Nas ъltimas dйcadas, o movimento da psicologia baseada em evidкncias tem enfatizado a identificaзгo das competкncias essenciais dos terapeutas para boas prбticas em psicoterapia (Neufeld et al., 2021). Agкncias reguladoras e уrgгos normativos da profissгo vкm promovendo, em nнvel mundial, o ensino em psicologia alicerзado em competкncias, processo ancorado em pesquisas e sustentado por equipes de forзas-tarefas para elaborar diretrizes para potencializar o ensino e a formaзгo (Barletta et al., 2023).
Nesse sentido, competкncia envolve o desempenho adequado em uma situaзгo especнfica, abrangendo a inter-relaзгo entre conhecimentos, habilidades e atitudes que possibilitam ao profissional ser competente em sua prбtica clнnica (Barletta et al., 2023). A competкncia do terapeuta refere-se ao grau em que ele tem o conhecimento e a habilidade imprescindнveis para realizar procedimentos de tratamentos de acordo com prбtica baseada em evidкncias, com o objetivo de alcanзar os resultados esperados (McLeod et al., 2018).
Johnson et al. (2023) apontam que intervenзхes com crianзas e adolescentes implicam na aquisiзгo de diferentes competкncias essenciais transdiagnуsticas que promovam bons resultados de tratamento. Portanto, a competкncia na conduзгo de um tratamento psicossocial й considerada um elemento essencial para o sucesso em intervenзхes com esse pъblico (Cecilione et al., 2021).
Roth et al. (2008) desenvolveram um modelo pioneiro de competкncias necessбrias para o atendimento em saъde mental de crianзas e adolescentes, que identificou seis grandes domнnios que o terapeuta infantojuvenil deve desenvolver, conforme descrito na Figura 1. Esse modelo auxilia na estruturaзгo de programas de treinamento e supervisгo de terapeutas infantojuvenis, com o objetivo de aumentar a disponibilidade de intervenзхes psicolуgicas baseadas em evidкncias para crianзas e adolescentes que necessitam de intervenзхes clнnicas. Й fundamental ressaltar que a aquisiзгo de competкncia clнnica й um processo considerado muito complexo e, portanto, nгo pode ser entendida apenas como habilidades individuais e descontextualizadas (Barletta et al., 2021a; Falender, 2014).

Figura 1 Framework de competкncias para o atendimento em saъde mental de crianзas e adolescentes adaptado de Roth et al. (2008).
No modelo de Roth et al. (2008), as intervenзхes psicolуgicas sгo divididas em dois domнnios: o primeiro deles envolve a implementaзгo de programas de prevenзгo, oferecidos universalmente - por exemplo, a todas as crianзas de uma escola - ou como prevenção seletiva, oferecida a um grupo mais restrito (direcionado) de indivнduos identificados como estando em risco; jб o segundo refere-se a intervenções específicas e identifica intervenзхes psicolуgicas para condiзхes e apresentaзхes especнficas.
Lahti et al. (2023), em um estudo com profissionais envolvidos na promoзгo da saъde em escolas primбrias, identificaram fatores que sгo fundamentais para o sucesso da promoзгo da saъde mental nesses ambientes: (1) conhecimento sobre o desenvolvimento de crianзas em idade escolar; (2) conhecimento relacionado а saъde mental de crianзas em idade escolar; e (3) habilidades interpessoais. As formas eficazes de promover a saъde mental nas escolas primбrias incluem: (a) reuniхes com crianзas e famнlias; (b) ambiente escolar seguro e inclusivo; e (c) abordagens baseadas em evidкncias para a intervenзгo precoce e a promoзгo da saъde mental.
Promover estratйgias de saъde que considerem a populaзгo infantojuvenil й imperativo para diminuir os efeitos negativos que potencialmente afetarгo a saъde mental dos jovens em longo prazo (Lуpez-Bueno et al., 2021). A promoзгo da saъde tem como principal objetivo facilitar recursos para que as crianзas desenvolvam a capacidade de lidar com os desafios cotidianos de maneira adaptativa, superando adversidades e atendendo аs demandas do dia a dia, a partir do desenvolvimento de habilidades de enfrentamento (Nardi et al., 2017).
Uma forma de promover saъde, entгo, й a partir de intervenзхes que visem promover autoestima positiva, bem-estar, inclusгo social, entre outras habilidades de vida (Nardi et al., 2017). Considerando tal perspectiva, a Organizaзгo Mundial da Saъde (OMS) propхe dez habilidades de vida fundamentais para que se assegure a saъde mental: (1) autoconhecimento; (2) pensamento crнtico; (3) pensamento criativo; (4) resoluзгo de problemas; (5) tomada de decisгo; (6) manejo das emoзхes; (7) manejo do estresse; (8) empatia; (9) relacionamento interpessoal; e (10) comunicaзгo eficaz (World Health Organization [WHO], 1994).
Neufeld et al. (2014) desenvolveram, entre 2009 e 2010, o PRHAVIDA, um programa para a promoзгo de habilidades para a vida para crianзas e adolescentes no contexto escolar. Ele tem como objetivo promover saъde mental por meio do treinamento de habilidades sociais e habilidades para a vida com base na terapia cognitivo-comportamental (TCC) (Nardi et al., 2017). Considerando a importвncia de trabalhar a formaзгo de terapeutas baseada em competкncias, em especial o desenvolvimento de competкncias relacionadas а promoзгo da saъde, este artigo visa relatar a experiкncia como supervisoras em um contexto de desenvolvimento de competкncias de estagiбrios-terapeutas cognitivo-comportamentais em programa de promoзгo da saъde na infвncia em grupos.
OBJETIVO
Relatar a experiкncia como supervisoras em um contexto de desenvolvimento de competкncias de estagiбrios-terapeutas cognitivo-comportamentais em programa de promoзгo da saъde na infвncia em grupos.
MÉTODO
A seguir, relata-se o processo de supervisгo baseado em competкncias de um programa de promoзгo da saъde para crianзas em grupos, o PRHAVIDA, que ocorreu no contexto do Estбgio Abordagem Cognitivo-Comportamental em Grupos, em 2023, vinculado ao Laboratуrio de Pesquisa e Intervenзгo Cognitivo-comportamental (LaPICC) da Universidade de Sгo Paulo (USP). Participaram do estudo duas supervisoras, sendo uma delas a supervisora principal e uma a supervisora observadora, ambas pуs-graduandas em um programa de pуs-graduaзгo da USP e supervisionadas pela supervisora responsбvel pelo estбgio e professora da disciplina-estбgio na universidade. O estudo tambйm contou com a participaзгo de trкs estagiбrios-terapeutas, sendo dois da USP e uma de outra instituiзгo de ensino privada. O grupo de estagiбrios e supervisoras foi responsбvel por conduzir a intervenзгo do PRHAVIDA em dois grupos, um composto por oito crianзas e o outro composto por sete crianзas, com idade entre 8 e 9 anos, do 3є ano de uma escola pъblica.
O PRHAVIDA caracteriza-se por ser um programa de promoзгo da saъde em grupo destinado a crianзas e adolescentes (entre 8 e 13 anos), de ambos os sexos, com o objetivo de conduzir uma intervenзгo de treinamento de habilidades de vida (HV) e habilidades sociais (HS). Para isso, o grupo й estruturado entre 10 e 12 sessхes, alйm de incluir uma sessгo prй-teste e uma sessгo pуs-teste, para avaliaзгo. As sessхes foram todas conduzidas pelos trкs estagiбrios, que ocuparam os papйis de terapeuta, coterapeuta e terapeuta observador. Todas as sessхes foram gravadas em бudio e ouvidas pelas duas supervisoras antes de cada encontro supervisionado. Na Tabela 1, sгo apresentados os temas de cada sessгo do PRHAVIDA. Para conhecer mais sobre o programa, consulte Neufeld (no prelo). O PRHAVIDA faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo, com aprovaзгo nє 532/2010 - 2010.1.1965.59.1 no comitк de йtica da USP.
Tabela 1 Temas das sessões do PRHAVIDA.
Sessões | Assuntos trabalhados |
---|---|
Pré-teste | Aplicação dos instrumentos: Escala de Avaliação para Transtornos Emocionais Relacionados à Ansiedade em Crianças (SCARED), Inventário de Depressão Infantil (CDI), Escala Pictórica para Crianças e Adolescentes (EPAC-CA) e Escalas de Habilidades Sociais, Comportamentos Problemáticos e Competência Acadêmica (SSRS-BR) |
1ª sessão | Apresentação e identidade do grupo |
2ª sessão | Habilidades de vida e relacionamento interpessoal |
3ª sessão | Empatia e assertividade |
4ª sessão | Assertividade e civilidade |
5ª sessão | Emoções e autoconhecimento |
6ª sessão | Expressividade emocional e autoconhecimento |
7ª sessão | Manejo de emoção e estresse |
8ª sessão | Modelo cognitivo e pensamento crítico e criativo |
9ª sessão | Resolução de problemas |
10ª sessão | Jogo final e resumo |
Pós-teste | Reaplicação dos instrumentos: SCARED, CDI, EPAC-CA e SSRS-BR |
A supervisгo baseada em competкncias trabalha com metodologias ativas, iniciando com um programa de treinamento, que ocorre em dois dias com todos os grupos de estagiбrios, e segue ao longo de 14 encontros em cada grupo especнfico de estagiбrios. Trabalha-se substancialmente com discussхes, dramatizaзхes por meio de role-play, descoberta guiada, autorreflexгo e autoprбtica.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
TREINAMENTO
A primeira atividade do processo de supervisгo baseado em competкncias consiste em um treinamento no grande grupo, que reъne os estagiбrios e os supervisores de todos os grupos matriculados na disciplina e a professora supervisora responsбvel. Nesse primeiro momento, que se dividiu em dois encontros, foi conduzida uma aula magna sobre TCC em grupos, com momentos dialogados e com uso de role-play. Na atividade de role-play, papйis de participantes de grupos foram dramatizados a fim de os estagiбrios colocarem em prбtica habilidades, conhecimentos e atitudes recentemente adquiridos sobre manejo de fatores grupais. As metodologias envolveram estudos de caso por meio de vinhetas clнnicas e role-play, aprendizagem em pequenos grupos e pares e exposiзхes dialogadas.
Apуs os dois primeiros dias de treinamento no grande grupo de estagiбrios do LaPICC, os treinamentos e as supervisхes passaram a ocorrer semanalmente em pequenos grupos (trкs estagiбrios e duas supervisoras). O treinamento especнfico para o desenvolvimento de competкncias de terapeutas para o trabalho com programas de promoзгo da saъde (nesse caso, o PRHAVIDA) foi planejado para ocorrer ao longo do ano letivo, dividido em dois semestres - foram 14 encontros de treinamento teуrico-prбtico e supervisгo somados a 22 encontros de supervisгo em grupo, totalizando 36 encontros de 1h30. Nos 14 encontros de treinamento, os textos eram disponibilizados previamente, bem como questхes norteadoras, que auxiliavam o processo de discussгo. Os assuntos abordados em cada encontro podem ser observados na Tabela 2. Ao final do estбgio, os estagiбrios-terapeutas produziam em conjunto um relatуrio teуrico-prбtica sobre a prбtica na realizaзгo do PRHAVIDA e TCC em grupo.
Tabela 2 Treinamento da supervisão baseada em competências PRHAVIDA.
Encontro | Assuntos trabalhados |
---|---|
1 | Desafios da TCC em grupos com crianças e adolescentes |
2 | Apresentação do PRHAVIDA |
3 | Desenvolvimento de habilidades em grupos |
4 | Assertividade e convivência na escola |
5 | Empatia e civilidade |
6 | Emoções e regulação emocional |
7 | Emoções e regulação emocional |
8 | Regulação emocional |
9 | Violência na escola, da escola e contra a escola |
10 | Fatores terapêuticos em grupo |
11 | Fatores terapêuticos em grupo |
12 | Aspectos técnicos e o processo em TCC em grupos |
13 | Aspectos técnicos e o processo em TCC em grupos |
14 | Resolução de problemas |
Ao longo das 14 semanas de treinamento, tambйm foram trabalhadas as habilidades relacionadas а autorizaзгo da intervenзгo na escola que recebeu o programa. Esse foi um processo marcado por uma sйrie de dificuldades, uma vez que os trвmites burocrбticos para autorizaзгo da entrada de pessoas de fora da escola estavam sofrendo mudanзas junto а Secretaria de Educaзгo do municнpio. Apуs os trвmites legais estarem devidamente assinados e regularizados, os estagiбrios foram atй a escola para realizar o convite inicial аs crianзas. Foram entregues para as crianзas uma carta-convite aos pais, explicando o PRHAVIDA, o Termo de Consentimento Livre, Esclarecido e Informado, e o Termo de Assentimento.
IMPLEMENTAЗГO DO PRHAVIDA
O PRHAVIDA foi implementado em dois grupos ao longo do ano letivo: o Grupo 1 era composto por oito crianзas com idade entre 8 e 9 anos, sendo trкs meninas e cinco meninos, e o Grupo 2 era formado por sete crianзas entre 8 e 9 anos, sendo seis meninas e um menino. Ao final de cada encontro, cada crianзa recebia uma rйgua de humor, na qual podia marcar a intensidade de emoзхes como raiva, tristeza, alegria, medo e tranquilidade. Como medidas de avaliaзгo da intervenзгo, foram aplicados os seguintes instrumentos, antes e depois da conduзгo do PRHAVIDA: (a) Inventбrio de Depressгo Infantil (CDI; Kovacs & Preiss, 1992, versгo brasileira por Gouveia et al., 1995), Escala de Avaliaзгo para Transtornos Emocionais Relacionados а Ansiedade em Crianзas (SCARED; Birmaher et al., 1997, versгo brasileira por Isolan et al., 2011), Inventбrio de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competкncia Acadкmica para Crianзas (Bandeira et al., 2009) e Escala Pictуrica para Crianзas e Adolescentes (EPAC-CA; Ferreira et al., 2023).
PROCESSO DE SUPERVISГO BASEADA EM COMPETКNCIAS
Durante as sessхes do PRHAVIDA, os estagiбrios seguiram em supervisгo semanal com as supervisoras com foco no desenvolvimento de competкncias essenciais, competкncias genйricas, relacionadas a prevenзгo e а promoзгo da saъde, e metacompetкncias, conforme o modelo proposto por Roth et al. (2008) (Figura 1). Na Tabela 3, sгo relatadas as competкncias abordadas no estбgio e de que forma elas foram trabalhadas.
Tabela 3 Competências trabalhadas no processo de supervisão de estágio.
Competência | Forma que foi trabalhada durante o estágio | |
---|---|---|
Competências essenciais | Conhecimento sobre o desenvolvimento de crianças, jovens e famílias e transições desenvolvimentais | Aspectos sobre desenvolvimento foram trabalhados inicialmente na aula inaugural, durante atividade de role-play, na qual foi dramatizada uma sessão do PRHAVIDA e possíveis comportamentos das crianças da faixa etária dos 8 e 9 anos. Além disso, nos primeiros encontros de treinamento, foram discutidos aspectos sobre desenvolvimento típico a partir de textos com questões norteadoras, no modelo sala de aula invertida (Neufeld et al., 2020). Com o início do grupo, os estagiários se deparam com os aspectos de desenvolvimento na prática, e, portanto, as discussões do início do treinamento. |
Conhecimento e compreensão sobre problemas de saúde mental em crianças, jovens e adultos | Conhecimentos trabalhados de forma teórica a partir de textos com o uso de questões norteadoras, debates e sala de aula invertida. Discussões dialogadas sobre sintomas e problemas de saúde mental nas crianças estiveram fortemente presentes durante os processos de avaliação pré e pós-teste nos Grupos 1 e 2. | |
Conhecimento e habilidades para trabalhar com diretrizes éticas e profissionais | As diretrizes éticas no atendimento de crianças foram introduzidas ao trabalhar com os estagiários questões sobre ética em pesquisa e autorização dos pais/responsáveis. Trata-se de uma competência transversal, que também foi trabalhada ao identificar a suspeita de abuso sexual em uma das crianças do Grupo 1. | |
Conhecimento sobre estruturas legais relacionados a crianças e jovens | Foi identificada suspeita de abuso sexual envolvendo uma das crianças do Grupo 1. A situação foi trabalhada em supervisão, envolvendo orientações sobre a estrutura legal competente à investigação desse tipo de situação. Foram conduzidas discussões reflexivas e role-play para trabalhar essa competência. | |
Habilidade para reconhecer e responder a dificuldades sobre proteção na infância e adolescência | Após a identificação da suspeita de abuso sexual em uma das crianças participantes do grupo, foi trabalhado o manejo quanto ao direcionamento às autoridades competentes, por meio de discussões reflexivas com o uso de questionamento socrático, resolução de problemas e role-play. | |
Habilidade para trabalhar com diferenças (competência cultural) | Foram conduzidas discussões reflexivas para trabalhar as diferenças, visando à competência cultural, por meio de descoberta guiada. O contexto escolar era diverso por si só, e essa questão ficou mais saliente com o início do Grupo 2, momento em que os estagiários observaram e realizaram mais comparações com as crianças do Grupo 1. | |
Habilidade para engajar e trabalhar com famílias, pais e carreiras | Apesar de o PRHAVIDA ser um programa que tem como foco as crianças durante as sessões, essa competência foi treinada via convite realizado pelos estagiários aos pais/responsáveis. Em supervisão, por meio da resolução de problemas, foram trabalhadas formas de aumentar o engajamento e o aceite dos pais no grupo de intervenção. Algumas das soluções apresentadas envolveram incluir um post-it colorido com um segundo convite, para além do convite oficial. | |
Habilidade para comunicar-se com crianças e jovens de diferentes idades, níveis de desenvolvimento e históricos | Competência trabalhada desde o primeiro dia de treinamento, na aula inaugural, e seguiu com forte enfoque ao longo de todo o processo supervisionado. Nos primeiros encontros de treinamento, foram trabalhadas leituras sobre os desafios da TCC em grupo com crianças e adolescentes, já abordando habilidades de comunicação. Essa competência foi treinada por meio de role-play repetidas vezes, quando no surgimento de situações desafiadoras no grupo. Dessa forma, essa prática deliberada (Barletta et al., 2023) era ancorada tanto nas gravações das sessões, fazendo conexões significativas entre o treinamento da competência e a vivência dos estagiários, quanto nos feedbacks, componente vital para a aprendizagem procedural. | |
Competências terapêuticas genéricas | Habilidade para lidar com o conteúdo emocional das sessões | Muitas vezes, o conteúdo emocional das sessões envolvia frustrações diante das dificuldades de manejo, angústias relacionadas aos contextos das crianças, tédio em grupos mais parados e com menos interações, além de emoções associadas a questões institucionais e do contexto do próprio estágio. As supervisoras estimulavam os estagiários a trazerem as emoções (aflitivas e agradáveis), acolhiam e buscavam trabalhar por meio de autorreflexão, discussões dialogadas, questionamento socrático, descoberta guiada e resolução de problemas. Além disso, eram propostos momentos de integração com o grupo de estagiários e supervisoras. |
Habilidade para manejar finais e transições entre serviços | O programa PRHAVIDA é limitado no tempo e pode-se prever o final da intervenção, mas, ainda assim, é um desafio manejar finais. Essa competência foi trabalhada por meio de discussões, autorreflexão e descoberta guiada. Não foram encontradas dificuldades específicas, possivelmente por ser uma competência indiretamente trabalhada desde o início do estágio. | |
Habilidade para trabalhar com grupos de crianças, adolescentes e/ou pais/cuidadores | Um dos principais objetivos de aprendizagem do estagiário, essa habilidade foi trabalhada desde a aula inaugural, cujo foco era TCC em grupos, por meio de discussão dialogada teórica, role-play e discussão em pequenos grupos. Habilidade trabalhada via textos no treinamento específico, prática deliberada, role-plays sucessivos e autorreflexão. Ênfase na identificação e no manejo dos fatores grupais propostos por Yalom e Leszcz (2006). | |
Habilidade para fazer uso de medidas de avaliação (incluindo monitoramento de desfechos) | Essa habilidade foi questionada no grupo dos estagiários - um dos questionamentos permeava o porquê “aplicar tantos questionários se as crianças não entendem”; outro dizia respeito a “qual a razão de nós (estagiários), que estamos aprendendo sobre intervenção de promoção de saúde, realizarmos uma atividade de pesquisa”, demonstrando uma confusão entre o uso de instrumentos em contextos de intervenção e contextos de pesquisa. Foi trabalhada a importância da habilidade de avaliação em diferentes contextos além do de promoção da saúde, bem como discutida a importância de compreendermos os principais sintomas antes, durante e após as intervenções, a fim de monitorar os desfechos das intervenções conduzidas. Além disso, por meio de resolução de problemas e treinamento a partir de role-play, foram discutidas formas de facilitar a compreensão dos questionários pelas crianças, otimizando o processo de avaliação. | |
Habilidade para fazer uso da supervisão | Foram propostas discussões sobre quais estratégias facilitavam o processo de aprendizagem, além de ter sido deixado um espaço aberto para leituras e materiais complementares. Os estagiários solicitaram leituras extras, que facilitavam a compreensão dos conceitos dos textos básicos, bem como das vivências diretas com as crianças. O estímulo à autorreflexão, juntamente ao acolhimento, característico da função restauradora da supervisão (Barletta & Neufeld, 2020), propiciaram o desenvolvimento dessa habilidade. | |
Competências para programas de prevenção universais e seletivos | Promoção da saúde em diferentes contextos | É uma das principais competências do estágio, com ênfase em promoção da saúde no contexto escolar por meio da condução do PRHAVIDA. As principais estratégias utilizadas foram discussões dialogadas, role-play, resolução de problemas e descoberta guiada. |
Educação emocional em escolas | Condução do PRHAVIDA em um escola municipal. Principais estratégias utilizadas: discussões dialogadas, prática deliberada, role-play, resolução de problemas e descoberta guiada. | |
Metacompetências | Metacompetências para o trabalho com crianças e adolescentes | As metacompetências foram trabalhadas principalmente por meio de discussões que estimulavam a autorreflexão. Perguntas como “E como poderia ter sido feito de forma diferente? Como atingir um resultado parecido por outros caminhos?” eram utilizadas para fomentar a reflexão. |
Quanto аs competкncias essenciais, os estagiбrios foram inicialmente introduzidos aos aspectos do desenvolvimento infantil e аs questхes de saъde mental por meio de aulas teуricas, discussхes em grupo, estudos de caso e atividades de role-play. Essa abordagem teуrico-prбtica possibilitou que eles compreendessem as possнveis caracterнsticas dos participantes do grupo, facilitando a adaptaзгo das intervenзхes аs necessidades das crianзas. Alйm disso, o treinamento incluiu orientaзхes sobre diretrizes йticas, como em casos de situaзхes de risco, como maus-tratos ou violкncia, bem como necessidade de encaminhamento diante de quadros clнnicos. A supervisгo ofereceu um espaзo seguro e de orientaзгo para que os estagiбrios discutissem essas questхes de manejo, promovendo a compreensгo das estruturas legais e de rede de saъde.
Ao trabalhar com as competкncias terapкuticas genйricas, destaca-se as habilidades para lidar com o conteъdo emocional das sessхes, uma vez que o contexto em que o programa й aplicado evoca uma sйrie de emoзхes nas crianзas, que nгo raro sгo expostas a situaзхes de vulnerabilidade. Essas competкncias foram desenvolvidas por meio de um ambiente de supervisгo acolhedor, no qual as emoзхes, afliзхes e dъvidas dos estagiбrios eram discutidas e trabalhadas por meio de autorreflexхes, convidando-os a se questionarem, e de autoprбtica, discutindo sobre a regulaзгo emocional que й ensinada no grupo e a importвncia de autorregulaзгo para os terapeutas. Esse canal aberto de discussгo foi crucial para que os estagiбrios se sentissem а vontade para compartilhar suas frustraзхes e desafios, permitindo um crescimento profissional significativo.
O trabalho com competкncias para programas de prevenзгo permeou todo o processo de supervisгo, uma vez que era o foco do estбgio. A importвncia de trabalhar as competкncias para desenvolver habilidades para a vida para a prevenзгo e promoзгo da saъde se mostrou crucial tanto no processo de aprendizagem dos estagiбrios-terapeutas como no impacto que o programa teve nas crianзas que se beneficiaram dele, o que pфde ser observados nos resultados de prй e pуs-intervenзгo (conforme os dados coletados pelos estagiбrios e inseridos nos relatуrios), mas tambйm nos relatos verbais das crianзas e dos estagiбrios-terapeutas. Alйm disso, a capacidade de manejar finais e transiзхes tambйm foi enfatizada, com discussхes reflexivas que ajudaram os estagiбrios a se prepararem para a conclusгo de cada grupo ao final dos semestres.
As metacompetкncias, como a autorreflexгo e a autoprбtica, foram incentivadas por meio de perguntas que estimulam o pensamento e a discussгo durante as supervisхes. Os estagiбrios relataram que essa prбtica os ajudou a considerar diferentes abordagens e a aprender com suas experiкncias, fortalecendo sua capacidade de adaptaзгo em situaзхes desafiadoras.
No final dos semestres й realizada a elaboraзгo dos relatуrios parcial e final, momentos fundamentais para o fomento das habilidades de uso de medidas de avaliaзгo, habilidades sobre como fazer uso da supervisгo, habilidades para manejo de finais, conhecimento e compreensгo sobre problemas de saъde mental em crianзas, jovens e adultos, bem como inventivo аs metacompetкncias e а autorreflexгo.
A estagiбria-terapeuta relatou que o grupo de estбgio foi fundamental, destacando o papel significativo da funзгo restauradora da supervisгo: “Considero que [as supervisхes] foram essenciais para o meu aprendizado, principalmente pelo уtimo exemplo do que й um grupo e tudo que se pode aprender em um, em especial, a paciкncia, a disposiзгo para ouvir minhas queixas e dificuldades, o acolhimento e a disposiзгo para ajudar em tudo que fosse possнvel”. O estagiбrio coterapeuta teve uma fala semelhante: “[as supervisoras fizeram de] tudo para nos auxiliar e nos dar o mбximo de suporte possнvel. Definitivamente essa dedicaзгo e apoio foram essenciais para o desenvolvimento do projeto durante o semestre, nos dando forзa para continuar, independentemente da adversidade а frente. Com essas duas monitoras, qualquer problema parecia passнvel de soluзгo e um mero detalhe a ser acertado”. A estagiбria observadora destacou: “Tive um bom aproveitamento de todas as leituras que foram passadas e das discussхes durante o treinamento e a supervisгo, conseguindo, inclusive, aplicar algumas orientaзхes da supervisгo na prбtica e observar que elas realmente sгo efetivas e surtem o resultado previsto”.
Durante os encontros, diversas dificuldades foram trazidas, incluindo problemas no ambiente escolar, de manejo com as crianзas nos grupos, de deslocamentos atй a escola, burocracias, questхes institucionais e dificuldades pessoais. As supervisoras buscaram manter o ambiente aberto para que as diferentes questхes fossem trazidas, com acolhimento e estнmulo а autonomia, ao promover frequentemente resoluзхes de problemas em conjunto no grupo.
De acordo com Friedberg e McClure (2023), o conteъdo da supervisгo baseada em competкncias baseada em intervenзхes escolares inclui: tуpicos de TCC genйricos, especнficos da escola e exclusivos da TCC. As questхes gerais abordadas incluem preocupaзхes йticas, regulamentaзхes legais, consideraзхes de risco e questхes multiculturais (Barker & Hawes, 2024; Espeleta et al., 2022).
O modelo teуrico sobre desenvolvimento de competкncias declarativo-procedural-reflexivo (Bennett-Levy, 2006) aponta para a importвncia de abordar a aquisiзгo de competкncias clнnicas por meio de trкs sistemas que interagem entre si: declarativo, relativo ao conhecimento teуrico; procedural, relacionado аs habilidades prбticas e procedimentais; e reflexivo, que se relaciona com repensar, apreender e reorganizar os elementos (Barletta & Neufeld, 2020; Barletta et al., 2021a; Bennett-Levy, 2019). Ao longo das supervisхes, a aprendizagem declarativa foi trabalhada a partir de leituras, aulas e discussхes. As perguntas norteadoras potencializaram os debates e as descobertas guiadas, possibilitando a reflexгo (Barletta et al., 2021b). O sistema procedimental foi incrementado por meio de role-play, modelaзгo e prбtica de intervenзгo clнnica. O sistema reflexivo, por sua vez, foi trabalhado por meio de questionamento socrбtico, como maneiras alternativas de manejo no contexto do programa de intervenзгo, no desenvolvimento de habilidades interpessoais dos estagiбrios, na produзгo dos relatуrios parcial e final, o que fomentava reflexхes e insights, com fins de fortalecimento da aprendizagem (Barletta et al., 2021a).
O desenvolvimento de competкncias nгo й um processo linear, sendo atravessado por fatores como necessidade, objetivo e contexto em que a prбtica estб inserida (Barletta et al., 2023). Com base no modelo tridimensional Cubo de Competкncias (Rodolfa et al., 2005), os autores Gonsalvez e Calvert (2014) elaboraram o modelo cristal de competкncias para supervisгo clнnica, que transformou o cubo em um cristal, em uma perspectiva de que as competкncias sгo ensinadas, aprendidas e aplicadas nгo de forma isolada, mas que essa inter-relaзгo favorece o desenvolvimento de metacompetкncias. As metacompetкncias dizem respeito а capacidade de promover o crescimento de outras competкncias, permitindo a utilizaзгo das competкncias clнnicas de forma concomitante, flexнvel e adequada а demanda, sem perder a fidelidade e a qualidade da intervenзгo (Barletta, 2023; Barletta et al., 2023; Castonguay et al., 2023). Ao promover questionamentos, avaliaзгo das condutas, autorreflexгo e resoluзгo de problemas, as metacompetкncias foram fortalecidas junto аs demais competкncias.
A gravaзгo das sessхes tem sido apontada pela literatura como uma ferramenta educativa de excelкncia e que traz vбrios benefнcios significativos no desenvolvimento de competкncias clнnicas (Barletta et al., 2021a). Obter conhecimento em primeira mгo do trabalho dos supervisionandos com crianзas e adolescentes й considerada uma tarefa essencial para os supervisores (Friedberg & McClure, 2023). Apresenta como benefнcios a diminuiзгo do viйs no relato do atendimento e aumento da fidedignidade sobre o desempenho do terapeuta, e possibilita a emissгo do feedback imediato de forma clara e objetiva (Barletta et al., 2021a). Esse recurso foi crucial ao longo do processo supervisionado, que permitiu acompanhar de perto a aquisiзгo das competкncias e andamento do grupo de intervenзгo. Com frequкncia, eram propostas atividades baseadas em role-play, principalmente para fins de manejo no grupo.
Considerada um mйtodo de ensino baseado em evidкncias, a prбtica deliberada trabalha lacunas no treinamento de competкncias por meio da repetiзгo da habilidade em um contexto de treinamento estruturado, com objetivos claros e feedback especнfico, permitindo que a competкncia seja aplicada, revista e novamente praticada. Esse elemento torna a prбtica deliberada um processo nгo apenas de repetiзгo, mas de repetiзгo com lapidaзгo, oportunizando que o terapeuta em treinamento identifique acertos, erros e o que pode fazer para aproximar-se dos objetivos de aprendizagem (Barletta et al., 2023; Boswell & Constantino, 2022).
A supervisгo revelou-se um ambiente seguro para o desenvolvimento de competкncias mesmo em cenбrio avaliado pelos estagiбrios como hostil e com muitos obstбculos. Essa experiкncia vai ao encontro das trкs funзхes da supervisгo: formativa, normativa e restauradora (Barletta & Neufeld, 2020). Quanto а funзгo restauradora, esta relaciona-se ao cuidado e ao bem-estar do terapeuta em formaзгo, o que implica considerar a relaзгo interpessoal estabelecida no processo supervisionado, a fim de promover suporte emocional (Barletta & Neufeld, 2020). A relaзгo interpessoal em supervisгo й, portanto, um moderador no processo de aprendizagem e estб associada a fatores como a percepзгo do terapeuta sobre a experiкncia em supervisгo, a sua satisfaзгo com esse processo e a quais informaзхes os terapeutas disponibilizam no processo supervisionado (Barletta & Neufeld, 2020; Falender, 2014).
Os aspectos que funcionaram ao longo do processo de supervisгo incluнram o treinamento com foco nas discussхes de textos sobre tуpicos como desenvolvimento infantil, intervenзхes de promoзгo da saъde na escola e intervenзхes em TCC em grupos. Esses temas despertaram muito interesse dos alunos, que pediram leituras extras para aprofundamento. Aspectos de manejo de intervenзгo em grupos com crianзas eram treinados com bastante frequкncia, e as supervisoras estimulavam o treinamento por meio de role-play, que, apesar de ser bastante ansiogкnico no inнcio do estбgio, foi se tornando mais natural e mesmo solicitado pelos estagiбrios ao longo do semestre. Para as supervisoras, foi muito importante observar a abertura dos estagiбrios e o crescimento em direзгo а aquisiзгo de competкncias clнnicas, alйm do engajamento nas propostas que enfatizavam autorreflexгo.
Por fim, destaca-se que os frameworks de competкncias (Roth et al., 2008) se configuraram guias para a atuaзгo das supervisoras em um modelo muito mais amplo, que visa а aprendizagem experiencial, teуrica e reflexiva. O desenvolvimento de competкncias, como bem sublinhado pela literatura, nгo ocorre de forma estanque e de maneira linear, mas se trata de um processo complexo e que lanзa mгo de uma sйrie de recursos pedagуgicos ancorados tanto na literatura sobre supervisгo baseada em competкncias como nas prбticas baseadas em evidкncias e na TCC.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve por objetivo relatar a experiкncia sobre o processo de supervisгo baseado em competкncias em um estбgio com o propуsito de conduzir um programa de promoзгo da saъde em grupo para crianзas, no contexto de uma universidade pъblica. Apesar de configurar-se como uma proposta recente, a literatura pautada em prбticas baseadas em evidкncias recomenda o modelo de supervisгo baseado em competкncias, que faz uso de uma estrutura sistemбtica e de mйtodos educativos para promover processos de aprendizagem (Barletta, & Neufeld, 2020; Gonsalvez et al., 2021). A implementaзгo desse modelo de supervisгo mostrou-se alinhada com as recomendaзхes da literatura sobre prбticas baseadas em evidкncias, oferecendo uma estrutura sistemбtica e metodologias que promoveram processos de aprendizagem significativos para os estagiбrios-terapeutas.
Ao longo do estбgio, observou-se que a supervisгo baseada em competкncias nгo apenas facilitou a aquisiзгo de conhecimentos teуricos e prбticos, mas tambйm fomentou o desenvolvimento de habilidades reflexivas. As metodologias ativas utilizadas, como role-plays, discussхes guiadas e autorreflexгo, foram fundamentais para consolidar as competкncias necessбrias para a intervenзгo eficaz em grupos infantojuvenis. A prбtica deliberada e a gravaзгo das sessхes foram ferramentas valiosas que permitiram feedback imediato e especнfico, reforзando a importвncia de uma supervisгo detalhada e baseada em evidкncias. A presenзa constante das supervisoras, oferecendo suportes emocional e tйcnico, foi crucial para criar um ambiente seguro e propнcio para a aprendizagem, permitindo que os estagiбrios pudessem explorar e aprimorar suas habilidades de forma contнnua. A continuidade e a expansгo de programas como o PRHAVIDA sгo essenciais para garantir intervenзхes de qualidade e para promover saъde mental na infвncia, destacando a importвncia de ensino e de supervisгo fundamentados em competкncias.