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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.1 Rio de Janeiro abr. 2010

 

ARTIGOS

 

Diagnóstico diferencial e direção do tratamento na atualidade: do DSM-IV à psicanálise

 

Diagnosis and direction of treatment in the current era: from DSM-IV to pschoanalysis

 

 

Claudia Henschel de Lima; Adilson Pimentel Valentim; Carlos Emmanuel Rocha; Natália Rodrigues

Centro Universitário Hermínio da Silveira (UNI-IBMR), Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do artigo é analisar a relevância da psicanálise no contexto de uma época que define o diagnóstico e a direção do tratamento das psicopatologias a partir de uma orientação biopolítica. O DSM-IV classifica os sintomas pela categoria genérica de transtorno, reduzindo-os à dimensão comportamental e convertendo-os em monossintomas. A partir desse fato e das dificuldades clínicas enfrentadas por Freud na condução do caso do Homem dos Lobos, o artigo coloca a questão da relevância do diagnóstico estrutural em psicanálise, mostrando que o DSM-IV: (i) reduz a dificuldade diagnóstica do caso em questão ao quadro de uma síndrome do pânico, (ii) direciona o tratamento pela concepção de monossintoma, suprimindo as características estruturais da psicose. Em contraposição, sustenta-se, neste artigo, que a orientação do diagnóstico diferencial em psicanálise conduziria à hipótese diagnóstica de psicose ordinária.

Palavras-chave: Psicanálise; Diagnóstico; Psicose; Biopolítica; Psiquiatria.


ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze the relevance of the psychoanalysis in the context of an era dominated by the biopolitical model as reference for diagnosis and for direction of the treatment of mental disorders. The DSM-IV uses generic category of disorder to classify the symptoms, reducing them to a behavioral dimension and converting them into monosymptoms. Hence, from the approach of the diagnostic difficulties faced by Freud in the conduction of the case of the Wolf Man, this paper question the current relevance of structural diagnosis in psychoanalysis, showing that the DSM-IV: (i) reduces the diagnostic difficulty to the syndrome of the panic; (ii) establish the direction of treatment through the monosymptmatic model, suppressing structural elements of the psychosis. Alternatively, the orientation of the diagnosis in the last Lacan to the Wolf Man case will be an ordinary psychosis.

Keywords: Psychoanalysis; Diagnosis; Psychosis; Biopolitics; Psychiatry.


 

 

INTRODUÇÃO

Em “Las buenas noticias del progreso”, Jacques-Alain Miller (2006) conduz uma análise arqueológica da contemporaneidade, destacando a consolidação da metodologia quantitativa na prática psicológica e sua difusão sobre a clínica, convertendo-a em um procedimento de avaliação e controle. Sua hipótese é que o surgimento de uma nova configuração de saberes e práticas terapêuticas referentes à experiência subjetiva – como é o caso da psiquiatria biológica e da terapia cognitivo-comportamental – está pautado em uma política de redução das margens de não conformidade à regra social.

Miller (2005, p. 3) localiza ao longo do século XX a presença de um poder de Estado que recodifica as práticas e modifica o paradigma de abordagem da experiência subjetiva na direção de reduzi-lo à dimensão empírica de um produto de consumo e de submetê-lo ao imperativo do cálculo econômico:

A ascensão do cálculo tem seu lugar na história do pensamento científico a partir da época das Luzes: ele é tributário dos esforços no sentido de, a partir da contestação da autoridade do Outro, denunciar a tentativa metafísica de salvar sua consistência. Foi o caso da crítica conduzida pelo empirismo de Hume contra o recurso cartesiano de fundamentar a deriva generalizada das ideias em um Deus não enganador e exterior à empiricidade. Foi, também, o caso da matemática social de Condorcet e da expansão de uma literatura sobre a diversidade humana (hábitos, costumes, religiões) a partir de Montesquieu: elaboradas para, por meio da valorização do número, dar à razão atributos existenciais e, consequentemente, despertar o pensamento filosófico do sono dogmático imposto pela consistência do Outro.

O espírito de época do século XIX apresenta um elemento distinto em relação ao movimento de contestação da metafísica ocorrido no século XVIII. O surgimento das ciências humanas representou, ao longo do século XIX, não só a consolidação do recuo da metafísica, mas, principalmente, a ascensão do projeto científico de redução das leis a priori da razão a uma empiricidade a ser observada e mensurada.

Na etapa genealógica da pesquisa de Michel Foucault (1981), em que relaciona a elaboração política dos procedimentos quantitativos de normalização e o surgimento das ciências humanas, é localizado o momento de consolidação de uma ciência empírica e quantitativa da razão na passagem do século XVIII para o século XIX: com o recuo do Poder Soberano, com a transformação da vida em objeto de regulação política e com o estabelecimento dos dispositivos de vigilância moderna (o poder disciplinar e a normalização). Segundo o autor, nesse momento de reorganização das relações de poder que coincide, no campo epistemológico, com a elaboração de uma razão organizadora da experiência, surgem as ciências humanas ? e, com elas, a Psicologia ? como tributárias de técnicas biopolíticas normalizadoras. O exame é o procedimento exemplar dessas técnicas. Trata-se de uma técnica de observação empírica, quantificação, avaliação e classificação individualizada da conduta, regulada pela própria expansão do discurso científico, cuja finalidade é a recomposição dos semblantes sociais que foram abalados pela crise ontológica. Essa recomposição se dá pela determinação de regularidades nas diferenças raciais, na diversidade de hábitos, costumes, religiões, regimes políticos, nas formas de matrimônio, nos nascimentos e nas mortes.

O processo de estatização do biológico, que ocorreu ao longo do século XIX pela instauração das técnicas biopolíticas é, assim, contemporâneo à hipótese de que seria possível investigar a diversidade social e política, que se evidenciou a partir do século XVIII, segundo os mesmos princípios científicos que regiam a investigação da natureza pela Física-Matemática. E é esta equivalência que se situa na própria condição de possibilidade para o surgimento das ciências sociais e explica a relevância de época dos trabalhos de Quételet, que elaborara a definição de homem médio – um conjunto de propriedades estatísticas que são estáveis nas principais ações humanas (o matrimônio e o crime) –, e de Durkheim sobre o suicídio e sobre a equivalência entre a categoria de normal e o homem médio. Seguindo a mesma perspectiva de Foucault, Jacques-Alain Miller (2006, p. 10) define a relação entre a norma e o homem médio a partir do século XIX, frisando a ausência de um princípio exterior que fundamente a ação humana:

[...] a mediana é um ideal secretado pela própria estatística quantitativa. Isso não vem de nenhuma prescrição, de nenhum comando, são as próprias cifras que dão um ideal, o da norma, distinto do da lei. A lei mantém sempre sua ancoragem em um grande Outro. [...] A mediana é muito mais suave, é invisível – vem de vocês, da combinação de suas decisões individuais [...].

É possível compreender então, a partir da ascensão das técnicas biopolíticas, não somente a ascensão das ciências sociais, mas também a ligação entre o homem moderno e a experiência de uma finitude originária tributária do declínio dos princípios metafísicos.

Em sua fase arqueológica, Foucault (1966/1977) localiza o surgimento de uma medicina positiva no século XIX: medicina que relaciona a vida à investigação empírica das células, tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos que compõem um organismo. Mas também de um conjunto de disciplinas – denominadas de ciências humanas – que remetem o homem à sua finitude, seja por meio de sua determinação histórica seja por meio de seu determinismo biológico, como é o caso da Psicologia. Ainda na fase arqueológica de seu trabalho, em que analisa o surgimento das ciências humanas, Foucault (1966/1977) já apontava para a perigosa proximidade entre a Psicologia, o paradigma biológico e a metodologia quantitativa.

Diante desse contexto, como situar a importância da psicanálise na atualidade? Como a psicanálise mantém sua prática pautada no diagnóstico e na direção de tratamento sem se inserir em um grande movimento de recomposição da consistência do Outro conduzido pela biopolítica?

O objetivo do presente artigo é analisar a relevância da psicanálise em uma atualidade que se defende da inexistência do Outro localizando a causalidade da experiência subjetiva no paradigma biológico e nos instrumentos de avaliação e quantificação. O DSM-IV, instrumento atual de diagnóstico para a psiquiatria biológica, classifica os sintomas pela categoria genérica de transtorno e os reduz à dimensão comportamental, convertendo-os em monossintomas. Donde a colocação da pergunta referente à relevância atual da psicanálise pautada no diagnóstico diferencial entre neurose e psicose. Essa relevância será especificamente analisada à luz da ocorrência de psicoses que não apresentam o conjunto de características que compõem o quadro sintomatológico das psicoses desencadeadas e cujo caso exemplar, na psicanálise, seria a psicose paranoica de Schreber. E que, em vista disso, recebem a denominação de psicoses ordinárias. Neste artigo, trabalhar-se-á com o caso paradigmático do Homem dos Lobos, sustentando a hipótese diagnóstica de psicose ordinária precisamente porque não se verifica a presença de um quadro alucinatório regular ou transtornos de linguagem típicos.

Em contraposição a uma literatura psiquiátrica (CRADDOCK; OWEN, 2008) – que considera a atual diversidade sintomática da psicose como índice da necessidade de se recorrer à epidemiologia genética e à genética molecular para conferir maior precisão ao diagnóstico diferencial –, Miller (2009) ressalta a relevância, para o diagnóstico de psicose, das características discretas e localizadas em momentos muito precisos e pontuais da vida de um ser humano: um sentimento de estranhamento corporal, uma ruptura brusca com o laço social, uma desestabilização subjetiva a partir da perda de um emprego ou posição social.

A elaboração da hipótese diagnóstica e da direção de tratamento do Homem dos Lobos fora revestida de ambiguidades e impasses, a ponto de Laurent (2000) localizar sua relevância para a discussão atual sobre diagnóstico e tratamento precisamente no fato de ser um inclassificável, ou seja, um caso que não se orienta pela distinção entre neurose e psicose. Publicado em 1918, quatro anos depois de Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1987) – em que Freud torna público o limite conceitual do dualismo entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação na investigação e tratamento da psicose –, o Homem dos Lobos representou, no conjunto da obra freudiana, o ponto final da apresentação das grandes monografias clínicas.

Ao procurar o consultório do Dr. Sigmund Freud, Sergei Pankeiev já havia se consultado com outros psiquiatras, como fora o caso de Kraepelin, em Munique, e Bleuler, em Zurique. Desses psiquiatras, obtivera hipóteses diagnósticas divergentes. E, no entanto, com Freud, a situação não é muito diferente. Ele ressalta a presença ambígua, no paciente, de uma fenomenologia fóbica, uma neurose obsessiva na infância e episódios delirantes da vida adulta. É nesse sentido que o caso é relevante para elucidar a orientação clínica da psicanálise em uma época dominada pelo paradigma biológico e comportamental. A orientação do DSM-IV tenderia a reduzir essa dificuldade diagnóstica ao quadro monossintomático de uma síndrome do pânico ou de uma depressão, delimitando sua direção de tratamento a partir de uma dessas síndromes, desprezando fatos discretos e cruciais da vida de Sergei Pankeiev: a posição fixa do olhar dos lobos que recai sobre ele, a alucinação pontual do dedo cortado, a fixação na fase anal estruturalmente anterior à assunção da significação fálica.

São essas características que servirão de bússola para a retomada das referências freudianas do caso do Homem dos Lobos, no sentido de sustentar a hipótese de uma psicose ordinária.

 

A PESTE ASSOLA O PENSAMENTO: O DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL EM PSICANÁLISE E A CAUSALIDADE SEXUAL

A psiquiatria clássica ergueu uma disciplina do diagnóstico sobre o modelo de investigação e tratamento da doença orgânica, tal como fora prescrito pela medicina, a partir da observação e investigação da paralisia geral (KAMMERER; WARTEL, 1986). Tal disciplina obedecia ao seguinte ordenamento: em primeiro lugar, tratava-se de observar e descrever exaustivamente as características fenomenológicas das doenças (índices e sinais); em segundo lugar, de organizar essa fenomenologia vasta em classes de sintomas; em terceiro, de localizar, por meio da técnica do exame, um correlato anátomo-fisiológico para tais sintomas (uma lesão orgânica) e em quarto lugar de determinar um agente patológico externo como causa da lesão. Retomando a referência de Michel Foucault (1981), mencionada na Introdução deste artigo, o estabelecimento de uma orientação classificatória na psiquiatria clássica se concretiza na passagem do século XVIII para o XIX, no momento em que se estabelecem o que Foucault (1974-1975/2001) denominara  biopolítica – a conversão da vida em objeto da política – e a organização da psiquiatria como ciência das condutas anormais (o alcoolismo, o vício do ópio, a experiência da loucura e a convulsão histérica). Dessa forma, localizada nesse marco positivista de conversão da vida em objeto de uma ciência empírica e, consequentemente, da ascensão da biologia ao status de ciência, tal orientação se inspira no exemplo da biologia de Lamarck e Darwin e abre a possibilidade para o advento do que Foucault (1974-1975/2001) denominara biopolítica da espécie humana. De fato, essa ciência da conduta anormal estava, entre o final do século XIX e o início do século XX, fundamentada no paradigma biológico da hereditariedade, da degenerescência (Morel) e da eugenia, e orientada para a condução de políticas profiláticas de defesa social contra a degeneração. Tais políticas são correlatas da elaboração epistêmica de um quadro nosográfico extremamente vasto das condutas anormais a partir da observação e isolamento das irregularidades presentes nas condutas mais quotidianas, mais ordinárias, dividindo-as em classes universais, gêneros e espécies: as diversas neuroses e os diferentes estados de loucura (loucuras agudas e crônicas), por exemplo. Uma análise conduzida por Attié (1999, p. 198 e 199), sobre o estatuto epistemológico da psiquiatria na passagem do século XIX para o XX, é bastante clara a esse respeito: a psiquiatria atingira seu apogeu na classificação exaustiva e na criação de uma enciclopédia natural das psicopatologias; a partir daí, seu destino foi recuar em relação ao aprofundamento da clínica observacional, em nome da discussão metodológica sobre a acuidade da observação do sintoma: “No momento, o progresso na compreensão e o tratamento das perturbações mentais atingiram uma espécie de limite que provocou [...] um abandono da clínica e, portanto, dos elementos positivos do saber apenso à nosografia psiquiátrica [...]”.

A própria análise crítica da medicina, conduzida por Freud (1888-1893/1987; 1910/1987), em momentos distintos de sua obra, deixa claro que a psiquiatria rejeitava tudo o que não era submetido a uma explicação baseada no paradigma biológico e que, por isso, diante da inexistência de um correlato anátomo-fisiológico observável para os sintomas da histeria, esta era classificada como simulação. Freud (1888-1893/1987,p. 225-234) problematizou a hegemonia do modelo observacional e classificatório do sintoma na psiquiatria, colocando em questão a organização do saber psiquiátrico:

Com muita frequência tem-se atribuído à histeria a capacidade de simular as mais diferentes doenças nervosas orgânicas. [...] se está acostumado a localizar uma lesão dinâmica histérica da mesma forma como a uma lesão orgânica. [...] Eu, pelo contrário, afirmo que a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois nas suas paralisias [...] a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta.

Com efeito, Freud não se enganara a respeito da psiquiatria. Todavia, o que poderia parecer um limite, acaba por se converter em elemento de uma mutação epistemológica que preparará a etapa seguinte do saber psiquiátrico: o modelo biológico centrado na hereditariedade e na degenerescência recua e, a partir dos anos 1950, entrará em ascensão o modelo bioquímico de interação entre o funcionamento do sistema nervoso e as primeiras substâncias antipsicóticas e antidepressivas sintetizadas em laboratório: a Clorpromazina e a Imipramina (CAPONI, 2007). A partir dos anos 1950, a psiquiatria ganha uma nova configuração, a partir do recurso a procedimentos mais precisos de observação da conduta: ela se fundamenta na neurofisiologia cerebral, na bioquímica e ancora sua metodologia em levantamentos epidemiológicos. Essa orientação da psiquiatria resulta na elaboração, ao longo dos anos 1960, do DSM: um vocabulário epidemiológico único e padronizado, elaborado pela American Psychiatry Association, que contém uma descrição exaustiva das condutas sociais que exprime a fragmentação das grandes classificações do século XIX em síndromes e transtornos. O resultado foi a ocorrência de uma decomposição das estruturas: a classe de histeria não se encontra na quarta edição do DSM; a neurose obsessiva se converteu em transtorno obsessivo-compulsivo e a própria classe da psicose será revista no DSM-V (CRADDOCK; OWEN, 2008). Essa organização evidencia a dissolução clínica da distinção diagnóstica entre neurose e psicose e a proliferação dos transtornos no vocabulário psiquiátrico. Sobre essa mutação epistemológica, Laurent (2000, p. 8-9) afirma que:

O efeito paradoxal do retorno da psiquiatria à medicina [...] e o avanço da biologia, é precisamente este: longe de reintegrar simplesmente a doença mental na ciência e solucionar o problema, esse retorno torna manifesta a fabricação de novas formas para o patológico... Vemos aparecer uma classificação estranha por sua extensão.

Em função disso, a retomada do posicionamento de Freud (em 1910) em relação à psiquiatria é particularmente preciso, nesse contexto. Ele opera uma ruptura epistemológica com a hipótese biológica de Pierre Janet sobre o déficit maturacional do sistema nervoso como causal do sintoma histérico. Sua elaboração a respeito da formação dos sintomas, e do objetivo da psicanálise, é que o psiquismo responde ao traumatismo da causa sexual por meio do recalcamento ou da foraclusão. No marco da conjunção entre a causa sexual e o ideal, Freud ergue uma disciplina do diagnóstico diferencial que permite estabelecer, para a neurose, a classificação de histeria, obsessão e fobia; e, para a psicose, a distinção entre, de um lado, a paranoia e a parafrenia e, de outro, a mania e a melancolia. E constrói um método para o tratamento da neurose fundamentado na hipótese da causalidade sexual e do mecanismo de recalcamento das pulsões pelo conjunto dos ideais civilizatórios (FREUD, 1908/1987; 1929-1930/1987).

No interior desta investigação diagnóstica, centrada na causa sexual e no recalcamento, encontra-se no espaço de tempo entre o final do século XIX e o ano de 1909, a construção de uma série de casos clínicos fundamentais: a neurose histérica de Dora, a neurose obsessiva do Homem dos Ratos, a neurose fóbica de Hans e o comentário ao caso de psicose paranoica de Schreber. É uma época que Laurent (2000) caracterizou como sendo a de uma clínica psicanalítica ainda decalcada sobre o modelo da psiquiatria kraepeliniana, na medida em que Freud se manteve fiel a uma classificação diagnóstica ancorada na hipótese da causalidade sexual, no modelo da formação do Ideal e no princípio da adaptação do sintoma à estrutura. Essa fidelidade se mantém até a elaboração conceitual do narcisismo (1914) e a fragilização do dualismo entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu.

 

A CRISE DO DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL EM FREUD

O caso do Homem dos Lobos representou, na obra de Freud, o momento de ruptura com essa herança kraepeliniana, já que a condução deste caso possibilitara questionar o modelo da identificação ao Ideal, e do recalcamento das pulsões sexuais, como princípio a partir do qual se estabelece a hipótese diagnóstica. A objeção a esse modelo se dá a partir da evidência clínica da pluralização do pai no caso de Sergei Pankeiev. De fato, a ocorrência dessa pluralização – na forma de um pai que goza exigindo o sacrifício (Deus), um pai na condição de objeto de amor (identificação a Cristo e seu sacrifício) e um pai castrado (sintoma da expiração) – abala a hegemonia do Ideal e recoloca a causa libidinal, o modo de gozo independente do Ideal, no centro do debate sobre diagnóstico e direção de tratamento.

No caso específico do Homem dos Lobos, publicado em 1918, a temática da construção do caso clínico e da transmissão da psicanálise pelo caso único ganha especial relevância por ser um momento muito próximo à evidência clínica de que a repetição coloca para Freud o problema teórico referente à natureza do princípio de prazer e seu status de regulador da quantidade de pulsão no psiquismo. Seguindo essa nova orientação epistemológica, que se abre entre os anos de 1918 e 1920, o caso clínico em questão evidencia, por intermédio do estatuto da fobia e da sintomatologia aparentemente obsessiva na economia psíquica de Sergei Pankeiev, menos a presença do funcionamento psíquico regulado pelo princípio de prazer, e típico da neurose, do que a presença da desregulação libidinal típica dos casos de psicose.

Consideremos alguns aspectos deste caso a partir de indicações fornecidas por Freud (1914-1918/1987). No que se refere à fenomenologia fóbica, trata-se de uma paralisia aterrorizante, desestabilizadora, diante da imagem onírica dos lobos. Essa paralisia evidencia que a imagem não possui a função reguladora do gozo que os cavalos tiveram no caso Hans (Miller, 2005b) indicando a presença da perplexidade típica do quadro de invasão pulsional da psicose em contraposição ao afeto da angústia diante da ereção do falo, para Hans.

A reprodução do relato de Sergei Pankeiev (FREUD 1914-1918/1987, p. 45), no qual os lobos estão revestidos de um conjunto de características específicas, evidencia a invasão de um quantum de pulsão na organização da realidade psíquica do paciente:

De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como raposas, e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei.

A presença dessas características concede aos lobos um estatuto singular para Sergei Pankeiev, diferenciando-se do estatuto universal que os cavalos assumiram para Hans: este sentia medo de todos os cavalos. Ao contrário, a experiência de terror vivida por Sergei estava concentrada na posição dos lobos, ou no que Freud (1914-1918/1987) localizara como o representante do pai: estavam sentados na árvore, eram muito brancos, estavam em perfeita quietude e imobilidade e fixavam o olhar atento sobre o paciente. Sua crueza revela o fracasso do expediente da elaboração secundária (do sonho), da significantização, comumente utilizada com a finalidade de tornar inofensiva a cena. A posição de Sergei é, então, isolada por Freud (1914-1918/1987, p. 49) nos seguintes termos: estava aterrorizado pela possibilidade de ser comido, ou engolido, pelos lobos. O que indica o próprio estatuto que o Outro possui em sua economia psíquica – um Outro gozador, ao qual ele se encontra submetido: “[...] é possível que durante os primeiros anos do paciente, o pai (embora se tornasse severo mais tarde) pudesse, mais de uma vez, enquanto acariciava o menininho ou com ele brincava, tê-lo ameaçado, por brincadeira, de engoli-lo.”

Um outro elemento crucial, que dificulta a manutenção do diagnóstico de neurose obsessiva, é a descrição da alucinação sofrida aos 5 anos:

Quando eu tinha cinco anos, estava brincando no jardim perto da babá, fazendo cortes com meu canivete na casca de uma das nogueiras [...]. De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo mínimo da mão [...] de modo que ele se achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos de distância, mas deixei-me cair sobre o assento mais próximo e lá fiquei sentado, incapaz de dirigir outro olhar ao meu dedo. Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso (FREUD, 1914-1918/1987, p. 108).

Apesar da dificuldade encontrada em concluir o diagnóstico de Sergei, Freud (1914-1918/1987, p. 107) parece ser bastante preciso em considerar o acontecimento dos 5 anos como uma alucinação:

Rejeitava a castração e apegava-se à sua teoria da relação sexual pelo ânus. Quando digo que ele a havia rejeitado, o primeiro significado da frase é o de que ele não teria nada a ver com a castração, no sentido de havê-la reprimido. Isso não implicava, na verdade, julgamento sobre a questão de sua existência, pois era como se não existisse.

Em sua perspectiva, Sergei Pankeiev parece nada querer saber da ameaça de castração: não no sentido de tê-la, de alguma forma, percebido, para em seguida repudiá-la (como acontece no recalcamento para a neurose), mas no sentido mais radical de recusa de sua inscrição simbólica. É possível, então, dar uma nova localização à série de sintomas (antes de se deitar era obrigado a rezar por muito tempo e a fazer, interminavelmente, o sinal da cruz, ou pela tarde era obrigado a passar por todas as imagens sacras da casa e beijá-las uma por uma), dúvidas e blasfêmias direcionadas respectivamente à pessoa de Cristo (se ele tinha traseiro e defecava) e a Deus (“Deus-suíno”, “cagar em Deus”, “Deus-merda”), classificados por Freud como integrantes da neurose obsessiva. São, na verdade, uma fenomenologia sintomática obsessiva, que não obedece à estrutura da neurose, mas que evidencia a posição de submissão ao Outro, típica, por exemplo, da psicose de Schreber:

No segundo desses significados (Cagar algo para Deus), uma certa ternura feminina encontra expressão: uma disponibilidade para renunciar à própria masculinidade, se, em troca disso, se possa ser amado como uma mulher. Temos, aqui, então, precisamente, o mesmo impulso para Deus, expressado, em palavras não ambíguas, no sistema delirante do paranoico Senatspräsident Schreber (FREUD, 1914-1918/1987, p. 106).

Esse estatuto dos sintomas colocará Freud diante do problema referente ao diagnóstico diferencial que organizava a construção do caso clínico: o pai é destituído de sua função estabilizadora, típica da neurose, e a pulsão emerge resistindo a essa estabilização. O índice dessa resistência pode ser isolado no olhar devorador, encarnado pelos lobos no sonho de Sergei. Esse momento é isolado por Laurent (2003) como sendo o momento de crise do modelo de construção de caso clínico organizado em torno dos operadores conceituais: libido-recalcamento-ideal-inconsciente.

 

O ENSINO DE LACAN: DO FORMALISMO À LÓGICA ENCARNADA

A evidência clínica das perturbações de linguagem na psicose será, desde a condução do caso Aimée, a base a partir da qual Lacan (1937/1987) erguerá a orientação estrutural e descontinuísta de seu primeiro ensino. No entanto, paralelamente à defesa de sua tese em 1937, testemunha-se o que Attié (1999) isolara como uma nova organização do saber psiquiátrico, que recua de seu fundamento clínico em nome de um vetor medicamentoso cada vez mais submetido ao paradigma biológico. De fato, a expansão da tecnologia de síntese de psicotrópicos, a partir dos anos 1950, permitiu ao saber psiquiátrico a possibilidade de se libertar da baixa origem moral de sua direção de tratamento (FOUCAULT, 1974-1975/2001) e aderir definitivamente a uma orientação positivista. Se, até o final dos anos 1940, a psiquiatria ainda era pautada no isolamento, no trabalho, no olhar vigilante, na infantilização e na produção de um ideal disciplinar concentrado na figura do médico, a partir da invenção da Clorpromazina e da Imipramina, é introduzido no saber psiquiátrico um novo elemento, na forma da substância, e outra orientação metodológica – a observação dos efeitos que se produzem sobre as psicopatologias. Essa expansão da tecnologia da medicação, na clínica psiquiátrica, é correlata à ascensão do modelo biológico de regulação do comportamento, ao questionamento do fundamento psicodinâmico da clínica psicopatológica no período entre as edições do DSM-II e do DSM-III e à elaboração de uma taxonomia pluralizada das psicopatologias organizada a partir de um modelo geral de regulação bioquímica do comportamento.

É possível situar nesse contexto de reestruturação dos fundamentos da clínica psiquiátrica a relevância do retorno de Freud, a partir do modelo lógico do inconsciente, e da redução do complexo de Édipo ao operador lógico-formal do Nome-do-Pai (NP), tal como se verifica em um primeiro momento do ensino de Lacan. Ele formaliza o determinismo do inconsciente permitindo à psicanálise elaborar um modelo que ultrapassa o modelo bioquímico que reduzira a direção de tratamento da clínica a um procedimento de prescrição medicamentosa.

O Primeiro Ensino e a Clínica de Lacan Centrada na Estrutura

O formalismo de Lacan (1953/1988; 1956/1988; 1957/1988) fora, inicialmente, extraído da disciplina estruturalista – paradigma para a cientificidade das ciências humanas entre os anos 1950 e 1960 – e possibilitara uma formação de compromisso da psicanálise com a ciência em sua vertente formal sem, no entanto, implicar um procedimento reducionista de abordagem da experiência subjetiva pelo funcionamento biológico.

De fato, Lacan recorre ao modelo estrutural da Antropologia de Claude Lévi-Strauss e da Linguística saussuriana, aplicando à metapsicologia freudiana o estatuto preciso de uma instância lógico-simbólica sem recuar em relação à tese freudiana referente ao sentido do sintoma e à finalidade de uma psicanálise articulada à determinação da causa do sintoma e à localização desta na existência concreta do sujeito. Nessa referência epistemológica do primeiro ensino, dois axiomas definem o procedimento de formalização do inconsciente pela estrutura:

1. O inconsciente é estruturado como uma linguagem.

2. O significante é o que representa um sujeito para outro significante.

Esses axiomas funcionam como linha de resistência ao modelo biológico, exprimindo a elaboração de um modelo estrutural original pautado na conjugação do universal e do particular e, mais especificamente, no poder de generalização do significante em contraposição à própria generalização que o modelo biológico imprimia à psiquiatria.

Assim, na condição de linguagem, os conceitos de inconsciente e de recalcamento foram reinterpretados a partir da operação do significante, e a constituição da subjetividade – central na clínica para a elaboração da hipótese diagnóstica e para a direção do tratamento – passa a ser uma dedução lógica da incidência da linguagem sobre a pulsão. Tem-se, então, uma teorização no sentido da valorização do simbólico e do determinismo do sujeito pelo significante, sendo dado um destaque especial ao Nome-do-Pai (NP) como um elemento diferencial na ação estruturante do simbólico sobre o gozo, da linguagem sobre a pulsão.

A referência epistemológica central dessa incidência do significante do Nome-do-Pai sobre a posição do sujeito, e da própria elaboração da tese causal da psicose, é o escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (LACAN, 1955-1956/1998). Nele, o autor elabora a direção do tratamento pela disciplina do diagnóstico diferencial, definindo o funcionamento da realidade psíquica pela polaridade presença-ausência do Nome-do-Pai (NP-NPo)1 e, por conseguinte, pela descontinuidade entre neurose e psicose. Lacan (1955-1956/1998) estabelece o Nome-do-Pai como ponto de capitonê para a operação metafórica e, consequentemente, como paradigma da constituição da realidade psíquica. Assim, na neurose, o sintoma é pensado a partir do recalcamento pelo Nome-do-Pai. Na psicose, o desencadeamento é definido pela foraclusão, entendida como déficit da interdição operada pelo Nome-do-Pai. Dessa forma, a foraclusão (e não um déficit enzimático) explica a fenomenologia das mais variadas formas de exceção sofridas pelo sujeito na psicose – seja pelo servidor de uma obra de salvação, pelo virtuoso, ou pelo representante máximo da fé:

[...] quer ele seja, efetivamente, daqueles que fazem as leis, quer se coloque como pilar da fé, como modelo de integridade ou de devoção, como virtuoso, como servidor de uma obra de salvação [...], de nação ou natalidade, de salvaguarda ou salubridade, de legado ou legalidade, do puro, do pior ou do império, todos eles ideais que só lhe fazem oferecer demasiadas oportunidades de estar em posição de demérito, de insuficiência ou até de fraude e, em resumo, de excluir o Nome-do-Pai de sua posição no significante (Lacan, 1955-1956/1998, p. 586).

No quadro das premissas estruturais, que rigorosamente diferenciam neurose e psicose, ao afirmar que a fórmula NP-NPo reforça a condução lógica da construção do caso nesse momento do ensino de Lacan, sendo que NPo é a escrita que define as modalidades de desencadeamento: uma causa acidental (é o caso, por exemplo, do encontro com Um-pai), a dissolução de um elemento estabilizador (uma identificação), a operatividade de uma causa específica (a foraclusão do significante paterno). Além disso, os fenômenos psicóticos são legíveis a partir dos efeitos estruturais da foraclusão do Nome-do-Pai (NPo): alucinações e transtornos de linguagem (ecos de pensamento, automatismo mental), transtornos da palavra e da enunciação, alucinações verbais e fenômenos ligados à imposição do pensamento (MILLER, 2004).

O Segundo Ensino e a Clínica de Lacan Centrada no Objeto a

A ênfase no diagnóstico diferencial, hegemônica na versão estruturalista do inconsciente, encurralara o sintoma e, consequentemente, o sujeito, na dialética do universal (definido pelo binarismo NP-NPo) e do particular (operacionalizado pelo sintoma neurótico e pelo fenômeno elementar na psicose). Nessa época, o poder de generalização decorrente da lógica do significante já esbarrara na formulação sobre a categoria de Coisa, presente no seminário A ética da psicanálise (1959-1960/1988). A evidência de um elemento irredutível ao significante, na forma da contaminação do Bem pelo gozo – tal como Lacan constatara pela conjugação de Kant com Sade –, fragilizou a hegemonia do simbólico sobre o gozo e, consequentemente, do Nome-do-Pai na condição de significante universal da interdição do gozo. Ao problematizar a relação entre a lei do significante e o gozo, Lacan evidencia o estatuto singular do Nome-do-Pai, convertendo-o em um princípio próprio para cada sujeito.

Esse abalo da lógica do significante, a partir da categoria de Coisa, ganha proporção a partir do seminário A angústia (1962-1963/2005), no qual Lacan investiga o status desse afeto e sua relação com a castração e dá início a elaboração teórica do objeto a. De fato, o princípio explicativo da angústia de castração é localizado por Lacan, a partir desse seminário, no apagamento da função fálica no ato sexual, evidenciando, assim, a presença de um elemento causal que não se esgota na ameaça oriunda do Outro, que não depende de uma referência edipiana na forma da metáfora paterna, mas que se refere diretamente ao falo e a seu funcionamento na cópula – fato que, nesse momento do ensino, será teorizado pelo objeto a e, posteriormente, por meio da sexuação (MILLER, 2005).

A localização do princípio da angústia de castração no apagamento do órgão é o marco dessa inversão conceitual que possibilitará a extensão da clínica psicanalítica para além da lógica do significante e da economia do desejo. Os operadores clínicos edipianos da metáfora paterna e do desejo enigmático da mãe recuam no ponto em que a angústia evidencia a presença de um elemento causal primeiro, não especularizável e não agalmático, anterior e irredutível à máquina simbólico-edipiana de domesticação do gozo pelo Nome-do-Pai. Esse elemento será isolado no seminário 10, por meio da notação objeto a.

Esse recuo do operador edipiano do Nome-do-Pai será abordado em outro momento fundamental dos seminários de Lacan. Trata-se do Seminário 11, “Os quatro conceitos fundamentais, no qual Lacan (1964/1985) escreve a fórmula do ateísmo – Deus é inconsciente – extraída do comentário a respeito do sonho Pai, não vês que estou queimando? Tal fórmula evidencia a própria estrutura do inconsciente para Lacan: um pai que nada sabe diante do fogo real que invade o corpo inanimado de um filho, como correlato de um inconsciente que já não funciona exclusivamente a partir da metáfora paterna. A morte do Pai – que, desde a descoberta freudiana do inconsciente, fora o eixo em torno do qual se deduzira a estrutura do sujeito a partir da renúncia à satisfação pulsional – cede seu lugar a um real sem lei, resistente à palavra. O abalo do paradigma do Nome-do-Pai tem uma consequência clínica importante para a direção de tratamento da psicose. A compensação identificatória, abordada no seminário “As psicoses” (LACAN, 1955-1956/1985, p. 230), é pensada como modalidade de reparação do simbólico, abrindo a possibilidade para elaborar, a partir dos anos 1970, no marco de seu último ensino, a suplência do Nome-do-Pai nas psicoses.

Dessa forma, entre os anos de 1968 e 1970, Lacan orienta seu trabalho conceitual sobre o pai no sentido de apreender o desejo do analista, o desejo de Freud pela psicanálise, para além da sombra religiosa da morte do pai. De fato, em “Radiofonia” (1970/2003), Lacan denunciará o núcleo de religiosidade na elaboração teórica de Freud, ao eternizar o pai pela sua morte e, consequentemente, submeter a economia pulsional a seu regime. O texto em questão formaliza, assim, a posição de Lacan em relação à psicanálise: a psicanálise menos o desejo de Freud de eternizar o pai pelo Édipo e mais a tentativa de elaborar uma resposta diante do fato de a pulsão ter, na atualidade, assumido a posição de comando.

É elucidativo o fato de Lacan retomar Moisés evidenciando que o Pai é uma formação de compromisso, uma montagem diante do indomesticável da pulsão. A imposição desse real sem lei será, ainda, isolada na retomada da discussão clínica do caso Schreber, em “Apresentação das memórias de um doente dos nervos” (LACAN, 1966/2003), em que Lacan ressalta, em primeiro lugar, que qualquer coisa colocada no real representa para o sujeito algo de si mesmo que jamais será simbolizado e, em segundo lugar, que a submissão de Schreber em relação a Deus é a submissão ao gozo de Deus (respaldado pelo próprio ser de Schreber). Nesse escrito, a relevância clínica da irrupção do real na psicose é tributária da progressiva relevância teórica do conceito de gozo, do abalo da hegemonia do simbólico no interior do qual o gozo é definido como mortificado pela linguagem e, consequentemente, do entendimento da experiência subjetiva para além do binômio imaginário-simbólico que marcou o primeiro ensino.

A evidência, a partir dos anos 1960, da angústia na clínica da neurose, de um núcleo da repetição para além do automatismo do significante, bem como a retomada em 1966 da discussão clínica do caso Schreber serão, portanto, o ponto de partida para a orientação do último ensino – afinado com a causa, o real e a contingência e sustentado nos axiomas da inexistência do Outro e do “saber fazer com o gozo”.

Esse pedaço de real sem lei correlato ao axioma da inexistência do Outro também ganha poder de generalização. O seminário “O avesso da psicanálise” (LACAN, 1969-1970/1992) representa o momento em que o objeto a pluralizado na anatomia do corpo é transportado para o campo do discurso, generalizando-se para a própria organização da atualidade histórica. Nesse sentido, o seminário 17 manifesta o trabalho conceitual de um Lacan que conjugará a teoria marxista da mais-valia com o aforismo nietszchiano da morte de Deus – só para localizar o giro discursivo que lança o objeto a para o zênite da civilização. Por meio da risada irônica do capitalista – que, em sua defesa dos novos tempos, da nova experiência biológica e social que se instaura entre o corpo e a máquina, entre o gozo e o significante –, Lacan (1969-1970/1992) elucida o momento em que ocorre o giro discursivo no discurso do mestre, que colocará o objeto a na posição de agente. Sobre as consequências dessa ascensão do objeto a é possível afirmar, então, que desde os anos 1950, no momento em que ocorre a expansão tecnológica da síntese de psicotrópicos, a época se caracteriza pela colonização do inconsciente e da sexualidade a partir do saber científico, convertendo tais conceitos nas categorias quantitativas de redes neurais, informação e inconsciente cognitivo. A atualidade do ensino de Lacan reside na competência de seus axiomas para o tratamento rigoroso dos problemas que a época impõe à clínica, isolando o quadro sintomático atual: os desligamentos da pulsão em relação ao Outro, a pregnância do eixo imaginário, a presença maciça do pai da realidade, a falência do sentimento da vida, a experiência de fuga do sentido. Esse quadro impõe a mudança de eixo da pesquisa em psicanálise no sentido de sustentar não só a importância da teoria lacaniana do gozo, como também de indicar a fratura no eixo simbólico típica de nossa época. Ele também impõe a preocupação com a direção do tratamento a partir desse quadro sintomático atual, sem recuar diante da perspectiva diferencial entre neurose e psicose. É a partir desse momento que o axioma sobre o saber fazer com o gozo – e das suplências com função reparadora do simbólico nas psicoses –, efetivamente, terá lugar no ensino de Lacan.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ULTIMÍSSIMO ENSINO DE LACAN E A CLÍNICA DOS MODOS DE GOZO

Os sintomas contemporâneos – da anorexia às farmacodependências – evidenciam que a subjetividade segue a expansão do paradigma biológico. Supõe-se, assim, que o modo de relação entre o sujeito e o Outro social, a regulação de sua satisfação e, consequentemente, a formação do sintoma estão intimamente relacionados ao desenvolvimento do saber científico de uma época. Dessa forma, no século XIX, a paralisia histérica se constituiu como sintoma articulado à expansão da neurologia. E, em nossos dias, as depressões, a anorexia, as farmacodependências e as psicoses ordinárias apresentam-se como formas sintomáticas diante do declínio dos Ideais que compõem o Outro social, à ascensão do imperativo de consumo e da expansão da neurociência como discurso que fundamenta a produção dos fármacos. Como, então, situar a importância da psicanálise na atualidade?

O fundamento do DSM obedece a uma orientação biopolítica, que prescreve a fixação de categorias identitárias, monossintomáticas, visando colocar em circulação novos modos de captura da experiência subjetiva e a redução das margens de não conformidade às regras sociais (MILLER, 2006). Nesse contexto, a atualidade do ensino de Lacan reside na relevância que, progressivamente, será concedida à experiência do real e suas modalidades clínicas. De fato, o conjunto dos sintomas contemporâneos rejeita a orientação diagnóstica diferencial da clínica estrutural clássica, pautada na polarização em torno do significante do Nome-do-Pai: neurose (recalcamento das pulsões pelo Nome-do-Pai) e psicose (foraclusão do Nome-do-Pai). E, consequentemente, tais sintomas não obedecem aos efeitos do mecanismo de recalcamento – pedra angular da psicanálise para a explicação causal da formação do sintoma neurótico. Não são sintomas caracterizados pela conversão ou deslocamento da libido, pela identificação ao pai impotente, por acontecimentos de corpo, rituais obsessivos, lacunas de memória, insatisfação do desejo, intensificação da atividade mental que acaba por exaurir o sujeito. Da mesma forma, não são fenômenos de natureza, explicitamente, foraclusiva, do tipo: alucinações e transtornos de linguagem, transtornos da palavra e da enunciação, alucinações verbais e imposição do pensamento. Ao contrário constatam-se, nos sintomas contemporâneos, elementos muito precisos para a elaboração de uma hipótese diagnóstica: a fuga do sentido, a falência do sentimento de vida, a predominância da passagem ao ato e da nomeação monossintomática. Para Stevens (2009), por exemplo, a pregnância dos monossintomas pode ser indicativa de uma psicose ordinária, sem a presença de um delírio explícito ou de alucinações regulares, e com as seguintes características:

1. Organização do laço social e da identificação, exclusivamente ou principalmente, pelo eixo imaginário: o sujeito se faz o mais semelhante possível aos supostos semelhantes.

2. Sentimento de vazio na experiência subjetiva do sujeito, concordando com o que Freud, em Luto e melancolia (1915/1987), declarava a respeito da melancolia psicótica: a identificação ao vazio.

3. Presença de acontecimentos de corpo, explícitos nos fenômenos hipocondríacos.

4. Ocorrência da errância subjetiva.

Como a psicanálise mantém sua prática pautada no diagnóstico e na direção de tratamento sem se inserir em um grande movimento de recomposição da consistência do Outro conduzido pela biopolítica?

O caso de Sergei Pankeiev, analisado por Freud, é particularmente importante na construção de uma resposta a essa pergunta que se contraponha à direção de tratamento da psiquiatria biológica, pautada no DSM-IV. O Homem dos Lobos antecipa a elaboração epistemológica do conceito de inconsciente real, totalmente separado da história, sem a ocorrência de uma interrupção da cadeia significante S1-S2 por uma formação do inconsciente indicativa do sujeito (MILLER, 2007). Em O ultimíssimo ensino de Lacan, Miller (2007) localiza no Homem dos Lobos o caso exemplar de uma psicose ordinária para os tempos de Freud e, ainda, paradigmática dos dias atuais. Miller (2007) se ancora no relato da alucinação pontual do dedo cortado para ressaltar a presença, na psicose, de um real localizado fora da simbolização. De fato, a declaração de Sergei Pankeiev de que não experimentara dor, mas um sentimento de inexprimível terror diante do dedo cortado, e de que não endereçara à babá o que lhe acontecera – deixando-se cair sobre o assento mais próximo – é indicativa dos elementos sintomáticos de uma psicose ordinária, também presentes no olhar fixo dos lobos sobre ele: a invasão de um pedaço de real, a identificação ao vazio que o impossibilitou de endereçar ao Outro uma mensagem, a ocorrência de acontecimentos de corpo na forma do terror paralisante e da perplexidade, e a identificação à versão dejeto do objeto a.

A redução da psicopatologia à objetivação dos sintomas manifestos, conduzida pelo instrumento de avaliação e diagnóstico da psiquiatria biológica, suprime esses elementos imanentes à disciplina do diagnóstico diferencial em psicanálise, como também a íntima conexão que existe entre diagnóstico e direção de tratamento. Assim, uma psiquiatria biológica, orientada pelo DSM-IV e sustentada na formação identitária típica dos monossintomas, concentrar-se-ia nas características comportamentais do medo de Sergei Pankeiev, com relação aos lobos, confundiria a perplexidade, típica dos quadros de psicose, com ansiedade e, certamente, o classificaria como portador da síndrome monossintomática do pânico.

 

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Endereço para correspondência
Claudia Henschel de Lima
E-mail:claudia.henschel@yahoo.com.br

Adilson Pimentel Valentim
E-mail:adilsonpvalentim@gmail.com

Carlos Emmanuel Rocha
E-mail:carlos.efr@gmail.com

Natália Rodrigues
E-mail:nataliafrpsi@yahoo.com.br

 

Submetido em: 17/12/2009
Revisto em: 25/02/2010
Aceito em: 10/03/2010

 

1A sigla NP designa a presença do Nome-do-Pai na estruturação psíquica. A sigla NPo designa a ausência do Nome-do-Pai.

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