SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20Evidence-Based Practice in the context of Cognitive Behavioral Therapy: a scoping reviewDeveloping therapists’ clinical competencies through the PRHAVIDA Program: an Experience Report author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

Print version ISSN 1808-5687On-line version ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.20  Rio de Janeiro  2024  Epub Dec 02, 2024

https://doi.org/10.5935/1808-5687.20240463 

Comunicação breve | Dossiê Latam

Relato de experiência sobre estratégias de supervisão para formação de jovens terapeutas no atendimento clínico a pessoas idosas: o foco nas questões identitárias

Reporting supervision strategies to train young therapists for clinical psychotherapy with older people: focusing on key identities

Informe de experiência de estrategias de supervisión para formar terapeutas jóvenes para la psicoterapia clínica con personas mayores: centrándose en identidades clave

Heloísa Gonçalves Ferreira1 
http://orcid.org/0000-0002-3545-9378

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Cognição e Desenvolvimento - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil


RESUMO

Há poucas opções de intervenções psicoterapêuticas para pessoas idosas no Brasil, além de déficit na formação de psicólogos para lidar com as demandas específicas da velhice. É importante que intervenções psicológicas e a formação de psicólogos partam de um embasamento teórico-prático que considere questões identitárias da díade terapeuta-cliente. O presente relato de experiência descreve manejos e procedimentos de supervisão referentes à formação de um jovem terapeuta para o atendimento cognitivo-comportamental de um idoso com diagnóstico de depressão. Objetivou-se identificar e acolher sentimentos e percepções aversivas do terapeuta em relação ao caso; identificar e endereçar diferenças identitárias, geracionais e de valores da díade; identificar e reestruturar crenças idadistas do terapeuta; e desenvolver empatia do terapeuta com o cliente. Ao discriminar as diferenças identitárias na díade, deparar-se com a conceitualização de caso do cliente, identificar seus próprios padrões de sentimentos e crenças em sessão e receber acolhimento em supervisão, o terapeuta sentiu-se autoconfiante para conduzir o atendimento. Há que se prover esforços para que a formação de terapeutas para atendimento às pessoas idosas seja feita a partir de arcabouços teóricos metodológicos coerentes com as necessidades e características da população idosa brasileira.

Palavras-chave: Terapia cognitivo-comportamental; Geriatria; Capacitação de recursos humanos em saúde; Enquadramento interseccional

Destaques de impacto clínico

Identificar e endereçar diferenças e semelhanças de questões identitárias da díade terapeuta-cliente que potencializam o processo terapêutico.

Quando um jovem terapeuta atende um cliente idoso, diferenças de crenças e valores geracionais são esperadas, as quais, quando reconhecidas e manejadas, favorecem o desenvolvimento do vínculo terapêutico e a condução do tratamento.

Desconstruir possíveis crenças idadistas da díade terapeuta-cliente é necessário para possibilitar atendimento psicoterapêutico a pessoas idosas.

Há que se investir esforços para a formação de terapeutas qualificados para o atendimento psicoterapêutico de pessoas idosas.

Palavras-chave: Terapia cognitivo-comportamental; Geriatria; Capacitação de recursos humanos em saúde; Enquadramento interseccional

ABSTRACT

There are few options for psychotherapeutic interventions for older individuals in Brazil, and well as a deficit in the training of psychologists to deal with the specific demands of old age. It is important that psychological interventions and the training of psychologists are based on a theoretical-practical foundation that considers the key identities of the therapist-client dyad. This professional report describes the management and supervision procedures related to the training of a young therapist for cognitive-behavioral therapy to treat an older individual diagnosed with depression. The objectives were to identify and address the therapists aversive feelings and thoughts regarding the case, identify and address generational, values, and identity differences within the dyad, identify and restructure the therapists ageist beliefs, and develop empathy from the therapist towards the client. By understanding the identity differences within the dyad, engaging with the clients case conceptualization, identifying patterns of feelings and beliefs in sessions, and receiving support and validation in supervision, the therapist felt confident in conducting the therapy. Efforts should be made to ensure that the training of therapists for older people is based on theoretical and methodological frameworks consistent with the needs and characteristics of the Brazilian older population.

Keywords: Cognitive Behavioral Therapy; Geriatrics; Observatory of Human Resources for Health; Ageism

RESUMEN

Hay pocas opciones de intervenciones psicoterapéuticas para personas mayores en Brasil, además de un déficit en la formación de psicólogos para enfrentar las demandas específicas de la vejez. Es importante que las intervenciones psicológicas y la formación de psicólogos se basen en un fundamento teórico-práctico que considere las cuestiones identitarias de la diada terapeuta-cliente. Este informe experiencial describe los manejos y procedimientos de supervisión relacionados con la formación de un joven terapeuta para la terapia cognitivo-conductual con un anciano diagnosticado con depresión. Los objetivos eran identificar y abordar los sentimientos y percepciones aversivas del terapeuta con respecto al caso, identificar y abordar las diferencias generacionales, de valores e identitarias dentro de la diada, identificar y reestructurar las creencias ageístas del terapeuta, y desarrollar empatía del terapeuta hacia el cliente. Al discriminar las diferencias identitarias dentro de la diada, abordar la conceptualización del caso del cliente, identificar sus propios patrones de sentimientos y creencias en las sesiones, y recibir apoyo y validación en la supervisión, el terapeuta se sintió seguro para llevar a cabo la terapia. Se deben realizar esfuerzos para asegurar que la formación de terapeutas para personas mayores se realice a partir de marcos teóricos y metodológicos coherentes con las necesidades y características de la población anciana brasileña.

Palabras clave: Terapia Cognitivo-Conductual; Geriatría; Instalaciones para Atención de Salud; Recursos Humanos y Servicios

O aumento da população idosa é, atualmente, um fenômeno global e nacional (Camarano & Fernandes, 2022) que implica em uma série de desafios a serem endereçados para promover a saúde desse grupo etário. Entre eles, a promoção da saúde mental por meio da oferta de serviços psicológicos especializados e adequados às necessidades desse público é uma ação urgente (World Health Organization [WHO], 2022). Ainda são poucas as opções de intervenções psicológicas disponibilizadas às pessoas idosas no Brasil, e nota-se um déficit na formação de psicólogos qualificados para lidar com as demandas específicas da etapa da velhice (Gomes & Vasconcelos, 2021). Nesse sentido, é importante investir esforços na formação de recursos humanos capacitados a oferecer a devida assistência psicológica a pessoas idosas, bem como na entrega de intervenções e serviços psicológicos adaptados às especificidades desse público-alvo.

A terapia cognitivo-comportamental (TCC) para pessoas idosas precisa considerar uma série de particularidades desse grupo, não apenas na entrega do tratamento, mas também na formação do responsável por isso. Nesse sentido, a compreensão das crenças e percepções do profissional sobre o envelhecimento e a velhice constitui um dos principais domínios a ser examinado e trabalhado nesse processo de formação (Garrison-Diehn et al., 2022). Além disso, o reconhecimento da heterogeneidade da velhice e dos diversos determinantes biológicos, psicossociais, históricos, políticos e culturais que moldam e influenciam as trajetórias do envelhecer, é crucial para a formação do psicólogo para atuar com pessoas mais velhas (Pachana & Thompson, 2021).

Embora ainda seja um desafio, é importante que as intervenções psicológicas e a formação de psicólogos clínicos partam de um embasamento teórico-prático que considere as intersecções e imbricações do envelhecimento com recortes de gênero, raça, geração, sexualidade, território e classe social (Firmino & Ferreira, 2022). Essas intersecções moldam diversos aspectos identitários das pessoas ao longo do ciclo vital, e a identificação dessas questões, não apenas da pessoa idosa, mas também de seu terapeuta, precisa ser endereçada logo no início da psicoterapia para favorecer o vínculo e o processo terapêutico (Steffen et al., 2022).

As pessoas experimentam saúde mental mediante a combinação de inúmeras questões identitárias, as quais impactam o acesso a oportunidades por meio de exposições a vantagens/privilégios e/ou desvantagens/opressões/discriminações, que são fluidas e podem ser modificadas ao longo da trajetória de vida (Clauss-Ehlers et al., 2019). Dessa forma, as pessoas vivem e são expostas a inúmeros contextos que moldam suas várias identidades ao longo da vida, as quais, por sua vez, podem representar acesso ou bloqueio a oportunidades, impactando a saúde mental.

Endereçar diferenças geracionais na clínica com pessoas idosas, assim como outras questões identitárias, sobretudo quando o terapeuta é jovem, é crucial para identificar e desconstruir crenças idadistas, entre outras crenças que possam impactar negativamente o processo. Nesse sentido, Hays (2016) oferece um roteiro útil que serve de base para identificar diferenças e semelhanças nas questões identitárias da díade terapeuta-cliente. Trata-se do ADDRESSING FRAMEWORK, em que ADDRESSING constitui um acrônimo em inglês que oferece um roteiro para identificar as seguintes identidades-chave da díade: Age and generational influences; Developmental or other Disabilities; Religion or spiritual orientation; Ethnic and Racial Idenitity; Socioeconomic status; Sexual orientation; Indigineous heritage; National origin; e Gender identities (Hays, 2016).

Steffen et al. (2022) aplicam o roteiro de Hays (2016) em protocolo cognitivo-comportamental para tratar depressão geriátrica. Os autores afirmam que o endereçamento das diferenças e similaridades entre as questões identitárias da díade terapeuta-cliente é importante para conceitualização do caso, compreensão do desenvolvimento e curso da depressão geriátrica, delineamento do plano de intervenção, estabelecimento do vínculo terapêutico e escolha de estratégias e procedimentos psicoterapêuticos a serem utilizados.

A depressão geriátrica é um sério problema de saúde pública no Brasil (Silva et al., 2018). No contexto nacional, ainda é carente a oferta de intervenções psicológicas para tratamento dessa condição. Em resposta a essa demanda, o Programa de Atendimento Cognitivo-comportamental para Pessoas Idosas com Depressão (PACCID) foi implementado em uma policlínica, pertencente ao complexo de saúde de uma universidade pública, vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS). O PACCID oferta atendimento individual cognitivo-comportamental para o tratamento da depressão geriátrica e se baseia nos protocolos cognitivo-comportamentais desenvolvidos por Gallagher e Gallagher-Thompson (2010) e Steffen et al. (2022) para o tratamento da depressão em pessoas idosas.

O PACCID constituía estágio curricular vinculado ao Instituto de Psicologia da referida universidade, o que significa que outro objetivo do programa era capacitar terapeutas cognitivo-comportamentais para o atendimento clínico de pessoas idosas. Os alunos em formação no PACCID eram, em sua maioria, terapeutas no início da idade adulta. Nesse sentido, a formação do jovem terapeuta para o atendimento de pessoas mais velhas precisa considerar não apenas o treinamento de habilidades psicoterapêuticas e o conhecimento da abordagem clínica e das teorias psicossociais do envelhecimento, mas também focar no treinamento de atitudes que reconheçam diferenças e similaridades nas questões identitárias da díade terapeuta-cliente. Relatos de experiência que sistematizem e descrevam procedimentos para a formação de jovens terapeutas para o atendimento de pessoas idosas ainda são raros no Brasil, portanto, são necessários para disseminar boas práticas de formação para trabalho com um público que tende a crescer e a demandar cada vez mais dos serviços de saúde.

O objetivo do presente relato de experiência é descrever manejos e procedimentos de supervisão referentes à formação de um jovem terapeuta para o atendimento clínico de um idoso com diagnóstico de depressão. Pretende-se narrar os procedimentos de reconhecimento e endereçamento das questões identitárias da díade, tendo por base o roteiro ADDRESSING proposto por Hays (2016).

Descrição do caso

O cliente

Gabriel, 70 anos, homem branco, heterossexual, divorciado, com ensino superior completo, morava sozinho e tinha duas filhas. Foi encaminhado pelo setor de geriatria da policlínica para atendimento psicoterapêutico no PACCID, com suspeita de depressão. Na avaliação psicológica, relatou falta de libido, que atribuía ao tratamento que havia feito para câncer de próstata, além de queixar-se de desânimo e prostração (“não me reconheço”). Ele havia perdido o emprego e estava trabalhando como motorista de aplicativo. Detectou-se triagem positiva para depressão e ansiedade a partir da aplicação de instrumentos de rastreio: Escala Geriátrica de Depressão (GDS-15) (Paradela et al., 2005) e Inventário de Ansiedade Geriátrica (GAI) (Martiny et al., 2011).

Gabriel demostrou bastante resistência para iniciar a psicoterapia. No primeiro contato telefônico, solicitou ao terapeuta que não comentasse com mais ninguém que estava sendo encaminhado para a psicoterapia. Além disso, nas primeiras sessões, chegava bastante atrasado e se justificava dizendo que não tinha certeza se queria mesmo iniciar o tratamento. O cliente apresentava algumas crenças disfuncionais com relação ao que era a psicoterapia (“tratamento para pessoas loucas”) e por isso não queria que ninguém soubesse que ele estava iniciando o tratamento.

Quando a terapia teve início, identificou-se que o cliente estava privado de eventos sociais que antes gostava de realizar pelo fato de estar desempregado e acreditar que só poderia sair com as pessoas se tivesse dinheiro para pagar passeios, jantares e outras formas de entretenimento. Além disso, Gabriel tinha preocupações excessivas em relação ao sustento das filhas, embora elas não morassem mais com ele e já fossem independentes financeiramente. Também acreditava que não poderia convidar nenhuma mulher para sair se não tivesse dinheiro para pagar a conta. Dessa forma, apresentava muitas preocupações e crenças ansiogênicas com relação à sua situação financeira.

O cliente também apresentava crenças idadistas e dizia que não gostava de se relacionar com mulheres de sua idade, pois, segundo ele, elas “lembravam a minha avó”. Além disso, relatava preferir sair com pessoas mais novas, pois as pessoas da sua geração “só falavam de doença e de morte”.

O terapeuta

No PACCID, os terapeutas eram graduandos em psicologia. O atendimento de Gabriel foi atribuído a Lucas, um jovem terapeuta em formação bastante motivado em aprender e desenvolver habilidades para atendimento clínico de pessoas idosas. Lucas tinha 26 anos, era solteiro, negro, homossexual e recebia auxílio permanência da universidade para conseguir manter os seus estudos. Desde o início, Lucas demonstrou bastante comprometimento e entusiasmo com o estágio e estava motivado para iniciar o novo atendimento. Já tinha alguma experiência, pois atendia outra pessoa no mesmo programa. No entanto, em um dos encontros de supervisão, na fase inicial da psicoterapia e após o término da avaliação de Gabriel, Lucas relatou: “Está muito difícil para mim ter que atender o senhor Gabriel. Ele se atrasa muito e não parece estar motivado com a psicoterapia. Além disso, ele parece ser uma pessoa muito preconceituosa e eu me lembro muito do meu pai quando tenho que atendê-lo. É difícil para mim porque tive uma relação complicada com o meu pai, que não aceitava a minha orientação sexual. Eu gostaria que a senhora designasse outra pessoa para atendê-lo, professora”.

Lucas também acreditava que não poderia ajudar Gabriel por causa da diferença de idade entre eles: “Como eu vou poder auxiliar um homem mais velho, sendo eu mais novo, e ele tendo crenças tão distintas das minhas?”.

A situação-problema

Lucas estava com dificuldades para dar continuidade ao atendimento de Gabriel. Havia muitos “nós” em relação às questões identitárias. O padrão do cliente evocava sentimentos em Lucas, como preguiça de atender Gabriel, desconforto, sensação de que não conseguiria ajudá-lo e vontade de desistir. Essas reações do terapeuta aconteciam diante do cliente, pois os padrões de crenças e de comportamentos de Gabriel remetiam Lucas a um histórico de vida desafiador: ter sido alvo de preconceitos e discriminação em virtude de sua orientação sexual. O fato de estarem separados por duas gerações possivelmente também estava contribuindo para as sensações desagradáveis e percepções de Lucas de que não era possível ajudar alguém mais velho que olhava o mundo por lentes tão distintas das quais ele olhava. Nesse sentido, era necessário trabalhar com Lucas possibilidades de seguir com o atendimento, a partir de alguns manejos e estratégias na supervisão, antes que a decisão de encaminhar ou não Gabriel fosse tomada.

Os objetivos

A partir da situação-problema relatada, foram definidos os seguintes objetivos a serem trabalhados em supervisão com Lucas:

  • identificação e acolhimento dos sentimentos e das percepções aversivas do terapeuta em relação ao caso;

  • identificação das diferenças identitárias, geracionais e de valores da díade;

  • identificação e reestruturação de crenças idadistas do terapeuta;

  • desenvolvimento de empatia com relação ao histórico e sofrimento do cliente.

Manejos e procedimentos na supervisão

Em supervisão, foi identificado que Lucas tinha crenças de baixa autoeficácia e de fracasso evocadas nas primeiras sessões com Gabriel. Além disso, os sentimentos desagradáveis relatados pelo terapeuta (preguiça, angústia, vontade de desistir) eram evocados por essas crenças e se relacionavam à situação aversiva do atendimento, uma vez que o cliente remetia o terapeuta a um histórico aversivo de opressão e preconceito. A Figura 1 exibe o diagrama de conceitualização cognitiva do terapeuta, discutido no grupo de supervisão.

Figura 1 Diagrama de conceitualização cognitiva do terapeuta. 

Após elaborar a conceitualização cognitiva, o terapeuta pôde expressar seus sentimentos em supervisão e receber validação e acolhimento do grupo. Ao terapeuta também foi recomendado que buscasse fazer psicoterapia para tratar das questões pessoais que estavam influenciando no processo com seu cliente.

A estratégia subsequente foi identificar diferenças e similaridades entre as questões identitárias da díade com base no roteiro proposto por Hays (2016), que podem ser visualizadas na Tabela 1. Ao examinarmos a Tabela 1, nota-se que há mais diferenças do que similaridades nas questões identitárias da díade. Ao ser capaz de identificá-las, ficou mais fácil para o terapeuta determinar o motivo pelo qual estava tão difícil seguir com o caso.

Tabela 1 Questões identitárias da díade cliente-terapeuta com base no roteiro de Hays (2016)

Identidades-chave Cliente Terapeuta
Gênero Masculino Masculino
Nacionalidade Brasileiro Brasileiro
Deficiência Sem deficiência Sem deficiência
Idade/faixa etária Idoso Jovem adulto
Orientação sexual Heterossexual Gay
Cor Branco Negro
Classe social Classe média Em vulnerabilidade social
Religião Católico não praticante Católico/umbandista
Estado civil Viúvo Solteiro
Crenças geracionais “Homem é o provedor”
“Tenho que ter dinheiro para convidar alguém para sair”
“Homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e deveres”
“Não precisa de dinheiro para sair e socializar”
Valores geracionais Valores conservadores: trabalho/dinheiro/status social/família Valores progressistas: igualdade de gênero/respeito à diversidade

Fonte: Adaptada de Hays (2016).

Após a identificação das diferenças das questões identitárias e das crenças e valores geracionais, foi possível estabelecer as relações entre os sentimentos e as percepções do terapeuta com seu histórico de vida e distingui-los da relação que estava sendo estabelecida com o cliente. As falas e as atitudes preconceituosas do cliente não falavam do terapeuta em si (embora o remetesse à sua difícil trajetória), mas do histórico ao qual o próprio cliente havia sido submetido: uma geração na qual os papéis de gênero eram muito bem definidos para homens e mulheres, que, por sua vez, também poderiam favorecer padrões machistas e de submissão/opressão. No entanto, tais padrões geravam sofrimento e prejuízo. No caso do cliente, a crença de ter que prover incondicionalmente e manter um status financeiro estava contribuindo para um quadro de ansiedade, bem como para situações reforçadoras, por acreditar que com a renda reduzida não poderia envolver-se em atividades sociais, o que também contribuía para a ocorrência dos sintomas de depressão.

Outro manejo de supervisão relevante a ser adotado quando há grandes diferenças nas crenças geracionais da díade refere-se a identificação e reestruturação de crenças idadistas do terapeuta. No caso de Lucas, ele se sentia incapaz de ajudar o cliente por ter valores geracionais muito distintos dos dele. Nesse sentido, a crença “não posso ajudar alguém tão mais velho do que eu e que pensa de forma tão distinta” foi reestruturada para “sou um terapeuta em formação e estou aprendendo o que preciso para ser capaz de atender pessoas mais velhas. Diferenças geracionais são esperadas, pois somos de gerações distintas. Não preciso pensar como essas pessoas, mas preciso estar confortável em atendê-las”.

Além disso, após compreender a conceitualização de caso de Gabriel, que explicava o desenvolvimento de crenças e padrões machistas, os quais contribuíam para seus sintomas de ansiedade e depressão, o trabalho de reestruturação cognitiva a ser realizado com o cliente foi favorecido pelos valores e crenças geracionais do próprio terapeuta. Nos procedimentos visando à reestruturação cognitiva das crenças sobre necessidade de prover, Lucas era capaz de descrever com tranquilidade outras perspectivas e alternativas, por um viés menos opressor, para encarar as situações desafiadoras que Gabriel enfrentava (privação de atividades sociais reforçadoras e ansiedade de ter que prover). Além disso, as crenças rígidas relacionadas aos padrões esperados para homens e mulheres também passaram por procedimentos de reestruturação cognitiva, que eram facilitados pelos valores e crenças geracionais do próprio terapeuta.

Por fim, o vínculo da díade era frequentemente monitorado por meio de perguntas feitas ao terapeuta durante as supervisões, sobre como ele estava se sentindo nas sessões: “Como você se sentiu nesta sessão com o seu cliente?” e “Identificou alguma emoção desagradável nesta sessão em relação ao seu cliente?”. As percepções e sentimentos do terapeuta ao longo das sessões serviam como dicas importantes sobre como o vínculo estava sendo construído e se o terapeuta estava confortável em conduzir o atendimento.

Aspectos éticos

Os nomes dos envolvidos no presente relato de experiência foram modificados para preservação de suas identidades. Além disso, tanto o cliente quanto o terapeuta deram seu consentimento para uso dos dados dos atendimentos psicoterapêuticos para fins científicos. O cliente assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido referente ao projeto de pesquisa “Adaptação de intervenção cognitivo-comportamental para tratar depressão em idosos no Brasil: estudo de avaliação de processo” aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro com CAAE 51077621.9.0000.5282, com base nas resoluções nº 466 (2012) e nº 510 (2016) do Conselho Nacional de Saúde. O terapeuta emitiu autorização por escrito consentindo o uso dos dados das supervisões.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao discriminar as diferenças identitárias na díade, deparar-se com a conceitualização de caso do cliente, identificar seus próprios padrões de sentimentos e crenças em sessão e receber o devido acolhimento e validação em supervisão, o terapeuta se sentiu mais autoconfiante para seguir com o atendimento: “Depois que eu entendi que o que me incomodava também fazia o cliente sofrer, eu consegui seguir. Eu percebi que poderia ajudá-lo justamente por pensar tão diferente e ter uma vivência muito distinta da dele”.

Embora descrever em detalhes o processo psicoterapêutico e os resultados do cliente não tenha sido o objetivo deste relato, é importante mencionar que Gabriel recebeu alta após dois semestres letivos de atendimento (20 sessões no total), tendo Lucas como seu terapeuta. Foi observada redução nos sintomas de ansiedade e depressão, indicando triagem negativa para esses transtornos, aferidos pelos instrumentos aplicados no início do tratamento (GDS-15 e GAI). Além disso, o cliente relatou ter aprendido estratégias para lidar com as dificuldades que estava enfrentando: “Eu comecei a meio que aceitar a minha idade e a entender as minhas limitações, porque antes eu ficava pensando que eu não podia sentir dor porque tinha que trabalhar para dar um futuro para as minhas filhas, que eu não podia estar cansado e que tinha que trabalhar sempre. Agora eu aceito e tenho me cuidado, como vir aqui e na geriatria, para ver as questões da cabeça, da memória e das dores na perna”.

A supervisão clínica é um processo essencial para que o terapeuta desenvolva suas competências profissionais e pessoais no atendimento psicoterapêutico a diversos grupos, para qualquer abordagem psicológica. Na TCC, Barletta et al. (2012) enfatizam que a supervisão clínica é indispensável para o desenvolvimento de três dimensões de competência no manejo clínico: conhecimento, habilidade técnica e habilidade de inter-relação. No entanto, ainda é recente a percepção de que as questões identitárias do terapeuta e do cliente merecem atenção especial no processo psicoterapêutico e na formação do psicólogo (Firmino & Ferreira, 2022), sendo importante pensá-las como mais uma dimensão a ser cuidada na formação profissional. Considera-se que a habilidade de inter-relação para o desenvolvimento de vínculo terapêutico satisfatório está bastante associada ao reconhecimento e endereçamento de diferenças e similaridades nas questões identitárias da díade terapeuta-cliente, como este relato de experiência buscou ilustrar.

Uma revisão narrativa da literatura (Silva, 2023) evidenciou a necessidade de se considerar questões identitárias na clínica, como diferenças regionais, citando também o modelo avaliativo ADDRESSING como uma opção viável para guiar o terapeuta na identificação e endereçamento desses aspectos no contexto brasileiro. Outras questões identitárias, como raça (Tavares & Kuratani, 2019) e orientação sexual (Rocha & Pucci, 2023), começam a aparecer na literatura nacional como foco de interesse das TCCs para o desenvolvimento de intervenções mais culturalmente sensíveis. No entanto, ainda é evidente a baixa produção de estudos no Brasil sobre clínica e interseccionalidade (Mizael et al., 2022; Rocha & Pucci, 2023; Silva, 2023), bem como a falta de formação de psicólogos preparados para dar conta das questões identitárias de seus clientes (Gouveia & Zanello, 2019).

A TCC para pessoas idosas sinaliza uma série de especificidades e cuidados na prática clínica que precisam ser levados em consideração para a formação do terapeuta, sobretudo quando este ainda é jovem e apresenta crenças e atitudes geracionais distintas das de seu cliente mais velho. Nesse processo, reconhecer e endereçar as diversas questões identitárias da díade é essencial para o estabelecimento de um vínculo terapêutico satisfatório, melhor conceitualização do caso e emprego de procedimentos psicoterapêuticos visando maximizar os resultados da intervenção.

Ademais, o reconhecimento das crenças e atitudes do terapeuta e do cliente frente à velhice e ao envelhecimento, bem como a reestruturação de crenças e atitudes idadistas da díade, é indispensável para o processo de formação do terapeuta de pessoas idosas e para o desenvolvimento da intervenção (Steffen et al., 2022). O idadismo é bastante presente no mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento, tanto em um nível macro (valores sociais e culturais que reforçam estereótipos negativos relacionados ao envelhecimento) quanto em um nível individual (padrões de crenças e comportamentos), afetando negativamente a saúde dessa população (Chang et al., 2020). Logo, identificar e reestruturar crenças e comportamentos idadistas da díade, a partir do reconhecimento de diferenças geracionais, é um aspecto indispensável da TCC para pessoas idosas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este relato de experiência profissional visou descrever manejos de supervisão para formação de um jovem terapeuta no atendimento de um cliente idoso. A idade em si é apenas mais uma faceta da diversidade (Steffen et al., 2022), não constituindo a única questão identitária a ser considerada em um atendimento psicoterapêutico. Quando se trata da formação de jovens terapeutas para o atendimento de pessoas mais velhas, invariavelmente existirão diferenças nas crenças e nos valores referentes às gerações do cliente e do terapeuta, que precisam ser devidamente reconhecidas e endereçadas a partir da necessidade de cada díade. Ademais, crenças idadistas também devem ser reconhecidas logo no início do processo, e o terapeuta precisa desenvolver atitudes que reconheçam a heterogeneidade da velhice (Garrison-Diehn et al., 2022).

No entanto, é necessário estar atento e reconhecer as demais interseccionalidades (raça, gênero, classe social, orientação sexual, etc.), para além das diferenças geracionais que atravessam terapeuta e cliente, logo na fase inicial da psicoterapia. Tais diferenças e similaridades irão influenciar no plano psicoterapêutico, no estabelecimento do vínculo e na escolha das melhores estratégias de intervenção e avaliação ao longo do processo.

A American Psychological Association preconiza a interseccionalidade como um dos objetivos centrais das práticas psicológicas (Clauss-Ehlers et al., 2019). Embora ainda seja um grande desafio operar de forma concreta essas articulações interseccionais com a prática psicoterapêutica com pessoas idosas (Firmino & Ferreira, 2022), este relato de experiência profissional objetivou descrever como essa articulação pode ser operacionalizada em contexto de supervisão na fase inicial da psicoterapia para uma díade jovem terapeuta e cliente idoso.

A formação de psicólogos para o trabalho com pessoas mais velhas ainda é bastante deficitária no Brasil (Gomes & Vasconcelos, 2021). Há que se prover esforços para que essa formação seja feita a partir de arcabouços teóricos metodológicos coerentes com as necessidades e características da população idosa brasileira, a fim de que os psicólogos estejam devidamente qualificados para lidar com as demandas heterogêneas desse público.

Fonte de financiamento: Nada consta.

Outras informações relevantes: Este artigo foi submetido no GNPapers da RBTC código 463.

REFERÊNCIAS

Barletta, J. B., Fonseca, A. L. B. da, & Delabrida, Z. N. C. (2012). A importância da supervisão de estágio clínico para o desenvolvimento de competências em terapia cognitivo-comportamental. Psicologia: teoria e prática, 14(3), 153-167. [ Links ]

Camarano, A. A., & Fernandes, D. (2022). Envelhecimento da população brasileira: Contribuição demográfica. In E. V. de Freitas, & L. Py (Eds.), Tratado de geriatria e gerontologia (5. ed., pp. 1-11). Guanabara Koogan. [ Links ]

Chang, E. S., Kannoth, S., Levy, S., Wang, S. Y., Lee, J. E., & Levy, B. R. (2020). Global reach of ageism on older persons’ health: A systematic review. PloS One, 15(1), e0220857. [ Links ]

Clauss-Ehlers, C. S., Chiriboga, D. A., Hunter, S. J., Roysircar, G., & Tummala-Narra, P. (2019). APA multicultural guidelines executive summary: Ecological approach to context, identity, and intersectionality. American Psychologist, 74(2), 232-244. [ Links ]

Firmino, D. R., & Ferreira, H. G. (2022). Intervenções psicológicas em idosos: Interseccionalidade e psicoterapia em debate. In E.V. de Freitas, & L. Py (Eds.), Tratado de geriatria e gerontologia (5. ed., pp. 1297-1302). Guanabara Koogan. [ Links ]

Gallagher, L. T., & Gallagher-Thompson, D. (2010). Treating later-life depression: A cognitive behavioral therapy approach. Oxford. [ Links ]

Garrison-Diehn, C., Rummel, C., Au, Y. H., & Scherer, K. (2022). Attitudes toward older adults and aging: A foundational geropsychology knowledge competency. Clinical Psychology: Science and Practice, 29(1), 4-15. [ Links ]

Gomes, E. A. P., & Vasconcelos, F. G. (2021). Psicoterapia com idosos: Percepção de profissionais de psicologia em um ambulatório do SUS. Psicologia: Ciência e Profissão, 41, e224368, 1-17. [ Links ]

Gouveia, M., & Zanello, V. (2019). Psicoterapia, raça e racismo no contexto brasileiro: Experiências e percepções de mulheres negras. Psicologia em Estudo, 24, e42738. [ Links ]

Hays, P. A. (2016). Addressing cultural complexities in practice: Assessment, diagnosis, and therapy (3rd ed.). American Psychological Association. [ Links ]

Martiny, C., Silva, A. C. O., Nardi, A. E., & Pachana, N. A. (2011). Tradução e adaptação transcultural da versão brasileira do Inventário de Ansiedade Geriátrica (GAI). Revista de Psiquiatria Clínica, 38(1), 8-12. [ Links ]

Mizael, T. M., Dahás, L., & Zamignani, D. R. (2022). Análise do comportamento e direitos das populações socialmente vulneráveis: Em direção a uma prática culturalmente sensível. Perspectivas em Análise do Comportamento, 13(1), 1-6. [ Links ]

Pachana, N. A., & Thompson, L. W. (2021). Introduction to working with older adults. In N. A. Pachana, V. Molinari, L. W. Thompson, & D. Gallagher-Thompson (Eds.), Psychological assessment and treatment of older adults (pp. 1-12). Hogrefe. [ Links ]

Paradela, E. M. P., Lourenço, R. A., & Veras, R. P. (2005). Validação da escala de depressão geriátrica em um ambulatório geral. Revista de Saúde Pública, 39(6), 918-923. [ Links ]

Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (2012). Aprovar as seguintes diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdfLinks ]

Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016 (2016). Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução. https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdfLinks ]

Rocha, G. L., & Pucci, S. H. M. (2023). Terapia cognitivo-comportamental e a população LGBT: Uma revisão integrativa. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, 9(7), 1384-1403. [ Links ]

Silva, J. A. da. (2023). Considerando as relações regionais brasileiras na clínica comportamental. Perspectivas em Análise do Comportamento, 170-182. [ Links ]

Silva, P. A. dos S. da, Rocha, S. V., Santos, L. B., Santos, C. A. dos, Amorim, C. R., & Vilela, A. B. A. (2018). Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados entre idosos de um município do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 23(2), 639-646. [ Links ]

Steffen, A. M., Thompson, L. W., & Gallagher-Thompson, D. (2022). Treating later-life depression: A cognitive behavioral therapy approach (2nd ed.). Oxford. [ Links ]

Tavares, J. S. C., & Kuratani, S. M. de A. (2019). Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, e184764, 1-13. [ Links ]

World Health Organization (WHO). (2022). World mental health report: Transforming mental health for all. https://www.who.int/publications/i/item/9789240049338Links ]

Recebido: 13 de Dezembro de 2023; Aceito: 06 de Abril de 2024; Publicado: 21 de Agosto de 2024

Correspondência Heloísa Gonçalves Ferreira. E-mail: helogf@gmail.com

Editora responsável

Carmem Beatriz Neufeld

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.