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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.61 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009
RELATO DE PESQUISA
Percepção das figuras parentais na rede de apoio de crianças e adolescentes institucionalizados1
Perception of parental figures in institutionalized children and adolescents' support network
Aline Cardoso SiqueiraI; Carmela de Lima TubinoII; Cristina SchwarzIII; Débora Dalbosco Dell'AglioIV
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil
IVUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil
RESUMO
Este estudo investigou a rede de apoio social e afetivo e, em especial, a percepção das figuras parentais na rede de crianças e adolescentes institucionalizados. Participaram 146 crianças e adolescentes, com idades entre 7 e 16 anos (M=11,1; DP=2,04), sendo que 81,5% são de abrigos governamentais e 18,5%, de abrigos não governamentais da região metropolitana de Porto Alegre. Os instrumentos utilizados foram uma entrevista semiestruturada e o Mapa dos Cinco Campos. Os resultados indicaram que 59,4% dos participantes mantêm contato com suas famílias. Quanto à rede de apoio, o campo Abrigo apresentou maior média de contatos, sendo considerado a principal fonte de apoio, e o campo Família apresentou contatos de maior proximidade. Observou-se diferença na percepção das figuras parentais, sendo que a figura materna foi percebida como mais presente e próxima do que a figura paterna. A percepção positiva associada ao campo Família e às figuras parentais sugere uma idealização da família e leva à discussão sobre o distanciamento entre "vivido" e "pensado".
Palavras-chave: Rede de apoio; Família; Figuras parentais; Institucionalização.
ABSTRACT
This study investigated the social and emotional support network and especially the perception of parental figures in institutionalized children and adolescents. The participants were 146 children and adolescents of age between 7 and 16 years, from governmental (18.5%) and non-governmental (81.5%) shelters of Porto Alegre's metropolitan area. A semi-structured interview and Five Field Map were used. The results indicated that 59.4% of participants have contact with their families. As for the support network, the Shelter field featured higher average of contacts and was considered the main source of support, while contacts featured in the Family field were perceived as closer. A difference in the perception of the parental figures was observed; the maternal figure was perceived as closer and more present than the paternal figure. The positive perception associated to the Family field and to parental figures suggests an idealization of the family and leads to a discussion on the distance between "lived" and "thought".
Keywords: Support network; Family; Parental figures; Institutionalization.
A família de crianças e adolescentes institucionalizados tem sido importante tema de investigação entre os pesquisadores da área da infância e juventude em situação de risco. Segundo o Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes (SILVA, 2004), cerca de 20 mil crianças e adolescentes abrigados vivem em situação de institucionalização no Brasil, sendo que 87% desses possuem família e 58% mantêm vínculo com seus familiares. Esses dados levam a pensar na qualidade dos vínculos que estes jovens construíram com seus familiares, na representação de família que eles possuem, entre outros aspectos-chave. Tais indagações, mais do que instigar respostas, problematizam o papel da família e, principalmente, das figuras parentais na história de vida dessas crianças e adolescentes. Dessa forma, este estudo teve por finalidade investigar a rede de apoio social e afetivo, em termos de estrutura e função, além de verificar a percepção das figuras parentais na rede de crianças e adolescentes que vivem em abrigos de proteção da região metropolitana de Porto Alegre, RS.
1 FAMÍLIA E PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO
A escolha pelo estudo e pela discussão acerca da família não é, certamente, uma tarefa simples. Encontra-se uma variedade de enfoques que refletem diferentes referenciais teóricos e metodológicos. Conforme destaca Kehl (2003), renova-se a evidência de que a família não é mais a mesma. A autora destaca a existência de uma comparação entre a família atual e um padrão ideal de família. Tal comparação indica a existência de uma crença de que a família já teria correspondido a esse modelo idealizado que, segundo a autora, teria atendido às necessidades da sociedade burguesa em meados do século XIX. As classes médias brasileiras, por sua vez, teriam adotado tal ideal.
A atual família nuclear, assim, tornou-se modelo de estrutura familiar na maioria das sociedades industrializadas, caracterizado pela divisão dos papéis de homem e mulher, de pais e filhos, seguindo uma hierarquia de poder típica do seu funcionamento. Historicamente, esta configuração rompe com modos e costumes de épocas anteriores, isola a família em seu lar, onde o marido/pai passa a ser o provedor do sustento da família; e a mulher, a responder pela vida doméstica e pela educação dos filhos, a qual se constitui na principal preocupação do casal (ARIÈS, 1986). Assim, a família nuclear vinha sendo, ao longo dos anos, referência de organização familiar, cujo foco prioritário estava na sua estrutura econômica e não na qualidade das relações afetivas entre seus membros (COSTA, 2005).
Com o intuito de revisar essa concepção de família nuclear, Gomes (1994) descarta, a priori, a ideia de um modelo baseado em um único padrão de organização. Caso esse modelo ideal não seja superado, as experiências das famílias que fogem desse modelo podem não ser legitimadas. Os valores conservadores e as crenças familiares tradicionais prescritas pela sociedade influenciam a vida dos indivíduos, uma vez que não vivenciar esse padrão de família pode levar ao sofrimento psíquico (NARVAZ; KOLLER, 2005). Poder, então, apropriar-se dessas múltiplas configurações familiares é dar lugar, no social, para algo que extravasa um padrão ideal de família, legitimando a vivência de cada grupo familiar, com suas peculiaridades e diversidades (KEHL, 2003).
Costa (2005) declara que o termo família tem designado instituições e agrupamentos sociais bastante diferentes entre si, do ponto de vista de sua estrutura e funções. Assim, observa-se que o entendimento atual de família não está mais atrelado necessariamente à concepção de família nuclear, composta de mãe, pai e filhos, seguindo o modelo tradicional patriarcal. A noção de família tem se ampliado à medida que procura incluir e compreender as diferentes relações entre os seus membros. Para Szymanski (1992), família é entendida como um grupo de pessoas que convivem entre si em uma relação duradoura, ocupando o mesmo espaço físico e social, com um tipo especial de relações interpessoais, com indivíduos que se respeitam e mantêm vínculos afetivos, em que mães e pais educam seus filhos conjuntamente ou com pessoas que mantêm um cuidado com os membros mais jovens ou mais idosos ou, ainda, cuidados mútuos entre si, independentemente de parentesco. Percebe-se na família urbana de nível socioeconômico desfavorecido a predominância de um modelo matrifocal, aquele que se organiza em torno da mulher, quando não há um companheiro, podendo, contudo, assumir uma forma patriarcal, quando há um companheiro presente. De acordo com estudos realizados na periferia de São Paulo (SZYMANSKI, 1992), o núcleo familiar, nessa perspectiva atual, passa a ser constituído pela mulher e seus filhos, não se desfazendo com a saída do homem. A família se constitui a partir da decisão de algumas pessoas de conviverem, assumindo o compromisso de uma ligação duradoura entre si, incluindo uma relação de cuidado entre adultos e deles com as crianças. O cuidado das crianças, entretanto, recai sobre a mulher, com quem os filhos possuem uma ligação mais intensa.
As considerações acerca da configuração de família são importantes temas de discussão na atualidade, especialmente quando se referem a famílias de nível socioeconômico desfavorecido. Segundo dados do Censo Demográfico realizado em 2000 (IBGE, 2000), o percentual de famílias cuja pessoa responsável pelo domicílio é a mulher, no Brasil, vem aumentando ao longo dos anos e passou de 7,7 milhões, em 1991, para 12,8 milhões, em 2000. Além disso, cerca de 28,6% das famílias chefiadas por mulheres possuíam renda mensal de até meio salário mínimo per capita. Esses resultados mostram que, na realidade brasileira, muitas famílias chefiadas pela figura materna têm vivido em situação de empobrecimento e miséria. A pobreza, a monoparentalidade, o desemprego, a baixa escolaridade dos cuidadores, as práticas educativas coercitivas, a hostilidade nas relações familiares, a presença de doença física e/ou mental, a família numerosa, entre outros fatores associados, dificultam a tarefa de cuidar dos filhos, colocando em risco o desenvolvimento e o bem-estar das crianças e dos adolescentes (MASTEN; GARMEZY, 1985; REPPOLD; PACHECO; HUTZ, 2005; SEIFER et al., 1992). Para Saraiva (2002), a falta de recursos materiais básicos está presente em famílias com precárias condições de estrutura, o que tem como um de seus resultados a comum situação de negligência em relação à educação dos filhos ou ao seu abandono. Esses aspectos podem levar à institucionalização dessas crianças e adolescentes, visto que a família, nessas condições, não desempenha o papel de cuidadora, fornecedora de apoio e proteção, apresentando inúmeros fatores de risco.
O abrigamento é previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) como uma das medidas de proteção utilizada sempre que os direitos das crianças e dos adolescentes se encontram ameaçados ou violados. Não implica privação de liberdade, mas leva ao afastamento dos jovens daqueles que foram os facilitadores ou perpetradores da violência e/ou da situação de risco. Se, por um lado, o abrigamento configura uma alternativa para cessar o processo de risco no qual a criança e/ou o adolescente está envolvido, configura-se também uma dupla situação de abandono: abandono da criança, que é privada do convívio familiar, e abandono da família que, por razões diversas, não conseguiu sustentar seu papel de cuidado. Para Rizzini (s.d.), ainda existe uma cultura de institucionalização, na qual as crianças em situação de pobreza, violência e abandono no Brasil são colocadas em instituições do tipo asilar que objetivam tirá-las do abandono, protegê-las e confiná-las. Essa prática reflete um descrédito na família de origem e o estereótipo de incapacidade e de incompetência das famílias pobres para criar seus filhos. As famílias, no processo de institucionalização de seus filhos, também são abandonadas em sua pobreza, em sua desinformação, alienação e isolamento social, sendo destituídas da condição de cuidadoras de suas crianças e excluídas do processo de decisão sobre o encaminhamento de seu caso e sobre as medidas determinadas pelos órgãos sociais responsáveis (RIZZINI, s.d.).
Da mesma forma que a família, a institucionalização pode ou não ser vivenciada como um risco para o desenvolvimento. Essa condição dependerá dos mecanismos pelos quais os processos de risco operarão seus efeitos negativos sobre as crianças e os adolescentes abrigados (YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004). Aspectos como acolhimento inadequado no momento do abrigamento, hostilidade entre crianças e monitores, práticas educativas coercitivas, rotatividade de funcionários e não disponibilidade de investimento emocional podem ser considerados fatores de risco na institucionalização. Apesar do reordenamento institucional preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), a realidade de muitas instituições de abrigo no Brasil ainda é semelhante à realidade das antigas instituições totais descritas por Guirado (1986). Estudos atuais mostram que ainda existe, em muitas instituições de abrigo, uma ausência de preocupação com a individualidade dos abrigados e com a conservação de laços familiares e, ainda, a presença de práticas educativas coercitivas e de violência no cotidiano das instituições (CABRAL, 2002; GOFFMAN, 1974; GUIRADO, 1986; MARIN, 1999; PRADA; WILLIAMS; WEBER, 2007; SARAIVA, 2002; WEBER; KOSSOBUDZKI, 1996). Ao estudar a representação que o ex-interno, na maioridade, fazia do período que passou abrigado, Altoé (1990) constatou que o relato foi marcado por ambivalências. De um lado, uma idealização da vivência institucional e, de outro, duras críticas relacionadas às vivências negativas, tais como a falta de carinho e a falta de liberdade para conversar com outros internos e/ou com os funcionários. Abreu (2000), com o objetivo de investigar a prevalência de transtornos psiquiátricos entre jovens institucionalizados, constatou que quase metade desses jovens (49,2%) apresentou algum, sendo o depressivo o mais frequente. Silva (1997) enfatizou o aspecto negativo da institucionalização, ressaltando que o processo de socialização que se dá nos abrigos, pela interação com grupos de risco e pela utilização de mecanismos de resistência, contribui para a construção de uma "identidade institucional", a qual poderá evoluir para uma "identidade delinquente", consolidada pela reincidência e pela multirreincidência. Essas características e condições de atendimento têm sido destacadas na literatura e acarretam prejuízos ao desenvolvimento de crianças e adolescentes institucionalizados.
Em contrapartida, inúmeros fatores de proteção podem estar presentes no contexto do abrigo, tais como acolhimento no momento do abrigamento, compreensão e respeito às histórias individuais de cada um, vinculação afetiva entre os abrigados e entre eles e os funcionários/monitores, sentimento de proteção, melhorias nas condições físicas de moradia e alimentação, reinserção escolar, entre outros. Esses fatores favorecem o estabelecimento de novos relacionamentos e possibilitam o contato com uma estrutura organizada (GULASSA, 2006; SIQUEIRA; DELL'AGLIO, 2006; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004). Arpini (2003), em seu estudo com adolescentes de classes populares, indicou a percepção positiva que certos adolescentes possuíam sobre a institucionalização, afirmando que o abrigo forneceu segurança e proteção no momento em que mais precisavam. Oliveira (2006), a partir de entrevistas também com adolescentes, constatou que o abrigamento possibilitou para esses jovens a participação na comunidade local, possibilitando o estabelecimento de novas redes socioafetivas e oportunizando vivências qualificadas. Dessa maneira, as pesquisas sobre institucionalização na realidade brasileira demonstram que não há consenso no que se refere aos seus efeitos, visto que alguns estudos têm apontado os aspectos prejudiciais e outros, os processos de desenvolvimento possíveis nessa realidade (ABREU, 2000; ALTOÉ, 1990; ARPINI, 2003; CABRAL, 2002; GUIRADO, 1986; GULASSA, 2006; OLIVEIRA, 2006; PRADA; WILLIAMS; WEBER, 2007; SARAIVA, 2002; RIZZINI, s.d.; SIQUEIRA; DELL'AGLIO, 2006; SILVA, 1997; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004; WEBER; KOSSOBUDZKI, 1996).
A instituição assume um importante papel na vida das crianças e adolescentes que vivem em abrigos. É nesse contexto que eles desenvolvem atividades planejadas, lúdicas e escolares, cooperam e disputam com outras crianças e adolescentes, assumem uma rotina de limpeza e higiene, além de estabelecer relações afetivas com pares e adultos do abrigo. Assim, da mesma forma que a família, a instituição passa a constituir parte da rede de apoio social e afetivo das crianças e adolescentes institucionalizados (SIQUEIRA; BETTS; DELL'AGLIO, 2006). A rede de apoio social é entendida como um conjunto de sistemas e de pessoas que compõem os elos de relacionamentos de um indivíduo (BRITO; KOLLER, 1999). Essa rede se mantém em constante construção, à medida que a pessoa vai se inserindo em novos e diferentes contextos e grupos sociais, assumindo novos papéis na comunidade da qual faz parte. Segundo Garmezy e Masten (1994), a rede de apoio contribui para o aumento da competência individual, reforçando a autoimagem e a autoeficácia. Esses elementos estão associados à saúde e ao bem-estar dos indivíduos (MASTEN; GARMEZY, 1985; RUTTER, 1987), operando como importantes fatores de proteção. As redes de apoio podem ser avaliadas a partir de três dimensões diferentes: número de elos da pessoa com o ambiente, frequência de transações de apoio e de reciprocidade e, por último, avaliação subjetiva no que tange à satisfação com esses elos e a percepção da proximidade ou intimidade com seus integrantes (BARRERA, 1986). A rede de apoio social é amplamente descrita em termos estruturais e funcionais. Estrutura refere-se à existência da rede, e função está relacionada às características e qualidades das relações na rede de apoio. De acordo com Brito (1999), a rede de apoio social tem uma estrutura que dependerá da densidade e da multiplicidade das relações estabelecidas, do número de membros participantes e do tipo de ligação que esses têm com o sujeito. Sua dimensão funcional tem características e qualidades associadas ao grau de satisfação e segurança proporcionado, tendo em vista que funciona como um apoio instrumental, emocional, cognitivo, afetivo, de cuidado, de valor ou de conhecimento. Samuelsson, Thernlund e Ringström (1996) ressaltaram a importância de se caracterizar a estrutura e a função do apoio percebido, a fim de avaliar a rede de apoio social e afetivo de um ser humano.
Estudos têm apontado diferentes tipos de apoio percebido. Para Wills, Blechman e McNamara (1996), os mais relevantes são o emocional, instrumental e informacional. O apoio emocional está relacionado à disponibilidade de conversar e dividir problemas, por meio de uma relação de confiança, sendo considerado o mais efetivo para reduzir os efeitos negativos de uma situação adversa. O instrumental está associado à ajuda e à assistência em tarefas, tais como oferecer transporte, dinheiro e auxílio nas tarefas escolares. E por último, o apoio por meio de informações se refere à disponibilidade de orientação e informação a respeito dos recursos da comunidade. O estudo de Siqueira, Betts e Dell'Aglio (2006) é um exemplo de pesquisa que investigou a percepção de rede de apoio de adolescentes institucionalizados. Esse estudo indicou que os diretores, técnicos, monitores e voluntários dos abrigos foram os principais fornecedores de apoio afetivo e emocional desses adolescentes. Por outro lado, o contexto familiar é considerado uma fonte de apoio essencial e mais próxima para muitas crianças e adolescentes e, em situações de estresse, pode ajudá-los a manter um senso de estabilidade e de superação (HERMAN-STAHL; PETERSEN, 1996), mesmo que o relacionamento positivo seja com apenas um dos pais (PTACEK, 1996).
A partir dessas considerações, torna-se importante conhecer a rede de apoio de jovens institucionalizados, em termos de estrutura e função. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi investigar a rede de apoio social e afetivo de crianças e adolescentes institucionalizados e, especialmente, verificar a percepção das figuras parentais desses jovens.
2 MÉTODO
2.1 PARTICIPANTES
Participaram 146 crianças e adolescentes de ambos os sexos, com idades entre 7 e 16 anos (M=11,1; DP=2,04), sendo que 81,5% estavam em abrigos governamentais e 18,5% estavam em abrigos não governamentais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. São crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por medida de proteção judicial, em função de terem sido expostas a situações de risco, como maus-tratos, negligência, abandono, violência física, sexual e psicológica. O tempo de institucionalização variou de 1 a 151 meses (M=36,56; DP=35,05) e a escolaridade, de nunca estudou à 8ª série do Ensino Fundamental, sendo que 61,6% cursavam até a 3ª série em escolas públicas. O único critério de exclusão foi possuir deficiência mental e/ou cognitiva que pudesse interferir no entendimento dos instrumentos. Essa informação foi obtida com os técnicos dos abrigos.
2.2 INSTRUMENTOS
Neste estudo, foram utilizados como instrumentos: (1) Entrevista semiestruturada: teve por objetivo estabelecer um rapport e levantar dados biossociodemográficos dos participantes como idade, sexo, escolaridade, constituição familiar, entre outros aspectos; (2) Mapa dos Cinco Campos (SAMUELSSON; THERNLUND; RINGSTRÖM, 1996, versão adaptada por SIQUEIRA; BETTS; DELL'AGLIO, 2006): é um instrumento que avalia estrutura, que corresponde à quantidade de relações estabelecidas na rede; e função, que está relacionada à qualidade dessas relações, a partir de cinco campos: Família, Abrigo, Escola, Amigos/Parentes e Contatos Formais (Figura 1). O campo Contatos Formais representa os lugares que o participante costuma frequentar, como igreja, Conselho Tutelar, clube, posto de saúde, entre outros, e que não estão contemplados nos outros quatro campos.
O instrumento é constituído por um feltro e por figuras que representam adultos, adolescentes e crianças, coloridas de acordo com o sexo (azul = masculino e rosa = feminino) e diferenciadas pelo tamanho. As figuras são utilizadas representando, no aparato, as pessoas que compõem a rede de apoio social e afetivo em cada campo, transformando a tarefa em um jogo atrativo e lúdico. Esse instrumento também permite que pessoas já falecidas sejam consideradas parte da rede de apoio, em função da consideração subjetiva da percepção da rede. O círculo central corresponde ao participante, e cada círculo adjacente mede a qualidade do vínculo, ou seja, quanto mais perto do círculo central, maior é a percepção de proximidade do participante com a pessoa representada: o primeiro e o segundo círculos correspondem às relações mais próximas (maior vínculo); o terceiro e o quarto círculos correspondem às relações mais distantes (menor vínculo); e o último círculo, na periferia do Mapa, corresponde aos contatos insatisfatórios. Os dados obtidos são anotados em uma folha de registro, com informações sobre o grau de satisfação/insatisfação no Campo e a existência de conflitos e rompimentos nas relações (HOPPE, 1998). Os dados do Mapa dos Cinco Campos (adaptado por SIQUEIRA; BETTS; DELL'AGLIO, 2006) foram avaliados de acordo com os seguintes aspectos:
1) Estrutura da rede: avaliada pelo número de contatos em toda a rede e por campo.
2) Funcionalidade da rede: a partir dos seguintes aspectos: (1) média e desvios-padrão dos contatos em cada círculo adjacente ao centro, que representam os níveis de proximidade; (2) média e desvios-padrão dos conflitos e rompimentos; (3) fator de proximidade total da rede e por campo. O fator de proximidade é uma variável que representa o grau de vinculação dos participantes com o número de pessoas citadas nos campos, sendo medido pela localização dessas pessoas em relação ao círculo central, no qual está o participante. Para o cálculo desse escore, o número de pessoas colocadas no primeiro nível é multiplicado por oito; no segundo nível, por quatro; no terceiro nível, por dois; no quarto nível, por um; e no quinto nível, por zero. O somatório desse cálculo é dividido pelo número total de pessoas citadas no campo, para a média de proximidade no campo, ou pelo número total de pessoas citadas no Mapa, para a média de proximidade no instrumento. Esse fator varia de 0 a 8, sendo que escores entre 0 e 2,6 são considerados de pequena força; entre 2,7 e 5,3, média força; e entre 5,4 e 8, grande força de proximidade.
3) Percepção das figuras parentais na rede: percepção da qualidade da relação com as figuras parentais (figura materna e paterna) a partir da localização de ambos nos níveis do instrumento. Nesse estudo, entende-se por "figuras parentais" aquelas pessoas que foram consideradas mães e pais pelos participantes, não necessitando a existência de vínculo consanguíneo. Assim, uma avó e uma mãe de criação puderam ser consideradas como figuras maternas e um tio ou um amigo, como figuras paternas.
Por fim, após o término da aplicação do instrumento, foi solicitado ao participante responder duas questões: (1) "Com qual dessas pessoas que você citou no Mapa você mais pode contar?", e (2) "Que tipo de apoio ela lhe dá?". A primeira questão indica a principal fonte de apoio percebida e a segunda, o tipo de apoio fornecido.
2.3 PROCEDIMENTOS E CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Os procedimentos utilizados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética na Pesquisa com Seres Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Inicialmente, esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, após sua aprovação (processo nº 2006533), as diretorias técnicas dos abrigos foram contatadas. Com a assinatura do "Termo de Concordância", as diretorias autorizaram a realização do estudo. As crianças e adolescentes, que cumpriam os critérios de inclusão e exclusão da amostra, foram convidados a participar do estudo, após os esclarecimentos sobre os procedimentos, o caráter voluntário, a confidencialidade e o sigilo das informações. O "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" foi fornecido para os participantes acima de 12 anos, e os abaixo dessa idade consentiram verbalmente. A participação foi voluntária, e o participante poderia interrompê-la a qualquer momento. A coleta de dados foi realizada por uma equipe de pesquisadores, que incluiu alunas da Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da UFRGS. Os participantes responderam aos instrumentos de forma individual em seus horários livres, entre os meses de abril e junho de 2006, em salas cedidas pelos próprios abrigos.
3 RESULTADOS
A análise dos dados foi realizada de forma quantitativa e qualitativa. Os dados da entrevista e do instrumento foram digitados no programa SPSS 13.0 for Windows para a realização da análise quantitativa descritiva e inferencial. As respostas das duas questões que investigam a principal fonte de apoio e o tipo de apoio fornecido foram analisadas qualitativamente, a partir da identificação de categorias de análise (BARDIN, 1979).
3.1CARACTERIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS
Para compreender a percepção de família dos participantes, foi analisada a questão "Quem são as pessoas que fazem parte da sua família?". Em 38,2% dos casos, os participantes consideraram como família os membros da família nuclear (figura materna, paterna e irmãos) e membros da família extensa (avós, tios(as), primos(as), dentre outros familiares); em 34,4% dos casos, eles consideraram somente os membros da família nuclear; e em 27,5% dos casos, consideraram, além da família nuclear e extensa, outras pessoas, como membros dos abrigos (pais sociais, monitores; crianças e adolescentes com quem conviviam no abrigo). Constatou-se que em 73,6% dos casos as figuras parentais não vivem mais juntas, ao passo que em 17,1%, elas vivem juntas, e em 9,3% dos casos, os participantes não souberam informar. Apesar de identificar a alta ocorrência da separação das figuras parentais, não foi possível mapear a atual configuração familiar, visto que muitos participantes desconheciam a situação da família. Além disso, por meio das explicações dos participantes sobre a paternidade dos irmãos, pode-se constatar uma instabilidade quanto a essas configurações familiares, em função de idas e vindas e das mudanças relacionadas aos companheiros da mãe, apontando a dinamicidade do fenômeno.
Com relação ao contato com os membros da família de origem, os resultados revelaram que esse era mantido em 59,4% dos casos, sendo que em 23,8%, o contato era semanal; em 12,6%, era quinzenal; em 6,3%, era mensal e em 7%, o contato era esporádico ou raro. Em 9,1% dos casos, os participantes mantinham contato com sua família, porém não sabiam informar a frequência dos encontros.
3.2 ESTRUTURA E FUNCIONALIDADE DA REDE DE APOIO SOCIAL E AFETIVO
A análise do Mapa dos Cinco Campos, quanto à estrutura da rede, apontou uma média total de 31,73 (DP=15,18). Os participantes indicaram uma média de contatos maior no Campo Abrigo (M=9,28; DP=5,95), seguido dos campos Família (M=7,66; DP=4,8), Escola (M=6,19; DP=4,24), Amigos/Parentes (M=5,33; DP=4,71) e Contatos Formais (M=3,3; DP=3,38). Neste último, os participantes incluíram uma ampla gama de instituições, profissionais da Educação e Saúde como, por exemplo, Conselho Tutelar, psicóloga clínica, médico, dentista, professores e/ou colegas de algum curso ou atendimento socioeducativo dos quais participam, e mesmo os padrinhos afetivos (do Programa de Apadrinhamento Afetivo).
Com relação à funcionalidade da rede, observou-se uma média de 19,82 (DP=13,91) contatos no primeiro nível; 5,64 (DP=5,92) no segundo; 2,17 (DP=3,27) no terceiro; 1,44 (DP=3,12) no quarto; e 2,51 (DP=2,82) no nível dos contatos insatisfatórios. As médias de contatos satisfatórios, insatisfatórios, conflitos, rompimentos e fator de proximidade nos cinco campos são apresentadas na Tabela 1. Observa-se que o campo Abrigo apresentou maior média de contatos satisfatórios, insatisfatórios e conflitos e o fator de proximidade de cada campo pode ser classificado como de grande força.
3.3 FIGURAS PARENTAIS NA REDE DE APOIO
Com relação à presença das figuras parentais na rede de apoio das crianças e adolescentes institucionalizados, em 21,2% e 42,1% dos casos, a figura materna e a figura paterna, respectivamente, não foram citadas. A Figura 2 apresenta a percentagem da presença das figuras parentais nos níveis de proximidade.
A localização das figuras parentais no Mapa foi observada. Para tanto, consideraram-se os graus de proximidade enquanto uma escala de cinco pontos, sendo que quanto mais longe do centro as figuras parentais estiverem, maiores serão suas médias. Dessa forma, constatou-se que a figura materna obteve média de localização de 2,34 (DP=2,05) e a figura paterna, 3,46 (DP=2,38), sendo essa diferença significativa (t=5,7; gl=132; p<0,01). Esse resultado aponta que a figura materna foi percebida como mais próxima do que a figura paterna.
Uma análise foi realizada com o intuito de verificar se a relação com as figuras parentais foi considerada como satisfatória ou insatisfatória, e a existência de conflito e rompimento com as mesmas, considerando sexo e faixa etária (Tabela 2). Pode-se observar que, quanto à figura materna, houve maior percentual de conflitos e rompimentos entre as meninas e entre as adolescentes. Quanto à figura paterna, observou-se maior percentual de insatisfação (entre os meninos) e de conflitos (entre os adolescentes). No entanto, só foi observada associação significativa entre conflito com a figura materna e faixa etária (c2;=5,75; gl=1; p<0,02).
3.4 Fonte e Tipo de Apoio Percebido
Ao final da aplicação do instrumento, foram realizadas as seguintes questões: (1) "Com qual dessas pessoas, que você citou, você mais pode contar?", e (2) "Que tipo de apoio ela lhe dá?". A primeira questão indica a principal fonte de apoio percebida e a segunda, o tipo de apoio fornecido. As respostas atribuídas à primeira questão foram categorizadas levando em consideração o tipo de relação e de vínculo estabelecido entre o participante e a figura de apoio citada. Por exemplo, como fonte de apoio, um menino respondeu ser a sua irmã mais velha. Essa resposta foi incluída na categoria "Família". As categorias identificadas são as seguintes: (1) Família: os membros da família como a mãe, o pai e os irmãos; (2) Abrigo: os membros do abrigo, como os monitores, funcionários, diretor do abrigo, pais sociais, assistente social e padrinhos afetivos; (3) Vizinhos e Parentes: os vizinhos, avós, tios, entre outros parentes; (4) Pares: crianças e adolescentes com quem o participante mantinha vínculo de amizade; e (5) Outros: profissionais da Saúde e Educação e as relacionadas ao Conselho Tutelar. A categoria Abrigo foi citada como principal fonte de apoio por 31,6% dos participantes, seguida das categorias Pares, em 24,1%; Família, em 22,6%; Vizinhos e Parentes, em 15%; e Outros, em 6,8%. A figura materna foi considerada a principal fonte de apoio por 16 participantes (12,03%) e a figura paterna, por 5 (3,76%).
Em relação ao tipo de apoio fornecido, uma análise de conteúdo (BARDIN, 1979) foi utilizada, possibilitando a identificação das três categorias de apoio, semelhantes às propostas por Wills, Blechman e McNamara (1996) e Siqueira, Betts e Dell'Aglio (2006):
1. Apoio Emocional e Afetivo: englobou respostas que faziam referência ao recebimento de afeto e proteção. Esse apoio é recebido como confiança, disponibilidade de ouvir, compartilhar preocupações, medos e compreender seus problemas, como pode ser observado nos seguintes relatos: "dão carinho e amor para nós"; "ela me escuta quando eu tô brabo, ela me acalma"; "quando tô triste ela dá abraço, me dá o amor dela"; "ela confia em mim e eu confio nela"; etc.
2. Apoio Instrumental: incluiu respostas relacionadas ao fornecimento de algum tipo de ajuda material, ao recebimento de meios para que o participante resolvesse seus problemas e situações do dia-a-dia, ou mesmo quando a pessoa procurada resolvia seus problemas. Como é identificado nos exemplos: "ajuda nos temas"; "empresta a borracha e tudo que precisa"; "leva pro hospital"; "compra material escolar"; "me enche de roupa"; "leva a restaurantes"; "arruma vaga no colégio"; "ajuda nas atividades"; "liga para meus irmãos"; entre outros exemplos.
3. Apoio Informacional:reuniu as respostas em que havia referência ao recebimento de sugestões, conselhos, informações e explicações desejadas, que ajudaram o participante a sentir-se orientado. A seguir, alguns exemplos dessa categoria: "dá conselhos bons"; "dão conselho"; "diz para respeitar as regras senão coloca de castigo"; "ele fala o que acha certo e errado"; "ela te educa, ensina a não brigar"; entre outros.
As explicações mencionadas pelos participantes sobre o tipo de apoio fornecido foram categorizadas e avaliadas por dois juízes, resultando em 96,5% de concordância. Uma mesma resposta poderia apresentar mais de um tipo de apoio, tendo sido realizadas análises considerando o total de respostas. Assim, foram encontrados 206 itens de respostas. Constatou-se que o principal tipo de apoio foi o apoio instrumental (41,26%); seguido do apoio emocional e afetivo (37,86%) e do apoio informacional (20,88%). Considerando os itens relacionados às figuras parentais (n=24), foi investigada a frequência dos tipos de apoio fornecidos pelas mesmas. O apoio instrumental foi associado à figura materna em 41,66% dos itens e à figura paterna, em 8,33%; o apoio emocional e afetivo foi associado à figura materna em 33,33% das respostas e à figura paterna em 8,33%; e o apoio informacional foi relacionado à figura materna em 8,33% das respostas, não sendo identificada resposta alguma referente a esse tipo de apoio relacionado à figura paterna.
4. DISCUSSÃO
A família, na maioria dos casos, foi percebida como próxima e como importante ou principal fonte de apoio dos participantes. Para essas crianças e adolescentes, tanto os membros da família nuclear quanto os da família extensa foram considerados parte de suas famílias. Esse resultado sugere que familiares como tios(as), primos(as) e avôs(ós) são pessoas presentes na trajetória de vida desses jovens, responsabilizando-se, em muitos casos, pela sua educação durante um período de tempo. Fonseca (1987, 1995, 2002), ao investigar o sistema de parentesco em famílias de grupos populares de Porto Alegre/RS, identificou a forte influência que os membros da família extensa exerciam no núcleo familiar, inclusive assumindo a criação dos filhos. É comum uma criança passar parte da infância ou da juventude na casa de pessoas que não sejam seus genitores, como com os avós e tias. Segundo a autora, essa prática estimula o fortalecimento da rede social familiar e reforça a solidariedade do próprio grupo familiar, como também expressa a importância da família extensa no sistema de parentesco brasileiro (FONSECA, 1995).
Outra característica da configuração familiar encontrada na amostra é a alta ocorrência de separação dos pais: mais de 70% mencionaram ter pais separados. Esse dado, de acordo com pesquisas demográficas nacionais (IBGE, 2002), é apontado como um fenômeno frequente na contemporaneidade, especialmente nas famílias empobrecidas (FEIJÓ; ASSIS, 2004).
O contato com a família de origem vem sendo mantido por mais da metade dos participantes, corroborando achados da pesquisa de Silva (2004) em abrigos do Brasil, na qual 58% das crianças e adolescentes abrigados mantêm contato com familiares. No presente estudo, enquanto 59,4% mantêm contato com a família de alguma forma, 39,9% relataram ausência de contato e 7%, contato esporádico e/ou raro. Para Dell'Aglio, Borges e Santos (2004), o afastamento do convívio familiar pode comprometer o vínculo com pais e irmãos. Esses dados levam a pensar se o afastamento do convívio familiar e o comprometimento desses vínculos podem afetar a construção da história de vida das crianças e adolescentes que vivem em situação de abrigamento.
No que se refere à estrutura das redes de apoio, a média total de 31 contatos encontrada neste estudo foi semelhante à média encontrada na pesquisa com adolescentes institucionalizados (36 contatos) de Siqueira, Betts e Dell'Aglio (2006). O campo Abrigo se destacou por apresentar maior média total de contatos na rede de apoio. Tendo em vista que o contexto institucional é composto por muitas crianças, adolescentes e outros adultos cuidadores e educadores, é compreensível que essa maior multiplicidade de relações reflita nos contatos da rede, em decorrência da possibilidade de inúmeras trocas interpessoais nesse contexto.
Com relação à funcionalidade da rede, isto é, à qualidade e satisfação das relações estabelecidas nos diferentes campos, um aspecto que parece importante diz respeito ao vínculo das crianças e adolescentes em cada contexto investigado. Foi possível identificar que os campos Abrigo e Família constituem os contextos de maior importância para os participantes. Considerando esses dois contextos, a análise possibilitou a identificação de importantes diferenças entre os mesmos. O campo Abrigo apresentou maior média de contatos satisfatórios, insatisfatórios e conflitos, em comparação ao campo Família, e apareceu como principal fonte de apoio dos participantes. Esses aspectos confirmam dados da literatura que indicam que o abrigo passa a constituir o principal contexto de desenvolvimento das crianças e adolescentes abrigados, exercendo o papel de fornecedor de apoio (OLIVEIRA, 2006; SIQUEIRA; BETTS; DELL'AGLIO, 2006; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004), visto que é nesse contexto que relações de amizade, trocas afetivas, comportamentos cooperativos, disputas e conflitos são postos em cena. Além disso, como o campo Abrigo apresentou maior média de contatos, pode-se inferir que, quanto maior é o número de contatos na rede, maior é a possibilidade de conflitos na mesma.
Por outro lado, a análise do campo Família e da percepção das figuras parentais na rede de apoio mostrou o predomínio de uma visão positiva relacionada à família. O campo Família apresentou maior média de fator de proximidade em comparação com outros campos, e foi classificado como de grande força de proximidade, sugerindo a existência de relações próximas e de qualidade. Tendo em vista que são crianças e adolescentes abrigados e que possuem famílias com problemas de diversas ordens e com dificuldade de manter seu papel protetivo, e com contatos esporádicos e muitas vezes ausentes, essa percepção positiva chamou a atenção. A literatura da área tem destacado a percepção idealizada valorizada da família em estudos com crianças e adolescentes que tiveram experiência de institucionalização (DE ANTONI; KOLLER, 2000; RIZZINI, s.d.; RIZZINI; RIZZINI, 2004; YUNES et al., 2001).
Diferenças entre a percepção das figuras parentais também foram observadas. A figura materna foi situada nos níveis de maior proximidade por mais de 70% dos participantes, e mais lembrada como membro da rede de apoio em comparação à figura paterna. Pode-se concluir que, na percepção dos participantes, relações de maior proximidade são mais estabelecidas com a figura materna do que com a figura paterna. Também foi observada maior ocorrência de conflitos e rompimentos com a figura materna, especialmente entre as meninas e os adolescentes. Tal resultado pode ser relacionado aos processos típicos de mudanças que ocorrem na adolescência e que envolvem conflitos com as figuras parentais relacionadas aos processos de independização (STEINBERG, 1999). Além disso, provavelmente, as figuras maternas foram mais lembradas exatamente pelo fato de estarem mais presentes na vida desses jovens, o que pode estar relacionado à característica monoparental e matrifocal (SZYMANSKI, 1992) dessas famílias. A figura materna, nessas famílias, é membro essencial em todo o processo de desenvolvimento e educação dos filhos e assume o lugar de chefe da família, estabelecendo limites e estando mais presente na vida dos filhos do que a figura paterna, que, em muitos casos, não convive com os mesmos (FEIJÓ; ASSIS, 2004; SZYMANSKI, 1992).
A figura paterna não foi identificada como integrante da rede de apoio por quase 50% dos participantes, apresentando relação insatisfatória em 6,8% e citada como figura de apoio em apenas cinco casos. O estudo de Feijó e Assis (2004) com jovens infratores e suas famílias comprovou que a figura paterna estava ausente em quase 40% dos casos. Para as autoras, a falta da figura paterna faz com que esses jovens sofram as consequências emocionais e financeiras decorrentes, além de poder influenciar a formação de sua identidade social. Conforme Padilla (2001), a ausência da figura paterna pode ser um fator de risco adicional para experimentação sexual precoce, especialmente entre adolescentes de famílias em situação de vulnerabilidade social.
Com relação aos outros campos, o relativo à Escola apresentou o menor fator de proximidade em comparação aos demais e alta ocorrência de conflitos. Além disso, apesar de ser grande a força do fator de proximidade no campo Escola, este ficou no limite inferior para esta classificação. Tais dados sugerem que a escola é percebida de forma mais distanciada pelos participantes. Esse resultado chama a atenção para o papel enfraquecido assumido pelo sistema educacional na atualidade, especialmente junto a crianças e adolescentes com baixa escolaridade e em situação de vulnerabilidade.
Finalmente, o apoio instrumental, que consiste no fornecimento de algo material ou ajuda quanto à solução de problemas, predominou na análise do tipo de apoio fornecido, corroborando dados da literatura (SIQUEIRA; BETTS; DELL'AGLIO, 2006; WILLS; BLECHMAN; MCNAMARA, 1996). Considerando que os participantes do estudo, em geral, advêm de famílias menos favorecidas e em condições de vida adversas, é possível compreender que o destaque dado ao apoio instrumental esteja vinculado à privação material que esses jovens já possam ter vivenciado. Assim, esse tipo de apoio parece ser o mais relevante para crianças e adolescentes de nível socioeconômico desfavorecido (WILLS; BLECHMAN; MCNAMARA, 1996).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa possibilitou conhecer as características da rede de apoio social e afetivo de crianças e adolescentes institucionalizados, suas percepções a respeito de suas famílias e, em especial, das figuras parentais. A estrutura das redes de apoio apresentada pelos participantes refletiu a forma como eles se inserem nos diferentes contextos de sua realidade e, quanto à sua funcionalidade, observou-se uma percepção positiva relacionada ao campo Abrigo, na medida em que nesse contexto houve maior média de contatos satisfatórios, constituindo-se, por conseguinte, na principal fonte de apoio de muitos abrigados. Este aspecto traz à luz as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), as quais têm influenciado o funcionamento interno dos abrigos por intermédio de melhorias no contexto institucional (GUARÁ, 2006; GULASSA, 2006). Estas também contribuíram para uma mudança de perspectiva na percepção das crianças e adolescentes sobre a institucionalização (SIQUEIRA; DELL'AGLIO, 2006), visto que os estudos contemporâneos mostram que estes jovens consideraram o abrigo como um evento de vida positivo, que proporciona proteção e apoio, entre outros aspectos (ARPINI, 2003; AZOR; VECTORE, 2007, 2008; DELL'AGLIO, 2000; MARTINS; SZYMANSKI, 2004; OLIVEIRA, 2006; PASIAN; JACQUEMIN, 1999; SILVA, 2004).
A análise da percepção das figuras parentais na rede de apoio mostrou a presença mais constante da figura materna, ao passo que a figura paterna esteve ausente em quase metade dos casos. A ausência de um membro do casal parental pode levar a um desgaste ainda maior para a figura que assume a responsabilidade econômica e emocional de cuidar dos filhos, podendo operar como um possível fator de risco. A função da figura paterna, contudo, pode ser exercida por outras pessoas além do pai biológico, como os monitores dos abrigos, por exemplo. Entretanto, é necessário estimular e propor intervenções que assegurem a importância do lugar paterno, não se restringindo à presença do pai necessariamente, mas ampliando para alguma figura de apoio, para algum cuidador que exerça essa função. Assim, políticas de planejamento familiar que resgatem a importância da função da figura paterna para o desenvolvimento do indivíduo se fazem importantes.
Os resultados deste estudo sugerem, ainda, uma idealização das relações familiares, visto que a família apresentou maior fator de proximidade. Essa percepção pode ser entendida como um movimento adaptativo e restaurador dos jovens, processo importante para o resgate das relações familiares fragilizadas. A idealização das relações familiares de forma geral pode estar associada à dicotomia existente entre o que é de fato vivenciado e o que é pensado (SZYMANSKI, 1992).O vivido, por sua vez, está relacionado aos modos de agir no dia-a-dia das famílias, ao contexto real de convivência, e o pensado é da ordem do idealizado, de como se gostaria que fosse. Destaca-se, assim, a importância de que os profissionais dos abrigos e demais entidades de atendimento aos jovens em situação de abrigamento reconheçam e legitimem os diferentes modelos de família, ainda que atravessados pelos fatores sociais e culturais. Além disso, é de fundamental importância que as instituições de abrigo promovam a preservação dos vínculos familiares de seus abrigados, procurando garantir o direito de convivência familiar previsto pelo ECA (1990), tendo em vista o significado dessas relações para as crianças e adolescentes.
Por fim, cabe destacar o papel da instituição de abrigo na rede de apoio social e afetivo das crianças e adolescentes que estão sob proteção. Os funcionários, monitores, educadores, pais sociais, técnicos e diretores dos abrigos fazem parte da rede de apoio e, como principais cuidadores desses jovens, nesse momento, tornam-se responsáveis pelo seu bem-estar, representando uma função fundamental para um desenvolvimento saudável. Mais do que desempenhar a função crucial de educá-los e acompanhá-los, esses cuidadores participam do processo de resgate e (re)construção da história individual de cada um deles, sendo importante que o façam ativamente. Constantes reformulações e avaliações são necessárias no interior dos abrigos em virtude de falhas ainda encontradas nas instituições brasileiras, para que o paradigma das instituições totais seja uniformemente superado. Mesmo com o reordenamento físico das instituições de abrigo, no qual grandes espaços estão sendo transformados em espaços menores para um atendimento mais qualificado de um número menor de jovens, sem uma alteração na dinâmica institucional, corre-se o risco de se reproduzir os mesmos processos perniciosos presentes nas instituições totais (GUARÁ, 2006; GUIRADO, 1986). Assim, instituições de atendimento à infância e juventude em risco devem estar cientes do papel dos cuidadores dos abrigos e manter um canal aberto de discussão de sua prática, promovendo capacitações e espaços de trocas entre esses profissionais, para que possam ser qualificados e apoiados no exercício de educar as crianças e adolescentes institucionalizados e se constituírem como membros de suas redes de apoio.
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Endereço para correspondência
Aline Cardoso Siqueira
E-mail: alinecsiq@yahoo.com.br
Carmela de Lima Tubino
E-mail: carmelatubino@yahoo.com.br
Cristina Schwarz
E-mail: cristina.puravida@gmail.com
Débora Dalbosco Dell'Aglio
E-mail: dalbosco@cpovo.net
Submetido em: 11/02/2008
Revisado em: 18/08/2008
Aprovado em: 25/10/2008
1 Projeto com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).