Embora não seja possível datar com certeza o início dos debates acerca da CM, autores indicam que a discussão começou a surgir a partir da percepção de mudanças demográficas nos Estados Unidos e de evidências de disparidades no sistema de saúde em relação aos grupos considerados minorias culturais, em especial minorias étnicas raciais, para com as quais foram identificadas barreiras relacionadas a cultura, forma de tratamento, atitudes, comportamentos de busca de ajuda, viés clínico no diagnóstico e avaliação de problemas de saúde mental (Betancourt et al., 2003; Chu et al., 2022; Huey et al., 2014; Mollen & Ridley, 2021). Conquanto ainda não esteja claro até que ponto essas barreiras explicam as disparidades, os resultados direcionam para a necessidade de considerar fatores culturais no desenvolvimento e na adaptação dos tratamentos psicológicos (Betancourt et al., 2003; Chu et al., 2016).
No Brasil, discussões no campo da psicologia social sobre estigma, preconceito e discriminação associados às minorias raciais, de gênero e pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, etc., têm aportado o crescimento de estudos sobre suas consequências na saúde (Parker, 2013). As reflexões do pensamento decolonial e da luta antirracista também têm contribuído fortemente para a necessidade de compreensão sobre os impactos epistemológicos do processo de colonização na prática da psicologia, níveis de suporte e atendimento à saúde, vieses enraizados, padrões de busca e tratamento oferecidos (Lucena & Silva, 2018). Da mesma forma, os debates a respeito da interseccionalidade têm indicado a impossibilidade de separar-se as análises de raça, gênero e classe para o entendimento do indivíduo, promovendo um rompimento com a tradição eurocêntrica e elitizada da psicologia, que por tanto tempo serviu aos interesses das classes dominantes (Leme, 2020).
Tavares e Kuratani (2019) discutem acerca das repercussões do racismo sobre a saúde mental da população negra, indicando que o não reconhecimento do racismo como produtor de iniquidades sociais, preconceito e discriminação, contribui para o aumento de sofrimento psíquico do paciente negro e para a manutenção das desigualdades raciais. Em uma direção semelhante, outros autores discutem como minorias sexuais e pessoas com deficiência, por exemplo, vivenciam estressores específicos adicionais aos estressores cotidianos, aspectos individuais ou decorrentes do meio que podem funcionar como fatores de risco e/ou de proteção no comprometimento da saúde mental (Jokić & Bartolac, 2018; Paveltchuk & Borsa, 2020). Tais discussões ressaltam que romper com um padrão hegemônico de tratamento e levar em conta os estressores específicos potencialmente causadores de sofrimento psíquico a que diferentes grupos minorizados estão expostos contribuem para uma prática mais adequada e, sobretudo, ética.
A partir da prática da psicologia baseada em evidências (PPBE), após décadas de pesquisa, é possível sustentar cientificamente o que os psicoterapeutas reconheciam de maneira universal, desde o início da psicologia moderna - a necessidade de adaptar ou adequar a psicoterapia aos pacientes individuais, visto que diferentes tipos de pessoas demandam diferentes tratamentos e relacionamentos (Norcross & Lambert, 2018). A PPBE visa promover uma prática psicológica eficaz, com a aplicação de princípios empiricamente embasados de avaliação psicológica, formulação de caso, relação terapêutica e intervenção (American Psychological Association [APA], 2006). A PPBE indica que diversas características relacionadas ao paciente podem influenciar os resultados, sendo essencial considerá-las na estruturação do plano de tratamento e na escolha de intervenções específicas. Essas características incluem, mas não estão limitadas, a aspectos como: idade cronológica; história de desenvolvimento; fatores familiares e socioculturais (como gênero, etnia, raça, classe social, status de deficiência, religião, estrutura familiar); e estressores e fatores sociais do contexto ambiental (como racismo, eventos de vida recente e desemprego; crenças, valores pessoais, expectativas de tratamento e visões de mundo) (APA, 2006).
Nas últimas décadas, para uma compreensão e uma formulação de caso mais coerentes e que considerem o indivíduo por um prisma mais completo, diversos autores de abordagens cognitivo-comportamentais têm reconhecido a necessidade de se considerar a influência de diferentes aspectos socioculturais que permeiam a vida de seus pacientes (Hays, 2009; Truong et al. 2014; Whaley & Davis, 2007). A PPBE requer atenção aos fatores sociais e culturais, como preconceitos raciais, tendo em vista que esses aspectos influenciam não só a natureza e a expressão da psicopatologia, mas também a compreensão do paciente, os padrões de busca e recebimento de ajuda, e o relato de sintomas, medos e expectativas sobre o tratamento (APA, 2006). A expertise clínica também aponta para a necessidade de os psicoterapeutas incluírem as variáveis socioculturais, indo além e chamando atenção não apenas para o paciente, mas também para o profissional, sua competência e autorreflexão sobre as maneiras que suas próprias características, valores e contextos interagem com as do paciente (APA, 2006).
No que se refere ao entendimento de fatores associados, como idade, gênero, raça, etnia, cultura, nacionalidade, religião, orientação sexual, deficiência, entre outras características socioculturais, estudos realizados em diversas áreas da saúde indicam que uma abordagem de cuidado centrada no paciente, e que efetivamente responde às suas necessidades específicas, demanda CM dos profissionais que conduzem esses tratamentos (Abrishami, 2018; Gouveia et al., 2019; Hays, 2009; Henderson et al., 2018). Contudo, embora a relevância da CM venha sendo pesquisada e estudada por diversos autores ao longo dos anos (Hays, 2009; Truong et al., 2014; Whaley & Davis, 2007), há uma lacuna teórico-prática sobre o tema no cenário de estudos da psicologia brasileira, em especial no campo das terapias cognitivo-comportamentais (TCCs).
Nas TCCs, a conceitualização cognitiva de caso (CCog) deve guiar o psicólogo na descrição e na explicação acerca do funcionamento do paciente sob a ótica da abordagem adotada. No entanto, embora a CCog seja um guia e um dos princípios básicos da abordagem, não deve ser compreendida como uma construção acabada e rígida a ser aplicada a todos os pacientes de forma indistinta. Pelo contrário, a terapia varia consideravelmente de acordo com os sujeitos, uma vez que se faz necessário levar em conta os diferentes aspectos citados que atravessam e compõem a vida de um indivíduo - e a intersecção dessas variáveis -, e como elas afetam a saúde mental e o bem-estar devido às diferenças de status social na exposição ao estresse (Hays, 2009). Portanto, entende-se que a CCog é uma forma de o psicoterapeuta atrelar os conceitos teóricos fundamentais das TCCs às demandas de cada paciente, conduzindo um tratamento idiográfico, de maneira que uma base sólida a respeito das estratégias a serem utilizadas e competência em perceber e articular as diversas variáveis são essenciais para uma compreensão clara e coerente do caso em questão (Key & Bieling, 2015).
Nesse sentido, para a elaboração da CCog, pode ser crucial a interlocução do conhecimento em TCC com outros saberes da psicologia, como a psicologia social e a psicologia do desenvolvimento. A CCog culturalmente embasada pode auxiliar na compreensão mais específica do caso, o que possibilitaria a elaboração de um plano de tratamento mais estratégico (Hayes & Hofmann, 2020). Por isso, o presente trabalho tem por objetivo realizar uma revisão narrativa a respeito da CM e, a partir desse embasamento, articular os conceitos de conceitualização cognitiva em TCC e teoria bioecológica do desenvolvimento, e verificar como a ênfase em CM poderia contribuir para tornar mais adequada a CCog em TCC. Cabe ressaltar que o termo CM será utilizado neste trabalho - ele diz respeito a intervenções práticas que visam aprimorar o acesso e a efetividade dos serviços de saúde, considerando influências e impactos dos contextos social e cultural na trajetória do indivíduo (Betancourt et al., 2003). Cabe diferenciá-lo de outros termos, como “humildade cultural”, que diz respeito a perceber suas próprias limitações e vieses, como uma espécie de primeiro passo na direção da construção de competências específicas. A partir da humildade cultural, advinda da autorreflexão e da autoprática, é possível pensar na “sensibilidade cultural”, ou seja, organizar intervenções a partir de particularidades observadas em grupos minorizados específicos. A partir de então, é possível estruturar as competências, que estão voltadas para habilidades teórico-práticas.
MÉTODO
Dada a intenção de se realizar uma pesquisa e discussão abrangentes, o trabalho foi desenvolvido a partir de uma revisão narrativa do tema. A busca bibliográfica foi realizada de forma não sistêmica nas bases de dados Pubmed, APA PsycNet, ScienceDirect e Scielo, incluindo as seguintes palavras-chave: (“multicultural cultural competency” OR “cultural competency” OR “multicultural protocol” OR “multicultural guidelines”) AND (“CBT” OR “Cognitive behavioral therapy” OR “evidence-based practice”). A fim de afinar a busca, optou-se por seguir com o filtro de artigos que continham tais palavras no título, no resumo ou nas palavras-chave. A seleção dos trabalhos abarcou textos originais e artigos de revisão de literatura, nos idiomas inglês e português, publicados até 2022.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da combinação das palavras-chave utilizadas, foram encontrados 51 trabalhos, entre os quais, sete eram artigos de revisão, dois eram artigos de revisão sistemática, três eram artigos de diretrizes e os demais estavam distribuídos em capítulos de livros, estudos de caso, comunicações e metanálises. Após triagem inicial com base nas palavras-chave presentes no título e na relevância da contribuição para este trabalho, seguiu-se com 20 publicações referentes ao tema.
Conceitualização cognitiva de casos
A CCog, também chamada de “conceituação cognitiva” ou “formulação de caso” por outros autores, é uma ferramenta que auxilia o psicoterapeuta no tratamento de seus pacientes, envolvendo não só a descrição dos problemas apresentados, mas também inferências sobre o desenvolvimento e manutenção destes, visando orientar a terapia (Dozois et al., 2019). Segundo Kuyken et al. (2009), existe um consenso crescente de que a CCog de caso na TCC ajuda a alcançar os dois objetivos principais da terapia - aliviar o sofrimento dos pacientes e desenvolver a resiliência -, quando preenche as dez funções a seguir: 1) sintetizar a experiência do paciente, a teoria e a pesquisa em TCC; 2) normalizar os problemas apresentados e ser validante; 3) promover o engajamento do paciente; 4) tornar mais manejáveis inúmeros problemas complexos; 5) orientar a escolha, o foco e a sequência das intervenções; 6) identificar os pontos fortes do paciente e sugerir formas de desenvolver a resiliência; 7) sugerir intervenções mais simples e com melhor custo-benefício; 8) antecipar e abordar os problemas na terapia; 9) ajudar a entender a falta de resposta em terapia e sugerir rotas alternativas para a mudança; 10) possibilitar uma supervisão de alta qualidade, pois estrutura o pensamento e a discussão de supervisor e supervisionando.
A CCog de um paciente deve abarcar e conectar de forma coerente aspectos como a descrição dos problemas apresentados - cognições, emoções e comportamentos -, bem como um retrato de sua história de desenvolvimento, os fatores predisponentes, desencadeantes e de manutenção, as estratégias de enfrentamento adotadas - funcionais e disfuncionais -, os pontos fortes, fatores protetivos e suas implicações na consideração das intervenções a serem adotadas (Key & Bieling, 2015). A CCog serve para desenvolver uma compreensão coesa sobre o funcionamento do indivíduo, tornando-se um guia essencial no direcionamento do psicólogo na conduta do tratamento, criando uma base para o processo de psicoeducação a ser desenvolvido, norteando a escolha das intervenções mais efetivas a serem utilizadas e a forma de comunicação com o paciente (Wenzel, 2018).
Kuyken et al. (2009, p. 21) descrevem a CCog como um “processo em que terapeuta e cliente trabalham em colaboração para primeiro descrever e depois explicar os problemas que o cliente apresenta na terapia”. Dessa forma, compreende-se que a CCog faz parte de um processo colaborativo. Conforme Beck (2021) enfatiza, o empirismo colaborativo das TCCs implica que paciente e terapeuta trabalhem em equipe visando à resolução dos problemas, avaliando as crenças do paciente, testando-as e verificando se estão corretas ou não.
De acordo com Wainer e Piccoloto (2011), cada CCog é uma organização esquemática que tem por objetivo retratar a arquitetura mental do paciente, buscando explicitar os principais processos de pensamento, raciocínio e esquemas mentais utilizados na busca de seu equilíbrio mental. Ou seja, a partir da CCog, é possível individualizar o tratamento e traçar um plano terapêutico específico, possibilitando um entendimento global e que respeita a subjetividade do paciente (Neufeld & Cavenage, 2010). Assim, a CCog é considerada um dos princípios da TCC, uma vez que ajuda o psicoterapeuta a entender os pacientes, reconhecer os pensamentos disfuncionais e comportamentos mal-adaptativos deles, bem como planejar o tratamento dentro e entre as sessões, escolher intervenções apropriadas e fortalecer a relação terapêutica (Beck, 2021).
Definições, história e desafios da competência multicultural
Embora nas últimas décadas tenham sido conduzidos diversos estudos e pesquisas que apontam para importância de uma prática culturalmente embasada, cabe ressaltar que ainda hoje o campo de estudo carece de uma definição claramente delineada acerca do conceito. É possível observar diferentes conceituações que convergem e/ou divergem em alguns pontos, bem como termos-chave usados sem muita distinção para se referir a intervenções modificadas para atender pacientes culturalmente diversos, como sensibilidade cultural, humildade cultural, culturalmente adaptados, culturalmente responsivos, culturalmente sensíveis e culturalmente competentes (Huey et al., 2014; Whaley & Davis, 2007). A despeito do fato de que a falta de clareza entre os termos possa ser material para outra pesquisa com tal objetivo, neste trabalho será adotada a expressão “competência multicultural”. Essa escolha parte da concepção da necessidade de realizar-se uma crítica e um afastamento da noção da existência de uma cultura única ou dominante. Entretanto, ao citar os diferentes autores que discorrem sobre o tema, poderá ser utilizado o termo “competência cultural” (CCult), quando este tiver sido utilizado na bibliografia original.
No que diz respeito ao termo “multicultural”, a APA (2017, p. 167) propõe como definição: “a coexistência de diversas culturas que refletem diferentes identidades de grupos de referência. Multicultural pode incorporar a coexistência de culturas dentro de um indivíduo, família, grupo ou organização”. Em relação ao termo “cultura”, serão adotadas as definições da APA (2017) e de Whaley e Davis (2007). Nesse sentido, entende-se cultura como um processo dinâmico, que pode ser considerado a personificação de visões de mundo e de modos de viver em ambientes físico e social compartilhados por grupos, por meio de um sistema de crenças e orientações de valores que influencia costumes, normas, práticas e instituições sociais, incluindo processos psicológicos e organizações, a partir de práticas aprendidas e transmitidas e que podem ser modificadas por contatos com outras culturas em um determinado contexto social, histórico e político (APA, 2017; Whaley & Davis, 2007).
Partindo do ponto de que não há um conceito único de CM estabelecido, diversos autores dedicaram-se à revisão de literatura a respeito do tema, visando apresentar uma descrição que abarque percepções de diferentes áreas de estudo e propor modelos validados. Entre as citações mais usadas está a proposta por Cross et al. (1989), a partir da qual é possível entender que a expressão “culturalmente competente” significa reconhecer e incorporar - em todos os níveis - a importância da cultura, a avaliação das relações interculturais, assim como uma atenção às dinâmicas que resultam das diferenças culturais, a expansão do conhecimento cultural e a adaptação dos serviços para atender às necessidades culturais únicas (Cross et al., 1989).
Outra definição de CM amplamente aceita no campo da saúde foi desenvolvida por Campinha-Bacote (2002). Nessa compreensão, CM está relacionada a um processo contínuo no qual o profissional da saúde se esforça continuamente para alcançar a capacidade de trabalhar de maneira efetiva no contexto cultural de seu paciente, reconhecendo e respeitando as variações que ocorrem nos grupos culturais e sendo capazes de ajustar sua prática ao fornecer intervenções (Campinha-Bacote, 2002).
Alizadeh e Chavan (2016) indicam que, em geral, os autores consideraram a CCult como a capacidade de trabalhar e se comunicar de forma eficaz e adequada com pessoas de origens culturais diferentes. Assim, trata-se de usar a compreensão para respeitar e adaptar cuidados de saúde de maneira ética e com equidade, a partir da tomada de consciência de si e dos outros em um encontro cultural diversificado (Henderson et al., 2018). Ocorre quando a pessoa deseja conhecer outras culturas e busca ativamente o conhecimento cultural, sendo esta competência aprimorada e sustentada via alto nível de raciocínio moral (Truong et al., 2014).
Dessa maneira, observa-se que a CM é um conceito amplo que vem sendo usado para descrever diversas intervenções que visam melhorar a acessibilidade e a efetividade dos serviços de saúde, incluindo os de saúde mental, bem como entender a importância das influências sociais e culturais nas crenças e nos comportamentos de saúde dos pacientes - considerando como esses fatores interagem em vários níveis do sistema de prestação de cuidados de saúde -, além de conceber intervenções que considerem essas questões a fim de garantir a prestação de cuidados de qualidade (Betancourt et al., 2003).
Uma vez que a CM vem sendo objeto de estudo há alguns anos, mas que ainda existem diversas lacunas sobre o tema, é necessário ter em vista que o conceito ainda enfrenta alguns desafios e questionamentos quanto à sua validade. Em linhas gerais, isso se dá especialmente devido a inconsistências na definição operacional e medição de CCult, tornando difícil para as pesquisas empíricas testarem sua importância, validade e eficácia (Sue et al., 2019). Além disso, os manuais e diretrizes produzidos até o momento evocam um aspecto mais aspiracional do que necessariamente teórico, metodológico e prático, com uma base de evidências robusta (Chu et al., 2016).
No campo da psicologia, a CCult é considerada um valor central representado nas diretrizes de prática e mandatos de organizações governamentais (Chu et al., 2022). Em 2017, a APA publicou o Multicultural Guidelines (APA, 2017), com orientações e diretrizes para fornecer aos psicólogos uma estrutura para auxiliar na prestação de uma prática multiculturalmente competente. O guia propõe uma abordagem baseada em dez diretrizes, reforçando seu compromisso ético e de fortalecimento das bases desses profissionais, que estão relacionadas, mas não limitadas, a aspectos como: compreensão de um olhar interseccional acerca das identidades dos indivíduos; reconhecimento do psicoterapeuta como um ser cultural e que, por isso, tem atitudes e crenças que podem influenciar em suas percepções e conceituações clínicas; sensibilidade em relação a linguagem e forma de comunicação com o paciente; compreensão histórica das experiências de poder, privilégio e opressão; adaptação cultural das intervenções; conscientização e compreensão de como os estágios de desenvolvimento e as transições da vida se cruzam com o contexto biossociocultural mais amplo, e como as experiências de socialização e amadurecimento influenciam a visão de mundo e a identidade.
Vale ressaltar que a CM deve fazer parte do repertório não apenas de psicoterapeutas que pertencem a grupos historicamente considerados hegemônicos, mas também dos profissionais que são parte de um ou mais grupos minorizados, considerando suas experiências de violência e sofrimento psíquico, para além da compreensão histórica de posições de poder, privilégio e opressão. Diversos autores ressaltam como o desenvolvimento de CM está intrinsecamente atrelado aos pontos fortes da TCC, sendo extremamente importante que os profissionais desenvolvam essa competência para que possam oferecer a condução do caso de forma adequada (Duarté-Vélez et al., 2010; Hays, 2009).
Modelos de competência multicultural
Indo além das várias definições de CM, bem como da perspectiva do campo da psicologia, também encontramos diferentes propostas de modelos e estruturas que enfatizam variados pontos e formas de abordar o tema. Huey et al. (2014) propõem uma categorização apoiada em três aspectos principais, as quais não são mutuamente exclusivas, tendo em vista que há uma sobreposição dos vários componentes, que são: características do terapeuta, que diz respeito aos modelos baseados em habilidades ou tipo de pessoa; características do tratamento, que abrange os modelos de adaptação cultural das intervenções; e processos terapêuticos, ou seja, modelos orientados a processos.
No que concerne ao modelo baseado em habilidades, a CCult tem como destaque a capacidade dos psicoterapeutas de avaliarem as necessidades dos pacientes no contexto de sua formação cultural e como a relação terapêutica é impactada pelo reconhecimento dos valores do profissional (Huey et al., 2014). Ou seja, são modelos que focam na autoconsciência cultural do terapeuta e no conhecimento de outras culturas para que uma intervenção apropriada possa ser planejada. O modelo proposto por Sue et al. (1992) é um exemplo do modelo baseado em habilidades. Os autores argumentam que a CCult é formada por três características que um terapeuta deve ter: habilidades culturais, que é a capacidade de desenvolver e praticar ativamente o que é apropriado, intervindo de forma culturalmente sensível e relevante; conhecimento cultural, que é o entendimento do terapeuta a respeito da visão de mundo culturalmente diversa e expectativas de seu paciente com o processo psicoterápico, sem julgamentos, vieses e preconceitos; e consciência cultural, que é a disposição de estar ativamente no processo de se tornar consciente de suas próprias suposições sobre o comportamento humano, valores, limitações pessoais, etc., e como eles podem influenciar as percepções do paciente no curso do tratamento.
Em relação aos modelos de adaptação, a CCult é vista sob a ótica das modificações sistemáticas no tratamento para tornar as abordagens mais congruentes com as crenças, atitudes e/ou comportamentos culturais de um paciente, sendo um dos modelos que mais recebeu atenção na literatura (Huey et al., 2014). Em contrapartida, os modelos orientados a processos direcionam o foco às complexas interações entre paciente-terapeuta-tratamento, considerando como o significado cultural é atribuído a comportamentos específicos ou contextos de tratamento, sendo uma referência o modelo proposto por Steven López (citado por Huey et al., 2014). De acordo com López (1997), o modelo de “mudança de lentes culturais” aponta que a essência da CCult é a habilidade do terapeuta de se mover entre duas perspectivas culturais visando à compreensão do significado culturalmente baseado de pacientes de origens culturais diversas, de modo que, ao acessar e integrar a perspectiva do paciente à sua, pode haver uma melhor condução do processo terapêutico.
Modelo bioecológico do desenvolvimento e competência multicultural
Como resultado das lacunas no estudo do conceito de CM, há uma base teórica pouco abrangente sobre o tema a partir da qual se possa entender os mecanismos subjacentes, como a CCult funciona e, também, como se pode expandir tal compreensão para o processo de CCog. Os estudos de Chu et al. (2016) demonstram ser bastante proeminentes e pioneiros na tentativa de propor um modelo teórico que forneça caminhos possíveis, embora os próprios autores destaquem a necessidade de mais pesquisas e testes empíricos para validar seus achados. A partir de uma extensa revisão de literatura, os autores apresentam três princípios que explicam o motivo de a CCult funcionar: 1) cria uma correspondência contextual com realidades externas; 2) cria uma correspondência experiencial no microssistema da relação ou estrutura terapêutica; 3) cria um sentimento intrapessoal de ser entendido e empoderado (Chu et al., 2016). Tal modelo teórico tem como base a abordagem de sistemas ecológicos proposto por Bronfenbrenner (1979), um psicólogo russo-americano conhecido por sua teoria do desenvolvimento humano, uma proposta que vai ao encontro do que estudiosos das últimas décadas vêm argumentando como uma abordagem adequada ao se trabalhar com minorias culturais (Neville & Mobley, 2001).
A fim de investigar o desenvolvimento humano fundamentado em uma relação entre o indivíduo e o ambiente, Bronfenbrenner (1979) desenvolveu uma perspectiva chamada de modelo bioecológico. O autor construiu sua teoria a partir de críticas ao modo tradicional vigente até então - de focalizar os estudos do desenvolvimento em um ambiente estático e controlado, desconsiderando as influências do contexto do indivíduo. Conforme a definição de Bronfenbrenner (1979, p. 21):
a ecologia do desenvolvimento humano envolve o estudo científico da acomodação progressiva e mútua entre um ser humano ativo e em crescimento e as propriedades mutáveis dos ambientes imediatos em que vive a pessoa em desenvolvimento, pois esse processo é afetado pelas relações entre esses ambientes e por os contextos maiores nos quais as configurações estão inseridas
Nesse sentido, o modelo bioecológico propõe uma concepção ampliada do ambiente, a partir do qual o ambiente ecológico é concebido topologicamente como uma espécie de arranjo de estruturas concêntricas, cada uma contida na seguinte, as quais são chamadas de microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema (Bronfenbrenner, 1979). O microssistema é o ambiente imediato em que está a pessoa em desenvolvimento, são as interações interpessoais dentro de um determinado ambiente, com pessoas, objetivos ou símbolos, como o trabalho, escola, casa, linguagem, família, vizinhos, etc. O mesossistema refere-se à ligação que pode ocorrer entre dois ou mais ambientes nos quais a pessoa em desenvolvimento participa ativamente, por exemplo, a relação entre família, saúde mental e vida social de um adulto. Por sua vez, o exossistema compreende um ou mais ambientes que não envolvem a pessoa em desenvolvimento como um participante ativo, mas nos quais ocorrem eventos que afetam ou são afetados pelo que acontece no ambiente que contém a pessoa em desenvolvimento, como as leis vigentes, o código de ética, as políticas públicas, e os sistemas de saúde e educacional. Já o macrossistema consiste em um padrão de características dos micro, meso e exossistemas de uma dada cultura, subcultura ou outra estrutura social, que cria padrões, atividades e estruturas em uma determinada comunidade, além incluir quaisquer outros sistemas de crenças e valores.
A partir desse modelo bioecológico, Chu et al. (2016) propõem os três princípios anteriormente citados, apresentando suas respectivas relações às estruturas mencionadas. O primeiro princípio de que a CCult cria uma correspondência contextual com realidades externas está intrinsecamente relacionado aos exo e macrossistemas do paciente, tendo em vista que no contexto da psicoterapia os fatores considerados extraterapêuticos também influenciam as demandas apresentadas (Chu et al., 2016). Ou seja, uma vez que fatores e processos sociais e ambientais afetam indiretamente os contextos imediatos de alguém, assim como normas, valores, crenças e tradições abrangentes da sociedade atravessam a vida de um indivíduo e influenciam o processo psicoterápico, a CCult traz à cena a necessidade e a importância da compreensão desses fatores para um abordagem adequada do quadro e adaptação cultural do tratamento. Como exemplo, esses autores remontam à pesquisa realizada por Carter (2007), que mostra de forma consistente que as minorias culturais são desproporcionalmente impactadas por fatores de risco macro e exossistêmicos, como discriminação, pobreza, violência, recursos educacionais e sociais não adequados, entre outros aspectos que têm efeitos prejudiciais na saúde mental.
O segundo princípio aponta que a CCult cria uma correspondência experiencial no microssistema da relação ou estrutura terapêutica, o que mais se sobressai no contexto da psicoterapia. Nesse sentido, assim como há uma consideração da influência das realidades externas dos macro e exossistemas, a CCult no nível do tratamento e do psicoterapeuta indica que a correspondência experiencial no nível do microssistema também se faz importante. Dessa forma, pode-se retomar, por exemplo, as habilidades do terapeuta de ser culturalmente competente e estar atento a como seus comportamentos, abordagens, posturas e vieses se colocam no processo com seu paciente. Além disso, Chu et al. (2016) indicam pesquisas que demonstram como a correspondência racial/étnica entre terapeuta e paciente se faz relevante em diversos casos para maior sentimento de acolhimento por parte do paciente.
O terceiro princípio - de que a CCult cria um sentimento intrapessoal de ser entendido e empoderado - é uma espécie de conclusão dos dois anteriores, que enfatizam que habilidades e comportamentos específicos apresentados pelo terapeuta aumentam a congruência cultural da psicoterapia com as realidades externas dos macro, exo e microssistemas dos pacientes no microssistema da relação terapêutica. Este terceiro, apoiado por pesquisas sobre empatia cultural do terapeuta, humildade cultural, autoconsciência e percepção do paciente sobre essas características, demonstra que quando os terapeutas são capazes de praticar maior consciência multicultural e empatia, os pacientes não só têm experiências mais positivas com a terapia, como também se sentem mais compreendidos e empoderados, o que, consequentemente, contribui para o sucesso do tratamento (Chu et al., 2016).
Articulação de conceitos
A CCog ajuda o psicoterapeuta a organizar e a compreender os diversos aspectos que atravessam o caso clínico de seus pacientes, possibilitando identificar e descrever estressores e desafios que não são facilmente incorporados aos diagnósticos gerais (Wenzel, 2018). Dessa maneira, embora os elementos cognitivos e comportamentais sejam de suma importância para compreensão do quadro do paciente e recebem maior ênfase, o psicoterapeuta não pode descartar as influências biológicas e, principalmente, as influências socioculturais que envolvem o contexto de cada pessoa (Wright et al., 2018). Portanto, o manejo clínico em relação às queixas trazidas pelo paciente, assim como a habilidade de acolhimento e elaboração do plano de tratamento na CCog, dependerão da competência do psicoterapeuta de articular os conceitos teóricos da TCC aos recortes formativos das crenças de cada indivíduo.
Na psicologia, por muito tempo assumiu-se, enganosamente, que o processo terapêutico era neutro em termos de valor e que os profissionais da saúde mental eram livres de preconceitos ao trabalhar com pacientes, acreditando-se que as estratégias de intervenção tinham aplicações universais e poderiam ser facilmente adaptadas para atender às necessidades de todos os sujeitos minorizados (Sue et al., 2019).
A teoria bioecológica de desenvolvimento de Bronfenbrenner (1979) oferece uma estrutura robusta para entender como os indivíduos se desenvolvem em contextos sociais. Uma vez que a realidade individual (microssistema) acaba tendo maior foco na psicoterapia, essa teoria enfatiza a interação dinâmica entre o indivíduo e os diferentes sistemas ambientais que o cercam. Nesse sentido, os micro, meso, exo e macrossistemas fornecem uma lente abrangente para examinar como fatores sociais, culturais e históricos afetam o crescimento e o desenvolvimento das pessoas ao longo da vida, bem como em seus possíveis estressores e fatores de adoecimento.
Portanto, a partir da teoria bioecológica de Bronfenbrenner (1979), hipotetiza-se como a CM pode contribuir para a construção de uma CCog e para a prática da psicologia atenta às diversas influências ambientais e estressores que atravessam o paciente. Dessa forma, um psicoterapeuta culturalmente competente deve buscar desenvolver, de maneira contínua, a autoconsciência dos seus próprios privilégios, vieses e preconceitos, bem como da diversidade ambiental em que seu paciente culturalmente diverso está inserido, a fim de proporcionar uma melhor CCog, compreensão do caso e condução do tratamento. Essa articulação se refletiria em uma conceitualização de caso culturalmente competente, isto é, capaz de abranger não apenas uma construção focada na história e nas queixas imediatas do indivíduo, mas também em sua interação com o ambiente e como a compreensão de seu meso, exo e macrossistemas se relacionam com o processo terapêutico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma crítica comum à CCog e às TCCs é o argumento de que a hipótese do mediador cognitivo individualizaria demandas que podem ser causadas pela sociedade e pelas instituições vigentes (Dittrich, 2019). Isso articularia as TCCs à manutenção do status quo por meio da adaptação de indivíduos a um sistema que privilegia as elites. No entanto, a hipótese do mediador cognitivo não pretende ser a única explicação para os desfechos e demandas clínicas dos pacientes. Como as TCCs são integrativas e partem da premissa da PPBE, sabe-se que o adequado é a articulação de sua teoria com outras teorias cujas bases filosóficas sejam relacionáveis (Hayes & Hofmann, 2020), sendo este o caso da teoria bioecológica do desenvolvimento.
A partir dessas teorias, pode-se compreender efetivamente o impacto dos estressores específicos no desenvolvimento dos padrões cognitivos, comportamentais e emocionais dos indivíduos, o que é fundamental para a construção de uma terapia afirmativa e culturalmente embasada. Assim, o trabalho clínico precisa compreender o impacto do contexto e do tempo no desenvolvimento e na manutenção dos padrões de funcionamento do paciente, assim como entender quais estressores fazem parte da sua história e do seu presente - e quais seguirão sendo parte de seu futuro -, a fim de identificar o que pode ser pensado no plano de tratamento.
Este trabalho se propôs a realizar uma revisão narrativa a respeito da CM, buscando formas de articular caminhos para tornar a CCog em TCC culturalmente embasada e, assim, mais adequada no tratamento de grupos minorizados. Com fundamento nas bases teóricas estabelecidas, observa-se que ainda há necessidade de ultrapassar-se o desafio aspiracional do tema e propor também modelos que permitam aplicação práticas e estudos empíricos sobre sua efetividade. Em relação à CCog culturalmente competente, implica na criação de um modelo que contenha eixos que possibilitem a compreensão dos diferentes aspectos e vivências relacionadas a cada estrutura ecológica da vida do paciente. Isto é, intencionalmente considerando os diversos atravessamentos de identidades minorizadas - e a intersecção destes -, e seus potenciais causadores de estresse crônico. E, tendo essa clareza, conceitualizar as influências do desenvolvimento entendendo os fatores dos micro, macro, exo e messosistemas que expuseram o indivíduo a fatores de risco.