Matsushima e Shiomi (2003) e é composta por 13 itens que avaliam o desempenho social em situações interpessoais da realidade adolescente. As respostas são em escala Likert de cinco pontos variando de nunca (0) a sempre (4). O coeficiente de consistência interna foi de 0,90 e o ponto de corte foi estabelecido a partir da escala de respostas, considerando-se as respostas nunca e poucas vezes como ausência (0) e de algumas vezes a sempre como presença (1).
PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS
Após a aprovação do CEP UFCSPA, os instrumentos adaptados ou desenvolvidos para o estudo foram submetidos à avaliação semântica, de forma grupal, entre 15 adolescentes escolares de uma escola da rede municipal, os quais não foram incluídos no estudo principal. Após incorporação das sugestões, foi realizado um estudo piloto do instrumento integral com 163 adolescentes escolares, sendo 26 do 5º ano e 137 do 9º ano da rede municipal, os quais foram incluídos no estudo principal. Este serviu para ajustes na forma e na ordem das questões e para a avaliação da consistência interna de todos os instrumentos.
A coleta de dados definitiva foi realizada após a anuência e a colaboração das escolas do município. Foi conduzida de forma grupal, em salas de aula, pela primeira autora do estudo e por voluntários de pesquisa devidamente capacitados para a atividade e acompanhados, sistematicamente, pela coordenadora de campo. O tempo médio de aplicação foi de 40 minutos. Os participantes responderam ao instrumento de pesquisa mediante assentimento expresso (TALE) e autorização dos responsáveis, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Houve pelo menos um retorno a cada escola para captar os alunos ausentes no dia da aplicação do instrumento ou que não haviam levado o TCLE assinado pelos responsáveis. Durante toda a pesquisa, foram respeitados os preceitos éticos para pesquisas com seres humanos, conforme preconiza o Conselho Nacional de Saúde (CNS), Resolução nº 510 (2016).
PROCEDIMENTOS DE ANáLISE DOS DADOS
O banco de dados foi digitado e analisado no pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) (versão 21.0). O controle de qualidade da digitação foi realizado por meio de análises descritivas de caráter exploratório, a fim de avaliar no banco de dados a distribuição dos itens, casos omissos, identificação de extremos e possíveis erros de digitação.
Foi investigada a consistência interna dos instrumentos e a distribuição das variáveis na população em estudo. Após, foram realizadas análises bivariadas entre todos os fatores em estudo e o desfecho, como etapa anterior à análise multivariada. A regressão logística foi realizada segundo modelo hierarquizado de três etapas. A participação das variáveis em uma etapa posterior foi determinada pelo seu nível de significância (≤ 0,20). No modelo final, permaneceram somente as variáveis que mostraram um nível de significância inferior a 0,05 na etapa em que foram originalmente introduzidas.
RESULTADOS
A prevalência da prática de autolesão não suicida entre os adolescentes foi de 53,9% (473 participantes). Os dados relacionados às características sociodemográficas dos adolescentes com autolesão (n = 473) e aqueles sem essa prática (n = 405) estão apresentados na Tabela 1. As variáveis relacionais dos adolescentes escolares que praticam autolesão e dos que não praticam são detalhadas na Tabela 2. Além disso, as variáveis de estado mental e emocional, assim como as variáveis individuais de enfrentamento, são mostradas nas Tabelas 3 e 4, respectivamente.
Tabela 1 Características sociodemográficas dos adolescentes escolares com (n = 473) e sem (n = 405) autolesão não suicida, 2019.
Característica sociodemográfica | Com autolesão não suicida | Sem autolesão não suicida | OR (IC 95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Gênero | ||||||
Feminino | 240 | 50,7 | 210 | 51,9 | 1,00 | 0,397 |
Masculino | 233 | 49,3 | 195 | 48,1 | 1,04 (0,80-1,36) | |
Idade | ||||||
10-12 anos | 215 | 45,5 | 222 | 54,8 | 1,00 | 0,003 |
13-17 anos | 258 | 54,5 | 183 | 45,2 | 1,46 (1,11-1,90) | |
Raça/cor | ||||||
Branco | 300 | 63,6 | 262 | 65,5 | 1,00 | 0,300 |
Não branco | 172 | 36,4 | 138 | 34,5 | 1,08 (0,82-1,43) | |
Nível de escolaridade do pai | ||||||
Até ensino fundamental completo | 174 | 42,8 | 161 | 46,9 | 1,00 | 0,141 |
Ensino médio completo e ensino superior | 233 | 57,2 | 182 | 53,1 | 1,18 (0,88-1,58) | |
Nível de escolaridade da mãe | ||||||
Até ensino fundamental completo | 178 | 42,9 | 161 | 44,7 | 1,00 | 0,330 |
Ensino médio completo e ensino superior | 237 | 57,1 | 199 | 55,3 | 1,08 (0,81-1,43) | |
Classificação econômica | ||||||
C a E | 138 | 29,6 | 130 | 32,5 | 1,00 | 0,200 |
A e B | 328 | 70,4 | 270 | 67,5 | 1,14 (0,86-1,53) | |
Prática religiosa | ||||||
Sim | 191 | 42,7 | 203 | 53,1 | 1,00 | 0,002 |
Não | 256 | 57,3 | 179 | 46,9 | 1,52 (1,15-2,00) |
OR: Razão de chance; IC: Intervalo de confiança.
Tabela 2 Variáveis relacionais dos adolescentes escolares com autolesão não suicida (n = 473) e sem autolesão não suicida (n = 405), 2019.
Variável relacional | Com autolesão não suicida | Sem autolesão não suicida | OR (IC 95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Comunicação com pessoas de referência | ||||||
Fácil | 198 | 41,9 | 283 | 69,9 | 1,00 | <0,001 |
Difícil | 275 | 58,1 | 122 | 30,1 | 3,22 (2,43-4,26) | |
Abuso emocional | ||||||
Não | 67 | 14,2 | 103 | 25,4 | 1,00 | <0,001 |
Sim | 406 | 85,8 | 302 | 74,6 | 2,06 (1,46-2,90) | |
Abuso sexual | ||||||
Não | 424 | 89,6 | 381 | 94,1 | 1,00 | 0,012 |
Sim | 49 | 10,4 | 24 | 5,9 | 1,83 (1,10-3,04) | |
Abuso físico | ||||||
Não | 261 | 55,2 | 233 | 57,5 | 1,00 | 0,264 |
Sim | 212 | 44,8 | 172 | 42,5 | 1,10 (0,84-1,43) |
OR: Razão de chance; IC: Intervalo de confiança.
Tabela 3 Variáveis de estado mental/emocional dos adolescentes escolares com autolesão não suicida (n = 473) e sem autolesão não suicida (n = 405), 2019
Variável disposicional | Com autolesão não suicida | Sem autolesão não suicida | OR (IC 95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Transtornos mentais comuns | ||||||
Não | 253 | 53,5 | 358 | 88,4 | 1,00 | <0,001 |
Sim | 220 | 46,5 | 47 | 11,6 | 6,62 (4,65-9,34) | |
Afetos negativos | ||||||
Não | 232 | 49,0 | 327 | 80,7 | 4,35 (3,20-5,91) | <0,001 |
Sim | 241 | 51,0 | 78 | 19,3 | 1,00 | |
Afetos positivos | ||||||
Não | 149 | 31,5 | 39 | 9,6 | 4,31 (2,94-6,33) | <0,001 |
Sim | 324 | 68,5 | 366 | 90,4 | 1,00 | |
Estresse interpessoal | ||||||
Não | 362 | 76,5 | 367 | 90,6 | 1,00 | <0,001 |
Sim | 111 | 23,5 | 38 | 9,4 | 2,96 (1,99-4,40) |
OR: Razão de chance; IC: Intervalo de confiança.
Tabela 4 Variáveis individuais de enfrentamento dos adolescentes escolares com autolesão não suicida (n = 473) e sem autolesão não suicida (n = 405), 2019.
Variável | Com autolesão não suicida | Sem autolesão não suicida | OR (IC 95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Estratégias de coping - emoção | ||||||
Não usa | 318 | 67,2 | 293 | 72,3 | 1,00 | 0,058 |
Usa | 155 | 32,8 | 112 | 27,7 | 1,27 (0,95-1,70) | |
Estratégias de coping - problema | ||||||
Não usa | 220 | 46,5 | 166 | 41,0 | 1,25 (0,96-1,64) | 0,057 |
Usa | 253 | 53,5 | 239 | 59,0 | 1,00 | |
Regulação emocional - atenção | ||||||
Adequada | 338 | 71,5 | 313 | 77,3 | 1,00 | 0,029 |
Pouca | 135 | 28,5 | 92 | 22,7 | 1,36 (1,00-1,84) | |
Regulação emocional - clareza | ||||||
Adequada | 228 | 48,2 | 281 | 69,4 | 1,00 | <0,001 |
Pouca | 245 | 51,8 | 124 | 30,6 | 2,43 (1,84-3,22) | |
Regulação emocional - reparação | ||||||
Adequada | 303 | 64,1 | 342 | 84,4 | 1,00 | <0,001 |
Pouca | 170 | 35,9 | 63 | 15,6 | 3,04 (2,19-4,23) | |
Habilidades sociais interpessoais | ||||||
Apresenta | 386 | 81,6 | 376 | 92,8 | 1,00 | <0,001 |
Não apresenta | 87 | 18,4 | 29 | 7,2 | 2,92 (1,87-4,55) |
OR: Razão de chance; IC: Intervalo de confiança.
A Tabela 5, por sua vez, apresenta o modelo hierarquizado de características sociodemográficas, variáveis relacionais, variáveis de estado mental/emocional e variáveis de enfrentamento dos adolescentes.
Tabela 5 Modelo hierarquizado de características sociodemográficas, variáveis relacionais, variáveis de estado mental/emocional e variáveis de enfrentamento dos adolescentes escolares com autolesão não suicida (n = 473) e sem autolesão não suicida (n = 405), 2019.
OR (IC 95%) | p | ||
---|---|---|---|
Etapa 1 | |||
Idade | |||
10-12 anos | 1,00 | ||
13-17 anos | 1,59 (1,17-2,15) | 0,003 | |
Nível de escolaridade do pai | |||
Até ensino fundamental completo | 1,00 | ||
Ensino médio completo e ensino superior | 1,01 (0,74-1,39) | 0,933 | |
Classificação econômica | |||
C a E | 1,00 | ||
A e B | 1,53 (1,09-2,14) | 0,014 | |
Prática religiosa | |||
Sim | 1,00 | ||
Não | 1,64 (1,21-2,29) | 0,001 | |
Etapa 2 | |||
Comunicação com pessoas de referência | |||
Fácil | 1,00 | ||
Difícil | 2,76 (2,03-3,75) | <0,001 | |
Abuso emocional | |||
Não | 1,00 | ||
Sim | 1,24 (0,84-1,82) | 0,276 | |
Abuso sexual | |||
Não | 1,00 | ||
Sim | 1,07 (0,58-1,96) | 0,825 | |
Etapa 3 | |||
Transtornos mentais comuns | |||
Não | 1,00 | ||
Sim | 2,56 (1,62-4,01) | <0,001 | |
Afetos negativos | |||
Não | 1,92 (1,27-2,90) | 0,002 | |
Sim | 1,00 | ||
Afetos positivos | |||
Sim | 1,00 | ||
Não | 1,61 (0,97-2,68) | 0,067 | |
Estresse interpessoal | |||
Não | 1,00 | ||
Sim | 1,62 (1,03-2,56) | 0,037 | |
Estratégias de coping - emoção | |||
Não usa | 1,00 | ||
Usa | 1,10 (0,80-1,51) | 0,564 | |
Estratégias de coping - problema | |||
Usa | 1,00 | ||
Não usa | 1,08 (0,80-1,46) | 0,599 | |
Regulação emocional - atenção | |||
Adequada | 1,00 | ||
Pouca | 1,05 (0,73-1,51) | 0,785 | |
Regulação emocional - clareza | |||
Adequada | 1,00 | ||
Pouca | 1,63 (1,17-2,29) | 0,004 | |
Regulação emocional - reparação | |||
Adequada | 1,00 | ||
Pouca | 2,78 (1,88-4,13) | <0,001 | |
Habilidades sociais interpessoais | |||
Apresenta | 1,00 | ||
Não apresenta | 1,64 (0,97-2,80) | 0,067 |
OR: Razão de chance; IC: Intervalo de confiança.
O modelo final de regressão logística hierarquizada mostrou que nove fatores, dos 22 em estudo, apresentaram associação significativa com autolesão não suicida (p < 0,05). Entre as variáveis sociodemográficas, permaneceram idade, classificação econômica e prática religiosa; nas variáveis individuais de manejo de problemas e de emoções, permaneceram clareza e reparação emocional; nas variáveis psicossociais relacionais, permaneceram comunicação com pessoas de referência e estresse interpessoal; e, por fim, nas variáveis de estado mental/emocional, permaneceram TMC e afetos negativos.
Entre os adolescentes escolares que apresentaram autolesão não suicida, encontrou-se 59% de chances de serem mais velhos (13-17 anos), 53% mais chances de serem de classificação econômica A e B e 64% de chances de não terem prática religiosa. Quanto às variáveis relacionais, apresentaram quase três vezes mais chances de dificuldades na comunicação com pessoas de referência. Em termos das variáveis de estado mental/emocional, tinham duas vezes mais chances de apresentarem TMC, 92% mais chances de terem experienciado afetos negativos no último mês e 62% mais chances de serem os que manifestaram estresse interpessoal. No que tange às variáveis individuais de enfrentamento a situações estressantes e/ou aversivas, apresentaram 63% mais chances de terem pouca clareza sobre suas emoções e quase três vezes mais chances terem pouca capacidade de reparação emocional (Tabela 5).
DISCUSSÃO
A gravidade e a extensão da autolesão não suicida entre adolescentes têm sido destacadas em diversas pesquisas, incluindo o presente estudo, que revelou uma alta prevalência (53,9%) ao longo da vida. Kiekens et al. (2023) explicam que os adolescentes tendem a recorrer mais à ação do que à verbalização para expressar seu sofrimento, o que pode levar a transferir sentimentos angustiantes para o próprio corpo (Geoffroy et al., 2022). Essa dinâmica pode explicar a prevalência significativa encontrada nesta investigação.
Nock (2010), por meio de uma perspectiva social, argumentou que esse comportamento autodestrutivo não suicida ocorre principalmente quando outras formas menos extremas de comunicação não conseguem atingir seus objetivos, como discutido por Muehlenkamp et al. (2023). Essas perspectivas teóricas ajudam a compreender a complexidade e os motivos por trás da autolesão não suicida entre adolescentes.
Os dados encontrados revelaram associação entre a autolesão não suicida e a faixa etária dos adolescentes, sendo mais comum entre os mais velhos, de 13 a 17 anos. Nessa fase, os adolescentes enfrentam uma série de desafios e conquistas que são essenciais para o seu desenvolvimento psicossocial, incluindo a progressiva busca pela independência, a construção da imagem corporal, a interação social em grupo e a formação da identidade (Costa et al., 2021; Neinstein et al., 2016).
Neste estudo, não foi observada relação entre a variável raça/cor e o comportamento autolesivo. Esses achados divergem de outras pesquisas em que essa associação foi encontrada (Costa et al., 2021; Muehlenkamp et al., 2023; Neinstein et al., 2016).
No presente estudo, observou-se que os adolescentes que se autolesionam tinham maior probabilidade de pertencer às classificações econômicas A e B. Adolescentes de famílias de maior renda podem enfrentar múltiplos fatores que aumentam a prevalência de autolesão não suicida, por exemplo, pressões acadêmicas elevadas e expectativas de sucesso podem causar estresse crônico, levando alguns jovens a recorrer a métodos inadequados de enfrentamento, como a autolesão (Ekeze et al., 2024; Kim et al., 2023). Entretanto, é importante destacar que a literatura indica que pessoas de diferentes status socioeconômicos podem estar envolvidas nessa prática (Mehmood et al., 2023; Muehlenkamp et al., 2023; Park et al., 2022; Pilkington et al., 2021).
Os participantes com histórico de autolesão não suicida mostraram maior probabilidade de não ter uma prática religiosa. É relevante destacar que esse tipo de prática pode desempenhar um papel relevante na manutenção ou melhoria da saúde mental dos adolescentes (Adão & Harrison, 2022). Em especial, pode reforçar mecanismos de enfrentamento que reduzem o impacto do estresse, melhorar as habilidades de enfrentamento e promover um estilo de vida menos arriscado (Estrada et al., 2019).
Embora não tenham sido encontradas diferenças significativas entre os gêneros, conforme o esperado, a maioria das pesquisas associa a autolesão não suicida ao gênero feminino (Shao et al., 2021). A maior prevalência entre as meninas pode ser atribuída à sua maior vulnerabilidade a transtornos psicológicos, influenciando a adoção de comportamentos autodestrutivos (Costa et al., 2021; Nava et al., 2019).
Neste estudo, ficou evidenciado que os adolescentes com esse tipo de comportamento apresentaram maiores chances de ter dificuldades na comunicação com pessoas de referência. Uma vez que a prática da autolesão não suicida tem como algumas das suas funções influenciar pessoas, comunicar-se com os outros e expressar desespero (Muehlenkamp et al., 2023) ou angústia (Nicol et al., 2022), os resultados ficam dentro do escopo do que era esperado. A falta de comunicação eficaz, tanto dentro da família quanto na escola, tem sido associada com dificuldades de encontrar um ponto de segurança emocional (Fu et al., 2020; Miscioscia et al., 2022). A ausência de comunicação adequada com adultos de referência pode contribuir para a criação de um ambiente emocionalmente desafiador para os adolescentes, resultando em aumento na incidência de comportamentos autodestrutivos (Muehlenkamp et al. (2023).
Embora inicialmente se pensasse que os maus-tratos estariam ligados estatisticamente à autolesão não suicida, essa hipótese não foi confirmada pela análise de regressão logística. No entanto, o abuso emocional mostrou-se significativamente associado (p < 0,001) na análise bivariada, desafiando a visão comum na pesquisa e na prática de que o abuso emocional na infância estaria menos ligado à autolesão não suicida do que os abusos sexual e físico (Quarshie et al., 2020). Este resultado sugere que o abuso emocional pode ser igualmente relevante para esse desfecho, ressaltando a importância de dar mais atenção a essa forma de maus-tratos, especialmente considerando que ela é a mais comum na infância (Quarshie et al., 2020). Contudo, os abusos de qualquer natureza têm um papel significativo no desenvolvimento da autolesão não suicida entre os adolescentes. Pesquisas têm consistentemente demonstrado uma forte associação entre experiências de abusos físico, emocional ou sexual e a tendência de se envolver em comportamentos autodestrutivos (Lee et al., 2021; Huang et al., 2022; Kiekens et al., 2023).
No que tange às variáveis de estado mental/emocional, os adolescentes que se autolesionam apresentaram mais chances de ter TMC. A sintomatologia dos TMC também se mostrou associada à autolesão não suicida em outros estudos com essa população (Faura-Garcia et al., 2021; Hauber et al., 2019). Sob essa perspectiva, a detecção precoce de TMC na adolescência pode ser um importante elemento de prevenção do comportamento autolesivo.
Ainda, foi observado que adolescentes com comportamento autolesivo tiveram maior probabilidade de terem experimentado afetos negativos durante o último mês. Vários autores concordam que a autolesão não suicida é frequentemente impulsionada pela necessidade de regular esses afetos (Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022). A literatura indica que a autolesão não suicida surge após eventos estressores e é empregada como uma estratégia para lidar com os sentimentos negativos experimentados no momento (Muehlenkamp et al., 2023; Nicol et al., 2022). Adolescentes que se autolesionam deliberadamente relatam que essa prática proporciona alívio da angústia emocional (Nicol et al., 2022).
Ademais, adolescentes com esse tipo de comportamento também apresentaram mais chances de estresse interpessoal, que pode se originar tanto em consequência de relacionamentos com colegas ou pais, que podem causar importantes dificuldades interpessoais e sociais, quanto pela vitimização por meio de bullying (Lee et al., 2021) pelos pares nas suas formas física, verbal e relacional (Huang et al., 2022). A prática da autolesão não suicida pretende reduzir o estresse emocional desencadeado por estresse interpessoal episódico (p. ex., brigas entre os pares) ou crônico (p. ex., baixo suporte social) (Kiekens et al., 2023). No entanto, é improvável que essa associação seja unidirecional. Do ponto de vista do desenvolvimento de comportamentos mal-adaptativos, os adolescentes não apenas reagem aos estressores ambientais, mas se engajam em comportamentos que contribuem para o seu ambiente social (Huang et al., 2022). Enquanto o estresse interpessoal pode contribuir para o envolvimento na autolesão não suicida, a autolesão não suicida também pode levar ao estresse interpessoal subsequente.
No que diz respeito às variáveis individuais de enfrentamento, não foi confirmada a hipótese inicial de que o uso de estratégias de coping focadas na emoção estaria associado à autolesão não suicida, uma vez que se considera que o enfrentamento adaptativo está relacionado à probabilidade reduzida de envolvimento em autolesão não suicida (Peel-Wainwright et al., 2021), tanto na presença quanto na ausência de tentativas anteriores de suicídio. Acredita-se que a autolesão não suicida possa ser, por si só, uma estratégia de enfrentamento mal adaptativa (Ren et al., 2018), que em geral é interpretada como uma forma de regular emoções intensas quando maneiras mais funcionais não estão disponíveis (Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022).
Concernente à regulação emocional, adolescentes com autolesão não suicida apresentaram mais chances de terem pouca clareza das emoções e pouca capacidade de reparação emocional. Essa dificuldade pode ser explicada pelo fato de a adolescência ser um momento crítico para o desenvolvimento de habilidades de regulação emocional (Gohari et al., 2019). Os adolescentes enfrentam maior número de situações emocionais novas, como trabalhar para estabelecer sua identidade pessoal e iniciar (e terminar) relacionamentos afetivos (Lee et al., 2021). Durante esse período, ocorre uma transição das estratégias de autorregulação predominantemente externas para aquelas de natureza interna, resultando na experimentação de diferentes abordagens (Shi et al., 2023). Nesse contexto, a autolesão não suicida é identificada em alguns estudos como uma das estratégias utilizadas para regular as emoções (Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022). A maior gravidade da autolesão não suicida está associada a pior regulação emocional, menor uso de reavaliação e maior uso de estratégias de supressão emocional (Saarijärvi et al., 2023; Shi et al., 2023; Shrivastava & Sharma, 2022). Melhorias na regulação emocional também estão refletidas na cessação da autolesão não suicida (Gohari et al., 2019), o que sugere que o fortalecimento dessas habilidades pode ser fundamental na prevenção e no tratamento de comportamentos mal adaptativos nessa fase da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, partiu-se da hipótese de que existe um modelo hierárquico de fatores associados à autolesão não suicida, em que as variáveis sociodemográficas seriam as mais proximais, seguidas das variáveis relacionais, das variáveis de estado mental/emocional e das variáveis individuais de enfrentamento. Após análise multivariada por etapas, permaneceram as variáveis idade, condição socioeconômica e prática religiosa (sociodemográficas), comunicação (relacionais), TMC, afetos negativos e estresse interpessoal (estado mental/emocional) e regulação emocional (individuais de enfrentamento).
A alta prevalência de autolesão não suicida identificada entre os participantes suscita inúmeras inquietações sobre o que pode estar influenciando esses jovens a se autolesionarem de forma tão significativa. O contágio social, por exemplo, pode ser influenciado por diversos fatores contextuais, especialmente em cidades do interior. Nessas localidades, a rede social mais estreita e interconectada facilita a propagação de comportamentos mal-adaptativos. Além disso, o estigma e a falta de privacidade em comunidades menores podem aumentar a ocultação e a autodestruição entre os jovens. O acesso à internet e às redes sociais também pode normalizar a autolesão. A escassez de atividades construtivas contribui para o tédio e para o isolamento, fatores que favorecem o comportamento autolesivo.
Assim, a prevenção e a intervenção da autolesão não suicida são absolutamente necessárias entre os adolescentes escolares. A prevenção deve se concentrar principalmente nas escolas, porque eles passam a maior parte do tempo nesse ambiente. É necessário incentivar o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento mais funcionais como fatores de proteção, não apenas contra a autolesão não suicida, mas também contra problemas psicológicos em geral. Além disso, uma vez que a associação entre a autolesão não suicida e os problemas psicológicos ficou evidenciada, os profissionais da saúde mental que detectarem níveis clínicos de sintomatologia também devem avaliar a presença de autolesão não suicida.
Os resultados deste estudo devem ser interpretados dentro do contexto de seus pontos fortes e limitações. Um de seus principais pontos fortes é que este é o primeiro estudo a verificar a prevalência e os fatores associados à autolesão não suicida na cidade investigada, assim, fornece dados a serem considerados tanto pela Secretaria de Educação quanto pela Secretaria da Saúde. A amostra é grande e os instrumentos utilizados mostraram bons índice de confiabilidade.
Contudo, a pesquisa apresenta limitações. Em primeiro lugar, o desenho transversal dificulta o estabelecimento de causalidade entre as variáveis independentes em estudo e a variável de desfecho. Em segundo lugar, a amostra foi compilada em uma única cidade e, portanto, pode não ser totalmente generalizável para outras regiões. Em terceiro lugar, não há distinção entre o método da autolesão não suicida e o grau de problemas psicológicos, uma característica que pode valer a pena ser investigada em pesquisas futuras. Por fim, certos instrumentos avaliaram diferentes momentos no tempo.